Evolução da multicelularidade em laboratório

Compreender como a exuberante vida multicelular originou-se da disseminada e extremamente bem sucedida vida unicelular é uma das muitas questões que ocupam as mentes e o tempo dos biólogos evolutivos. Como o que podemos descobrir sobre essa questão  através dos fósseis é bastante limitado, os cientistas precisam lançar mão da análise comparativa e da experimentação em laboratório como forma de suprir estas lacunas. Alguns experimentos investigando potenciais cenários para a origem da multicelularidade em que a pressão seletiva era a predação, como os realizados com as algas Chlorella vulgaris por Martin Boraas, são bem conhecidos e tem nos permitido vislumbrar como este fenômeno pode ter acontecido em tempos remotos. Um novo estudo deste tipo, desta vez com a levedura unicelular Saccharomyces cerevisiae (sim a mesma usada para fazer cervejas e um dos organismos modelo mais utilizados em pesquisa básica e aplicada), foi recentemente relatado por William Ratcliff, pesquisador do grupo de Michael Travisano da Universidade de Minesota, em uma reunião da Sociedade para o Estudo da Evolução realizada em Norman, Oklahoma (Evolution 2011).

 

Em apenas algumas semanas leveduras unicelulares evoluíram em agregados multicelulares exibindo várias das características fundamentais de organismos multicelulares, inclusive a divisão de trabalho entre as células. Indicando, talvez, que o “salto evolutivo” da unicelularidade para a multicelularidade pode ser apenas um “pequeno pulo”, como sugere a reportagem do site da revista New Scientist [“Leveduras de laboratório dão salto evolutivo para a multicelularidade”]. Segundo esta mesma matéria a multicelularidade evoluiu pelo menos 20 vezes desde a origem da vida, tendo ocorrido pela última vez cerca de 200 milhões de anos atrás.

 

Para investigar este fenômeno que nos deixou pouquíssimas pistas, Ratcliff e colaboradores, utilizaram-se de uma abordagem bastante simples ao cultivarem as leveduras em um meio líquido que era delicadamente centrifugado uma vez ao dia. Após a centrifugação uma nova cultura era inoculada com as leveduras que sobravam no fundo de cada tubo. Este processo permitia a seleção de grupos de células maiores que não se separavam formando pequenos aglutinados. Em apenas 60 dias (o equivalente a aproximadamente 350 gerações) – as 10 linhagens cultivadas haviam evoluído formando agregados, semelhantes a “floco de neve”.

 

Um dos pontos principais do experimento é que esses agregados formaram-se a partir de células geneticamente relacionadas que não se separaram durante o processo de divisão, portanto, sendo geneticamente idênticas, em um caso extremo de seleção de parentesco, originadas do mesmo clone. A clonalidade que é como é chamada esta característica é um dos ingredientes que pode permitir a eventual evolução da cooperação, da divisão de trabalho e do “altruísmo” (Veja As cinco regras básicas para a evolução da cooperação) típico dos seres multicelulares, controlando a competição e o conflito de interesses genéticos intra-grupais possibilitando novos níveis de seleção entre os diversos grupos clonais.

 

“O passo fundamental na evolução da multicelularidade é uma mudança no nível de seleção de seres unicelulares para os grupos. Uma vez que isso ocorre, você pode considerar as agregações como sendo organismos multicelulares primitivos”, diz Ratcliff. [*]

 

Como relatado no resumo da apresentação, os pesquisadores observaram a rápida evolução de genótipos de agregação em aglutinados multicelulares que exibiam uma nova dinâmica histórica de vida, tipicamente multicelular, em que a reprodução acontecia através da formação de propágulos multicelulares, quando os agregados atingiam um certo tamanho, além de apresentarem uma fase  equivalente a juvenil e crescimento determinado. Posteriormente os pesquisadores também puderam observar a evolução de divisão de trabalho entre as células. Os agregados multicelulares que inicialmente eram constituídos por células individuais não diferenciadas, todas muito semelhantes umas as outras, depois de várias centenas de gerações adicionais de seleção, passaram a apresentar morte celular programada (apoptose), processo em que certas células dentro dos agregados multicelulares “suicidam-se”. O suicídio de células individuais pode parecer um contra-senso (e muito custoso) para as células que expressam tal comportamento, porém, ao regular o tamanho dos propágulos beneficiando as células viáveis, constituem-se em uma importante adaptação do ponto de vista do organismo multicelular. A clonalidade aqui é a característica chave, já que minimiza os potenciais conflitos de interesse permitindo a evolução de novo nível hierárquico já que as células são geneticamente idênticas e mesmo que uma delas morra, as características passadas as próxiams gerações serão as mesmas.

 

Estes experimentos mostram como diversos dos ingredientes essenciais para a multicelularidade podem facilmente evoluir em eucariontes unicelulares nas condições apropriadas. Contudo, um problema óbvio foi diagnosticado por vários outros pesquisadores que foram abordados pela reportagem da New Scientist.

 

O problema principal é com o organismo modelo utilizado, Saccharomyces cerevisiae. Este fungo unicelular é descendente de linhagens de fungos multicelulares e, talvez, jamais tenha perdido totalmente o potencial para a multicelularidade, mantendo certos genes, como os associados a proteínas adesivas de membranas e também ao controle da apoptose, que podem ter sido co-optados novamente na evolução da multicelularidade, mas que estavam sendo utilizados em outras funções. Isso poderia então ter “viciado o baralho” em direção da multicelularidade, explicando inclusive a extrema velocidade do processo.

 

“Eu aposto que as leveduras, tendo uma vez já sido multicelulares, nunca perderam isso completamente”, afirma Neil Blackstone, biólogo evolutivo da Universidade Northern Illinois” Ele acrescenta: “Eu não acho que se você pegasse algo que nunca tivesse sido multicelular conseguiria isso tão rapidamente” [*]

 

No entanto, como chama a atenção outro pesquisador, Ben Kerr da Universidade de Washington, isso não é muito diferente do que seria esperado mesmo em organismos que jamais tivessem sido multicelulares, já que boa parte da evolução ocorre através da cooptação de características pré-existentes, mas que passam a ser empregadas para novos fins:

Eu não esperaria que essas coisas todas aparecessem sempre de novo, mas para que as células teriam muitos dos elementos já presentes por outros motivos”[*]

Ratcliff e de seus colaboradores pretendem enfrentar esta limitação do estudo em questão ao fazer experimentos semelhantes, mas desta vez com a alga unicelular Chlamydomonas cujos ancestrais não eram multicelulares. Enquanto isso, o grupo continua com os experimentos com as leveduras, com o objetivo de identificar como a divisão do trabalho deverá evoluir nos agregados multicelulares.

 

A evolução experimental – tão bem ilustrada nos experimentos com Escherichia coli de Richard Lenski e em diversos outros utilizando eucariontes, como este com leveduras – nos oferece uma incrível janela para a investigação da evolução, em que o rigor experimental e a replicabilidade dos protocolos nos permitirão desvendar cada vez mais do nosso passado e especialmente como ocorreram as grandes transições evolutivas.

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Referências:

Créditos das figuras:

 

DAVID SCHARF/SCIENCE PHOTO LIBRARY
SINCLAIR STAMMERS/SCIENCE PHOTO LIBRARY
FRANCIS LEROY, BIOCOSMOS/SCIENCE PHOTO LIBRARY

 

Brânquias, maxilas e audição…

Esse post foi publicado originalmente em meu blog Do Nano ao Macro e compartilho com vocês também por aqui…

 

Desenho de um peixe primitivo do período Devoniano, cerca de 400 milhões de anos. Os placordermes (na imagem) são os ancestrais de todos os animais maxilados existentes hoje, desde os peixes até os mamíferos.

A Evolução, desde a época de Darwin, vira e mexe nos surpreende. Embora muitos ainda a considerem como sendo algo falso, é inevitável para o bom cientista – e para a pessoa que realmente pesquisa e se interessa sobre o assunto – que a Evolução praticamente é um fato. Sustentado por diversas evidências, vindas tanto de laboratórios espalhados pelo planeta como observação da própria natureza, a Teoria da Evolução consegue responder as dúvidas sobre a grande diversidade dos seres viventes nesse planeta.

Embora haja uma discussão sobre quais são as formas mais basais de vida (seres que compartilham as características mais primitivas de um determinado grupo) e as mais derivadas, sabemos que todas elas descendem de um ancestral em comum que viveu nos primitivos mares da Terra cerca de 3,5 bilhões de anos atrás. Como a transmissão dos caracteres de um organismo nunca é passada de forma 100% correta (erros ocorrem o tempo todo) tais mutações podem beneficiar ou não o portador dessa mudança. Essas mudanças são acumuladas ao longo do tempo e, se conferir uma vantagem em relação àquele organismo que não a tem, a Seleção Natural entra em jogo e dá sua cartada.

Bom, essa breve introdução vai me ajudar – espero – a te levar para o objetivo do título do post. Afinal, o que brânquias, mandíbulas e audição têm a ver um com o outro? Antes de chegar nessa questão precisamos ver um pouquinho sobre a Árvore da Vida e sobre o principal grupo no qual os vertebrados (todos conhecidos) estão inseridos.

Filogenia
Primeiramente precisamos ver como os cientistas organizam as milhões de espécies (tanto vivas como extintas) de um modo que faça sentido e não se perca na bagunça. Lá em meados do século XVIII o sueco Carolus Linnaeus deu a primeira roupagem científica na classificação de plantas e animais. Em Systema Naturae surge a ideia que chamamos de nomenclatura binomial, onde as espécies são designadas com dois nomes que as especificam (um do gênero onde ela se encontra e outra a espécie específica (por isso binomial)). Um exemplo seria o nome científico da nossa espécie: Homo sapiens. No caso, Homo designa o nome do gênero onde estamos inseridos e Homo sapiens o nome específico de nossa espécie (chamado epíteto de espécie).

Com o passar dos anos, outras ideias foram surgindo que relacionam melhor as diversas espécies que conhecemos. A primeira grande mudança veio no começo do século XX, com o advento da Taxonomia Evolutiva. Nela as espécies que compartilham características morfológicas comuns (como, por exemplo, o fato de ter penas) e terem a mesma zona adaptativa são colocadas dentro de um grande grupo ou táxon. De acordo com o paleontólogo George Simpson – e um dos principais a ajudarem a formular os conceitos da Taxonomia Evolutiva – descreveu zona adaptativa como sendo “uma relação mútua entre organismo e ambiente, um modo de vida e não o local onde a vida é conduzida”. Ou seja, para ele, quando um organismo vivendo em um determinado local se modifica morfologicamente e passa a utilizar os recursos do ambiente de forma totalmente nova, esse organismo atinge uma nova zona adaptativa. Com isso o organismo passa a ser classificado em um novo ramo na classificação biológica.

Lampreia (Petromyzon marinus) usado por meu grupo em uma aula prática de vertebrados.

Entretanto a Taxonomia Evolutiva apresenta um problema sério: muitas vezes, por considerar principalmente características morfológicas na hora de classificar os organismos, espécies que não possuem um ancestral comum direto eram, algumas vezes, classificadas como pertencentes ao mesmo grupo. Um exemplo seria os peixes não-mandibulados como a lampreia e a fenticeira. Pela Taxonomia Evolutiva eles são agrupados num único grupo chamado Agnatha (do Gr. a = não; gnathos = maxila). Porém, sabe-se que esses animais não possuem um ancestral em comum entre si. Tanto que a Sistemática Filogenética coloca as lampreias como sendo mais próximas dos animais que possuem maxila do que com a fenticeira (que também não possui).

A primeira coisa que vem na sua cabeça é: como assim a lampreia é mais aparentada com os maxilados do que a fenticeira, que também não tem maxilas!? E que raios é isso de Sistemática Filogenética?

Calma… vamos lá: a Sistemática Filogenética ou Cladística é um outro sistema de classificação desenvolvido em meados do século passado pelo biólogo alemão Willi Hennig. Para essa classificação, as espécies são organizadas de acordo com algum ancestral comum mais recente[1]. Além disso, as espécies são organizadas geralmente baseadas em suas novidades evolutivas, ou seja, alguma característica (seja morfológica, bioquímica ou qualquer outra) que a distingue de outra espécie. No caso, a Taxonomia Evolutiva colocava as lampreias e as fenticeiras em um grupo por algo que elas não tinham – a maxila – em relação às espécies que possuem as maxilas (demais vertebrados). Diversas características separam fenticeiras e lampreias: enquanto fenticeiras são exclusivamente marinhas, se alimentam de animais mortos, não possuem cerebelo[2] e nem fase larval, as lampreias nascem (algumas espécies) em água doce, onde passam a grande parte de sua vida na forma larval[3] e quando adultas migram para o mar, onde parasitam. Além disso, possuem todas as partes do encéfalo.

Mas então quais são as características que faz com que as lampreias fiquem mais próximas dos demais maxilados do que com as fenticeiras? As lampreias apresentam, diferentemente das fenticeiras, pequenas estruturas cartilagíneas acima da nervo dorsal denominadas arcuálias. Elas seriam o que chamamos de vértebra (nesse caso, um princípio de coluna vertebral). Além disso, as lampreias possuem um crânio (cartilaginoso) que protege o encéfalo, enquanto as fenticeiras possui um crânio incompleto e o encéfalo é coberto por uma bainha fibrosa.

Para a Sistemática Filogenética, o cladograma que relaciona as fenticeiras e lampreias seria esse:

Relações filogenéticas entre os alguns grupos dos Chordata, o grupo onde estamos inseridos (não mencionado). As fenticeiras estão inseridos no grupo Myxini e as lampreias estão incluídas no grupo Cephalaspidomorphi (que estão dentro dos Vertebrata). Cada ramo do cladograma representa uma ou mais sinapomorfias (uma ou mais características derivadas compartilhadas por mais de um grupo) onde todas as espécies do grupo a possuem ou possuíram em algum estágio do seu desenvolvimento.

Com o cladograma fica mais fácil estabelecer uma comparação. Fica ainda mais fácil quando informamos as características que os fazem ser inseridos nesse ou naquele grupo (chamado de sinapomorfias). Os Chordata possuem como característica principal uma notocorda que aparece em algum estágio da vida. Nos humanos, a notocorda aparece nos primeiros estágios do embrião. Um resquício da notocorda em nós são os discos intervertebrais que amortecem os impactos da coluna. A cada nível no cladograma que você vai subindo, menos espécies vão aparecendo, já que a espécie vai preenchendo cada vez mais requisitos para estar naquela grupo. Bom, visto isso, espero que tenha te levado até o objetivo desse post: qual a relação entre brânquias, maxilas e audição? Eu precisei fazer essa grande introdução para mostrar a você, que lê estes mal traçados códigos-fonte, como a Biologia encara uma das coisas mais legais da Evolução dos Chordata. E sim, meu caro, isso inclui você.

 

Desenho do Pikaia, um cordado primitivo. Ele é o possível ancestral de todos os cordados existentes – e isso inclui você!

 

Bom, na árvore da vida nós pertencemos a um grande grupo denominado Chordata[4]. Agora observe a imagem ao lado. Esse animal foi encontrado em Burgess Shale na Colúmbia Britânica, no Canadá. Possui cerca de cinco centímetros e é considerado por muitos pesquisadores como o ancestral comum de todos os cordados existentes atualmente. A possível aparência dele ilustra o início desse post. Mas por que os cientistas acham que a Pikaia é o ancestral de, uma forma geral, todos os vertebrados? Esse animal possui nitidamente duas sinapomorfias[5] importantes: os miótomos e a notocorda. Os miótomos são bandas musculares em forma de ‘V’ presente em todos os cordados. Em um dia que você for pescar um peixinho para o almoço tire uns dois minutinhos para observar as porções de músculos presentes nas laterais do animal. A medida que os animais vão ficando mais derivados, os miótomos vão ficando menos visíveis na fase adulta. No ser humano, por exemplo, os miótomos são bem visíveis enquanto somos embriões. A medida que o organismo vai se desenvolvendo, os miótomos vão se modificando para formar as estruturas musculares que temos hoje. A imagem abaixo mostra bem isso.

 

Desenvolvimento dos miótomos no embrião humano. Na imagem na letra ‘A’ o embrião tem seis semanas. Em ‘B’, oito semanas.

 

Ou seja, a presença de miótomos nos cordados constitui uma sinapomorfia (todos os integrantes possui ou possuíram em algum estágio de seu desenvolvimento). 

Uma outra característica facilmente visível na Pikaia é a presença de notocorda (tanto que dá nome ao grupo dos cordados). Notocorda significa literalmente “corda no dorso”. Trata-se de um tubo semi-rígido composto por células revestido por uma bainha fibrosa. Na imagem que ilustra o início do post (e a foto do fóssil) é possível ver a notocorda que serve como eixo de sustentação para o corpo do animal. Na maioria dos cordados, a notocorda permanece apenas na fase embrionária e logo desaparece, sendo substituída pelas vértebras que compõem a coluna vertebral. Resquícios da notocorda ainda persistem nos animais adultos tanto dentro como entre as vértebras. O disco vertebral (que confere uma proteção contra impactos na coluna e que, em alguns casos, causam a conhecida hérnia de disco) é um resquício da nossa notocorda embrionária. 

Os cordados possuem uma outra sinapomorfia importantíssima característica da espécie: as fendas brânquiais.

 

Uhuu! Finalmente ele vai falar sobre as brânquias! o/

As fendas brânquias é uma outra característica exclusiva dos Chordata. Todos os seus representantes possuem ou possuiram em alguma fase de desenvolvimento. Nessa imagem podemos ver nitidamente as estruturas brânquias no embrião humano, com um pouco mais de um mês. No decorrer do desenvolvimento elas vão desaparecendo e dando lugar a outras estruturas como, por exemplo, a glândula tireoide. Nos animais aquáticos menos derivados – como peixes e tubarões – essas estruturas servem principalmente para captar oxigênio dissolvido na água. Por ser uma rede muito vascularizada, a água banha as brânquias e permite o animal realizar as trocas gasosas, eliminando o gás carbônico e recebendo oxigênio. Geralmente os grupos animais possuem um número pares de fendas branquiais. As lampreias, por exemplo, possui sete pares de fendas branquiais. Os peixes cartilaginosos possuem entre cinco e sete pares. Com o decorrer da evolução, as fendas branquiais foram recebendo um estrutura ósseo (ou cartilaginosa) que acabava reforçando a própria brânquia. E são essas estruturas que vou dar foco especial.

Acredita-se que o ancestral de todos os animais maxilados possuiam mais pares de fendas branquiais do que as atuais. As lampreias, como dito anteriormente, possui sete pares. Mas elas não possuem maxilas. Talvez os animais mais primitivos tivessem oito ou nove pares de fendas branquiais. Algumas desapareceram com o passar do tempo, como nas lampreias mas, no outro grupo, os arcos branquiais foram, aos poucos, se modificando em maxilas!

A imagem abaixo ajuda a esclarecer a questão.

Possível surgimento das maxilas a partir dos arcos branquiais.

 

Podemos ver no esquema acima que os dois primeiros arcos branquiais desapareceram ou fundiram-se com o terceiro[6]. O terceiro (em verde, no desenho), no entanto, começou a sofrer alterações morfológicas que possibilitaram eles serem manipulados através da musculatura, permitindo o movimento de abrir e fechar, típico das maxilas dos vertebrados! O quarto arco branquial (em vermelho) acabou se modificando como sendo um suporte para as maxilas e alguma de suas estruturas.

 

Animais do Carbonífero[7] já apresentavam essa modificação nas estruturas.

Cada estrutura recebeu um nome em específico[8]: a modificação do terceiro arco branquial se transformou na cartilagem palatoquadrada (maxila superior) e em cartilagem de Meckel (maxila inferior). Já o seguinte recebeu o nome de cartilagem hiomandibular e hioide.

Essa história toda já é incrível – afinal, arcos branquiais se modificarem em maxilas é uma modificação nas funções e tanto – a Evolução nos mostra que essa história é mais incrível ainda. Com o passar das gerações, as espécies foram evoluindo naturalmente e parte dessas estruturas continuaram a se modificar para atender as necessidades do organismo no ambiente que estavam vivendo (muitas delas, inclusive, num ambiente totalmente novo, como os primeiros animais a adentrarem em ambiente terrestre). Mais uma vez vemos o quão incrível é a natureza. Essas estruturas que, nos animais mais basais se modificaram apenas em maxilas, nos mais derivados eles se transformaram nos conhecidos ossículos do ouvido!

Esquema mostrando as estruturas que compõem o ouvido humano. No centro da imagem, os ossículos são (a partir da membrana timpânica): martelo, bigorna e estribo. O som perturba o tímpano que acaba vibrando os ossículos e estes vibram o fluido dentro da cóclea que capta as vibrações e manda as informações para o cérebro através dos nervos auditivos.


Durante a evolução dos vertebrados, o hiomandibular foi se tornando cada vez mais desnecessário como apoio para a mandíbula já que os ossos dos crânio dos primeiros tetrápodes foram se suturando firmemente. O hiomandibular se modificou, nos anfíbios, “répteis” e aves, no ossículo estribo (também chamado de columella auris nesses grupos). Já nos mamíferos, como nós, existem mais dois ossículos que transmitem o som para o ouvido interno, o martelo e a bigorna. Eles tiveram origem a partir de modificações do ossos das maxilas. Um osso da maxila superior se transformou no ossículo bigorna e um da maxila inferior se transformou no ossículo martelo. Essas grandes modificações permitiram desenvolver os ossos que permitem os Tetrapoda ouvirem sons. 


Resumindo tudo: contei um pouco sobre Filogenia e como ela nos ajuda a entender a similaridade e a relação entre os organismos existentes. Com essa ajuda, foi possível mostrar que os arcos branquiais, que conferem suporte para as brânquias – e permitem o animal respirar – se modificou de tal forma que os animais deixaram de ser predados para serem predadores, graças a uma incrível modificação que permitiu os arcos branquiais virarem, ao longo da Evolução, em mandíbula. Mais incrível ainda é sua posterior modificação nos animais tetrápodes, em que essas estruturas se modificaram nos ossículos do ouvido. 


Tentei, ao longo post, explicar uma dos eventos da Evolução mais incríveis que a Ciência consegue observar e explicar perfeitamente. Através do registro fóssil, das estruturas presentes hoje em animais vivos (tanto embriões quando adultos) e até mesmo em como organizamos as espécies foram determinantes para que traçássemos essa rota evolutiva e como a natureza não desperdiça recursos. Assim que um novo desafio apareceu para os animais os mais bem adaptados tomaram parte e permitiram que hoje nós, seres humanos, que também somos frutos dessa evolução, pudéssemos entender o quão incrível é a natureza.


Agradeço ao professor Reginaldo Donatelli por ter me ajudado em algumas dúvidas que surgiram no caminho.

Informações adicionais: 
[1]: o nome específico nesse caso é de monofiletismo. Não entrarei em detalhes, já que não quero povoar o texto com mais palavras pouco usuais, mas o grupo citado antes, os Agnatha, não constituem um grupo monofilético, ou seja, não possuem um ancestral comum mais recente e, portanto, não são formalmente aceitos como um grupo válido. Répteis também não constituem um grupo monofilético já que, geralmente excluímos as aves, que estão inseridas no grupo dos “répteis”. Até mesmo os peixes não são um grupo monofilético visto que excluímos um ramo que representa todos os animais que dominaram o meio terrestre – no caso os Tetrapoda. Quando consideramos apenas alguns grupos dentro de um grupo maior com um ancestral comum mais recente, damos o nome de parafiletismo. 

[2]: o cerebelo é a parte mais posterior do encéfalo. Ele é responsável pelos movimentos involuntários para o equilíbrio do animal. 

[3]: a lampreia pode passar cerca de três a sete anos na forma larval. A medida que vai descendo o leito do rio, o animal sofre uma metamorfose, se transformando na lampreia adulta onde parasita geralmente peixes no mar por cerca de dois anos. Na fase reprodutiva elas sobem os rios e depositam seu material genético no leito. Feito isso, o animal morre. O mais interessante é que o animal passa tanto tempo de sua vida na forma larval que os pesquisadores, no começo do século XX achavam que fossem espécies totalmente diferentes, muito próxima do anfioxo (um animal com características mais básicas do grupo dos Chordata, onde estamos inseridos). Até hoje a larva recebe o nome que era dado a ela no passado: Amocete.

[4]: não falei antes mas, na Ciência, os nomes geralmente são dados em latim. A nomenclatura biológica nos diz que, no caso da espécie, o nome deve ser escrito diferentemente do restante do corpo do texto. No caso, quando falar sobre a espécie humana, por exemplo, eu colocarei Homo sapiens em itálico. Os demais nomes de grupos biológicos podem ser escritos normalmente, mesmo estando em latim, como no caso dos cordados que chamamos de Chordata. Além disso, geralmente, as palavras escolhidas possuem algo que representa a espécie. A espécie de lampreia que usei em uma aula prática tem nome científico de Petromyzon marinus e, em latim, petros = pedra, myzon = sugador e marinus = marinho. Ou seja, o nome científico da lampreia seria algo como “sugador de pedras marinho”, visto que esse animal, quando não está parasitando algum peixe ele se fixa em alguma pedra pela sua boca. Outro exemplo seria o Homo sapiens, nome de nossa espécie, em que Homo = homem e sapiens = sabido, ou seja, “homem sabido” – se é que alguns indivíduos de nossa espécie não apresentem esse comportamento… 

[5]: em relação à classificação cladística os termos apomorfias, sinapomorfias e autapomorfias são comuns. A apomorfia é uma característica mais recente (derivada) em relação à forma mais antiga (primitiva). O fato de os mamíferos terem mamas (que produzem leite) é uma apomorfia em relação aos que não possuem. A sinapomorfia são apomorfias compartilhadas por um grupo. No caso dos cordados, as sinapomorfias são aquelas que citei no texto. Já a autapomorfia são apomorfias que são compartilhadas por um grupo terminal da árvore filogenética. A presença de um único dedo funcional nos equídeos é uma autapomorfia em relação aos demais mamíferos que possuem, geralmente, cinco dedos.

[6]: dependendo do autor, existe uma variação do número de arcos branquiais que o ancestral possivelmente deveria ter. 

[7]: período da História da Terra que compreende entre 359 e 245 milhões de anos atrás. Aparece logo após o Devoniano, conhecido como a ‘Era dos Peixes’. 

[8]: muitas pessoas tem medo da Biologia por ela conter muitos nomes. Acontece que devido a diversidade enorme de estruturas, funções, sistemas e organismos que são estudados, diversos nomes acabam surgindo. Seria complicado dois especialistas conversando sobre um determinado assunto e não haver nomes ou termos par facilitar a conversa. 

Com imagem por Science Photo LibraryFORPaqui, adaptação de Kuratani, S. (2005), aqui e por *NTamura e *alfred-georg em seu deviantART. Lampreia fotografado por @KehCampos. O ‘meme Y U NO Guy’ foi encontradoaqui e o meme Awesome Face foi encontrado aqui. Cladogramas baseado em HICKMAN et al. e POUGH et al, criado por mim (com colaboração de @LiviaMaisaa), protegido por CC. 

Com informações de: 
Kuratani, S. (2005). Developmental studies of the lamprey and hierarchical evolutionary steps toward the acquisition of the jaw. Journal of Anatomy, 207 (5), 489-99. 

HICKMAN, C., ROBERTS, L., LARSON, A. Princípios integrados da zoologia. 11ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2009. 
POUGH, F., JANIS, C., HEISER, J. A vida dos vertebrados. 4ª ed. São Paulo: Atheneu Editora, 2008.

O desserviço do @criacionismo para a divulgação científica

Gravação de transmissão twitcam do @evolucionismo ocorrida dia 16 de junho às 17h.







Links passados na trasmissão:

Texto do  

Quantos são os cientistas criacionistas 

10 lições para curar o criacionismo 

Como sabemos a idade do planeta

15 joias da evolução 

Evolução da visão tricromática em primatas 

Evolution Education and Outreach 

Uso e Abuso do registro fóssil: o caso do “Peixíbio” – Parte II

Apresentação:

Para qualquer um que tenha se deparado com criacionistas, e discutido sobre as evidências em favor da evolução, talvez, um dos comportamentos mais irritantes, por parte deles, é a veemente negação de que existem fósseis de transição entre grandes grupos de seres vivos. Uma das estratégias que permite aos criacionistas incorrerem em tal atitude é a distorção do conceito de formas transicionais. Fazem isso ao exigir séries lineares de ancestrais e descentes, mas principalmente ao imaginar que estas criaturas transicionais seriam quimeras formadas pela amalgamação de membros modernos de um dado grupo. A paleontóloga Penny Higgings escreveu dois excelentes artigos para a iniciativa Intelligent Design Watch, mantida pelo CSICOP (atual CSI) em que desfaz muitas dessas confusões e distorções, ao mesmo que explica uma das mais conhecidas e bem documentadas transições, a que ocorreu entre peixes e tetrápodes. A primeira encontra-se aqui e esta é a segunda parte:

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Uso e Abuso do registro fóssil: o caso do “Peixíbio” – Parte II

 

Autora: Penny Higgins

Fonte: CSI – Intelligent Design Watch

Publicado em 9 de setembro de 2006.

 

Um argumento criacionista comum é nenhuma forma de transição entre os principais grupos de organismos (por exemplo, as classes de vertebrados: peixes, aves, mamíferos, etc) é vista no registro fóssil. No entanto, os paleontólogos descobriram uma grande riqueza de fósseis que são claramente formas de transição. Neste ensaio, vou abordar especificamente a transição dos peixes para anfíbios terrestres aquáticos. Em primeiro lugar, vamos rever o que é uma forma ‘transicional’ é, e como podemos reconhecê-la.


Uma filogenia simples para os vertebrados.

Acima está uma filogenia simples para os vertebrados. Todos os vertebrados são unidos por ter uma coluna vertebral. As linhas vermelhas são as relações evolutivas entre diferentes grupos de vertebrados. Ao se mover para cima ao longo de qualquer dessas linhas evolutiva, avança-se no tempo, em direção a espécie mais ‘moderna’ ou ‘avançada’ (veja minha discussão do do termo “avançado” na minha coluna anterior, aqui). A divisão entre os grupos ocorreu entre membros ‘primitivos’ dos grupos. Por exemplo, os primeiros anfíbios encontram-se na filogenia no ponto marcado como “2”, que representa a origem de locomoção terrestre. Estes primeiros anfíbios, embora classificados como anfíbios, são bastante diferentes das modernas rãs e salamandras que vemos hoje. Estes primeiros anfíbios evoluíram a partir de peixes primitivos, que também são diferentes de qualquer peixe que temos hoje.

Posições na filogenia onde as formas de transição ocorrem mais comumente.

Mostradas acima estão as posições na filogenia, onde as formas intermediárias entre as principais classes encontrar-se-iam. Note que estes não estão nas pontas das linhas evolutivas (formas modernas), mas em posições mais baixas na filogenia. Em outras palavras, a evolução se move na direção das setas azuis (veja abaixo) e não das setas vermelhas.

Um filograma cartunesco ilustrando como a evolução avança. As setas vermelhas indicam a direção da evolução em que as transições entre os grupos para ter ocorrido entre os membros dos grupos moderna. As setas azuis mostram como a evolução prossegue, onde as transições entre os grupos modernos ocorreram no passado remoto.

A transição dos peixes para os anfíbios

Existe (ou existiu) tal coisa como um “peixíbio” (O termo é emprestado de Huse, 1993, p. 60.) Se sim, qual seria a sua aparência? Como você sabe que o “peixíbio” não era nem um peixe nem um anfíbio, ou que era ambos? Se estivéssemos olhando para os mais familiar peixes e anfíbios modernos, poderíamos imaginar a forma de transição sendo metade de rã, metade truta:

Uma representação cartunesca do conceito da forma intermediária peixe-anfíbio, baseada em peixes e anfíbios modernos. Embora obviamente tola, estes “intermediários” são freqüentemente ilustrados nos livros didáticos da “ciência” cristã.

Este é o resultado de seguir as setas vermelhas. Mas a realidade é que a transição não ocorreu entre os peixes e anfíbios modernos, mas entre certos vertebrados muito antigos cerca de 375 milhões de anos atrás. Naquela época, a distinção entre peixes e anfíbios não era tão clara como é hoje.

Esquema de gêneros fósseis representando a transição dos peixes aos anfíbios, ocorrida no Devoniano. Tiktaalik é um novo gênero recentemente descrito e encaixa-se na lacuna temporal e morfológica entre peixes devonianos conhecidos e anfíbios do Devoniano.

Para colocar isso em um filograma, talvez pudesse ser algo assim:
Um esboço de como peixes e anfíbios modernos, e peixes e anfíbios do Devoniano localizariam-se em um filograma

Recentemente, um novo fóssil apresentado como uma forma de transição foi descoberto e descrito,  da ilha de Ellesmere nos territórios ao noroeste do Canadá. Esta nova espécie é chamada de Tiktaalik rosae (Daeschler et al, 2006;. Shubin et al, 2006). Para compreender completamente o status do Tiktaalik como uma forma de transição entre peixes e anfíbios, precisamos primeiro considerar o que é que define um “peixe” e o que define um “anfíbio”, e se ou não estas distinções serão visíveis no registro fóssil .

Termos:

A edição anterior desta coluna discutiram-se diversos termos utilizados, indevidamente utilizados, e abusados na discussão de fósseis transicionais. Para essa discussão, será útil ter os seguintes termos e definições à nossa disposição.

– Táxon (taxa): Um grupo de organismos classificados juntos. Ex.: “Primatas” é um táxon que inclui os humanos, macacos sem cauda* e macacos com cauda. A Ordem “Perissodactyla” inclui vários táxons de mamíferos com cascos.

– Definição: Um resumo das características que descrevem um táxon. Isso geralmente é uma  descrição frouxa, já que algumas características podem ou não estar presentes em todos os membros do táxon. Frequentemente a definição de um táxon fornece gamas de variação dentro e entre táxons ou indivíduos dentro do táxon.

O que é um “peixe”?

Definição: No sentido mais simples, um peixe é um vertebrado aquático que depende de água como meio principal para sua vida do dia-a-dia e reprodução. Os peixes respiram oxigênio dissolvido na água através das brânquias. Peixe possuem membros adaptados como nadadeiras para nadar, sem “dedos” ou “dedos do pé.” Peixes geralmente têm escamas ósseas cobrindo todo o seu corpo.

Como citado no site da Illinois State Museum:

  • Peixes têm espinha dorsal.
  • Peixes têm sangue frio.
  • Peixes respiram através de brânquias.
  • Peixes botam ovos.
  • Peixes têm escalas.
  • Peixes têm nadadeiras/aletas.

O que é um “anfíbio”?

Definição: Os anfíbios são animais vertebrados semi-aquáticos, que dividem seu tempo entre a água e a terra em sua vida diária. Os anfíbios dependem da água para a reprodução. Anfíbios tipicamente possuem membros pareados (braços e pernas) que incluem ‘dedos’ e ‘dedos dos pés’ para se locomoverem sobre a terra. Os anfíbios também têm cinturas peitoral e pélvica reforçadas adaptada para andar em terra. Os anfíbios começam a vida na água respirando através das brânquias e, mais tarde em uma transição em seu modo de vida, tornam-se capazes de respirar o ar através dos pulmões. Os anfíbios geralmente não têm escamas ósseas em seus corpos.

Como citado no site da Illinois State Museum:

  • Anfíbios têm colunas vertebrais.
  • Anfíbios têm sangue frio.
  • Anfíbios respiram primeiro através de brânquias e, em seguida eles respiram com pulmões. Eles passam por metamorfose.
  • Anfíbios botam ovos.
  • Anfíbios têm pele lisa, úmida.

Quais as características distintivas irão fossilizar?

Estas definições dependem muito de processos, comportamentos e características que não se fossilizam. Como paleontólogos, o que nos resta? O que é facilmente evidente no registro fóssil? E quais dessas características nos permitem distinguir entre peixes e anfíbios?

Os peixes são de sangue frio. 
Os anfíbios são de sangue frio. 
Mesmo 
Os peixes são de sangue frio. 
Os anfíbios são de sangue frio. 
Mesmo 
Os peixes respiram através de brânquias.  
Os anfíbios respiram através de brânquias primeiro, e depois com os pulmões.
Diferente do adulto   
Os peixes põem ovos na água.  
Os anfíbios botam ovos na água. 
Mesmo 
Os peixes têm escamas.  
Os anfíbios têm pele lisa, úmida. 
Diferentes  
Os peixes têm barbatanas. 
Os anfíbios têm pernas e pés para andar na terra. 
Diferentes 

Baseado nisto, vemos que as distinções primárias, que podem ser feitas entre os peixes e anfíbios, encontram-se no aparelho respiratório e no crânio (em adultos, especialmente), na estrutura da pele e escamas, e na estrutura dos membros.

O  Peixíbio:
Com base nas características acima, o que podemos prever sobre com o que o “Peixíbio” se assemelharia ?

  • Peixíbios tinham colunas vertebrais.
  • Peixíbios tinham a sangue frio.
  • Peixíbios respiravam com brânquias, mas podem ter usado pulmões em adultos.
  • Peixíbios punham ovos na água.
  • Peixíbios podem ou não ter tido escamas.
  • Peixíbios tinham membros adaptados para nadar em parte e em parte para se movendo sobre a terra.


O aparelho respiratório e a estrutura do crânio:

No Devoniano, o padrão geral de mudança dos peixes aos anfíbios foi a perda da cobertura de das brânquias (ossos operculares) e redução no tamanho dos ossos pós-parietais. A perda dos ossos operculares faz sentido quando se considera a mudança da respiração através de brânquias para a respiração com os pulmões. Também acontece que muitos dos ossos que antes compunham a cobertura das brânquias foram incorporados ao aparato dos ombros dos vertebrados terrestres.

A redução dos ossos de cobertura das brânquia proporciona ao animal a flexibilidade para levantar sua cabeça e olhar para cima sem ter que alterar a orientação de todo o corpo, que é uma enorme vantagem quando o corpo está assentado em terra firme, em vez de flutuando na água.

É importante perceber que os peixes modernos também têm uma grande redução nos ossos pós-parietais quando comparado com peixes fósseis. Este não é um boa característica distintiva entre peixes e anfíbios modernos.
Desenhos simplificados dos crânios de alguns peixes e anfíbios modernos e os crânios de peixes e anfíbios do Devoniano, destacando importantes mudanças associadas à transição da vida na água para a vida na terra.

A estrutura da pele e escamas:

Anfíbios modernos não possuem escamas. Eles utilizam sua pele macia úmida como um órgão respiratório. Uma vez que as escamas são muitas vezes perdidas ou deslocadas em fósseis, essa é uma característica difícil de investigar apenas com fósseis. Podemos afirmar apenas que as escamas podem ou não ter estado presentes nos primeiros anfíbios e não seriam surpreendentes em uma forma de transição entre os peixes e anfíbios.

Estrutura dos membros:

Talvez uma das diferenças mais marcantes entre peixes e anfíbios – pelo menos no Devoniano – estava na estrutura dos membros. Isso faz sentido porque uma nadadeira utilizada para ‘remar’ um peixe neutramente-flutuante na água não é capaz de levantar e transportar esse mesmo peixe sobre a terra seca.
Desenhos simplificados dos membros anteriores de alguns peixes e anfíbios modernos e os membros anteriores de peixes e anfíbios do Devoniano destacando importantes mudanças associadas com a transição da vida na água para a vida na terra

Uma característica que torna um peixe em um PEIXE é a presença de nadadeira raiadas ou lepidotriquia. Estes são os pequenos ossos que suportam a flexibilidade, quase como um pano, da membrana da nadadeira propriamente dita. Lepidotriquia são móveis, permitindo que o peixe altere  o formato das nadadeiras em exibições comportamentais ou na locomoção. Lepidotriquia são “ossos dérmicos”, o que significa que eles desenvolvem-se embriologicamente diretamente da camada dérmica da pele. Vertebrados de vida terrestre não possuem lepidotriquia, já que a a membrana da nadadeira foi perdida, para ser substituída por dedos ósseos. Ossos dos dedos, bem como todos os ossos do pulso e no braço, são chamados de “ossos endocondrais”, que são ossos  desenvolvidos a partir de um precursor cartilaginoso. Assim, lepidotríquios e falanges surgem a partir de diferentes origens embrionárias, apesar de ocuparem posições semelhantes nos membros.

O que é o Tiktaalik?

O crânio do Tiktaalik é semelhante ao de outros vertebrados do Devoniano, quer sejam considerados peixes ou anfíbios. Notadamente faltam os ossudos ossos operculares que caracterizam peixes devonianos como Eusthenopteron e Panderichthyes, e assemelha-se mais estreitamente vertebrados do Devoniano considerados anfíbios, tais como Acanthostega e Ichthyostega. Na ausência de outras informações, pode ser melhor classificar o Tiktaalik como um “anfíbio”.

O Tiktaalik é conhecido por possuir escamas na superfície externa de seu corpo. Com base nisso, pode ser mais apropriado classificar o Tiktaalik como um “peixe”.

Porque o Tiktaalik possui lepidotriquia, é melhor classificado como um “peixe”. No entanto, a sua estrutura membro inclui vários ossos endocondral (praticamente todos, mas as falanges), que são típicas apenas de vertebrados terrestres.

Baseado nestas características, os autores que descreveram o Tiktaalik (Daeschler et al., 2006) classificaram-no o como um “peixe”.

O diagnóstico do Tiktaalik – Ao estilo cladístico.

O que eu apresentei acima é apenas a forma mais simples de distinguir entre peixes e anfíbios. Abaixo está uma lista mais detalhada das diversas características usadas para distinguir o Tiktaalik de outros peixes e anfíbios (Dados de Daeschler et al, 2006;. Shubin et al, 2006). Com base nisto, o Tiktaalik parece ser mais semelhante a um anfíbio do que semelhante a um peixe.
Então, afinal, o que é o Tiktaalik?

Vamos voltar para as definições de “peixes” e “anfíbios” e as características de cada um, que podem se fossilizar.

Respiração: Os peixes têm brânquias – portanto, eles também têm os ossos operculares. Os anfíbios (adultos de qualquer maneira) não possuem ossos operculares. O Tiktalik também carece de ossos operculares, portanto, é mais como ANFÍBIO.

Escamas: Os peixes têm escamas que cobrem seus corpos. Anfíbios modernos carecem de escamas. O Tiktaalik tem escamas ao longo de suas costas, tornando-o mais parecido com um peixe. No entanto, não é certo que os primeiros anfíbios não tinham escamas, bem como a presença ou ausência de escamas não é considerado definitiva.

Estrutura dos membros: Os peixes têm nadadeiras com lepidotriquia usadas para a natação. Os peixe mais “primitivos” carecem dos ossos dos membros característicos dos vertebrados terrestres. No entanto, alguns peixes de nadadeiras lobadas têm ossos nos membros característicos como (nos braços) o úmero, rádio e ulna, bem como alguns dos ossos do carpo. Os ossos dos dedos (metacarpos e falanges) são escassos em peixes de nadadeiras lobadas, que, ao invés disso, têm lepidotriquia. Os anfíbios têm a conjunto completo de ossos dos membros necessários para a locomoção terrestre (do úmero às falanges), e não lepidotriquia. O Tiktaalik tem lepidotriquia, que é mais similar a um PEIXE. No entanto, ele também tem elaborações dos ossos do membro que pode ter sido precursores de metacarpos e falanges, tornando-o mais como um ANFÍBIO.

Parece que o Tiktaalik é tanto PEIXE quanto ANFÍBIO. É uma forma de transição entre peixes e anfíbios.

Como podemos classificar o Tiktaalik?

Esta é a parte difícil, e onde é importante lembrar a distinção entre a taxonomia (o sistema de classificação dos organismos) e filogenia (as reais relações entre os organismos). Os autores que descreveram o Tiktaalik (Daeschler et al., 2006) optaram por classificá-lo como um peixe tetrápode. Esta decisão foi tomada por várias razões, principalmente devido a pequenos detalhes na estrutura do crânio e dos membros. O resultado cumulativo de todos esses pequenos detalhes é que o Tiktaalik claramente NÃO é um vertebrado terrestre. Os anfíbios SÃO vertebrados terrestres. É claro a partir da forma do corpo do Tiktaalik e através das rochas de onde veio que ele, provavelmente, passou a maior parte de sua vida na água – como um PEIXE. Então, ele é classificado como tal.

Bibliografia e Leitura sugerida:

  • Ahlberg, P. E. and Clack, J. A., 2006, A firm step from water to land: Nature, v.440, p. 747—749.
  • Carroll, R. L., 1988, Vertebrate Paleontology and Evolution: W.H. Freeman and Company, New York, 698 pp.
  • Clack, J. A., 2002, Gaining Ground, The Origin and Evolution of Tetrapods: Indiana University Press, Bloomington, 369 pp.
  • Daeschler, E. B., Shubin, N. H., and Jenkins, F. A., Jr., 2006, A Devonian tetrapod-like fish and the evolution of the tetrapod body plan: Nature, v. 440, p. 757—763.
  • Huse, S. M., 1993, The Collapse of Evolution, Second Edition: Baker Books, Grand Rapids, MI, 208 pp.
  • Kent, G. C., 1992, Comparative Anatomy of the Vertebrates, Seventh Edition: Mosby – Year Book, St. Louis, MO, 681 pp.
  • Pough, F. H., Heiser, J. B., and McFarland, W. N., 1996, Vertebrate Life, Fourth Edition: Prentice Hall, Upper Saddle River, NJ, 798 pp.
  • Radinsky, L. B., 1987, The Evolution of Vertebrate Design: University of Chicago Press, Chicago, 188 pp.
  • Shubin, N. H., Daeschler, E. B., and Jenkins, F. A., Jr., 2006, The pectoral fin of Tiktaalik roseae and the origin of the tetrapod limb: Nature, v. 440, p. 764—771.
  • Walker, W. F., 1987, Functional Anatomy of the Vertebrates, an Evolutionary Perspective: Saunders College Publishing, New York, 781 pp.

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Higgins, P., 2006. Use and Abuse of the Fossil Record: The Case of the ‘Fish-ibian.’ Creation and Intelligent  Design Watch, hosted by the Committee for the Scientific Investigation of Claims of the Paranormal.

Penny Higgins

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A Doutora Pennilyn (Penny) Higgins é uma Associada de Pesquisa no Departamento de Ciências da Terra e do Ambiente na Universidade de Rochester. Os interesses de pesquisa de Penny incluem: Geoquímica de isótopos estáveis ​​de apatita biogênica e de minerais carbonados; estudos em escala anual do clima antigo e fontes dietéticas de vertebrados fósseis  utilizando isótopos estáveis ​​de apatita dos dentes e óssea; concentração de CO2 atmosférico e os efeitos sobre o metabolismo das plantas através
do tempo  geológico; geoquímica do urânio e sua relação com a deposição de minério de urânio e
com a preservação dos fósseis; tafonomia de vertebrados, e aplicação do GIS a problemas em
paleontologia.

Uso e Abuso do registro fóssil: Definição dos Termos Parte I

A confusão na literatura criacionista é notória. A maneira como distorcem conceitos, desconsideram as práticas e procedimentos dos cientistas, especialmente biólogos e paleontólogos, é uma mostra dos baixíssimos padrões intelectuais deste movimento, além do desrespeito com o ofício dos pesquisadores. A paleontóloga Penny Higgings escreveu dois excelentes artigos para a iniciativa Intelligent Design Watch, mantida pelo CSICOP (atual CSI) em que desfaz muitas dessas confusões e distorções ao mesmo que explica uma das mais conhecidas e bem documentadas transições, entre peixes e tetrápodes. Aqui está o primeiro deles.

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Uso e Abuso do registro fóssil: Definição dos Termos Parte I

 

Autora: Penny Higgins

Fonte: CSI – Intelligent Design Watch

Publicado em 9 de setembro de 2006.

 

Um argumento criacionista comum é nenhuma forma de transição entre os principais grupos de organismos (por exemplo, as classes de vertebrados: peixes, aves, mamíferos, etc) é vista no registro fóssil. A evolução postula que tais intermediários de fato existem, mas podem ser reconhecidos como tal. No final, muitas vezes se resume a uma discussão de semântica.

 

A ciência se orgulha de sua estrutura aberta. A ciência é considerada em seu melhor quando os autores livremente divulgam quaisquer e todas as pressuposições que foram feitas em suas pesquisas e também apresentam todos os dados brutos antes de dar sua própria interpretação dos mesmos. Dessa forma, com o surgimento de nova compreensão e as suposições são mostradas inválidas, cientistas que chegam depois podem re-interpretar os dados brutos nesta nova luz. Ao divulgar toda informação que é usada em uma conclusão, o cientista original deixa abre-se para a refutação, isso é BOA ciência, no obstante.

 

No espírito deste quadro em aberto, gostaria de explicar aqui alguns princípios básicos da biologia e da paleontologia que, se mal entendidos, podem afetar fortemente a resposta para a pergunta: Formas de transição são encontradas no registro fóssil?

 

O conceito biológico de espécie

 

Uma espécie biológica (bioespécies) é uma população de organismos que, se deixada sozinha em seu ambiente natural, é capazes de e SE REPRODUZEM para produzir descendentes FÉRTEIS viáveis. Assim, enquanto os cavalos e burros são capazes de acasalar e produzir descendentes, eles não fariam isso naturalmente, e os seus descendentes (a mula) quase nunca é fértil. É uma história parecida com leões e tigres. Apesar de legres e tigrões existirem, as duas espécies (leões e tigres) nunca interagem na natureza. Esta é a definição comum de espécies utilizada na biologia moderna e por todos aqueles que discutem sobre o termo “espécies” de forma vaga.

 

O conceito morfológico de espécie

 

Quando tudo que você tem para olhar são fósseis, não é possível saber se duas populações se cruzaram, ou sua prole era fértil. Tudo o que temos, geralmente, são os ossos para olhar. Em paleontologia, o termo espécie é usado para descrever uma população de organismos, que se distinguem, pela sua forma e estrutura, de todas as outras populações. Se parecem suficientemente diferente, então é uma nova espécie.

 

Este conceito de espécie morfológica é realmente a única opção para os paleontólogos. O problema é, e isso não é segredo, que às vezes o que na realidade é uma espécie biológica pode ser composto de muitas espécies morfológicas. No caso dos mamíferos, uma espécie fóssil morfológica (ou morfo-espécies) pode ser definida com base em um ou dois dentes em, digamos, da mandíbula superior. A mandíbula pode ser encontrada mais tarde por algum outro pesquisador em alguma outra pedreira e ser definida como morfoespécies novo. Só mais tarde, através de uma análise cuidadosa, talvez um terceiro pesquisador que as duas morfoespécies são realmente uma única espécie.

 

Problemas semelhantes também têm surgido quando existe forte dimorfismo sexual em uma única espécie biológica. Não é raro na natureza que os machos de uma espécie biológica sejam fisicamente bem diferentes das fêmeas, e caso esqueletos completos forem encontrados, os dois sexos de uma bioespecies podem ser definido como duas morfoespécies diferentes. Além disso, mudanças ontogenéticas podem fazer com que adultos de um bioespécie seja morfologicamente distinto dos jovens da mesma bioespécie, resultando novamente em mais de uma morfoespécie constituindo uma bioespécie.

 

Nomenclatura Taxonômica

 

Talvez um dos conceitos mais difíceis de assimilar seja a compreensão fundamental de que, mesmo que nosso esquema de nomenclatura científica utilizado mundialmente para os organismos (nomenclatura binomial) é superficialmente dividido ao longo de linhas “evolutivas”, o esquema de nomeação em si é verdadeiramente arbitrário. O único nível da nomenclatura que tem algum significado físico é o de “espécie”, como discutido acima. Todos os outros níveis, a partir de Reino até o Gênero, são inteiramente construtos humanos usados por conveniência da discussão. Em sentido estrito, muitos dos grupos de maior dimensão (Reino, Filo, Classe) realmente só se aplicam no melhor dos casos aos organismos modernos.

 

A classificação taxonômica do cão doméstico:

Além disso, existem organismos no registro fóssil que não se encaixam bem no esquema taxonômico moderno. Mas, porque nós usamos esse esquema, nós essencialmente devemos forçá-los a caber no molde. Uma espécie de transição entre duas classes é difícil de classificar como frequentemente poderia ser colocada em uma classe ou outra, ou talvez pertencer a uma terceira classe, agora extinta. Mas, uma vez classificada em uma classe ou outra, parece deixar de ser transicional.

 

Por exemplo, podemos considerar a transição entre as espécies de Reptilia às Aves, a ser chamada de “Repti-Ave”. É ao mesmo tempo um “pássaro” e um “réptil”, mas também não é ‘pássaro’ nem um ‘réptil. O exemplo mais citado da “Repti-Ave” é o tão denegrido Archaeopteryx. É sem dúvida um pássaro, igualmente sem dúvida um réptil, ou, potencialmente, realmente nenhum dos dois, mas sim um dinossauro. (Apresso-me a acrescentar que, desde então, a paleontologia descobriu muitas mais espécies de “Repti-aves” que documentam a transição de dinossauro para ave muito melhor do que o pobre Archaeopteryx. Em paleontologia, o Archaeopteryx é muito raramente, se alguma vez apresentado como uma espécie de transição entre diretos répteis[1] e aves, e é muitas vezes considerado mais uma ave primitiva.)

 

Uma vez que o Archaeopteryx era “oficialmente” classificado como um pássaro, seu status como uma espécie de transição foi posto em duvida. Se é um pássaro, o criacionismo diz, como pode ser uma espécie de transição que leva às aves? Os sistemas de classificação são arbitrários! Nós os usamos por uma questão de conveniência. O sistema de classificação nunca foi destinado a implicar diretamente algo sobre relações filogenéticas (ou evolutivas).

 

Primitivo versus avançado[2]

 

Os termos “primitivo” ou “avançado” devem ser usados com cautela, mas eles são freqüentemente usados ​​livremente ignorando a possível confusão que podem resultar. Estes termos sugerem uma certa quantidade de “melhoria” para os animais considerados avançados sobre aqueles considerados primitivos. O que realmente se entende por “primitivos” é que um animal é mais parecido com as formas originais das quais evoluiu. Um peixe moderno é igualmente evoluído como um pássaro moderno. Sabemos que as aves evoluíram a partir de animais que eram peixes. No entanto, o peixe ancestral está extinto. Esse mesmo peixe ancestral pode ter sido o ancestral dos peixes modernos também. Assim, quando chamamos um peixe “primitivo” em relação às aves, é apenas com referência ao fato de que os vertebrados, como peixes nadavam nos oceanos bem antes de qualquer ave subiu no céu. O termo “derivado” também é freqüentemente usado como sinônimo de “avançado”.

 

Relações taxonômicas vs relações filogenéticas

 

Nomenclatura taxonômica é uma forma conveniente com a qual biólogos e paleontólogos agrupam organismos antigos, a fim de serem capazes de pensar sobre eles. A nomenclatura moderna foi desenvolvida por Carolus Linnaeus em 1758, com base em organismos modernos, especialmente plantas. Como mencionado anteriormente, todos os nomes taxonômicos acima do nível de espécie são arbitrários. Os organismos foram classificados em vários grupos com base em semelhanças, mas não podiam estar em mais de um grupo de cada vez (por exemplo, ou é um réptil ou um pássaro, mas não ambos).

 

A partir disso é que foi derivada a típica imagem dos livros-texto da evolução dos vertebrados, desde os mais primitivos (peixes) até os mais avançados (mamíferos), e a noção de que deve haver intermediários, como os “peixíbios”, Repti-aves, e Repti-mamíferos. Isto sugere também que a partir de peixes modernos evoluíram os anfíbios modernos que evoluíram nos répteis modernos, que evoluíram na aves e mamíferos modernos.

 

Filogenia é a real relação evolutiva entre diferentes grupos de organismos. Não há divisões e classificações arbitrárias. A imagem clássica da “árvore da vida” é uma versão muito simples da filogenia. Hoje, biólogos, botânicos e paleontólogos usam análise matemática das características dos organismos a fim de inferir filogenias. A filogenia parece muito diferente da visão taxonômica das relações dos organismos.

 

Importante, os grupos estão unidos com base no compartilhamento de características “derivadas”. Ou seja, grupos de organismos se distinguem uns dos outros com base em novas características nunca antes vistas. Às vezes, o resultado é que os grupos considerados distintos pela taxonomia Linnaen são aninhados um dentro do outro.

Acima está uma filogenia simples para os vertebrados. Todos os vertebrados são unidos por ter vértebras. As linhas vermelhas são as relações evolutivas entre diferentes grupos de vertebrados. Ao se mover para cima ao longo de qualquer dessas linhas evolutivas, move-se em direção a outras espécies mais derivadas. As divisões entre os grupos ocorrem entre os membros mais primitivos do grupo. Por exemplo, os primeiros anfíbios residem na filogenia sobre o ponto marcado “2”, que representa a origem de locomoção terrestre. Estes primeiros anfíbios, apesar de, por definição, serem anfíbios, não são os modernos anfíbios derivados que nós vemos hoje. Estes primeiros anfíbios evoluíram a partir de peixes primitivos, que também são diferentes de qualquer peixe que temos hoje.

 

Observe que as aves e os mamíferos e os dinossauros estão aninhados dentro de outro grupo de animais rotulado “répteis”. Então, aves e mamíferos são “répteis”, mas distinguem-se dos outros répteis com base nas características do crânio (mamíferos) e pela capacidade de voar (pássaros). Há sobreposição entre os dinossauros, pássaros e répteis. Filogenias permitem uma espécie pertencer a mais de um grupo.

Mostradas acima estão as posições na filogenia em que as formas intermediárias entre as principais classes existiriam. Note que estes não estão nas extremidades das linhas evolutivas (formas modernas), mas em posições mais baixas na filogenia. As transições ocorrem de membros primitivos de um grupo primitivo em membros de outro grupo. Nós não desenhamos pernas de rã em uma truta e dizemos que assim que a espécie de transição entre peixes e anfíbios pareceria. Nós não imaginamos uma tartaruga com asas para a chamada transição entre répteis e aves. (E nós, com toda a certeza não olhamos para um ornitorrinco e o chamamos de uma transição entre aves e mamíferos, apesar do que eu já vi publicado algumas vezes na literatura criacionista).

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Higgins, P., 2006. Use and Abuse of the Fossil Record: Defining Terms. Creation and Intelligent Design Watch, hosted by the Committee for the Scientific Investigation of Claims of the Paranormal.

 

 Penny Higgins_____________________________________________________

A Doutora Pennilyn (Penny) Higgins é uma Associada de Pesquisa no Departamento de Ciências da Terra e do Ambiente na Universidade de Rochester. Os interesses de pesquisa de Penny incluem: Geoquímica de isótopos estáveis ​​de apatita biogênica e de minerais carbonados; estudos em escala anual do clima antigo e fontes dietéticas de vertebrados fósseis utilizando isótopos estáveis ​​de apatita dos dentes e óssea; concentração de CO2 atmosférico e os efeitos sobre o metabolismo das plantas através do tempo geológico; geoquímica do urânio e sua relação com a deposição de minério de urânio e com a preservação dos fósseis; tafonomia de vertebrados, e aplicação do GIS a problemas em paleontologia.

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Notas:

 

[1]A classificação tradicional considerava os répteis como todos os amniotas subtraindo as aves e os mamíferos, formando um grupo parafilético, ou seja, em que nem todos os descendentes do ancestral comum estão incluídos, portanto, um construto bastante arbitrário. Contudo, atualmente, é possível encontrar filogenias em que Reptilia é um clado monofilético  pertencente a Sauropsida (grupos irmão de Sinapsida) que incluiria  Diapísdios e Anapísidios, como tartarugas, lagartos, serpentes, crocodilos, e aves, um subgrupo dos dinossauros terópodes. Porém, por causa de dúvidas em relação a origem dos testudines (grupo ao qual pertencem as tartarugas), mais recentemente, foi proposto equiparar Reptila ao próprio grupo Sauropsida. Em ambas as perspectivas que “salvam” o grupo Reptilia, as aves são consideradas répteis e os mamíferos não seriam descendentes deste grupo, mas apenas um táxon irmão um subgrupo dos sinapísdeos que juntamente com os sauropsídeos formam os amniotas. De qualquer jeito o termo expressa coisas bem diferentes que costumamos a associar com os répteis.

[2]Apesar de fazer menção ao termo “derivado”, Higgins, utiliza-se mais do termo “avançado” que preferi traduzir na maioria das vezes por “derivado”, o termo mais canônico e usual.

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Referências:

Benton, M. J. Reptilia Encyclopedia of life sciences. Macmillan, London, 11 pp.
Laurin, M. and Reisz, R.R. (1995). “A reevaluation of early amniote phylogeny.” Zoological Journal of the Linnean Society, 113: 165-223.
Modesto, S.P.; Anderson, J.S. (2004). “The phylogenetic definition of Reptilia“. Systematic Biology 53 (5): 815–821. doi:10.1080/10635150490503026. PMID 15545258.

 

 

Gene do melanismo encontrado em mariposas de Manchester (ou quase)

Alguns meses atrás foi feita a seguinte pergunta no formspring evolucionismo:

 

“A comprovação do evolucionismo pelas mariposas negras e marrons é um fato falso mesmo como vi num site de criacionismo?”

 

A pergunta se referia, claramente, às polêmicas suscitadas por críticas aos estudos com a mariposa Biston belularia e as mudanças de freqüência das formas melânicas e típicas, que ocorreram associadas a poluição, e sua reversão, após os controle e diminuição da mesma. Segue a minha resposta (com algumas pequenas mudanças) a questão e, logo depois, a tradução de um comentário do biólogo evolutivo Jerry Coyne sobre um novo artigo publicado na revista Science sobre a base genética do melanismo industrial em B. Betularia. Coyne, por acaso, é um dos autores que criticou  o caso do melanismo industrial e que, mais tarde teve suas críticas, co-optadas em propaganda anti-científica criacionista. [O que não o deixou nada feliz] Também tomei a liberdade de acrescentar links a minha resposta e ao post de Coyne (que já possuía alguns que foram mantidos), além de uma lista de referências ao final.

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Resposta:

Essa é uma longa história, mas a resposta mais simples é não. Primeiro por que não se duvida que as populações de mariposas mudaram, o que se contestou durante um certo tempo é se essas mudanças eram realmente exemplos de evolução adaptativa, ou seja, via seleção natural.

 

Hoje em dia a explicação para o melanismo industrial por seleção natural que envolve a predação diferencial dos tipos escuros e claros, dependendo do fundo disponível (líquens ou fuligem), é o que explica melhor o fenômeno, sendo o consenso entre os especialistas. É sim uma ótima ilustração do processo de seleção natural, mas também envolve questões como migração das populações.

 

O problema, principal, é que em 1998, um biólogo evolutivo bem conhecido Jerry Coyne (especializado em especiação), ao comentar sobre o livro do especialista em melanismo Michael Majerus, concluiu que as evidências ainda eram equívocas para a explicação do fenômeno por seleção natural mediada por predação de pássaros, já que os experimentos de soltura e captura de mariposas realizados nos anos 50 tinham algumas falhas e ainda existiam questões em aberto. Ainda que essa fosse a explicação mais plausível.

 

Porém, o próprio Majerus, e outros especialistas em melanismo e evolução de mariposas, discordaram [a,b,c] dessa interpretação e apontaram os mesmos tipos de dados e padrões observados na América e na Inglaterra, além da coerência com o modelos quantitativos. Nos anos posteriores observaram mais instâncias que confirmam a idéia original. Outras críticas existiam antes, mas a maioria delas foi refutada ou não negava o modelo original, apenas acrescentando mais detalhes e sugerindo a participação de outros fenômenos evolutivos. Alguns criacionistas se aproveitaram disso e passaram a espalhar mentiras e distorcer a situação. Isso ocorre até hoje, principalmente, por que alguns começaram a levantar teorias conspiratórias e acusaram Bernard Kettlewell, de fraude, simplesmente por que ele usou mariposas coladas para fazer um testes de reconhecimento de predadores em fundos com diferentes contrastes e esquecem de mencionar os outros estudos de soltura e captura, inclusive os mais recentes delineados por Michael Majerus.

 

O próprio Coyne, hoje, tem uma opinião diferente, o que ilustra como funciona o processo de investigação científica. Mas o mais importante é que mesmo ele não disse que a história era falsa, mas que não tinha evidências adequadas e que existiam evidências melhores de seleção em outros exemplos. O problema é que as ciências avançam e lacunas em nosso conhecimento são preenchidas e os próprios fenômenos estudados mudam. O processo de investigação científica é um contínuo processo de interrogação e crítica.

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Gene do melanismo encontrado em mariposas de Manchester:

 

Autor: Jerry Coyne

Fonte: whyevolutionistrue

 

Bem, o gene foi localizado, mas, na verdade, ainda não identificado. No entanto, em breve será.

 

Esta história é sobre aquilo que muitos evolucionistas consideram o nosso melhor exemplo documentado da seleção natural em tempo real: a evolução do “melanismo industrial” (cor escura, em resposta à poluição ambiental) nas mariposas de Manchester, Biston betularia. O aspecto normal da mariposa é esbranquiçado, com pintas pretas (o que explica seu nome, é também chamado de forma “typica“):

 

No início do século XIX, algumas variantes completamente escuras deste tipo (chamadas de “carbonaria”) haviam sido encontradas por colecionadores britânicos (a primeira foi descrita em 1848), mas eles existiam em freqüência muito baixas: apenas alguns centésimos de um por cento. (Os ingleses são lepidopterologistas amadores diligentes, e assim os registros são muito bons). Mais tarde, os testes genéticos mostraram que as diferenças entre carbonaria e typica eram devidas a um único gene, e a cor escura era dominante.

 

Em 1898, a freqüência da forma escura alcançou as alturas, atingindo 98% nas florestas perto de Manchester. Aumentou também em outras partes da Inglaterra, especialmente nas regiões industrializadas. Nas áreas rurais a freqüência da variante escura era menor. Este aumento em concerto em um período tão curto, certamente indica a ação da seleção natural. Embora houvessem várias teorias sobre como isso ocorria, a mais provável parecia que era baseado em camuflagem: a industrialização escureceu os troncos com fuligem, mantando os líquenes, a forma typica não era mais críptica nas árvores antes de coloração clara (em especial as bétulas), e agora a forma escura camuflava-se em seu lugar. Aqui estão algumas fotos mostrando como a forma escura é pouco visível em troncos escurecidos e como a forma clara é em árvores normais não escurecidas:

Note que existem duas mariposas em cada imagem.

Quando a Grã-Bretanha aprovou o Clean Air Act, na década de 1950, a poluição começou a diminuir e as árvores tornaram-se menos escuras: a fuligem lavada, e líquenes começaram a retornar. Com certeza suficiente, a mudança de cor se inverteu: as mariposas de cor clara, começaram a aumentar em freqüência, de modo que agora a forma typica está presente em freqüências de 90% em áreas, como Manchester, onde elas já haviam quase desaparecido. Aqui está como os dois tipos de coloração das formas assemelham-se em uma floresta contemporânea não poluída:

Como eu disse, a ascensão em concerto e a queda dos genes associadas a coloração em toda a Grã-Bretanha indicava a ação da seleção natural, uma hipótese apoiada por mudanças similares na subespécie americana de B. betularia, particularmente em áreas poluídas em Michigan e na Pensilvânia.

 

A hipótese de que a seleção sobre a cor era baseada em predação, especialmente por predadores, como pássaros, que adoram comer mariposas – foi testada pelos biólogos britânicos, em especial Bernard Kettlewell em Oxford. Ele soltou misturas de mariposas claras e escuras em tanto bosques poluídos e não poluídos. Como esperado, em cada tipo de bosque ele recapturou mais das mariposas que combinava com as árvores, sugerindo que as mariposas conspícuas tinham sido comidas em maior freqüência. Sua estimativa da seleção contra mariposas conspícuas era muito forte: elas pareciam ter tido apenas metade do sucesso reprodutivo das mariposas camufladas.

 

Eu fui, por um tempo, um crítico severo dos experimentos de Kettlewell, que foram citados em todos os manuais escolares como uma prova de seleção natural em tempo real. Seu delineamento experimental tinha várias falhas fatais. Mas trabalhos mais recentes têm mostrado que as mariposas mortas de diferentes cores presas às árvores de diferentes cores mostram as diferenças esperadas no ataque de pássaros, e que em ambiente selvagem, de fato, as mariposas pousam sobre os troncos e base dos galhos. Ainda mais recentemente, Michael Majerus da Universidade de Cambridge repetiu os experimentos de Kettlewell de soltura, mas o fez corretamente. Claro o suficiente, ele encontrou nas recapturas o diferencial esperado das formas claras e escuras. Infelizmente, Majerus morreu por causa de mesotelioma antes de que seus dados pudessem ser publicados, e assim os resultados do teste de seleção mais robusto com este sistema ainda residem, tanto quanto sei, em websites ao invés das páginas de revistas científicas.

 

De qualquer maneira, a história da Biston betularia se mantem de pé, ao lado do trabalho dos Grant* nos tentilhões de Galápagos, como um dos casos mais bem compreendidos de seleção ocorrendo em “tempo real”. (“Melanismo industrial” não está limitado a Biston betularia, e jeito nenhum: cerca de 70 espécies de lepidópteros também mostraram mudanças semelhantes.) Apenas um pedaço da história faltava: A base genética das diferenças entre as formas claras e escuras. Era sabido, como eu disse, ser um resultado de um único gene, com o “alelo” escuro sendo dominante, mas a natureza desse gene não era conhecida.

 

Esta semana, no entanto, um artigo na revista Science escrito por Arjen van’t Hoff et al. deu um grande passo para a identificação do gene do “melanismo”. Os autores mapearam este único fator genético em uma pequena região cromossômica ao cruzarem mariposas claras e escuras que diferiam em muitos marcadores genéticos, e percebendo quias marcadores genéticos estavam associadas com a cor das asas em gerações subseqüentes. O “gene da cor” reside em uma pequena parte do cromossomo homólogo ao cromossomo 17 de Bombyx mori, o bicho-da-seda, cujo genoma já foi mapeado. Os autores ainda não reduziram esta pequena região a um gene específico, por que isso é muito difícil de fazer, e não existem “genes candidatos” óbvios naquela região que afetariam a cor.

 

O que é mais interessante, entretanto, é que a análise genética de diversas formas coloridas recolhidas em todo o Reino Unido deu informação sobre a origem evolutiva da forma escura. Ela poderia ter se originado de duas maneiras: ou uma única mutação escura, em uma única mariposa carbonaria, poderia ter se espalhado por toda a Grã-Bretanha, ou poderia ter havido múltiplas origens da mutação (cada uma, talvez, mantida em freqüência baixa através seleção natural contra a cor escura), que começou a surgir em concerto, quando o ambiente mudou.

 

Os estudos genéticos mostraram que a primeira hipótese era a mais provável. Todos os indivíduos carbonaria carregavam uma assinatura genética e única em torno do (não no) “gene da cor escura”, sugerindo que essa assinatura fosse o DNA único de um só indivíduo mutante que, porque este DNA estava fisicamente próximo ao “gene da cor escura” sofrendo seleção, “pegando carona” até a alta freqüência, juntamente com o alelo da cor escura em si. (Lembre-se que os genes vizinhos residem nas proximidades de um único trecho de DNA, então, se uma parte do DNA aumenta em freqüência devido à seleção, ela também carrega consigo regiões próximas. Regiões mais distantes, no entanto, perdem essa associação por causa da recombinação genética entre as fitas de DNA.) Se a coloração escura em mariposas britânicas tivesse se originado a partir de várias ou “mutações escuras” muitos diferentes, todas com uma freqüência inicial baixa, você não esperaria que a região “escura” possuísse uma assinatura genética única compartilhada por todos os indivíduos atualmente escuros.

 

Portanto, isso resolve um aspecto da história do melanismo. O resto da história se seguirá em breve: a identificação do gene exato distinguindo as formas claras e escuras, e o seqüenciamento do gene para determinar se a diferença de cor é devida a uma diferença “estrutural” que residem em uma proteína, ou a uma diferença “regulatória” que afeta se ou como uma proteína é expressa. Mas este trabalho de genética molecular é apenas a cereja no bolo, por que independentemente da base genética exata da diferença de coloração, as linhas gerais da história – e validade da B. betularia como um caso de seleção natural em “tempo real” – são claras.

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A.E. van’t Hof, N. Edmonds, M. Dalíková, F. Marec, and I. J Saccheri.  2011. Industrial melanism in British peppered moths has a singular and recent mutational origin,” Science 332:958-960.

 

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* Aqui ele se refere a Peter e Rosemary Grant e não a Bruce S. Grant que aparece nas referências.

 

 

Referências e links de interesse:

 

Coyne, J.A. (1998). Not black and white. Review of Melanism: Evolution in Action by Michael E.N. Majerus. Nature 396:35-36.

 

Coyne, J.A. (2002). Evolution under pressure (review of Of Moths and Men) Nature 418, 19-20 (4 July 2002) doi:10.1038/418019a

 

Gewandsznajder, F. A polêmica das mariposas. Ciência Hoje, vol. 35, n. 209, outubro de 2004. [O artigo já este disponível online, mas seu link não funciona mais. Espero entrar em contato com o professor Gewandsznajder e obter outro que funcione já que é o único artigo sobre o tema em Português, publicado em um grande periódico de divulgação.]

 

Gishlick, Alan (November 23, 2006). “Icon 6 — Peppered Moths”. National Center for Science Education. http://ncse.com/creationism/analysis/icon-6-peppered-moths. Acessado em 23 de maio de 2011.

 

Grant, Bruce S. 1999. Fine tuning the peppered moth paradigm. Evolution 53: 980-984. 

 

Grant, B. S. and L. L. Wiseman. 2002. Recent history of melanism in American peppered moths. Journal of Heredity 93:86-90. [Mais material pode ser achada na página pessoal de Grant]

 

Grant, B. S. 2004. Allelic melanism in American and British peppered moths. Journal of Heredity 95:97-102.

 

Majerus, Michael Industrial Melanism in the Peppered Moth, Biston betularia: An Excellent Teaching Example of Darwinian Evolution in Action Evolution: Education and Outreach, 2, 63-74 (2009) –http://www.springerlink.com/content/h7n4r6h026q1u6hk/fulltext.pdf

 

Majerus, Michael The Peppered Moth : Decline of a Darwinian Disciple [palestra ministrada na British Humanist Association, at the London School of Economics, on Darwin Day, 12th February 2004] Text of the talk and Powerpoint presentation ambos disponíveis em arquivos PDF [em inglês]


Majerus, Michael The Peppered Moth: The Proof of Darwinian Evolution [ palestra ministrada na ESEB2007; 11th Congress of the European Society for Evolutionary Biology, 20-25 August 2007, Uppsala, Sweden] Text of the talk and Powerpoint presentation ambos disponíveis em arquivos PDF [em inglês]

Mallet, Jim 2004 The peppered moth: a black and white story after all Genetics Society News 50:34-38, January 2004.

 

Noor, M.A.F., R.S. Parnell, and B.S. Grant. 2008. A Reversible Color Polyphenism in American Peppered Moth (Biston betularia cognataria) Caterpillars. PLoS ONE 3(9):e3142 doi:10.1371/journal.pone.0003142.

 

 

Por que cinco dedos?

A pendactilía é a condição ancestral de todos os tetrápodes viventes e, embora sejam reportados indivíduos polidáctilos,não são conhecidas espécies de tetrápodes amniotas modernos com mais de cinco dedos; apesar da diminuição de dígitos ser bem conhecida em espécies de aves e em alguns mamíferos. Este fato sugere que este padrão deve ter se originado, muito provavelmente, antes da divergência entre os anfíbios (rãs, sapos, salamandras e cecílias) e os amniotas (que incluem sinapsídeos, como nós mamíferos, e sauropsídeos como as aves, crocodilianos, tartarugas e lagartos). Através do registro fóssil podemos estimar que esta separação ocorreu algo em torno de 340 milhões de anos atrás, ainda no carbonífero inferior.

Existem, porém, evidências (em camadas fósseis com cerca de 360 milhões de anos, portanto,antes que estas duas linhagens se separassem) de tetrápodes com membros que exibiam raias com seis, sete e até oito dígitos. A mudança desse padrão de dígitos poucos diferenciados e a redução para o arranjo mais familiar, com cinco dedos ou menos, ocorreu concomitantemente a evolução de pulsos e tornozelos mais complexos e sofisticados, i.e. com um maior número de ossículos e exibindo articulações complexas entre suas partes constituintes.

 

Michael Coates explica: “As primeiras experiências evolutivas em hexa ou octodactilia (isto é, criaturas que possuem seis ou oito dígitos) associavam-se com esqueletos dos membros bastante simples, muito parecidos como aqueles presentes nas nadadeiras de baleias e golfinhos modernos. Isso pode fornecer uma pista funcional sobre uma das razões para a redução do número de dígitos, que está relacionada com as exigências funcionais de um simples membros de “passeio”. Ao contrário de nadadeiras, tais membros devem fornecer apoio em uma variedade de substratos, fornecem uma plataforma para eficientemente empurrar o chão e permitir certa rotação em relação aos ossos dos membros inferiores e superiores enquanto o resto do corpo locomove-se para a frente. Nos escarços exemplos de evolução secundaria de membros polidáctilos disponíveis no registro fóssil, o fenômeno está associado com táxons aquáticos. O exemplo clássico disso são as aletas dos ictiossauros [1], répteis marinhos extintos semelhante a peixes que viveram a mais de 65 milhões de anos atrás.” (Coates, 2005)

 

Apesar destes poucos exemplos se insinuarem, não existe realmente qualquer evidência de que cinco dedos, ao invés de seis, sejam biomecanicamente melhores e, por isso, tenham impulsionado a evolução do ancestral comum dos tetrápodes modernos. Também não existem boas evidências que três ou quatro também não o seriam. Entre outros motivos, porque várias linhagens de tetrápodes sofreram redução no número de dedos, ficando com menos de cinco. Essas constatações nos levam a indagar por que, enquanto a redução de dedos ocorreu várias vezes, muito raramente aconteceu o aumento do número de dedos. O mesmo pode ser dito da redução de outros ossos dos membros ou mesmo de membros inteiros como no caso de serpentes e lagartos ápodos.

 

Tal fato pode ser, parcialmente, explicado caso lancemos mão de uma regra evolutivo-desenvolvimental um tanto grosseira: “É mais fácil de se perder algo do que recuperá-lo.” Mas mesmo assim isso seria bastante estranho, pois depois de centenas de milhões de anos talvez é de se estranhar que, mesmo com a extraordinária variedade de organismos vertebrados, nenhuma linhagem de amniotas tenha evoluído verdadeiramente seis dígitos. Pandas e toupeiras, por exemplo, evoluíram “dedos extras” a partir de processos como o remodelamento dos ossos do pulso, uma solução nada elegante, diga-se de passagem, principalmente se comparada ao possibilidade de crescimento de um dedo extra de verdade. Essa extraordinária ausência, na realidade, acaba sendo bastante reveladora e nos apontam fortemente para o fato de algum tipo de restrição genético-desenvolvimental mais persistente deva existir.

 

É possível, entretanto, produzir artificialmente o padrão de seis (ou mais) dígitos através de manipulação experimental do desenvolvimento de animais em laboratório. Alguns desses estudos manipulam especificamente a atividade de genes, provavelmente, relacionados as transformações envolvidas na transição evolutiva de nadadeira para membros. Estes trabalhos sugerem outra possibilidade para explicar a prevalência do padrão pentadáctilo, a pleiotropia. Muitos genes, através de seus produtos, têm múltiplos efeitos, agindo, muitas vezes, em mais de uma característica fenotípica.

 

Essa forte “inércia evolutiva”, em relação ao aumento do número de dedos e outros elementos dos membros, possivelmente, poderia ser explicada pelo baixo nível de
modularidade no desenvolvimento destas estruturas. A dificuldade de se interferir no desenvolvimento dos dedos, sem interferir no desenvolvimento de outras estruturas, é ainda melhor ilustrada pelo próprio padrão de redução de estruturas dos membros que se desenvolvem, tipicamente, através de um processo de construção seguido por destruição, no qual ocorre a formação de um primórdio tecidual que depois regride. Além disso, evolutivamente é comum que o dedo reduzido seja o último a ser formado, indicando restrições temporais associadas ao  processo de desenvolvimento embriológico.

 

Coates dá como exemplo a síndrome “mão-pé-genital“, uma condição rara em que o trato genito-urinário e os membros são malformados. Entre os principais genes envolvidos nesta síndrome estão aqueles responsáveis pelo número e padronização dos dedos durante o desenvolvimento. A lição que podemos tirar desta síndrome é que a estabilidade do desenvolvimento, e da padronização das extremidades de nossos membros, depende dos mesmos mecanismos en

volvidos diretamente com o no nosso sucesso reprodutivo (Coates, 2001). Como Coates deixa bem

claro: “Mexa neles por sua conta e risco.”

 

Uma possível explicação seria que, nos amniotas, o desenvolvimento dos membros ocorre durante a chamada fase filotípica. De acordo com o “modelo da ampulheta” [2] esta fase, a mais conservada entre as diversas linhagens dentro de um grupo animal, se caracteriza por uma rede altamente complicada de sinais indutivos, incluindo a ativação de genes Hox. Esta rede de interações e miríade de processos que ocorrem durante esta fase é que seriam responsáveis pela conservação do padrão de organização corporal. Neste período, em particular, ocorrem muitas interações indutivas em que diferentes tecidos entram em contato entre si diretamente e através de sinais químicos. Como resultado deste imbricamento genético-desenvolvimental, as mudanças no desenvolvimento dos membros, normalmente, acabam por produzir alterações também em outras partes do corpo.

 

Em relação ao número de dedos é bom lem brar que apesar da ausência da evolução de linhagens polidáctilas a partir das pentadáctilas isso não é, claramente, uma evidência de ausência de variação hereditária para tal característica. A incidência de polidactilia, em nós seres humanos, deixa bem claro este fato, afetando entre 0,1 – 0,2% dos nascituros. Portanto, deve haver seleção contra mutações que causam a polidactilia ou outras formas de redução dos membros.

 

Mutações que alterassem o número de ossos dos membros provavelmente têm também muitos efeitos pleiotrópicos, interferindo com outros processos, sistemas e órgãos, reduzindo drasticamente a chance de que tais mutações fossem bem sucedidas, sendo, desta forma, purgadas pelo processo de seleção natural.

 

Outra linha de evidências que dá apoio a essa ideia é o fato de mutações em camundongos, galinhas e seres humanos que provocam alterações no número de dedos estão associadas com muitas anomalias graves nestas mesmas criaturas. Várias síndromes humanas têm a polidactilia como uma de suas manifestações características. Alguns exemplos são as síndromes de Ellis van Crefeld, Bardet-Biedl, as trissomias do pares 13 e 21 – a conhecida síndrome de Down (Galis, van Alphen e Metz, 2001).

 

Cerca de 15% dos bebês nascidos com um dedo extra, também possuem outras anomalias congênitas. O que ainda deixa, entretanto, 85% dos bebês com polidactilia sem nenhuma anomalia associada. Porém, estes resultados podem ser um pouco difíceis de interpretar por que problemas médicos mais tardios geralmente não são contabilizados, abrindo margem para a subestimação do fenômeno. Como complicação extra, essas síndromes, além de tudo, têm expressividade variável, o que acaba por interferir com uma avaliação objetiva de
anomalias associadas a mutações de polidactilia. O ideal é que estudos
de longevidade e fertilidade de pacientes fossem incluídos em estudos
genéticos das famílias com tais anomalias (Galis, van Alphen e Metz, 2001) .

 

Os mesmos autores, Galis, van Alphen e Metz (2001), citam os resultados de uma revisão sobre a redução de membros em seres humanos, onde  os participantes são acompanhados e as anormalidades registradas a partir do nascimento, seguindo-se os pacientes por período de um ano. Este estudo revelou que 0,06% dos indivíduos apresentavam redução de algum membro ao nascerem. Destes, 12,9% possuíam outras anomalias associadas. Dezesseis porcento destes bebês morreram no primeiro ano e 4% das crianças com redução de membros, mas sem anomalias associadas, faleceram no mesmo período de tempo. Em contraste, a taxa de mortalidade infantil geral no primeiro ano de vida é de aproximadamente 0,8%.

 

Apesar dos viéses e limitações destas pesquisas, há fortes evidências da importância de efeitos negativos pleiotrópicos em aves e mamíferos. Por exemplo, em camundongos, a ocorrência de oligodactilia sempre esteve associada a efeitos pleiotrópicos, geralmente, no esqueleto apendicular e axial. A oligo- e polidactilia em galináceos também está ligada a outros problemas. Por exemplo, a seleção artificial contínua para polidactilia, nestas aves, leva a malformações do rádio. Também existem casos bem estabelecidos de polidactilia ocorrendo em várias raças de cães e com efeitos pleiotrópicos negativos, especialmente associada a alta mortalidade e baixa longevidade de raças como São Bernardo.

 

Como evidência adicional, em alguns tetrápodes não amniotas (como os anfíbios com larvas aquáticas), o desenvolvimento dos membros acontece posteriormente a fase filotípica o que, em teoria,  liberaria, pelo menos parcialmente, o desenvolvimento dos membros da grande interatividade típica da fase filotípica. Nesses animais as restrições provocadas por efeitos pleiotrópicos e epistáticos deveriam ser bem mais fracas. Tal expectativa  está em pleno acordo com a maior variabilidade no número de patas em anfíbios, inclusive com algumas espécies de sapos, ocasionalmente, possuindo seis dedos (apesar de um pouco de controvérsia sobre a identidade do prepollex e prehallux. Veja, para maiores esclarecimentos,  Galis, van Alphen e Metz, 2001 ).

 

Assim, a baixa modularização (e portanto isolamento) das vias desenvolvimentais responsáveis pela produção dos dedos e membros pode ser a responsável pela pleiotropia negativa associada a polidactilia e outras mudanças no padrão dos membros. Então, apesar de não sabemos com exatidão o porquê de cinco dedos, o modelo de Lande e Wright (que haviam proposto este hipótese para o não aumento do número de membros em tetrápodes, estendido para o padrão pentadáctilo por Galis, van Alphen e Metz, 2001), de que a polidactilia e outras mudanças de padronização dos membros sejam limitadas por efeitos pleiotrópicos negativos parece ser a mais robusta.

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[1] Na realidade, apesar dos ictiossauros serem considerados os únicos tetrápodes a evoluírem “dedos verdadeiros” extras, muitos pesquisadores tem argumentado que as estruturas extras seriam de fato falanges supranumerárias saídas de um dos cinco dedos originais (Galis, van Alphen e Metz, 2001).(Galis, van Alphen e Metz, 2001).

 

[2] No chamado estágio (ou fase) filotípico os embriões não são idênticos, mas nesta fase é quando os embriões de animais do mesmo grupo (como vertebrados, por exemplo) mais se assemelham uns aos outros. Nos artrópodes, o estágio  acontece após a gastrulação. Já nos cordados, o estágio é chamado de faríngula, começando com a neurulação e termina com a formação da maioria dos somitos (Galis, van Alphen e Metz, 2001). Esta fase é representada através do “modelo da ampulheta” [figura retirada de e] já que antes desse período existe variação em função de adaptações das fases iniciais dos embriões (especialmente em função do tipo de ovo) e depois, por causa do aparecimento de características tipicas de cada linhagem [a, b, c, d, e, f, g]

 

Referências:

 

Coates, Michael Why do most species have five digits on their hands and feet? (April 25, 2005) Ask the Experts. Acessado em 21/11/2011.

 

Galis, Frietson, van Alphen, Jacques J.M., Metz, Johan A.J. Why five fingers? Evolutionary constraints on digit numbers, Trends in Ecology & Evolution, Volume 16, Issue 11, 1 November 2001, Pages 637-646, ISSN 0169-5347, DOI: 10.1016/S0169-5347(01)02289-3.

 

Irie N, Kuratani S. Comparative transcriptome analysis reveals vertebrate phylotypic pe…. Nat Commun. 2011;2:248. PubMed PMID: 21427719.

 

Créditos das figuras:

 

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Na realidade, apesar dos icitiossauros serem considerados os únicos tetrápodes a evoluírem “dedos verdadeiros” extras, muitos
pesquisadores tem argumentado que as estruturas extras seriam de fato
falanges supranumerárias saídas de um dos cinco dedos originais
(Galis, van Alphen e Metz, 2001).

O preço da complexidade

Philip Ball [The Achilles’ heel of biological complexity ], ao comentar sobre um novo artigo da Nature afirma, “A complexa teia de ResearchBlogging.orginterações entre as proteína nas células pode estar mascarando um problema cada vez pior.” . Nosso próprio e grandioso “modo ser” parece cada vez mais instável a longo prazo. A complexidade tem um preço e  esse preço deverá ser pago no futuro, enquanto isso nosso débito aumenta.

 

Talvez seja uma das opiniões mais difundidas, entre biólogos evolutivos, a de que a complexidade típica de sistemas biológicos multicelulares, como animais e plantas, traga grandes vantagens e, portanto, se deva diretamente à seleção natural. A ideia de que a complexidade confere vantagens adaptativa – por exemplo, aumentando os possíveis nichos que um ser possa ocupar – não é nada implausível, sendo obviamente atraente e possuindo um grande poder heurístico. Mas, ao mesmo tempo, sabemos que os caminhos da evolução biológica são bastante tortuosos e o acaso nunca pode ser desprezado. Alguns cientistas têm explorado diferentes caminhos ao investigar as origens da complexidade biológica e sua evolução ao longo das eras. O grupo de Michael Lynch da universidade de Indiana se inclui nesta tendência. Nesse processo, descobrem algumas coisas sobre o preço que teremos que pagar por ser o que somos.

 

Nos últimos 15 ou 20 anos Lynch e seus colaboradores vêm propondo modelos de evolução da complexidade genômica que exploram, não a evolução adaptativa (que inegavelmente entra em ação no ajuste dos detalhes e adequação a situações ecológicas e demográficas específicas), mas o papel da deriva genética associada a perda de eficácia da seleção natural negativa (também dita purificadora), resultante das substancialmente menores populações das espécies de eucariontes multicelulares, o que nos inclui (veja aqui).

 

Um novo artigo de Ariel Fernández (agora no instituto de matemática da Argentina, em Buenos Aires) e Lynch sugere que a complexidade das redes de interações protéicas típicas das células eucariontes, conhecidas como interatoma (veja também este outro post), pode ser apenas um efeito colateral do acumulo de mutações fixadas pela deriva genética.

 

No abstract do artigo os autores resumem a questão:

 

As fronteiras entre procariontes, eucariontes unicelulares e eucariontes multicelulares são acompanhadas por ordens de magnitude de redução no tamanho efetivo das populações, com amplificação simultânea dos efeitos de deriva genética aleatória e das mutações.”

 

Um das implicações desta constatação, explorada pelos cientistas neste artigo, é que o tamanho da população precisaria ser considerado como possível determinante da evolução das vias moleculares subjacentes a evolução fenotípica a longo prazo. No trabalho, os pesquisadores mostram uma relação aproximada filogeneticamente inversa entre o poder da deriva genética e a integridade estrutural das subunidades que formam as proteínas.

 

Este achado levou-os a postular que o acúmulo de mutações levemente deletérias em populações pequenas induz secundariamente seleção de interações proteína-proteína que estabilizassem as funções de genes fundamentais. Esta perspectiva oferece uma forma em arquitetura protéica e as interações complexas entre essas moléculas essenciais para a diversificação fenotípica, evoluam inicialmente por mecanismos não-adaptativos e compensatórios.

 

Para Fernández e Lynch a complexidade dessa rede de interações entre nossas proteínas é uma função do pequeno tamanho de nossas populações, o que é nítido se compararmos com as de organismos unicelulares. O pequeno tamanho nos tornaria assim particularmente vulneráveis à ao efeito da deriva genética aleatória e não resultado direto de aptidão superior.

 

Contudo, mudanças evolutivas ao nível da estrutura das proteínas dificilmente envolveriam grande desestabilização do enovelamento protéico, portanto, ocorreriam sem alterar demais a conformação nativa de uma proteína que tivesse um papel essencial. A perda completa de função provavelmente implicaria a morte do individuo e, desta forma, tal modificação drástica teria um fim curto, graças ao processo purgação da seleção negativa. No entanto, a hipótese da deriva prevê uma relação negativa entre o tamanho da população (N) e a acumulação de substituições de aminoácidos que fossem apenas levemente deletérias.

 

Em populações maiores pequenos diferenças na aptidão dos indivíduos é suficiente para purgar das populações mesmo pequenas mutações deletérias, ou seja, mutações mesmo que com pequenos efeitos fenotípicos são mais facilmente eliminadas pela seleção natural. Porém, isso não ocorre de forma tão eficiente em populações menores e os indivíduos que as compõem acabam acumulando mais esses pequenos defeito.

 

A conseqüência da redução na eficiência da seleção em espécies com N pequeno é o favorecimento da acumulação de leves deficiências estruturais, especialmente através da maior acessibilidade aos solventes as ligações de hidrogênios que compõem a espinha dorsal, “o backbone” da molécula (“solvent-accessible backbone hydrogen bonds”, SABHBs), o que leva estruturas protéicas mais “abertas” e, assim, vulnerável a hidratação perturbadora do enovelamento e a uma tensão na interface água-proteína (PWIT) ao dificultar as capacidades de formação de ligações de hidrogênio das moléculas d’água adjacentes.

 

Trocando em miúdos, a desestabilização das proteínas ( através das mutações que se acumulam nos genes que as codificam) pode ser causada pela maior exposição da proteína às moléculas de água. Com a maior dificuldade em manter a conformação a proteína também perde sua capacidade de funcionar adequadamente, por exemplo, ao impedir uma boa interação com seu substrato.

 

No trabalho de Fernández e Lynch foram investigadas as estruturas tridimensionais de proteínas depositadas no banco de dados on Protein Data Bank, o famoso PDB que possui mais de 40 mil estruturas lá depositadas, em geral resolvidas por métodos com a cristalografia por difração de raios-X e Ressonância Nuclear Magnética (NMR). Os pesquisadores puderam verificar que o interferência da interface entre proteínas e a água – principalmente provocado pela exposição de porções ‘pegajosa’ a cadeia polipeptídica enovelada – estava associada a uma maior propensão de uma proteína associar-se a outras.

 

Como proteínas para funcionarem adequadamente precisam manter uma certa conformação tridimensional (sua estrutura terciária nativa) mutações podem interferir exatamente com a estabilidade desse arranjo tridimensional, tornando o processo de enovelamento menos rápido ou a protéina menos estável no meio aquoso típico do interior celular.

 

Uma solução possível para este problema é as proteínas aderirem-se frouxamente umas as outras, protegendo assim as regiões sensíveis a água. A sugestão de Fernández e Lynch é que essas redes originalmente começaram a se formar como uma mera resposta passiva à ação acumulação de mutações deletérias permitida pela deriva genética. Desta forma, o grande número de interações físicas entre as proteínas no interior das células – fundamentais para o fluxo de informação bioquímica intra-celular – ajudaria a compensar pela diminuição da estabilidade das proteínas. Assim, o papel da seleção natural seria basicamente “correr atrás do prejuízo” compensando pela perda de estabilidade estrutural, o que seria alcançado pela formação de interações com outras proteínas.

 

Com o tempo, e em determinadas situações, algumas dessas interações protéicas podem ter se mostrado funcionalmente úteis, quem sabe, ajudando a regular melhor algum processo de celular, como através do envio de sinais moleculares através das membranas celulares, e assim passando a conferir grandes vantagens aos indivíduos que as possuíssem, tornando-se, alvos da seleção natural.

Utilizando-se de uma medida de deficiência estrutural (v), os autores conseguiram mostrar que, enquanto subunidades de proteínas humanas (que são funcionais formando oligômeros) homólogas a proteínas monoméricas de organismos com populações maiores eram mais instáveis, do ponto de vista estrutural, as mesmas proteínas ao serem analisadas como oligômeros (formando complexos de várias subunidades) apresentavam estabilidade estrutural semelhante a proteína homóloga do organismo maiores. Comparações envolvendo as subunidades separadas e formando o tetrâmero da hemoglobina humana e a versão monomérica do verme trematodo F. Hepatica mostram bem este fato.

 

A partir daí sugeriram a possibilidade de que a associação oligomérica entre as subunidades de hemoglobina, nos mamíferos, tenha sido favorecida como forma de reduzir o excesso de tensão interfacial que era causada pela acumulação de deficiências estruturais oriundas das pequenas populações. Essa sugestão, ou seja, de que a origem da complexidade do interatoma tenha ocorrido em parte por causa do aumento do poder de deriva trás como vantagem adicional a despensa de se invocar vantagens seletivas diretas de longo prazo para a complexidade fenotípica.

 

Os autores do estudo também preocuparam-se com a outra possibilidade, ou seja, se ao invés da degradação inicial da integridade da arquitetura das proteínas individuais ter sido causada pela deriva genética aleatória (induzindo a seleção secundária favorecendo o recrutamento de parceiros de interação), na verdade, o surgimento de complexidade celular tivesse precedido as alterações nas seqüências da proteínas que teriam ocorrido secundariamente para acomodar tais interações. Para avaliar esta possibilidade compararam-se proteínas ortólogas de espécies próximas mas que tivessem divergido apenas (relativamente) recentemente em relação ao tamanho efetivo de suas população, mas ao mesmo tempo não passando por grandes modificações em termos de complexidade intracelular ou aparecimento da multicelularidade.

 

Para tal intento, foram comparados genes ortólogos de bactérias intracelulares/endossimbiótica com os de espécies parentes de vida livre, já que se acredita que as primeiras experimentaram uma redução substancial nos tamanhos efetivos de suas populações. Os resultados mostram os genes das espécies de vida livre, com maior tamanho populacional efetivo, têm valores de ν (uma medida de deficiências estruturais) consistentemente menores do que os seus ortólogos nas outras espécies.

 

A situação propiciada pelos pequenos N oferece um contexto apropriado para o recrutamento de interações de estabilização proteína-proteína, sugerindo um mecanismo plausível para a emergência de complexidade molecular previamente a sua co-optação na evolução de fenótipos divergentes, durante a evolução. Assim, Fernández e Lynch não negam um papel potencialmente importante para a seleção natural ao valer-se dessas novidades posteriormente, nem nega que mutações compensatórias intramolecular (em contraste a estabilização inter-molecular) pode aliviar alguns defeitos estruturais associados SABHBs. Os dois cientistas, entretanto, enfatizam que seus resultados levantam questões sobre a necessidade de invocar-se vantagens intrínsecas à complexidade dos organismos, e fornecem forte razão para a expansão dos estudos comparativos em evolução molecular além da análise de seqüências lineares na avaliação das estruturas moleculares.

 

Uma solução temporária:

 

Como esclarece Ball, contudo, esta solução seria apenas uma gambiarra e acabaria por acarretar um custo extra. Ao ‘tamponar’ a instabilidade das proteínas através da formação de redes (mesmo que a curto prazo isso tenha permitido o aumento da complexificação e a seleção natural de novas funcionalidades, como mais camadas de controle co-optadas para o controle das interações celulares, estados de diferenciação e desenvolvimento embriológico), a longo prazo, podem ter permitido, na verdade, que várias proteínas encontrassem-se em um estado à beira do desenovelamento (ou enovelamento incorreto) espontâneo. Doenças como Alzheimer e Parkinson mostram o perigo da instabilidade protéica e do enovelamento incorreto. Prions são outro conhecidíssimo exemplo de doenças ligadas ao chamado “misfolding” protéico. Essas proteínas “deformadas” acabam por formar agregados que desencadeiam toda a sorte de problemas, deflagrando um processo neurodegenerativo com conseqüências terríveis.

 

Neste caso, a evolução da complexidade seria apenas um beco sem saída e a deriva genética, ao promover o acumulo de mutações deletérias, funcionaria como uma agente corrosivo, minando a estabilidade das nossas redes de proteínas até sobrecarregar sua capacidade de compensação. Espécies como a nossa acabariam ficando cada vez mais doentes e novas doenças degenerativas, ligadas a problemas no enovelamento e estabilidade protéica, surgiriam. Ball, em seu comentário na revista Nature, então afirma:

 

Isto implicaria que a evolução darwiniana não é necessariamente benigna no longo prazo. Ao encontrar uma solução a curto prazo, para a deriva, pode ter apenas criado uma bomba relógio. Ou, como diz Fernández, “as espécies com pequenas populações no final de tudo estariam condenadas pela estratégia da natureza de evolução da complexidade.” ”

 

Para muitos talvez tudo isso soe como um golpe duro em nosso ego. Não só uma das características que nós mais nos orgulhamos (nossa complexidade) é, pelo menos em um momento inicial, apenas um produto direto de um processo estocástico como a deriva – com a seleção natural apenas correndo atrás, remendando os erros acumulados – a longo prazo a própria complexidade pode ser uma estratégia fadada ao fracasso.

 

Do ponto de vista pedagógico estas considerações nos lembram mais uma vez que a seleção natural não é um processo perfeito que nos leva sempre rumo a estados melhores e muito menos à perfeição. A adaptação local frente a um “mundo” interno e externo em constante mudança é o que este processo consegue produzir, devendo se conformar a oferta de mutações e aos caprichos da deriva genética e de fatores demográficos.

 

A deriva é um problema muito maior para as populações pequenas do que para as grandes A sobrevivência pelo simples acaso, em contraste a devido a maior adaptabilidade, é muito mais impactante, na representatividade do genótipos na próxima geração, quando existem apenas poucos indivíduos. Os raros genótipos que produzam fenótipos robustos e funcionalmente mais bem adaptados a alguma característica relevante do meio-ambiente (e que se tivessem chance de competir com os dos demais indivíduos ganhariam, em termos de longevidade e sucesso reprodutivo) podem ser perdidos pelo puro acaso e nunca mais nada semelhante reaparecer. Se a vantagem conferida for pequena ou apenas manifesta a partir de um certo período as chances maiores são de que sejam perdidas pelo simples acaso e as agruras que permeiam a vida dos seres vivos. A ubiqüidade de organismos unicelulares como as bactérias, archaeas, com seu longo histórico de sucesso (e mesmo eucariontes simples), nos mostram que um jeito de se proteger do efeito combinado das mutações e da deriva é “manter-se pequeno, simples e em grandes números”.

 

 

A longo prazo estaremos todos mortos”:

 

Para Fernández, os prions indicam que “este quebra galhos foi longe demais”:

 

“As proteínas com o maior acúmulo de defeitos estruturais são os príons, proteínas solúveis tão mal empacotadas que abdicam de sua conformação funcional e agregam-se.”

 

Os príons provocam doenças como Creutzfeldt–Jakob e o Kuru ao desencadear um processo de mau enovelamento em outras proteínas bem semelhantes, em uma espécie de reação em cadeia.

 

Fernández acrescenta que “se a variabilidade genética resultante da deriva aleatória continuar aumentando, nós, como espécie, podemos acabar enfrentando mais e mais catástrofes de aptidão do tipo que os príons representam”. E ele acrescenta: “Talvez o custo evolutivo de nossa complexidade seja um preço demasiado elevado a pagar a longo prazo.”

 

Estes comentários seguem a mesma linha dos inspirados em trabalho anterior de Lynch, comentando aqui no evolucionismo, a partir da análise de bancos de dados de mutações associadas a doenças humanas e a redução do tamanho efetivo de nossa população.

 

Os dois principais processos que decidem os destino das mutações a deriva genética e a seleção natural são capazes de criar a complexidade que nos é tão cara mas faz isso por vias bastante tortuosas que, talvez, nos destinem a extinção como preço final por esta mesma complexidade. Mas como os microbiologistas não cansam de nos lembrar, ainda vivemos na era das bactérias. Nós mesmos, ao pensarmos em nossos intestinos, pele e mucosas, somos parte de seu habitat e devemos nossa sobrevivência a elas. Mesmo dentro de nós, na intimidade de nossas próprias células – no exato local onde se dão essas interações proteína-proteína que estávamos discutindo – estão lá também elas, na forma de nossas mitocôndrias. Como se não bastasse tudo isso, nosso próprio modo de vida multicelular e complexo parece inerentemente instável. E como dizia um velho livro, “E os humildes herdarão a terra …”. Bem, pelo jeito, os humildes jamais tenhamos sido nós.

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Referências:

Fernández A, & Lynch M (2011). Non-adaptive origins of interactome complexity. Nature PMID: 21593762
Ball, Philip [publicado on line em 18 de maio de 2011] The Achilles’ heel of biological complexity Nature News doi: 10.1038/news.2011.294 .

 

Créditos da sfiguras:

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As cinco regras básicas para a evolução da cooperação

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Durante muito tempo a cooperação foi um dos grandes mistérios para as abordagens evolutivas. A cooperação é algo tremendamente importante e não diz respeito exclusivamente aos animais com um certo nível de inteligência. De fato, está por trás da emergência de novos níveis de organização biológica que, assim como os casos de cooperação entre indivíduos, envolvem ganhos e perdas para os ‘indivíduos’ que ‘ajudam’ aos outros.

  • Moléculas auto-replicantes
  • Células
  • Células e suas organelas
  • Organismos multi-celulares
  • Eussocialidade em animais
  • Sociedades humanas.

 

O “Dilema do Prisioneiro” capta a essência do problema e é a porta de entrada de muitos dos sistemas de modelagem e investigação da evolução da cooperação e altruísmo. Nele dois jogadores podem cooperar ou desertar e a recompensa para cooperação mútua, R, é maior do que o retorno da deserção mútua, P. Mas um desertor versus um cooperador recebe a maior recompensa, T, enquanto que o cooperador obtém a menor recompensa, S. Desta forma, o Dilema do Prisioneiro é definido pelo seguinte ranking de recompensas T> R> P> S. Para uma população bem misturada, desertores sempre terão um maior retorno esperado do que os cooperadores. Assim, a seleção natural sempre, nestas condições, ‘favorecerá’ os desertores. Isso nos leva à conclusão de que a evolução da cooperação exige mecanismos específicos e condições particulares.
Em qualquer população mista desertores conseguem maiores recompensas do que os cooperadores. Este é um caso em que a seleção natural diminui a aptidão média de uma população, mostrando como este processo não é um ‘agente’ de melhora constante e muito menos tem alvos de longo prazo. Porém, então, como a cooperação pode surgir durante a evolução?

Martin Nowak e seu grupo tem explorado vários cenários e mecanismos em que a cooperação se torna adaptativa, portanto, podendo evoluir por seleção natural. Neste post são discutidos cinco destes mecanismos para a evolução da cooperação: a reciprocidade direta, reciprocidade indireta, seleção de parentesco, seleção de grupo, e reciprocidade de rede (ou a seleção do gráfico) e as regras que emergem da análise destes cenários e que mostram as condições necessárias para que a cooperação evolua. Cada um dos mecanismos transforma a matriz de recompensas do “Dilema do Prisioneiro”. A partir dessas matrizes transformadas, cientistas obtiveram as condições fundamentais para a evolução da cooperação. Estas cinco formas podem ser expressas em cinco regras bem simples que ilustram as condições em que a cooperação emerge da dinâmica evolutiva.

  1. Seleção de Parentesco (Kin selection)
  2. Reciprocidade Direta
  3. Reciprocidade Indireta
  4. Reciprocidade em rede (Seleção de Grafos)
  5. Seleção de Grupo (Seleção Multi-níveis)

Seleção de Parentesco (Kin selection):

A interação se dá entre indivíduos que partilham de certo nível de parentesco, ou seja, alguns dos mesmos alelos. Esse princípio é magnificamente ilustrado pela máxima de J.B.S. Haldane, “Eu pularei no rio para salvar dois irmãos ou oito primos” (“I will jump into the river to save 2 brothers or 8 cousins” como citado por Nowak). Este insight de Haldane foi mais tarde rigorosamente formulado por William Hamilton e é uma das principais explicações para a cooperação em insetos sociais com sistemas haplodiploides, como as abelhas, em que as operárias são ‘superirmãs’, partilhando mais de 50% de seu material genético, além de serem dependentes da rainha para poderem dar uma contribuição genética às próximas gerações.

Hamilton obteve uma regra muito simples que mostra em que situações a seleção de parentesco é eficiente e pode produzir a cooperação: r > c/b

Então, cooperar é evolutivamente vantajoso quando o coeficiente de parentesco (o grau de relação entre o individuo que coopera com o que se beneficia) for maior do que a razão entre o custo para o que coopera e o benefício para que recebe a cooperação. A seleção de parentesco envolve a idéia de aptidão inclusiva, pois a aptidão, o sucesso reprodutivo, é ampliado para englobar também o alcançado através da reprodução dos parentes. Esta idéia levou Richard Dawkins a propor a metáfora de “gene egoísta” e a postular que seriam os genes (compreendidos de uma forma um tanto idiossincrásica e abstrata) como os grandes beneficiários da seleção natural e, portanto, os ‘verdadeiros objetos da evolução’ já que o que realmente importaria seria a passagem de cópias gênicas `diante, seja isso feito através dos descendentes diretos ou dos descendentes de parentes. [Para maiores detalhes sobre o debate envolvendo os níveis e unidades de seleção leia o artigo da filósofa Elisabeth A. Lloyd]

Porém, esta regra, e a modalidade de seleção que ela encabeça, não nos diz muito sobre como a cooperação (e o altruísmo) entre indivíduos não aparentados pôde evoluir. A primeira pista para superar esta dificuldade inicial veio dos trabalhos do pesquisador, na época em Harward, Robert Trivers, na forma do chamado “altruísmo recíproco”, aqui chamado de “reciprocidade direta“, que pode ser ‘traduzido’ pela expressão “uma mão lava a outra”.

Contudo, para entendermos este processo precisamos voltar ao dilema do prisioneiro, mas dessa vez jogá-lo repetidamente, como o teórico Robert Axelrod fez durante os anos 60 e 70, e observar que tipo de estratégia é a mais efetiva quando ocorrem repetidas rodadas deste tipo de interação. Neste caso o jogo torna-se muito mais complicado e fascinante.

Boa parte desta situação pode ser compreendida através de modelos de seleção dependente de freqüência, nos quais as estratégias mais bem sucedidas dependem do que os outros membros da população estão fazendo e qual a proporção de membros que as adotam. Esta virada teve como conseqüência a utilização de modelos baseados na teoria dos jogos ao invés de simples modelos de otimização [para maiores detalhes clique na figura ao lado]. Esta perspectiva teve John Maynard Smith (junto com George R. Price) como uma das figuras principais, especialmente ao propor as chamadas estratégias evolutivamente estáveis (ESS) que surgem da aplicação da teoria dos jogos a evolução. Uma ESS é uma estratégia tal que, se todos os membros da população a adotarem, nenhuma estratégia rival conseguirá instalar-se naquela população, definindo, assim, um estado de equilíbrio a partir do qual a população não se  desviará sob a pressão de seleção [ver Okasha, 2006].

Nos ‘campeonatos mundiais’ do “Dilema do  Prisioneiro repetido” organizados por Axelrod nos anos 80, em que diversos pesquisadores apresentaram programas de computador, o vencedor, para a surpresa de todos, foi a estratégia mais simples de todas que entraram na contenda, TFT (“Tit-for-tat”), apresentada pelo teórico dos jogos Anatol Rapoport. Mesmo no segundo campeonato, em que outros pesquisadores levaram estratégias para tentar vencer especificamente a TFT, o resultado foi o mesmo, a TFT de Rapoport – que seguiu a máxima futebolística (como lembra Nowak), “nunca mexa em um time que está ganhando” – ganhou de novo, de lavada.
Reciprocidade Direta e Indireta:

A chamada “Tit-for-tat” – que poderia ser traduzida como “toma lá da cá” – é uma estratégia verdadeiramente simples. Nesta estratégia começa-se cooperando. Caso o outro jogador cooperar continua-se cooperando, caso contrário, na próxima interação deserta-se, voltando a cooperar na outra. Apesar desta estratégia promover a cooperação e ser imbatível em condições ótimas, caso hajam falhas na comunicação (ou seja, se ocorrerem erros e um dos jogadores pensar que o outro jogador desertou, quando ele de fato cooperou) isso levaria os dois jogadores “Tit-for-tat” a descambarem em espiral de retaliação por deserção. Neste caso, na presença de erros em um jogo evolutivo estocástico, uma estratégia melhor seria a chamada “Tit-for-tat generosa“, o que mostra que o perdão pode surgir a partir da seleção natural. Nesta estratégia, o cooperante frente a deserção, coopera ou não de acordo com uma certa probabilidade (1- c / b) no turno seguinte. Contudo, esta estratégia pode ser vencida por uma estratégia de sempre cooperar (ALLC) que apesar de ser mais vantajosa que a anterior, é facilmente invadida por ‘mutantes’ desertores (ALLD). Contra esta possibilidade outra estratégia se mostra mais adequada, a chamada “Ganho, eu continuo. Perco, eu mudo”. Esta estratégia é capaz de corrigir os erros de comunicação que são fatais na TFT e é resistente a invasões de Desertores (ALLD), mantendo-se estável em situações em que b/c > 2.

A partir dessas informações, Nowak e seu orientador na época, Karl Sigmund, passaram a se  interessar em calcular o vencedor em um torneio mais realistas, que segui-se uma dinâmica evolutiva na presença de erros (ao invés de de um torneio simples mata-mata). Nesta implementação uma população de estratégias evoluiria ao longo de muitas gerações com as estratégias mais bem sucedidas deixando mais descendentes para a próxima geração, seguindo implementações estocásticas (ou seja, como diz Nowak, “elas tinham “mãos trêmulas” na execução das suas regras.”).

 

Destes cenários emergem a reciprocidade direta e a reciprocidade indireta. No primeiro caso, as interações ocorrem entre os mesmos indivíduos e a cooperação pode evoluir seguindo-se outra regra simples: W > c/d, em que b é o benefício, c é o custo e W é a probabilidade de outro encontro ou ‘rodada’. Já a reciprocidade indireta depende de interações entre indivíduos diferentes em ocasiões diferentes, portanto, se baseará na ‘fama’ destes indivíduos, ou seja, do que eles fizeram (cooperaram ou desertaram) com outros indivíduos em outras interações. Se na reciprocidade direta é preciso ter um ‘rosto’, no tipo indireto é o ‘nome’ que conta.
“For direct reciprocity you need a face. For indirect reciprocity you need a name.” (David Haig, como citado por Nowak*)

A partir deste tipo de interação outra regra simples emerge. Para que a reciprocidade indireta possa produzir a cooperação q > c / b, em que q é a probabilidade de conhecer a reputação de alguém, c, custo da cooperação e b, o benefício da cooperação.

Na reciprocidade indireta é a reputação do individuo que é o cerne do processo. Por isso a habilidade não só de reconhecer outros indivíduos, mas de se comunicar, torna-se fundamental. Este processo pode levar a evolução da inteligência social e da linguagem. A reputação passa a ser o ingrediente principal das interações e a habilidade de ‘fofocar’, portanto, de um linguagem complexa acaba por ser essencial neste contexto.

 

Reciprocidade em Rede:

O quarto processo é chamado de “reciprocidade em rede”, baseado no processo de ‘seleção de grafos’. Este mecanismo é um pouco menos intuitivo que os anteriormente mencionados. Para começar um grafo é um conjunto de vértices conectados por uma série de arestas que funcionam como uma representação matemática abstrata, podendo ser usados para modelar uma série de relações e processos entre diversos tipos de entidades. Existe toda uma teoria sobre os garfos [teoria dos grafos] que é extremamente utilizada nas ciências da computação e na matemática computacional.

Voltando ao começo do post, em situações em que as populações são misturadas, ou seja, em que os indivíduos têm basicamente a mesma chance de interagir uns com os outros, os desertores tendem a se proliferar mais do que os cooperadores, por que ganham benefícios sem arcar com os custos, sendo, desta forma, favorecidos pela seleção natural, e acabam por dominar a população, Contudo acabam por reduzir a aptidão média da mesma. Porém, a maioria das populações exibe certa estruturação que limita os tipos de interação e com quem cada um pode interagir. Esta estruturação pode ser espacial, no caso mais simples, mas também assumir a forma de uma rede de interações sociais.

Os indivíduos de uma população ocupam os vértices do grafo e as bordas determinam quem interage com quem. Considerando-se cooperadores simples e desertores, sem qualquer complexidade estratégica, um colaborador paga um custo, c, por cada vizinho que recebe um benefício, b. Desertores não pagam custos, e os seus vizinhos não recebem nenhum benefício. Nesse cenário, os cooperadores podem prevalecer, ao formarem clusters nesta rede, onde se ajudam mutuamente.

 

A “reciprocidade em rede” resultante é uma generalização de “reciprocidade espacial”. A regra que emerge daí é b/c > k mostra as condições para que a cooperação possa evoluir. Onde k é o número médio de vizinhos e, claro, c é o custo da cooperação e b, o benefícios da cooperação. Isto é, a razão entre benefício e o custo (b/c) deve ultrapassar o número médio de vizinhos, k, por pessoa.
Seleção de grupo (ou seleção multi-níveis):

A seleção natural atua não apenas sobre indivíduos, mas também em grupos. Ainda que a seleção de grupo como proposta por V. C. Wynne-Edwards nos anos 60 não tenha resistido aos ataques de teóricos como Maynard Smith, G.C. Williams e do próprio William Hamilton, modelos diferentes sobreviveram e, nas últimas décadas, têm despertado (ainda com certa controvérsia) renovado interesse. Outros cenários e situações têm sido muito exploradas e muitos estudos teóricos e empíricos, sobre a seleção de grupo, tem sido conduzidos, em geral, sobre a alcunha  de “seleção de multi-níveis“. A ideia principal é que um grupo de cooperadores pode ser mais bem sucedido do que um grupo de desertores. Assim, um modelo simples de seleção de grupo funcionaria da seguinte maneira: A população é dividida em grupos e os cooperadores ajudam uns aos outros em seu próprio grupo. Desertores não ajudam. Os indivíduos reproduzem proporcionalmente à sua recompensa. A prole é adicionada a cada grupo. Se um grupo atinge um determinado tamanho, ela pode se dividir em dois. Neste caso, um outro grupo se extingue, a fim de restringir o tamanho total da população.

Perceba, porém, que apesar de só indivíduos se reproduzirem, a seleção acontece em dois níveis. Existe também concorrência entre os grupos, pois alguns grupos crescem mais rápido e dividem-se com maior freqüência do que outros. Em particular, os grupos de cooperadores puros crescem mais rapidamente do que os grupos desertor puros, que, mas em qualquer grupo misto, desertores reproduzem-se mais rápido do que os que colaboraram. Portanto, a seleção no nível mais baixo (dentro dos grupos) favorece desertores, enquanto a seleção no nível mais elevado (entre grupos) favorece cooperadores. Este modelo é baseado na “seleção de grupo por fecundidade”, que significa que os grupos de cooperadores têm uma maior taxa de divisão em dois. No entanto, também é possível imaginar um modelo baseado na “seleção de viabilidade dos grupos”, em que os grupos de colaboradores são menos propensos a se extinguir.

Nowak*, conclui: “no, matematicamente conveniente, limite da seleção fraca e separação rara entre grupos, obtemos um resultado simples: Se n é o tamanho máximo do grupo e m é o número de grupos, em seguida, a seleção de grupo permite a evolução da cooperação, desde que: b/c > 1+ n/m”

Outros modelos mais complexos e menos restritivos de seleção de grupo existem, como o “modelo do palheiro” de Maynard Smith e o de “grupos característicos” (trait-groups) de D.S. Wilson, bem como exemplos de organismos que apresentam as características adequadas para evoluir sobre esta forma.

Essas opções são ainda mais amplas se pensarmos em definições mais modernas de grupo – como as propostas por D. S. Wilson e Elliot Sober – que salientam as semelhanças entre a seleção de parentesco e a seleção de grupo, que, no caso, da abordagem de Wilson e Sober, seria um caso particular da seleção de grupo, no qual o parentesco genético diminuiria a variabilidade intra-grupal, assim como a clonalidade faria com seres multicelulares. Isso fica ainda mais claro com a apreciação da equação de Price (de George R. Price) que permite dividir os componentes da aptidão em (pelo menos) dois termos diferentes, um associado diretamente a características em evolução e outra a fidelidade com que ela é herdada a cada nova geração, o que ajuda a deixar mais claro os diversos níveis envolvidos no processo já que o primeiro termo pode ser encarado como ‘o grupo’ e o segundo como ‘os indivíduos’ [Veja Okasha, 2005 e 2006 para maiores detalhes sobre os debates envolvendo a seleção de grupo].

Sumário:

Cinco mecanismos de cooperação*:

  • Seleção de Parentesco: cooperar com parentes genéticos.
  • Reciprocidade Direta: ‘eu te ajudo, você me ajuda.
  • Reciprocidade Indireta: ‘se eu te ajudar, alguém me ajuda’.
  • Reciprocidade em rede (Seleção de Grafos) : clusters de cooperadores se dão bem.
  • Seleção de grupo: grupos de colaboradores ganham de outros grupos.

Esses mecanismos podem ser subdivididos em duas grandes categorias em função dos limites da cooperação e, portanto, do tipo de cooperação que pode surgir a partir destas estratégias evolutivas.

 

“Vencedores não punem”:

Talvez uma surpresa advinda dos estudos da evolução da cooperação conduzidos pelo grupo de Nowak é que a punição não aparece como uma estratégia por ela mesma, apesar de ser claro que ela pode promover um comportamento cooperativo em algumas situações. A punição pode aumentar o nível de cooperação que é alcançado em tais modelos, mas como Nowak deixa bem claro, todos os modelos evolutivos que envolvem punição, até o momento, são formas de instanciamento particular de mecanismos mais amplos, tais como reciprocidade indireta, seleção de grupo ou reciprocidade em rede. Por exemplo, caso se puna alguém que tenha desertado (não cooperado com você), então, você está usando a reciprocidade direta; e caso você puna alguém que desertou com os outros, então você está usando reciprocidade indireta. Modelos usando punições custosas, em que um individuo paga um custo para que outro (um desertor) tenha que arcar também com um custo, realmente promovem a cooperação, mas comparados com grupos controles, reduzem a recompensa total dos participantes. Os jogadores que ganham o maior retorno total tendem a não usar a punição custosa: “os vencedores não punem”. Por causa disso, Nowak, sugere que o comportamento de punição custosa é mal-adaptativo, pelo menos, nos jogos de cooperação investigados, portanto, devendo ter evoluído por outros processos.

Para Nowak a reciprocidade direta e indireta são os componentes chave para a compreensão da evolução de qualquer comportamento pró-social nos seres humanos. Mas o que realmente “nos fez humanos”, segundo este pesquisador, teria sido a reciprocidade indireta, porque este tipo de mecanismo produz a pressão seletiva apropriada para a evolução da inteligência social e da linguagem humana.

 

O estudo da cooperação e do altruísmo é uma das áreas mais fascinantes da moderna biologia evolutiva, possuindo amplas interfaces que vão desde a origem da multicelularidade até implicações no estudo da economia e da ética. Estudar os processos por trás da evolução de sistemas cooperativos é não só intelectualmente instigante como necessário como parte da aquisição de conhecimento sobre quem somos e como agimos.
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Referências:

  • Nowak, M. (2006). Five Rules for the Evolution of Cooperation Science, 314 (5805), 1560-1563 DOI: 10.1126/science.1133755 
  • Taylor C, & Nowak MA (2007). Transforming the dilemma. Evolution; international journal of organic evolution, 61 (10), 2281-92 PMID: 17711471

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*Nowak, M Evolution of cooperation. – Boa parte das ilustrações e citações vem desta apresentação de Nowak.

 

Referências Adicionais:

  • Okasha, S. Maynard Smith on the Levels of Selection Question, Biology and Philosophy, 20, 5, 989-1010, 2005.
  • Okasha, S. The Levels of Selection Debate, Blackwell’s Philosophy Compass 1/1, 74-85, 2006
    Nowak, M. (2008). Generosity: A winner’s advice Nature, 456 (7222), 579-579 DOI: 10.1038/456579a
  • Nowak MA (2004). Prisoners of the dilemma. Nature, 427 (6974) PMID: 14765175
  • Traulsen A, & Nowak MA (2006). Evolution of cooperation by multilevel selection. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, 103 (29), 10952-5 PMID: 16829575
  • Sigmund K, Nowak MA. Evolutionary game theory. Curr Biol. 1999 Jul 15;9(14):R503-5. PubMed PMID: 10576907.

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