Uma guerra evolutiva dentro de nós

Em um novo estudo, publicado na revista Nature, uma equipe de pesquisadores fornece mais evidências de que o genoma dos primatas foi moldado por uma batalha, ainda em curso, entre elementos genéticos móveis (“genes saltadores”), derivados de infecções virais ancestrais, e os genes que evoluíram em resposta a estes elementos e que controlam sua expressão, sendo talvez esta  ‘corrida armamentista evolutiva’ um dos principais impulsos por trás da evolução regulatória e do aumento de complexidade genômica de nossa linhagem [1].

Ao longo de sua evolução, os primatas tiveram seus genomas modificados por ondas de inserções de retrotransposon, que foram seguidas pela evolução de maneiras de reprimir a transcrição desses retrotransposon e sua expansão pelos genomas e evitar novas inserções. Estes retrotransposons uma vez inseridos só podem se replicar dentro do genoma e dependendo de onde uma nova cópia é inserida, um ‘salto’ destes pode perturbar genes normais, produzindo mutações e ocasionando doenças. Porém, outras vezes, estes efeitos são mínimos e negligenciáveis para o hospedeiro, simplesmente aumentando o tamanho total do genoma, evoluindo de maneira neutra. Em outras circunstâncias, entretanto, muito mais raras, estes saltos e expansões podem trazer consequências vantajosas aos hospedeiros, uma vez que o novo DNA adicionado pode ser uma fonte de novos elementos reguladores que aumentam a expressão do gene [1] [Figura ao lado. Autor: David Greenberg]. Contudo, como estes eventos são raros e a probabilidade de efeitos desvantajosos (deletérios) é maior, isso implica que a seleção natural normalmente favorece a evolução dos mecanismos de prevenção destes ‘saltos’ [1].

Estima-se que ‘elementos móveis de transposição’ constituam, pelo menos, 50 por cento do genoma humano, sendo os retrotransposons, de longe, o tipo mais comum [Para saber mais sobre isso leia “Sobre sucata, lixo, DNAs egoístas, comensais e simbiontes:“]. Entre os genes repressores estão aqueles que codificam “proteínas dedos de zinco”, como as da família KRAB, capazes de ligarem-se ao DNA e reprimirem a atividade dos genes adjacentes, constituindo-se no maior grupo de proteínas reguladoras nos mamíferos [1]. O genoma humano por exemplo possui mais de 400 genes que codificam proteínas dedo de zinco da família KRAB, com cerca de 170 delas tendo surgido desde que os primatas divergiram dos outros mamíferos [1].

O estudo em questão centrou-se em duas proteínas humanas chamadas ZNF91 e ZNF93 que ligam-se a certas regiões do DNA e, desta maneira, reprimem duas das principais classes de retrotransposons (conhecidos como SVA e L1PA) que estão ainda (ou estavam até há pouco tempo) ativos nos genomas dos primatas. Frank Jacob, primeiro autor do artigo, pós-doutorando, e o aluno de doutorado, David Greenberg, desenvolveram uma estratégia para avaliar os retrotransposons de primatas em células-tronco embrionárias de camundongos, que contêm um único cromossomo humano. Neste ambiente celular, os ‘genes saltadores’, que normalmente são reprimidos em células de primatas, tornam-se ativos. Em seguida, Greenberg desenvolveu um ensaio para testar proteínas ‘dedos de zinco’ individuais em relação a sua capacidade para desativar genes saltadores de primatas neste ambiente de células de camundongos. Por meio destes ensaios os pesquisadores conseguiram mostrar que os genes (KRAB) KZNF parecem realmente permitir que os primatas respondam aos retrotransposons recém surgidos. Os cientistas mostraram que dois genes KZNF específicos primatas (ZNF91 e ZNF93) evoluíram rapidamente para reprimir duas famílias (SVA e L1) distintas retrotransposons, logo depois que eles começaram a se espalhar em nosso genoma ancestral [2].

O estudo revelou que a proteína ZNF91 sofreu uma série de mudanças estruturais entre 8-12.000.000 de anos atrás, o que lhe permitiu reprimir elementos do tipo SVA, enquanto a proteína ZNF93 evoluiu mais cedo, reprimindo os elementos L1 até por volta de 12.500.000 de anos atrás, quando a subfamília dos retrotransposons L1PA3 escapou ao controle ZNF93 através da perda do sítio de ligação à ZNF93. Estes resultados apoiam o modelo no qual a expansão dos genes KZNF limitam a atividade de classes de retrotransposons que surgiram mais recentemente, o que foi seguido por mutações nestes retrotransposons que permitem a eles evadirem esta repressão, o que levou a um novo ciclo de eventos, potencialmente explicando a expansão rápida de genes KZNF específicos desta linhagem.

Porém, mesmo esta corrida armamentista pode ter tido consequências secundárias inadvertidas e importantes na evolução dos primatas. Como a repressão de um ‘gene saltador’ também afeta genes próximos a ele, no mesmo cromossomo, os pesquisadores suspeitam que esses repressores foram cooptados para outras funções de regulação genica (que dependem do mesmo sistema de ligação ao DNA e repressão da atividade de genes próximos); com estas novas funções tendo persistido e evoluído muito mesmo depois que os genes saltadores (que foram a pressão seletiva original por trás da  evolução e fixação destes genes regulatórios) já tivessem sido completamente inativados e degradados devido ao acumulo de mutações aleatórias [1]. Assim, este processo co-evolutivo antagônico (veja mais sobre isso emRainhas, besouros e fungos ‘degenerados’”, “Por que genes imunitários que nos prejudicam persistem?” e “As vantagens da recombinação e do sexo) entre o genoma do hospedeiro e os genes saltadores‘ (que agem como verdadeiros  ‘parasitas intragenômicos’), ao produzir o acúmulo de camadas adicionais de regulação da expressão gênica nas adjacências de outros genes importantes para o hospedeiro, acabou por produzir matéria-prima regulatória adicional que permitiu a evolução de novas características e funções em um processo de ‘exaptação regulatória’ [Veja mais sobre isso em “Além da seleção natural II: Complexidade e novas funções por caminhos alternativos” ].

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Referências:

  1. Stephens, Tim Human genome was shaped by an evolutionary arms race with itself http://news.ucsc.edu, September 28, 2014 .

  2. Jacobs, Frank M. J., Greenberg, David, Nguyen, Ngan , Haeussler, Maximilian, Ewing, Adam D., Katzman, Sol, Paten, Benedict, Salama, Sofie R., Haussler, David. An evolutionary arms race between KRAB zinc-finger genes ZNF91/93 and SVA/L1 retrotransposons. Nature, 2014; DOI: 10.1038/nature13760

Dentes, armaduras e a evolução dos peixes esgana-gatas

Os peixes esgana-gatas de três espinhos têm sido de grande valia para o aprofundamento de nossa compreensão das bases moleculares da evolução morfológica adaptativa. Eles servem como um dos grandes modelos dos estudos de Evo-Devo – a biologia evolutiva do desenvolvimento. Estes animais são excelentes modelos de estudo tanto por causa de sua abundância e facilidade de coleta, bem como por serem de fácil manutenção em laboratórios, propícios a cruzamentos entre populações distintas (e entre espécies próximas); além de serem ótimos para estudos embriológicos e moleculares. Existe também um bom registro fóssil dos mesmos, tendo estes animais re-colonizado os mesmos tipos ambientes várias vezes a partir de populações marinhas em um ‘quase-experimento‘ natural replicado, que tem se repetido nos últimos 15 000 anos.

Este é um dos pontos mais importantes e que os tornam tão bons modelos de estudos de evolução. As  populações destes pequenos peixes passam por mudanças evolutivas muito rápidas quando se deslocam do oceano para os lagos de água doce. Elas perdem a sua armadura óssea e ganham mais dentes. Isso acontece em períodos de menos de 10 anos, permitindo que a evolução morfológica extensiva seja analisada em tempo real. Porém, talvez o ponto mais interessante seja o fato de estas mudanças rápidas não envolverem mutações nas regiões codificadoras dos genes – ou seja, naquelas porções do DNA que especificam diretamente as sequências de aminoácidos das proteínas. As mutações responsáveis por estas alterações ocorrem nas regiões de DNA (cis)regulatórias que são aqueles trechos não codificantes, mas que estão associados ao controle da transcrição dos genes e portanto a regulação de sua expressão [1, 2.]

Espécime marinho adulto (acima) e de água doce dos esgana-gatas (parte inferior) de três espinhos marcados com um corante vermelho para as porções ósseas calcificadas. O peixe de água doce rapidamente perde sua armadura, nadadeira pélvica e outros ossos após a passagem do oceano para os lagos. (Foto cortesia de Nicholas Ellis e Craig Miller, UC Berkeley)[1]

Agora, um novo estudo traz evidências que um destes genes que codifica a proteína morfogenética óssea 6 (BMP6), cujo locus está localizado no cromossomo 21, seria o responsável pela variação do número de dentes entre as populações lacustres e marinhas. O mapeamento genético e estudos de expressão genica feitos nestes animais mostram que existem mudanças regulatórias neste gene e na vias de sinalização embriológicas nas quais ele está envolvido.  Os autores do artigo localizaram o gene e identificaram estes padrões de atividade diferencial cruzando esgana-gatas marinhos do Alasca com esgana-gatas de água doce do lago Paxton, no Canadá. Eles observaram que os peixes canadenses têm cerca de duas vezes o número de dentes das suas contrapartidas oceânicas do Alasca. Mantendo o padrão dos outros estudos sobre evolução morfológica de esgana-gatas, embora a região codificante deste gene pareça ser idêntica em todos os esgana-gatas estudados, as regiões reguladoras de DNA, próximas a região que codifica propriamente a proteína BMP6, são diferentes entre as populações marinhas e as de peixes de água doce que recentemente colonizaram estes ambientes. Este fato sugere que a regulação alterada é responsável pelos dentes extras. O gene do BMP6 é expresso em níveis mais elevados em peixes de água doce em relação aos peixes marinhos e esta simples mudança acaba por causar um aumento de expressão da proteína, o que leva a dobrar o número de dentes.

Estes aumentos na atividade da BMP6 ocorrem no final do desenvolvimento da larva do peixe, quando ela já mede quase dois centímetros e meio de comprimento e está na metade do caminho para a vida adulta. O interessante é que, antes deste período, tanto os peixes de água doce como os peixes marinhos têm o mesmo número de dentes. Os esgana-gatas oceânicos, eventualmente, param de adicionar novos dentes durante o seu desenvolvimento, como pode ser visto na imagem à esquerda que mostra a mandíbula superior de um peixe marinho, do Alasca. Já os animais de água doce, em claro contraste, continuam a adicionar novos dentes nas suas mandíbulas à medida que crescem ao longo de todo seu período de vida, conforme a área da placa dentária e a densidade dos dentes vão aumentando.

“Descobrimos que os esgana-gatas de água doce continuam a produzir dentes constantemente e nunca parecem abrandar, ao passo que a forma ancestral deixa de produzir mais dentes”, “Embora os biólogos já saibam há muito tempo que os tubarões e alguns peixes substituem continuamente seus dentes, quase nada se sabia até agora sobre a base genética das mudanças evolutivas nos padrões dos dentes.” afirma Craig [1].

Os espécime selvagens de um lago canadense (à direita) desenvolveram mais de 140 dentes, quase o dobro do que o peixe selvagem do oceano. (Barra de escala é de 1 milímetro). (Imagem Craig Miller) [1]

Assim, segundo os autores do artigo [2], seus resultados, em conjunto, apoiam um modelo no qual a super-ativação tardia de regiões cis-regulatórias, que agem sobre a expressão da BMP6, estaria por trás deste aumento significativo no número de dentes dos esgana-gatas (bentônicos) [2], de água doce, que pertencem a populações derivadas de populações marinhas. Portanto, como explica Craig Miller [1], um dos autores do artigo, os resultados deste estudo, apresentados na revista PNAS [2], sugerem que este gene tem um papel chave na regeneração de órgãos em vertebrados, tendo implicações em como novas formas corporais podem ser produzidas, ao longo da evolução. O que ocorre por meio de modificações regulatórias deste tipo – isto é, que não precisam envolver alterações da proteína codificada pelo gene em si. Isso mostra que, além da perda de estruturas (como o caso da armadura óssea destes mesmos peixes), este tipo de alterações também são responsáveis pelo ganho de estruturas, como é o caso dos dentes extras [2]. Além disso, como existe uma relação entre número de dentes e certas má formações congênitas (como é o caso da fenda palatina em seres humanos) é possível que um equivalente (homólogo) humano do gene BMP6 possa também estar envolvido nestas condições, o que pode nos fornecer mais pistas sobre nossa própria espécie.

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Referências:

  1. Sanders, Robert [Media Relations] ‘Counting fish teeth reveals DNA changes behind rapid evolution‘ UC Berkeley News Center, September 17, 2014

  2. Cleves, P. A., Ellis, N. A., Jimenez, M. T., Nunez, S. M., Schluter, D., Kingsley, D. M., Miller, C. T. Evolved tooth gain in sticklebacks is associated with a cis-regulatory allele of Bmp6. Proceedings of the National Academy of Sciences, 2014; DOI: 10.1073/pnas.1407567111

Um peixe fora d´agua [video]

Um novo e criativo experimento pode lançar alguma luz sobre os tipos de mudanças que permitiram nadadeiras de vertebrados aquáticos ancestrais evoluírem em patas, como aconteceu com certos tipos de peixes durante o devoniano, dando origem aos tetrápodes. Este vídeo (em inglês) explica o experimento publicado na revista Nature [e alvo de um post recente do evolucionismo: “Andando como um peixe fora d´água”] e o contexto científico em que ele está inserido, ou seja, no estudo dos efeitos da plasticidade do desenvolvimento dos organismos em sua evolução.

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  • Standen, Emily M., Du, Trina Y. & Larsson, Hans C. E. Developmental plasticity and the origin of tetrapods Nature 27 August 2014 doi:10.1038/nature13708

Andando como um peixe fora d´água

Caminhando sob o sol, apoiando-nos em nossos pés e utilizando nossas mãos para limpar o suor do rosto, normalmente, não nos indagamos sobre os percalços que nossos ancestrais mais remotos e nossa linhagem como um todo, passaram para chegar  a este ponto em nossa história. Embora isso possa sugerir que seríamos o pináculo de algum movimento ascendente em direção ao ‘progresso evolutivo‘, tal conclusão não se sustenta a partir de um exame um pouco mais atento das evidências. Nós, seres humanos, como os demais seres vivos, somos uma mistura de caracteres ‘primitivos‘ (ou seja, mais antigos) e ‘derivados‘ (ou seja, mais modernos e que se derivaram dos caracteres mais antigos) [Filogenia Mastigada 1: Princípios de Filogenia e conceitos básicos’, ‘Filogenia Mastigada 2: Polarização de Séries de Transformações e o …’, ‘Filogenia Mastigada 3. Grupos Monofiléticos e Merofiléticos e a fil…’, ‘Filogenia Mastigada 4 : Interpretando uma árvore filogenética – par…‘ e ‘Filogenia Mastigada 5 – Interpretando uma árvore filogenética 2/2’.]. Por exemplo, ao mesmo tempo que mantemos o padrão de cinco dedos (pentadáctilo) ancestral típico dos vertebrados terrestres (Por que cinco dedos? e Contando dedos em aves e dinossauros), as aves sofreram redução neste padrão nos membros posteriores, além de terem passado por uma incrível modificação nos membros anteriores que permitiu que elas voassem, dando origem as asas (“Ladeira acima e morro abaixo”: Pistas para a evolução do vôo nas aves).

Adotamos uma postura bípede que nos permite caminhar sobre os dois membros posteriores (que viraram ‘inferiores’) e libera nossos membros anteriores (que viraram ‘superiores’) para manipular o ambiente com grande destreza e desenvoltura, já que as porções distais dos nossos membros anteriores (autopodes), isto é, nossas mãos, apesar dos cinco dedos tipicamente ancestrais, exibem uma sofisticada capacidade de movimentos e de controle da pressão exercida pro eles, que em outros aspectos é bastante derivada. No entanto, a despeito da postura bípede, mantemos o padrão tetrápode (‘quatro patas‘) ancestral, enquanto outros vertebrados, como as serpentes [Imagem:  Simon Murrell/CULTURA/SCIENCE PHOTO LIBRARY] e os cetáceos, não, tendo passado por reduções, simplificações e até perdas dos membros. Do mesmo modo, apesar de respirarmos ar e sermos relativamente resistentes ao ressecamento, ainda levamos o ambiente aquático ancestral dentro de nós, como toda mulher grávida pode confirmar. Porém, estas constatações não diminuem o enigma envolvido na questão ‘Como chegamos até aqui?‘. Entender como nós e os outros seres vivos chegamos ao estado em que chegamos a partir de estados pregressos diferentes é uma das principais tarefas da biologia evolutiva, o que obviamente traz uma série de desafios e questões, algumas delas que vão além das evidências e consenso da comunidade científica e chegam a como devemos interpretar certos ‘termos’ e ‘conceitos’ ou mesmo em se aceitar algumas constatações mais simples.

Basta refletirmos, por exemplo, sobre como, até hoje, ainda há grande resistência por parte de muita gente em aceitar que, tendo as características que temos e sendo primatas, compartilhamos um ancestral comum com os outros primatas, o que inclui macacos, tarsos e lêmures – o que implica (em um sentido bem real) que ainda somos ‘macacos‘ [Afinal, o homem descende do macaco? (vídeo de David Ayrolla ) e Afinal, viemos ou não viemos dos macacos? Três respostas possíveis.]. Porém, imagine aceitar que os seres humanos nem ao menos deixaram de ser peixes. Sim, nós, seres humanos, como vertebrados tetrápodes, somos um tipo de peixe ósseo (Osteichthyes), pertencendo ao grupo dos sarcopterígeos, que inclui, além dos ‘peixes de nadadeiras lobada‘ (como os peixes-pulmonados e as Latmerias), os ‘peixápodes‘ (Elpistostegalia) e outros tetrápodes mais primitivos. Portanto, compreender como animais de ‘quatro patas’, que respiram ar e andam sob o sol, como nós mesmos, evoluíram a partir de seres aquáticos é um destes grandes desafios.

Apesar de já estar bem estabelecido que descendemos de certos tipos de ‘peixes-tetrápodes‘ ancestrais, semelhantes ao Tiktaalik, Panderichtys etc [além de também temos uma razoável ideia de uma parte da série de modificações do esqueleto apendicular (nadadeiras/patas)], existem mais dúvidas sobre os detalhes de onde, quando e, principalmente, como isso aconteceu. Umas das dificuldades de sondar os processos e mecanismos pelos quais estas etapas da transição se deram é que só temos fósseis dos animais com as características de transição nas quais estamos interessados, aqueles como o Eustenopteron, Glyptolepis, Sauruipteris Panderichthys, Tiktaalik, Acanthostega, Ichthyostega, Tulerpeton etc. Infelizmente, nos dias de hoje, só existem vertebrados tetrápodes bem mais derivados ou descendentes de sarcopterígeos mais antigos (e com características apendiculares bem primitivas), como os peixes-pulmonados e as Latmerias, cujos ancestrais mais diretos separam-se de nossos ancestrais antes da transição de nossos ancestrais ‘peixápodes‘ para os tetrápodes mais primitivos, ou seja, antes da transição da água para a terra. Mesmo assim, os estudos genéticos, anatômicos, biomecânicos, embriológicos nestes animais remanescentes são muito úteis, apesar de terem certas limitações.

A outra alternativa é empregar animais bem mais distantes (e bem mais derivados), mas que evoluíram soluções anatômicas e comportamentais, semelhantes, mas de maneira independente, àquelas dos nossos ancestrais ‘peixápodes‘. A ideia seria a seguinte:  Ao investigar as circunstâncias ecológicas nas quais estes animais vivem e empregam suas habilidades, poderíamos, a partir daí, tentar fazer inferências sobre o tipo de pressões ecológicas que nossos ancestrais poderiam ter sofrido e quais as consequências fisiológicas, anatômicas e biomecânicas estas circunstâncias teriam acarretado sobre eles. O uso de peixes-morcego e do famoso Mudskipper [Imagem: PETER SCOONES/SCIENCE PHOTO LIBRARY] é um exemplo deste tipo de abordagem. Aqui, mais uma vez, nos deparamos com certas limitações. Nestes casos, as limitações são bem óbvias, uma vez que o movimento sobre o chão e as estruturas que estes animais empregam para fazê-lo  são realmente muito diferentes das dos ‘peixápodes‘, ancestrais dos tetrápodes. Felizmente, sempre se pode dar um jeitinho para tentar criar modelos mais próximos ao que desejamos e usar essa variedade de estratégias para balizar umas as outras.

Um exemplo deste ‘jeitinho‘ é maravilhosamente ilustrado pelo trabalho desenvolvido pela pesquisadora (estagiária de pós-doutorado) da Universidade McGill (e agora Universidade de Otawa), no Canadá, Emily M. Standen, que rendeu um fantástico trabalho, publicado na revista Nature algumas semanas atrás. O trabalho foi realizado com a colaboração de outros dois pesquisadores, Trina Y. Du, estudante de Doutorado, e Hans C. E. Larsson. Este último orientador de Standen.

O insight de Emily foi usar um peixe diferente dos já mencionados anteriormente como modelo experimental. Os animais escolhidos foram da espécie Polypterus senegalensis, que, além de conseguirem respirar ar (possuindo pulmões)também podem apoiar-se sobre suas nadadeiras peitorais de modo a conseguirem impulsionar-se por ambientes terrestres, atravessá-los e, desta maneira, alcançar outros corpos d’água. Estas características tornam possível que eles sejam criados  fora d’água, em um ambiente bem úmido, claro, mas, ainda assim, em que fatores como a gravidade tenham um impacto bem maior do que tem debaixo d’ água. Porém, este peixe traz outra grande vantagem. Apesar de ser um peixe de nadadeiras raiadas, portanto, um actinoppterígeo (como o mudskipper e o peixe-morcego), os Polypterus são considerados  actinopterígeos  bem basais, isto é, eles estariam mais próximos à base da árvore deste grupo, tendo seus ancestrais mais diretos divergido bem no começo da história dos peixes de nadadeiras raiadas,  e, desta forma, podem manter características mais próximas àquelas do ancestral comum entre actinopterigeos e sarcopterígeos;  sendo assim, possivelmente, também mais próximas daquelas dos ‘tetrápodes tronco‘ [2] e dos ‘peixápodes’ extintos, que são os grupos nos quais os pesquisadores estão mais interessados. Esta posição na árvore de parentesco dos vertebrados, em particular, os tornaria um modelo mais ‘limpo‘ do que os dos demais actinopterígeos, já que as adaptações locomotórias dos Polypterus teriam ocorrido a partir de estruturas bem mais primitivas e portanto mais antigas.

Mas este estudo não é interessante só por causa do seu modelo, mas também pela pergunta científica que ele busca começar a tentar responder: Qual teria sido o papel da plasticidade fenotípica no desenvolvimento dos animais quando estes enfrentam condições diferentes das que estão normalmente acostumados e qual o possível efeito disso na evolução  [2]?

Mas o que exatamente foi feito neste estudo?

Em primeiro lugar, Standen criou vários espécimens de Polypterus em cativeiro, começando com animais com 149 animais, obtidos de um fornecedor de peixes quando estes animais tinham apenas 2 meses de idade. Ela então manteve 111 destes peixes em um terrário, por períodos de oito meses, fora d´água, enquanto os demais foram mantidos em um aquário, nas condições típicas em que esta espécie de peixe normalmente vive [2]. Após os oito meses foram comparados os esqueletos, os padrões de natação e as habilidades de caminhada destes dois grupos de animais, medindo a plasticidade desenvolvimental anatômica e as características biomecânicas dos corpos destes animais criados em ambiente terrestre e comparando os resultados obtidos com o que foi observado nos peixes da mesma espécie, porém, criados em aquários, em paralelo, como controles [2]. Standen, Du e Larsson puderam observar que as modificações anatômicas e biomecânicas sofridas pelos animais em resposta ao ambiente terrestre guardavam uma notável similaridade com as alterações anatômicas exibidas pelas espécies mais primitivas de tetrápodes, conhecidas através do registro fóssil, oferecendo importantes insights sobre a evolução morfológica e comportamental de nossa linhagem de vertebrados terrestres.


Na figura acima, extraída de [3], vemos uma sequência de caminhar típica de Polypterus em terra, No primeiro quadro, à esquerda, observamos o peixe apoiar-se em sua nadadeira peitoral esquerda, enquanto seu corpo ondula e projeta sua nadadeira direita à frente. Em seguida (em b e c), a cabeça e cauda viram em direção à nadadeira esquerda; e (em d), finalmente, vemos a nadadeira direita apoiada no chão, enquanto a esquerda é levantada [3].

Peixes que andam melhor que os peixes que nadam:

Várias observações importantes foram feitas em relação aos peixes criados em ambiente terrestres. Para começar, estes animais desenvolveram nadadeiras dianteiras quase em linha reta, ao invés de  voltadas para os lados, que é o padrão da linhagem em seu ambiente aquático. Isso permite que as cabeças destes animais sejam levantadas mais alto em relação ao chão, de modo que eles podem colocar mais peso sobre as nadadeiras [1], como descreve a jornalista Elizabeth Penisi em seu blog da revista Science.

Os ossos que suportam as nadadeiras e ligam-nas na parte de trás da cabeça tomaram novas formas. Esses ossos formam a cintura escapular. Um osso, o equivalente ao nosso osso da clavícula que se estende sob o peito, cresceu suportando melhor o peso do corpo. A ligação entre ele e outro osso que vai até a lateral do peixe ficou mais forte, mas que este mesmo osso tornou-se mais fino o que permitiu mais espaço para a cabeça balançar de um lado para outro. O contato entre outro osso peitoral e o crânio também foi diminuído, possibilitando que a cabeça move-se para cima e para baixo. A maioria dos peixes não precisam de tal flexibilidade na cabeça, porque na água eles facilmente mover seus corpos para olhar ou comer em uma direção diferente. [1]

Então o que acontece é que quando estes peixes empurram o chão com suas nadadeiras para darem um passo, elas não escorregam, permitindo que eles deem passos mais rápidos, como mostra o vídeo [1]:

Como explicam os autores do artigo [2]:

“Ao colocar este animal predominantemente aquático em um ambiente obrigatoriamente terrestre, mudamos as forças experimentadas pelo sistema músculo-esquelético do animal. Nós previmos que as forças gravitacionais e de fricção aumentadas experimentadas pelos peixes terrestrializados causaria mudanças na “eficácia” do seu comportamento locomotor quando deslocam-se via terrestre, bem como alterações na forma das estruturas esqueléticas usadas na locomoção. Também previmos que as respostas plásticas da cintura peitoral do Polypterus terrestrializado seria na mesma direção das alterações anatômicas vistas no registro fóssil dos tetrápodes basais.” [2]

Outro fato interessante é que os peixes criados em ambiente terrestre podem nadar quase tão bem como suas contrapartidas aquáticas, sugerindo que não haveriam ‘trade-offs‘ óbvios entre ser um bom nadador e um bom caminhante [3], o que poderia ter facilitado a evolução dos primeiros vertebrados ‘peixápodes’, caso exibissem este nível de plasticidade fenotípica ao se desenvolverem. Além disso, os peixes criados em ambiente terrestres exibiam menos variação no comportamento locomotor, apoiando suas nadadeiras peitorais mais perto de sua linha mediana corporal, conseguindo elevar mais suas cabeças e escorregarem menos suas nadadeiras, o que permite um volteio mais eficaz da parte anterior do corpo apoiada sobre a nadadeira [2]. De acordo com os autores do artigo, tais características melhoram o desempenho durante locomoção em terra.

O que então parece ter acontecido é que essas mudanças no padrão de caminhada dos Polypterus provavelmente afetaram as forças experimentadas pelo esqueleto destes animais, influenciando o crescimento do seu esqueleto e induzindo uma mudança na forma dos ossos. Portanto, a mudança comportamental imediata causa mudanças nas relações físicas entre o organismo e o ambiente que afetam seus processo de desenvolvimento e crescimento.

Com base nestas observações, os pesquisadores previram que mudanças comportamentais semelhantes estariam presentes em tetrápodes mais primitivos. E foi isso que constataram ao examinarem os fósseis destes animais, já que as diferenças na morfologia óssea verificada nos Polypterus terrestrializados‘ são muito parecidas com as mudanças evolutivas na base das cinturas peitorais que ocorreram nos tetrápodes durante o período Devoniano [2], como aquelas identificadas em Eusthenopteron, Acanthostega e Ichthyostega [2].

Na figura ao lado, retirada do artigo [2], podemos conferir um cenário proposto pelos autores para a contribuição da plasticidade desenvolvimental à mudança evolutiva em larga escala nos tetrápodes basais (tronco). À esquerda vemos perspectivas anterodorsolaterais da cintura peitoral dos tetrápodes tronco (considerados mais primitivos) selecionados (A, B, C) ​​e dos peixes Polypterus criados na terra (D) e na água (E). Em seguida são mostradas as mudanças morfológicas associadas a plasticidade devesenvolvimental comparáveis​​: a redução do supracleitro (a), a redução da margem posterior do da câmara do opérculo (b), reforço do contato cleitro-clavicular (c) e o estreitamento e alongamento da clavícula (d). ano, anocleitro; cl, cleitro; cla, clavícula; por, cume pós opercular (note que o cume em Cheirolepis não é diferente, mas é posicionado lateralmente, como é mostrado); scl, supracleitro.

Embora, como lembram alguns pesquisadores que não participaram do estudo [1], atualmente a maioria dos pesquisadores da área defenda que os membros dos tetrápode evoluíram originalmente no contexto da locomoção em ambientes aquáticos (sobre os fundos ou sobre galhos submersos), este estudo mostra a importância da flexibilidade fenotípica, ou seja, da capacidade que os seres vivos têm de responder à mudanças ambientais conforme crescem e desenvolvem-se, o que mostra que não há necessariamente um fenótipo único e pré-programado.

Estes resultados levaram os pesquisadores a indagarem-se sobre quais seriam as implicações destas similaridades na evolução dos tetrápodes, como colocou John Hutchiinson em artigo na Nature, comentando o trabalho de Standen, Du e Larsson:

Será que, durante o período Devoniano (cerca de 360 a 420 milhões de anos atrás), os ancestrais dos ‘peixíbios’ tetrápodes,  que debatiam-se de tempos em tempos sobre a terra, passaram gradualmente de uma anatomia e de comportamentos mais  desenvolvimentalmente flexíveis (como o de Polypeturs) para formas e funções as mais canalizadas dos tetrápodes adaptados à terra?”

A ideia básica é a seguinte: O fato de indivíduos em ambientes diferentes dos seus costumeiros, submetidos portanto a novos estresses ambientais abióticos distintos, poderem expressar fenótipos diferentes pode por si mesmo influenciar indiretamente a evolução adaptativa das populações as quais eles fazem parte. Isso aconteceria por que tais fenótipos diferentes moldariam novas pressões seletivas, uma vez que modificariam a relação entre organismo e o ambiente. Isso por sua vez, poderia, por exemplo, tornar as populações que sofrem estas modificações suscetíveis a assimilação e a acomodação genética (conceitos propostos por Conrad Waddington que foram explorados em maior detalhe nesta reposta aqui de nosso tumblr) [3], principalmente, caso condições ambientais estressantes liberassem variabilidade genética críptica [2]. Desta maneira, eventualmente, estes fenótipos alternativos, inicialmente induzidos ambientalmente (claro, caso vantajosos e na presença de variação genética oportuna), poderiam transformar-se em fenótipos desencadeados geneticamente (sendo expressos de maneira mais estável em uma gama mais ampla de condições ambientais), resultando na abolição da plasticidade anterior e levando a sua eventual fixação destas novas morfologias, comportamentos e formas de deslocamento [1, 2, 3].

Mas é  preciso um pouco de cuidado ao interpretar este modelo evolutivo em particular.  Estas afirmações podem ser facilmente confundidas com o que normalmente as pessoas chamam de ‘Lamarckismo’ (um termo infeliz, por sinal, veja aqui e aqui). É preciso enfatizar que os processos de assimilação e acomodação genética (e fenômenos como o efeito Baldwin) não envolvem a herança de caracteres adquiridos pelo uso e desuso, apenas ressaltam o papel de mudanças anatômicas, fisiológicas e comportamentais individuais (e induzidas por alterações nas relações entre organismo e o ambiente*, mas permitidas pelo genótipo anterior dos organismos) como potenciais iniciadoras de novas pressões seletivas ao revelarem variabilidade herdável antes não visível [Para maiores detalhes veja estas respostas, aquiaquiaquiaqui de nosso tumblr ‘Pergunte ao Evolucionismo‘].

O biólogo e blogueiro PZ Myers, em seu blog Pharyngula, explica em mais de detalhe a ideia que está por trás do experimento:

Os animais [Polypterus] têm uma capacidade intrínseca para a construção de membros mais fortes, que não é visível quando eles são criados de forma contínua em um ambiente aquático, mas quando eles são criados em um ambiente terrestre, eles tendem a reforçar os ossos de um jeito que se assemelha ao dos ‘peixápodos‘ fósseis. Isto não é surpreendente, mais do que seria surpreendente se você crescesse músculos peitorais mais fortes caso tenha forçado-se a fazer flexões todos os dias, o dia todo. Também não é lamarckiano se você malha e ganha músculos


As consequências evolutivas estão nas oportunidades que se abrem para a seleção. Se os peixes mais primitivos tinham uma propensão para a formação de ossos mais robustos em um ambiente terrestre, o que lhes permite viver mais tempo ou serem mais móveis em terra, o ato de viver em terra primeiro cria uma oportunidade para que as variantes que aumentam a mobilidade terrestre operadas pela seleção. Estas variantes seriam invisíveis se os animais sempre vivessem na água, afinal.


Então é por isso que quando falamos de assimilação genética e dizer o fenótipo vem em primeiro lugar, em seguida, surge o genótipo para consolidar a adaptação, não estamos falando de qualquer coisa contrária aos modos darwinianos padrão de seleção. Plasticidade do desenvolvimento cria situações nas quais genes de outra forma invisíveis podem se tornar sujeitos a seleção.”[4]

Portanto, neste modelo evolutivo não é o ambiente que o uso e o desuso que induz mudanças hereditárias, pois elas já existiam como capacidades latentes não reveladas dos organismos que nos ambientes anteriores por causa da maneira como interagiam ao longo do seu desenvolvimento hereditárias não se expressavam. Porém, em um novo contexto ambiental, essas características são então ‘reveladas’ e, caso haja variabilidade genética dentro da população em relação a velocidade, prontidão e quantidade de estímulo necessária a sua expressão, um processo de seleção natural pode ter início caso estes novos fenótipos e, principalmente, expressá-los de maneira mais imediata e independente do ambiente sejam mais vantajosos.

Estas ideias ainda precisam ser melhor investigadas, mas resultados como este, publicados na revista Nature, mostram caminhos possíveis de como tais processos podem ter tido um papel chave na evolução dos animais, evidenciando o papel da Evo-Devo e de estudos experimentais na pesquisa sobre macroevolução.

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*É bom deixar claro três coisas sobre organismos, ambiente e evolução por seleção natural. Primeiro, por ‘ambiente’ entende-se tanto os fatores ‘abióticos (como a gravidade, a água, o ar etc), como os fatores ‘bióticos o que inclui os outros organismos da mesma espécie e de outras espécie com os quais os organismos interagem direta ou indiretamente. Segundo, estes ‘fatores ambientais exercem as chamadas ‘pressões seletivas‘ por meio das relações entre os organismos e seus ambientes. Assim, os demais indivíduos da mesma espécie podem exercer ‘pressão seletiva‘ por meio da competição intraespecífica por recursos, territórios, parceiros etc ou em virtude das capacidades de cooperação ou a possibilidade de cuidado parental que podem aumentar as chances de sobrevivência (e portanto deles deixarem mais descentes) dos indivíduos que cooperam mais, como as chances de sobrevivência dos seus descendentes, comparados com aqueles que cooperam menos ou cuidam menos de seus descendentes. Já os fatores abióticos podem exercer pressão seletiva‘ por  causa da forma como diferentes tipos de indivíduos respondem às mudanças químicas e físicas em seus ambientes, como, por exemplo, àquelas associadas a capacidade de sustentar o próprio peso fora d´água ou de se locomover em terra. Estas mudanças, por sua vez, dependem de como os esqueletos, músculos, cérebros e sistemas perceptuais destes indivíduos são afetados por estas condições. Desta maneira, os indivíduos não são passivamente selecionados por condições ambientais fixas, muito menos são selecionados por agentes conscientes, mas, na verdade, os organismos são ‘corresponsáveis’ por produzir estas pressões seletivas em função da maneira como eles e seus ambientes interagem. Terceiro, as pressões seletivas, além de dependerem das relações organismos-ambiente, para que haja evolução por seleção natural, elas dependem de existirem diferenças nestas relações organismo-ambiente entre os organismos individuais de uma população. Além disso, para que tenham efeitos evolutivos estas diferenças dos fenótipos individuais devem ser (pelo menos em parte) herdáveis, pois só assim elas podem espalhar-se pela população e acumularem-se ao longo das gerações em virtude de seus efeitos no sucesso reprodutivo dos indivíduos que as possuem em detrimento daquele associada aos indivíduos que não as possuem.

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Referências

  1. Pennisi, Elizabeth ‘Fish raised on land give clues to how early animals left the seas Science Magazine News, 27 August 2014

  2. Standen, Emily M., Du, Trina Y. & Larsson, Hans C. E. Developmental plasticity and the origin of tetrapods Nature 27 August 2014 doi:10.1038/nature13708.

  3. Hutchinson, John ‘Evolutionary developmental biology: Dynasty of the plastic fish’  Nature, 2014 doi:10.1038/nature13743

  4. Myers PZ ‘Developmental plasticity is not Lamarckism‘ Pharyngula, 28 of august, 2014

Uma janela para Ediacara

Algumas dezenas de milhões antes da ‘explosão cambriana‘ (veja A Explosão Cambriana: Uma introdução, A explosão cambriana. Parte II: Rápida, mas nem tanto assim!‘ ,’ O ‘pavio filogenético’ e a ‘explosão cambriana’ não se fundem.‘, ‘A Explosão Cambriana’, ‘De volta ao cambriano: Dividindo o evento,’, ‘Conheça os fósseis dos primeiros animais com ‘esqueleto’ (via Revista FAPESP)), os oceanos da terra eram habitados por um grupo de animais bastante diferentes daqueles que estamos acostumados (e dos quais nós mesmos fazemos parte) formando aquilo que se convencionou chamar de ‘biota de Ediacara‘.

Ao lado uma reconstrução dos ramos e ‘folhas’ dos rangeomorfos, um grupo de animais que viveram durante o período Ediacarano (635-541.000.000 anos atrás), feita a partir de modelos matemáticos do crescimento e desenvolvimento destes animais. [Crédito: Jennifer Hoyal Cuthil] [1]

Esta biota representa um marco na evolução da vida multicelular complexa e é entre seus representantes que encontramos os primeiros organismos mais complexos de corpo mole. Entre as criaturas ediacarianas estão esponjas e cnidários, mas também vários grupos considerados ‘problemáticos’, representados tanto por macrofósseis como microfósseis [2]. Embora alguns desses fósseis sejam tradicionalmente considerados como os restos de precursores de animais do Cambriano (e portanto de alguns grupos modernos), outros têm sido encarados como pertencentes a grupos completamente extintos, ‘uma experiência evolutiva que não deu certo‘ pelo menos frente as mudanças de condições ambientais que viriam depois e que teriam sido o gatilho da ‘explosão cambriana‘.

Os Rangeomorfos, que constituem esta parte mais bizarra da biota de Ediacara, viveram há cerca de 575 milhões de anos e seus representantes, em sua maioria, tinham por volta de até 10 cm de altura, com alguns poucos, entretanto, chegando a cerca de de 2 metros. Eles habitavam o fundo dos oceanos deste período e possuíam estruturas ramificadas compostas por partes macias que davam origem outros ramos laterais menores que davam origem a outros ramos ainda menores e assim por diante. Exibiam, portanto, um padrão fractal, isto é, sua organização corporal básica era formada por estruturas semelhantes que tendem a re-ocorrer em várias escalas diferentes. Estas diferenças em relação aos animais ‘modernos’ tornaram muito difícil a determinação de como estes animais do Ediacariano alimentavam-se, cresciam e se reproduziam, o que entre outros problemas torna muito difíceis os esforços de identificação das relações de parentesco destes animais com qualquer outro grupo de animais modernos. Portanto, o parentesco exato destes organismos entre eles e com outros grupos modernos ainda está é bastante incerto, mas muitos pesquisadores concordam que eles exibem uma ampla gama de morfologias, sugerindo pertencerem a diferentes grupos na base da árvore da vida animal, isto é, na filogenia dos metazoários.

Acima estão alguns dos possíveis padrões de relacionamento evolutivo entre os diferentes tipos de animais de Ediacara, que estão na base da árvore de vida animal. As linhas pontilhadas representam o intervalo provável em que viveu um determinado grupo de animais e as linhas sólidas representam a evidência fóssil. Os grupos extintos (taxa) são representados por uma cruz circundada. (Esta figura foi modificado da figura de Xiao e Laflamme, Peterson et al e Dunn et al que está disponível no site do Museu Real de Ontário sobre o folhelho de Burgess Shale) [2].

Agora, um novo estudo publicado por Jennifer Hoyal Cuthil e Simon Conway Morris, apresenta reconstruções tridimensionais construídas a partir de um modelo matemático de 11 táxons deste  grupo que mostram como alguns destes animais deviam crescer e desenvolver-se, fornecendo algumas respostas sobre o porquê eles foram extintos [2]. Essa radiação adaptativa de morfologias fractais que deu origem a essa fauna provavelmente foi possibilitada por que este padrão geométrico maximiza a área de superfície corporal, o que é consistente com o padrão alimentar destes animais que os pesquisadores acreditam ter se dado por meio da absorção de nutrientes por difusão, a osmotrofia [1, 2].

Abaixo um vídeo com uma das reconstruções.


Assim, como defendem os autores do estudo [2], os Rangeomorfos devem ter sido otimamente adaptados às condições prevalentes nos oceanos do Ediacariano, que incluíam a baixa competição e o alto teor de nutrientes dissolvidos naquelas águas. Porém, com a ‘explosão cambriana’ (que ocorreu a partir de 541 milhões de anos atrás, mas que teve seu auge por volta de 530 milhões de anos atrás), as mudanças nas condições ecológicas e geoquímicas acabaram por levar à extinção dos Rangeomorfos que deram lugar aos organismos modernos com seus padrões corporais, metabólicos e modos de vida que estamos familiarizados [3].

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Referências:

  1. How some of the first animals lived – and died, University of Cambridg Research News, 11 Aug 2014.
  2. Enigmatic Ediacarans The Burgess Shale, acessado em 12 de agosto de 2014.
  3. Cuthill, Jennifer F. Hoyal and Conway Morris, Simon Fractal branching organizations of Ediacaran rangeomorph fronds reveal a lost Proterozoic body plan. PNAS, August 11, 2014 DOI: 10.1073/pnas.1408542111

Recontruindo dentes de roedores ancestrais em laboratório.

Cientistas das Universidade de Helsinque e da Universidade Autônoma de Barcelona (além de instituições na Austrália, China e Estados Unidos) conseguiram reproduzir em laboratório certos tipos de alterações morfológicas, que ocorreram ao longo de milhões de anos, na dentição de mamíferos. Eles fizeram isso empregando culturas de células derivadas dos primórdios dentários (explantes dentais) de animais que não expressavam um gene específico – ou seja, que possuíam uma ‘mutação nula’, que é um tipo de mutação de ‘perda de função’. Este gene codifica uma proteína chamada de  ectodisplasina A [EDA, veja ao lado um modelo da proteína: PDB 1rj7] [1], que  faz é parte de uma via de sinalização intercelular importante, estando envolvida nas interações entre o ectoderma e o mesoderma, duas camadas de células embrionárias que ao longo de desenvolvimento dão origem a muitos dos órgãos e tecidos dos vertebrados. Estas interações são particularmente importantes na formação de várias estruturas derivadas do ectoderma como glândulas sudoríparas, cabelo, unhas e dentes.

Ao lado uma micrografia eletrônica de varredura dos molares de um camundngo (Mus musculus). A coroa de cada molar (branco) começa a se desenvolver por volta do 110 de gestação no útero materno, com a raiz começando a crescer a partir da coroa no momento do nascimento. [Crédito: STEVE GSCHMEISSNER/Science Photo Library]

Variando a concentração da proteína EDA (e em certo momento inibindo a ação de uma outra proteína, a SHH, usando um antagonista desta molécula), os pesquisadores obtiveram uma série de padrões dentais, desde os mais simples, até os mais complexos, passando por alguns padrões típicos de espécies de mamíferos já extintas, reconstruindo assim ‘estados de caráter ancestrais‘, para usar o jargão dos biólogos evolutivo [1, 2].

Os pesquisadores observaram que os dentes formam-se com diferentes graus de complexidade em sua coroa. As mudanças mais primitivas observadas coincidem com as que tiveram lugar em animais do período Triássico, cerca de duzentos milhões de anos atrás. O desenvolvimento de padrões mais posteriores coincide com os diferentes estágios de evolução encontrados nos roedores que se extinguiram, já no Paleoceno, cerca de 60 milhões de anos atrás. Os pesquisadores, portanto, conseguiram experimentalmente reproduzir as transições observadas no registro fóssil dos dentes de mamíferos.” [1]

No artigo publicado na revista Nature, a equipe de pesquisadores também comparou seus resultados experimentais aos resultados obtidos com modelos computacionais do desenvolvimento dental, construídos por um dos autores do artigo, Isaac Salazar-Ciudad, da UAB. Estes modelos foram bem sucedidos ao replicar a forma como os dentes mudam ao longo do desenvolvimento, começando como um simples e homogêneo grupo de células até adquirir a complexa e característica estrutura tridimensional de um dente molar; sendo o modelo capaz, inclusive, de prever as mudanças em várias características do dente (como o espaçamento entre as cúspides) quando o gene é alterado.

Esses resultados mostram que muitas das etapas das transições morfológicas observadas nos dentes de mamíferos através do registro fóssil são, de fato, reprodutíveis experimentalmente. Isso também sugere que várias, senão a maioria, das características morfológicas analisadas estão desenvolvimentalmente interligadas [2]. Porém, essas características individuais (como número, tamanho e espaçamento entre as cúspides) ao mesmo tempo parecem responder a diferentes níveis do mesmo sinal molecular [1, 2] de maneira distinta, o que provavelmente permitiu alcançar um padrão de alteração incremental ao longo da evolução.

Acima podemos observar na parte superior da figura (em A) o padrão de culturas de tecido dental (portadores de uma mutação nula para EDA) cultivados conjuntamente com antagonista para a proteína SHH . Ali é mostrado o aumento do número e maior separação das cúspides com o passar dos dias. Logo abaixo, em B, temos a comparação dos segundos molares (produzidos por células que não expressam a proteína EDA) com os segundos molares produzidos quando os mesmos tipos de células recebem o inibidor da proteína SHH [abaixo um modelo da proteína, PDB 1vhh], que exibem uma melhor separação entre as cúspides. Do lado direito, vemos o padrão dental de camundongos sem a mutação nula e, logo abaixo, o padrão de Tribosphenomys minutus no qual faltam cristas que ligam cúspides. Por fim, em C, temos uma visão posterior obliqua dos molares que mostram a ausência da crista metalófida (setas) nas células nulas para Eda, mas que estão presentes nas culturas tratadas com inibidor de SHH, cujo tratamento acaba por replicar a morfologia ancestral de T. minutus. Os dentes de Tribosphenomys mostrados são os primeiros (V10776, à esquerda) e os segundos molares (V10775 holotipo, à direita). Todos os dentes mostrados foram espelhados quando necessário para representarem o lado esquerdo. A região anterior está voltada para a esquerda em A e B e no topo em C. As barras da escala indicam 500 um [1].

Uma das principais dificuldades para entendermos a evolução dos organismos multicelulares, como os animais, é exatamente a interdependência entre características morfológicas que, muitas vezes, interferem substancialmente em nossa compreensão dos processos evolutivos subjacentes e de suas etapas. Contudo, trabalhos em evo-devo (e em biologia computacional) como este permitem compreendermos melhor as bases do desenvolvimento embriológico por trás dessa interdependência entre características morfológicas e ajudam a avançar nossa compreensão das transições evolutivas e de como pequenas modificações genéticas resultaram nas mudanças registradas nos fósseis [1, 2]

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Referências:

  1. Scientists Reproduce Evolutionary Changes by Manipulating Embryonic Development of Mice, Universitat Autònoma de Barcelona, 30 July, 2014.

  2. Harjunmaa, E, Seidel, K, Häkkinen, T, Renvoisé, E, Corfe, I.J., Kallonen, A, Zhang, Zhao-Qun, Evans, A. R., Mikkola, M.L, Salazar-Ciudad, I., Klein, O.D., Jernvall, J. Replaying evolutionary transitions from the dental fossil record. Nature, 2014; DOI: 10.1038/nature13613

Os Ribossomos e o Registro da Evolução

Um novo estudo co-financiado pelo Instituto de Astrobiologia da NASA (NAI) sobre a evolução dos ribossomos foi publicado esta semana no periódico Proceedings of the National Academy of Science of the United States of America (PNAS). Desta vez os cientistas compararam as estruturas tridimensionais dos ribossomos de uma variedade de espécies de complexidade biológica variável, incluindo humanos, leveduras, bactérias e archaea e descobriram “impressões digitais” distintas nos ribossomos, onde novas estruturas foram adicionadas à superfície ribossômica, sem alterar o núcleo ribossômico pré-existente. Segundo os pesquisadores, esse núcleo ribossômico se originou há mais de 3 bilhões de anos antes do último ancestral universal comum (LUCA) da vida.

De acordo com o professor Lore Williams da Escola de Química e Bioquímica do Instituto de Tecnologia da Geórgia (Georgia Tech) e principal investigador da equipe da NAI, a história dos ribossomos nos conta a origem da vida. 

O sistema de tradução é o sistema operacional de vida”, disse Williams. “Na sua essência o ribossomo é o mesmo em todos os lugares. O ribossomo é biologia universal”.

A equipe da Georgia Tech tem se dedicado ao estudo da origem e evolução dos ribossomos. Os pesquisadores constataram que o núcleo do ribossomo é essencialmente o mesmo em  seres humanos, leveduras, bactérias e archaea – em todos os sistemas vivos, enfim. Também descobriram que enquanto as regiões exteriores dos ribossomos se expandem e se tornam complexas, as espécies ganham complexidade. Através da retirada digital das camadas de ribossomos modernos no novo estudo, os cientistas foram capazes de modelar as estruturas dos ribossomos primordiais.

Neste trabalho, a equipe da Georgia Tech mostrou que os organismos evoluem e se tornam mais complexos, assim como os seus ribossomos. Os seres humanos têm os maiores e mais complexos ribossomos. Mas as modificações limitam-se à superfície – o cerne do ribossomo de um ser humano é o mesmo que o do ribossomo bacteriano. Podemos perceber isso no vídeo disponibilizado pelos autores do estudo sobre a origem e a evolução dos ribossomos. No estudo em questão, Williams e seu colega Anton Petrov mostram como segmentos foram sendo continuamente adicionados ao ribossomo, sem alterar a estrutura subjacente. 

Os ribossomos existem em todas as células e são responsáveis ​​pela tradução do RNA mensageiro (RNAm) em proteína. A informação genética armazenada no DNA é transcrita em RNAm, que é então enviado para fora do núcleo da célula. Os ribossomos, em todas as espécies, usam o RNAm como um projeto para a construção de todas as proteínas e enzimas essenciais para a vida. Os cientistas comprovaram no estudo que o RNA ribossomal (RNAr) dos eucariontes contém segmentos de expansão acrescidos sobre a superfície do cerne ribossômico, os quais são quase idênticos em estrutura aos que estão presentes nos ribossomos dos procariontes. A comparação entre os ribossomos eucarióticos e procarióticos permitiu aos pesquisadores identificar as chamadas “impressões digitais de inserção” dos segmentos de expansão. 

Os autores do estudo afirmam que, conceitualmente, reverter essas expansões permite a extrapolação para trás no tempo para gerar modelos de ribossomos primordiais. Segundo Lore Williams:

 “Nós aprendemos algumas das regras do ribossomo, que a evolução pode alterar o ribossomo, desde que ela não mexa com o seu cerne”. “A evolução pode adicionar coisas, mas ela não pode mudar o que já estava lá”.

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Referência:

Scalice, Daniella ‘O ribossomo: o registro da evolução’ [tradução Universo Racionalista] Astrobiology Life in the Universe, July 2, 2014 [original]

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Para saber mais:

Crédito da imagem: Loren Williams / Georgia Institute of Technology.

RNA: a molécula indispensável da vida.

Quando em abril de 1953 James Watson e Francis Crick publicaram na revista Nature um pequeno artigo de uma página descrevendo a estrutura da molécula de DNA, talvez ainda não tivessem idéia dos rumos que a biologia tomaria dali em diante. Watson e Crick  também assistiram à descoberta de formas de intervir no DNA, que levaram à criação dos organismos geneticamente modificados, programados para produzir proteínas de interesse médico e econômico. No entanto, este é apenas um fragmento de um enorme corpo de conhecimento que nossa espécie produziu buscando decifrar o segredo da vida. Nos dias de hoje, o avanço tecnológico é de tal monta que se torna muito difícil acompanharmos em tempo real  a evolução destas disciplinas, assim como encontrar tempo para buscarmos a cronologia dos eventos históricos que levaram a estas descobertas. Por isto, é fundamental que especialistas organizem de forma sintética estas informações. Por exemplo, embora saibamos muita coisa sobre o RNA, a sua história não é tão conhecida quanto a do DNA. Certamente este foi o desafio que levou James  E. Darnell Jr. A escrever um livro, tão impressionante quanto sua carreira. RNA: life’s indispensable molecule –  Uma obra altamente detalhada com um irrepreensível senso histórico que levará o leitor através de uma fascinante jornada de várias décadas sobre as incríveis descobertas da biologia molecular. Após ler as mais de 400 páginas o que vem à cabeça é apenas uma palavra SOBERBO!

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  • Darnell, James RNA: Life’s Indispensable Molecule CSHL press 2011. 416 pp.

BREVE (Estratégias reprodutivas robóticas)

Artigo de The Economist na Carta Capital deste último final de semana intitulado “Robocópula” relata

experimentos fascinantes com robôs e programas computacionais com a finalidade de pesquisar a evolução de estratégias múltiplas de reprodução, ou polimorfismo reprodutivo em populações de uma mesma espécie. No caso dos robôs, trocando informação na forma de radiação infravermelha simulando permuta de genes quando ficam frente a frente a uma distância de 30 cm um do outro.

No computador, uma população virtual e ¨fontes de energia¨ (alimentos) foram introduzidas através de uma programação adequada em que obriga-se os ¨indivíduos¨ a interagirem uns com os outros e a procurarem alimentação nas fontes. Após 1000 gerações (!!) com o programa rodando durante uma semana a população estabilizou em 25% de ¨caçadores¨ (aqueles que passam a maior parte do tempo procurando alimentos) e 75% de ¨rastreadores¨ (aqueles que ignoram seus estoques de energia e passam a maior parte do tempo ¨copulando¨). Este é uma resultado decididamente sensacional pois indica que os ¨rastreadores¨ conseguiram, em média, produzir um número bem maior de descendentes do que os seus competidores ¨caçadores¨ ao longo do tempo.

Esses experimentos foram efetuados por um pesquisador na Unidade de Computação Neural, Stefan Elfwin, do instituto de ciência tecnologia de Okinawa, no Japão, sob a supervisão de Kenji Doya. O trabalho foi publicado da revista científica PloS ONE.

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Para saber mais:

Crédito das Figuras:

OIST

Sobre a Evolução das Leveduras dos Fermentos Biológicos

Pesquisadores da Universidade de Bordeaux, na França publicaram um artigo na PLOS ONE (que rendeu um post no blog da comunidade Plos, escrito por Tara Garnett) demonstrando que diferentes cepas de leveduras da espécie Torulaspora delbrueckii, de recente interesse comercial, sofreram intervenção humana em sua evolução. Estudos anteriores já haviam demonstrado como nosso histórico de uso de leveduras afetou a evolução de uma das espécies mais utilizadas, a Saccharomyces cerevisae , com a criação de diferentes cepas que são utilizadas para fins diferentes (pão, vinho, e assim por diante).

Para demonstrar a influência humana sobre T. delbrueckii, os pesquisadores franceses fizeram o mapeamento da arvore genealógica da espécie em questão, após coletar 110 amostras de T. delbrueckii a partir de fontes globais de uvas para vinho, produtos de panificação, laticínios e bebidas fermentadas. Possíveis microssatélites (sequências repetitivas de pares de bases, como a AT e GC), foram encontrados no DNA de uma cepa e usados para criar ferramentas que identificam sequências similares em outras linhagens. Eles usaram os resultados para identificar oito diferentes  microssatélites marcadores (sequências de pares de bases) que eram compartilhados por algumas cepas, mas não por outras, para medir a variação genética em T. delbrueckii.  A composição de cada estirpe foi analisada usando-se eletroforese em microchips, um processo em que os fragmentos de DNA migram através de um gel que é submetido a um campo elétrico, o que ajuda os pesquisadores a separar os fragmentos de acordo com o seu tamanho. Estes microssatélites marcadores específicos de cada estirpe permitiram produzir um dendrograma (a figura colorida aí em baixo) que ilustra o grau de similaridade entre as estirpes. Os pesquisadores também estimaram o tempo que diferentes cepas levaram para evoluir através da comparação da taxa média de mutação e do tempo de reprodução de T. delbrueckii com o nível da diferença genética entre cada cepa.

No dendrograma ao lado [retirado de Albertin et al., 2014; DOI: 10.1371/journal.pone.0094246] podem tornam-se nítidos claramente quatro grupos de cepas de leveduras que estão fortemente relacionadas as origens de cada amostra. A maioria das cepas isoladas da natureza estão contidas em dois destes grupos, mas que podem ser diferenciados um do outro: os coletados no continente americano (grupo natural das Américas) e aqueles recolhidos na Europa, Ásia e África (grupo natural do Velho Mundo). Os outros dois grupos incluem cepas de amostras de alimentos e bebidas, mas não puderam ser diferenciados pela localização geográfica. O grupo uva/vinho contém 27 cepas que foram isoladas de uvas das principais regiões produtoras de vinho do mundo: Europa, Califórnia, Austrália, Nova Zelândia e América do Sul. O grupo de ‘bioprocessos‘ contém cepas bem variadas geograficamente que foram coletadas de outras áreas de processamento de alimentos, tais como produtos de pão, comida estragada,  alimentos e bebidas fermentadas. Este grupo também contém um subgrupo de estirpes utilizadas especificamente para produtos lácteos. Em uma análise mais detalhada da variação entre as estirpes foi confirmado que, apesar dos grupos do dendrograma não conseguirem separar perfeitamente as estirpes de acordo com o uso humano (e a origem geográfica da amostra teve algum papel na diversidade), uma grande parte da estrutura da população pôde ser explicada pela fonte material da estirpe.

Os pesquisadores calcularam os tempos de divergência para os diferentes grupos e estes resultados enfatizam ainda mais a ligação entre a adoção da levedura T. delbrueckii pelos seres humanos e a evolução contínua desta espécie. O grupo das cepas ‘uva/vinho’ divergiu do grupo ‘Velho Mundo’ há aproximadamente 1.900 anos. Isso coincidiu com a expansão do Império Romano e a propagação de Vitis vinifera, a uva comum. Já o grupo de ‘bioprocessos‘ divergiu muito antes, cerca de quatro mil anos atrás, ou seja, por volta da era Neolítica, o que mostra que a leveduras foram utilizadas para a produção de alimentos muito antes de serem direcionadas para produção de vinho.

Enquanto T. delbrueckii tem sido muitas vezes negligenciada pelos produtores em favor das cepas mais comuns  de S. cerevisiae , a primeira vem recentemente ganhando força por sua capacidade de reduzir os níveis de compostos voláteis que afetam negativamente o sabor e aroma do vinho. Como esta cepa tem uma alta tolerância ao congelamento, quando usada como agente de fermentação, ela vem atraído a atenção das empresas que tentam congelar e transportar a massa com eficiência.

Tentativas de desenvolver melhores cepas deste fermento para uso comercial já haviam começado, mas anteriormente não se tinha uma compreensão do seu ciclo de vida e nem dos hábitos reprodutivos destes organismos. Agora isso mudou. Ao criarem esta árvore genealógica de T. delbrueckii, os autores acabaram ganhando uma compreensão mais profunda desta espécie como um todo e estas informações  devem contribuir para um melhor desenvolvimento do uso tecnológico destes microrganismos.

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Referência:

Leitura recomendada: 

  • Albertin W, Chasseriaud L, Comte G, Panfili A, Delcamp A, et al. (2014) Winemaking and Bioprocesses Strongly Shaped the Genetic Diversity of the Ubiquitous Yeast Torulaspora delbrueckii. PLoS ONE 9(4): e94246. doi:10.1371/journal.pone.0094246

  • Setati ME, Jacobson D, Andong U-C, Bauer FF (2012) The Vineyard Yeast Microbiome, a Mixed Model Microbial Map. PLoS ONE 7(12): e52609. doi:10.1371/journal.pone.0052609

  • Tao X, Zheng D, Liu T, Wang P, Zhao W, et al. (2012) A Novel Strategy to Construct Yeast Saccharomyces cerevisiae Strains for Very High Gravity Fermentation. PLoS ONE 7(2): e31235. doi:10.1371/journal.pone.0031235