Como a evolução seleciona para a verdade:

Aproveitando a passagem, no mês anterior, do filósofo e teólogo Alvin Plantinga pelo Brasil, trago ao evolucionismo.org uma tradução da palestra proferida, no começo deste ano, pelo também filósofo Paul Griffiths, especializado em filosofia da ciência, especialmente, filosofia da biologia e da mente. Nesta palestra é criticada uma das mais conhecidas ideias de Plantinga, o argumento evolutivo contra o naturalismo*.

Embora o argumento tenha sido especificamente criado para atacar a ideia de que a visão de mundo científica – especialmente a inspirada nas descobertas e conceitos da biologia evolutiva – refutaria a necessidade de um criador divino (ao revelar uma inconsistência intrínseca da visão naturalista com a biologia evolutiva), algo que talvez fosse mais adequado a um site de metafísica e/ou filosofia da religião, resolvi traduzir a palestra de Griffiths pelo seu caráter didático.

O texto é um excelente antídoto contra alguns dos equívocos e distorções por trás do uso da biologia evolutiva, e de seus conceitos, por parte de Plantinga e outros filósofos não familiarizados com a área. Na palestra, Griffiths deixa bem claro por que a oposição assumida por Plantinga (entre processos que rastreiam o sucesso reprodutivo e processos que “rastreiam a verdade”) é inadequada; assim como revela os problemas do conceito de verdade pressuposto pelo teólogo.

Estas duas suposições acabam por comprometer toda a estrutura argumentativa empregada nos artigos do conhecido teólogo e acabam, simplesmente, expondo seu desconhecimento de como funcionam as ciências, especialmente a biologia evolutiva. Mais do que apontar os erros, equívocos e omissões de Plantinga, a palestra de Griffiths é tremendamente esclarecedora em relação a como funciona a evolução por seleção natural, jogando luz inclusive em outras tentativas recentes de se atacar este princípio, desta vez por um outro filósofo consagrado e um respeitado cientista cognitivo, respectivamente, Jerry Fodor e Máximo Piattelli-Palmerini [1].

O texto nos mostra de maneira bem simples que tipo de questões são investigadas pelos biólogos evolutivos para determinar qual explicação causal é mais adequada para a evolução de uma característica por ação da seleção natural. Alguns termos e conceitos importantes, principalmente os introduzidos por Elliot Sober, enriquecem nosso aparato conceitual e nos permitem compreender melhor o processo de evolução por seleção natural e Griffiths faz um ótimo uso deles. No final do texto, acrescento alguns comentários meus, buscando enfatizar alguns pontos da análise de Griffiths, além de esclarecer outros tópicos relacionados.

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COMO A EVOLUÇÃO SELECIONA PARA A VERDADE:

Autor: Paul Griffiths

Tradução: Rodrigo Véras

Palestra conferida ao Blaackheath Philosophy Forum por Paul Griffiths, sábado, em 14 de maio de 2011.

Resumo:

É amplamente divulgado que, como o filósofo Stephen Stich coloca, “… a seleção natural não se importa com a verdade, importa-se apenas com o sucesso reprodutivo”. Nas mãos do principal teólogo Americano, Alvin Plantinga, isso tornou-se um argumento contra a visão científica do mundo. Caso acreditemos que nossas mentes são produtos cegos da seleção natural, agindo de maneira a maximizar o sucesso reprodutivo, argumenta Plantinga, então não termos base racional para supor que qualquer uma de nossas crenças são verdadeiras. Isso inclui a crença sobre a evolução da mente com a qual começamos, desta maneira a visão de mundo científica é na verdade auto-derrotada. Nesta palestra eu irei traçar as falhas neste argumento até um erro na compreensão da seleção natural e em um conceito inflacionado de verdade. De fato, a teoria evolutiva proporciona fundações sólidas para ambas nossas crenças do senso comum e as derivadas das ciências naturais.

span class=”font-size-4″>1. Introdução

Pensadores desde o próprio Darwin se perguntam, se a mente é simplesmente uma adaptação evolutiva produzida para garantir o sucesso reprodutivo, poderia ela também ser algo que levaria a verdade:

“Mas, então, comigo surge sempre a terrível dúvida, se as convicções da mente do homem, que tem sido desenvolvidas a partir da mente de animais inferiores, são de algum valor ou de algum modo confiáveis​. Poderia alguém confiar nas convicções da mente de um macaco, se é que haveria qualquer convicções em tal mente? ”

Charles Darwin, Carta a William Graham, 1881

O eminente filósofo da religião Alvin Plantinga argumentou que se a mente evoluiu por seleção natural e sem a intervenção de um Deus criador, então não temos razão para supor que qualquer uma de nossas crenças são verdadeiras, em vez de meramente úteis (Plantinga 1991 * ; Plantinga, 1993). Vindo de uma perspectiva muito diferente, o filósofo naturalista Stephen Stich argumentou que “… a seleção natural não se importa com a verdade, importa-se apenas com o sucesso reprodutivo” (Stich, 1990, 62).

Guy Kahane (2011) descreve a forma geral desse tipo de argumento evolutivo cético:

Premissa causal: S acredita que p é explicado por X

Premissa epistêmica: X é um processo “fora do rastro”

Logo, S acredita que p é não-justificado

Um processo “fora do rastro” (“off-track“) é um que não “rastreia a verdade” (“track truth”): produz crenças de uma maneira que é insensível a verdade daquelas crenças.

No caso de crenças do senso comum, eu apresento uma resposta muito direta a este argumento: A evolução por seleção natural não é um processo “fora do rastro” no que diz respeito ao senso comum e favorece aos organismos que formam crenças de senso comum verdadeiras. O argumento que a seleção natural rastreia o sucesso reprodutivo ao invés da verdade é um mal-entendimento da seleção natural. Eu explico esse mal-entendido e clarifico em que sentido a evolução rastreia a verdade. Eu então defendo que se crenças do senso comum sobrevivem à tentativas de destronamento, também assim o fazem as crenças científicas.

2. “Seleção de” e “Seleção para”:

Considere o seguinte exemplo de seleção natural: A maioria das rãs usam vocalizações para sinalizar aos co-específicos, mas algumas usam um tipo de exibição visual conhecida como “aceno de perna’. Eles levantam e mantém alta uma das pernas traseiras, “abrem” os dedos dos pés, e acenam com o pé. Às vezes, a membrana entre os dedos dos pés é brilhantemente colorida. O “aceno de perna” é silencioso. Podendo também ser detectado em ambientes ruidosos. Em resumo, vamos chamar esse segundo recurso “à prova de ruído”. Então, podemos perguntar qual destes efeitos foi o “alvo da seleção” (Sober, 1984 )? Será que a seleção natural favorecer um sinal silencioso, talvez porque não atraia predadores, ou favorece um sinal “à prova de ruído”? Esta é uma questão cientificamente inteiramente direta que pergunta se alguma destas propriedades figuram em uma explicação seletiva da característica (caso ambas as propriedades desempenhem um papel na explicação do sucesso da característica, então, seus efeitos são combinados para explicar o efeito total de seleção). Como “acenos de perna” evoluíram independentemente várias vezes em rãs, e sua evolução está associada a espécies que vivem em ambientes ruidosos, corredeiras rápidas, ser “à prova de ruído” foi provavelmente o alvo da seleção (Hödl and Amézquita, 2001). Na terminologia de Elliot Sober houve ‘seleção para’ ser “à prova de ruído”, mas apenas ‘seleção de’ ser silencioso (Sober, 1984). Esta conclusão pressupõe que as duas explicações da seleção são alternativas potenciais uma à outra. A ‘seleção para’ ser “à prova de ruído” poderia ter conduzido à evolução do “aceno de perna”, ou a ‘seleção para’ ser silencioso poderia ter feito isso, ou ambas as propriedades poderiam ter feito isso. Esta são três hipóteses empíricas distintas.

A distinção diz respeito ao que causa a evolução. As propriedades aqui em questão são competidoras causais: Elas inserem-se em explicações causais competidoras para a mesma coisa. Mas não faz sentido perguntar se o “aceno de perna” foi selecionado para ser “à prova de ruído” ou para aumentar a aptidão, uma vez que estes não são competidores causais. Ser “à prova de ruído” não é uma alternativa a aumentar a aptidão, é um meio para o fim de aumentar a aptidão. Existem outros meios de se alcançar o mesmo fim, e estas são alternativas potenciais, mas não faz sentido considerar o fim em si como um meio alternativo de alcançar o fim.

“Rastreamento da aptidão” não é uma alternativa ao “rastreamento da verdade” por que o rastreamento da verdade é uma propriedade em um nível inferior de explicação. O rastreamento da verdade é uma medida de certos tipos de interação ecológica com o meio-ambiente. É análogo a “eficiência de forrageio” ou a “eficiência respiratória”. Um organismo pode prosperar por que é melhor que seus rivais ao rastrear a verdade da mesma maneira que pode prosperar por que é melhor em forragear ou por que tem um sistema respiratório mais eficiente. Não faz sentido perguntar se uma característica é uma adaptação “para a aptidão”, já que isso é simplesmente repetir a definição de adaptação – uma característica que evoluiu porque aumenta a aptidão.

3. Rastreamento ótimo da verdade:

Não podemos avaliar se os organismos foram selecionados para o rastrear a verdade, a menos que nós saibamos como seria um organismo assim caso tivesse sido selecionado para isso – como se pareceria um “rastreador ótimo da verdade”? Uma definição de um fenótipo ótimo é aquele que seria previsto por um “modelo censurado” da evolução – aquele em que todos os processos evolutivos, exceto a seleção natural, são omitidos (Orzack e Sober, 1994). Assumimos que não há deriva genética, que não há restrições de desenvolvimento sobre o que pode ser produzido por mutação, e assim por diante. Basicamente, podemos imaginar um mundo no qual a seleção natural é toda-poderosa e perguntar como os organismos teriam se parecido em um mundo assim.

Mas mesmo um fenótipo ótimo neste sentido não é completamente sem restrições. O teórico evolucionista John Maynard Smith comentou uma vez que todos os processos de seleção devem ser restritos, ou organismos “viveriam para sempre, seriam inexpugnáveis aos predadores, poriam ovos em uma taxa infinita, e assim por diante.” (Maynard Smith, 1978, 32)

A restrição mais fundamental é o custo. Os organismos dispõem de recursos limitados e rastrear a verdade não é a única coisa necessária a fazer para sobreviver. Recursos alocados para formar crenças verdadeiras são recursos não disponíveis para fazer esperma ou ovos, ou para combater os efeitos do envelhecimento ao reparar tecidos danificados. Se o benefício em alocar uma unidade de energia em uma dessas atividades exceder aos benefícios, na aptidão, de alocar esta energia para aumentar a precisão das crenças, então, será onde a energia será alocada. Os cientistas cujo trabalho é usualmente citado para demonstrar o quão ruins somos em rastrear a verdade, há muito, têm argumentado que as falhas da racionalidade podem ser compreendidas como heurísticas que sacrificam estar certo o tempo todo por estar certo a maior  parte do tempo a um custo bastante reduzido (Gigerenzer and Todd, 1999; Gigerenzer and Selten, 2001). Uma heurística não garante uma resposta correta o tempo todo, mas estar correta com frequência o suficiente para que não haja por que trocá-la por um método mais confiável, mas mais custoso. Uma heurística não é um método para cometer erros. Embora nosso uso de heurísticas simples mostrem que estamos pesando verdade contra à aptidão, isso quer dizer que rastrear a verdade, um componente da aptidão, está sendo pesado contra outros componentes da aptidão como a produção de esperma. Desta maneira até a “racionalidade restrita” é uma adaptação para rastrear a verdade.

Outra restrição surge a partir da estrutura lógica intrínseca de muitas tarefas. Muitas vezes, é impossível formar crenças verdadeiras sem também formar algumas crenças falsas. Por exemplo, sempre que um organismo necessita tomar uma decisão sob incerteza, então é logicamente impossível reduzir o risco de erros do Tipo Um (aceitar algo que não é verdade), sem aumentar o risco de erros Tipo Dois (rejeitar algo que é verdade) e vice-versa. Organismos, muitas vezes precisam agir antes que as informações conclusivas estejam disponíveis, assim tarefa evolutiva que enfrentam é a de conseguir um [trade-off] (balanço/solução de compromisso) ótimo entre estes dois tipos de erro (Godfrey-Smith,1991).

À luz das duas restrições inevitáveis recém identificadas – restrições de custo e restrições intrínsecas às tarefas – o ótimo evolutivo de rastreamento da verdade deveria ser definido como a obtenção de tanta verdade, e tão pouco erro quanto possível, dado os “trade-offs” intrínsecos a eles, com o equilíbrio determinado pelo valor das verdades e o custo dos erros, e com possíveis soluções restringidas pelo custo dos recursos cognitivos. Isto pode ser posto na forma de um slogan:

”Organismos rastreiam a verdade otimamente se eles obtém tantas verdades relevantes quanto eles puderem arcar, e não toleram um custo maior do que o necessário para obtê-las.”

Com esta definição de rastreamento da verdade é incrivelmente provável que as crenças do senso comum sejam produzidas por adaptações cognitivas que rastreiam a verdade. Por “sendo comum” nós queremos dizer aquelas crenças que guiam nossas ações mundanas, e cuja certeza subjetiva foi apelada por G.E. Moore (1925). O exemplo de Moore incluía a existência do seu próprio corpo e de outros corpos humanos e inanimados, todos arranjados no espaço e no tempo, assim como o fato que outros corpos humanos sabiam de coisas similares. Qualquer descrição plausível da evolução desses tipos de crenças em seres humanos e em outros animais terá em seu cerne o fato que os animais podem aumentar sua aptidão ao detectar estados de coisas no mundo e ajustar suas ações a estes estados de coisas.

4. Verdade e limitação epistêmica:

“Eu estou inclinado a ver tudo como um resultado de leis de projeto, com os detalhes, sendo eles maus ou bons, deixados ao trabalho do que poderíamos chamar de acaso. Não que esta noção de modo algum me satisfaça. Eu sinto que todo o assunto é profundo demais para o intelecto humano. Um cão poderia da mesma maneira especular sobre a mente de Newton.”

Carta de Darwin a Asa Gray, 1860.

Darwin está sugerindo uma tese de “limitação epistêmica”. Nós sabemos que existem limitações nas habilidades conceituais da mente de outros animais. Cães jamais serão capazes de dominar o cálculo. Isso leva a suspeita que possam haver verdades que nós mesmos sejamos constitutivamente incapazes de cogitar. O geneticista J.B.S. Haldane compartilhava da mesma ideia:

Agora, minha própria suspeita é que o universo seja não só mais estranho que supomos, mas mais estranho que podemos supor.” (Haldane, 1927, 286)

Este pensamento pode produzir outra espécie de ceticismo evolutivo: talvez nossas crenças representem uma visão tão limitada das coisas que elas realmente não se qualificariam ao nível de verdades, por mais úteis que sejam. A maneira de evitar esta preocupação é a adoção de uma concepção adequadamente humilde de verdade[2]. Se ter crenças verdadeiras significa ter um esquema conceitual que é adequado para dar uma representação única e total de todos os aspectos da realidade, então ninguém, exceto Deus ou um cientista ideal em algum, igualmente ideal, “fim da ciência”, quando não há mais nada à saber, poderia ter uma crença verdadeira. Tomo este como sendo um reduction ad absurdum dessa concepção de crença verdadeira. Em vez disso, deveríamos conceder que os seres humanos e outros animais costumam fazer julgamentos corretos em seus esquemas conceituais limitados. Por exemplo, os seres humanos, muitas vezes com sucesso, julgam que outro ser humano é um um parceiro de acasalamento em potencial, e rãs fazem um julgamento semelhante sobre outras rãs. Em tais casos, o homem tem uma crença verdadeira, e o sapo tem um – um pouco mais primitivo – estado semelhante a crença, que, mesmo que não gostemos de aplicar a palavra “verdade” a tais estados, devemos, pelo menos, admitir serem corretos em algum sentido.

Não deveríamos pensar que nós seres humanos estamos tão à frente das rãs. Seja qual for a autoridade ontológica que possamos atrelar aos conceitos e categorias da ciência, o caminho do senso comum, através do qual os seres humanos vêem o mundo, não tem mais ou menos autoridade ontológica do que as formas pelas quais outros animais vêem o mundo. O físico Arthur Eddington famosamente contrastou o entendimento do senso comum sobre sua mesa de escrever, como um objeto sólido, com a compreensão científica dela, como uma área de espaço quase vazio cujo melhor que se poderia dizer é que a probabilidade do afundamento de seu cotovelo através dela era pequena o bastante para ser negligenciada para o propósito de escrever sua palestra (Eddington, 1930). Uma resposta a fatos dessa natureza é supor que a crença de que a grama é verde ou que as mesas são sólidas são meras ilusões impingidas em nós pelos nossos genes egoístas, e, na realidade, não existem objetos verdes ou sólidos, apenas a radiação eletromagnética e interações quânticas. Mas não há razão para abandonar o mundo do senso comum, desde que estejamos preparados a aceitar que não somos o único animal cujos esquemas perceptuais e conceituais evoluídos podem co-existir com as medições e esquemas conceituais da ciência, e serem explicados por elas. Há realmente coisas vermelhas e coisas verdes, mas também há coisas que têm cor ultra-violeta que não podemos detectar, mas que outros animais podem. Há muitas maneiras de classificar o mundo que não são puramente arbitrárias e é o fato que estas classificações são restringidas pela realidade que explica por que elas têm algum grau de utilidade prática. Também explica por que devemos reconhecer algumas crenças, formadas utilizando-se dessas categorias, como verdadeiras. Seres humanos e outros animais, têm crenças verdadeiras sobre o conteúdo de seus respectivos ‘umwelten’ [3]– o mundo como é representado no esquema perceptual e conceitual de uma determinada espécie (Uexküll, 1957).

5. Senso comum e ciência:

Um dos triunfos da ciência é que ela nos permite movermo-nos além dos nossos esquemas conceituais evoluídos para esquemas conceituais mais abrangentes, à luz dos quais podemos determinar e explicar os limites do nosso esquema conceitual evoluído, original, e os das outras espécies. Mas isto pode por si mesmo dar origem a mais uma base para o ceticismo evolutivo. Se os seres humanos podem suplementar seu esquema conceitual evoluído com novos conceitos, deveríamos confiar que nossas faculdades cognitivas ainda podem rastrear a verdade neste novo quadro conceitual enriquecido? Nossas faculdades cognitivas foram selecionadas porque elas rastrearam a verdade sobre o Umwelt humano, não por sua capacidade de usar o cálculo, ou para rastrear a verdade sobre as superposições de partículas no nível quântico.

Mas se podemos contar com nossas crenças de senso comum, não precisamos de uma justificação evolutiva separada de nossas crenças científicas. As razões que temos de pensar que nossas conclusões científicas são corretas e que os métodos que utilizamos para alcançá-las são confiáveis ​​são simplesmente os dados e argumentos que os cientistas fornecem para suas conclusões, e por suas inovações metodológicas. Em última análise, tem que enfrentar o mesmo escrutínio do senso comum que qualquer outro acréscimo às nossas crenças. Assim, a evolução não põe em causa nossa confiança em nossas faculdades cognitivas, também não deve minar nossa confiança em nossa habilidade de usar essas faculdades para depurarem-se elas mesmas – para identificar suas próprias limitações, como em ilusões perceptivas ou erros de raciocínio intuitivo comuns. Nem deve minar nossa confiança na adoção de novos conceitos e métodos que não foram eles próprios moldados pela evolução da mente, mas cuja introdução pode ser justificada através das nossas faculdades cognitivas evoluídas e as crenças do senso comum que elas produzem.

 

Referências:

  • Beilby, J. K., Ed. (2002). Naturalism Defeated?: Essays on Plantinga’s Evolutionary Argument Against Naturalism. Ithaca, NY, Cornell University Press.
  • Eddington, A. S. (1930). The Nature of the Physical World. Cambridge, Cambridge University Press.
  • Gigerenzer, G. and R. Selten, Eds. (2001). Bounded Rationality: The Adaptive Toolbox. Cambridge, MA, MIT Press.
  • Gigerenzer, G. and P. M. Todd, Eds. (1999). Simple heuristics that make us smart. Oxford, Oxford University Press.
  • Godfrey-Smith, P. (1991). “Signal, decision, action.” Journal of Philosophy 88: 709-722.
  • Haldane, J. B. S. (1927). Possible Worlds and Other Essays. London, Harper and Brothers.
  • Hödl, W. and A. Amézquita (2001). Visual signaling in anuran amphibians. Anuran communication. M. J. Ryan. Washington, D.C, Smithsonian Institution Press: 121-141.
  • Kahane, G. (2011). “Evolutionary debunking arguments.” Nous 45(1): 103-125.
  • Maynard Smith, J. (1978). Optimization Theory in Evolution. Conceptual Issues in Evolutionary Biology (2nd edn). E. Sober. Cambridge, Mass., MIT Press: 91-118.
  • Moore, G. E. (1925). A Defence of Common Sense. Contemporary British Philosophy (2nd series). J. H. Muirhead. London, Allen and Unwin: 193-223.
  • Orzack, S., E and E. Sober (1994). “Optimality models and the test of adaptationism.” American Naturalist 143: 361-380.
  • Plantinga, A. (1991). When Faith and Reason Clash: Evolution and the Bible. The Philosophy of Biology. D. L. Hull and M. Ruse. Oxford, Oxford University Press: 674-697.
  • Plantinga, A. (1993). Warrant and Proper Function, . Oxford and New York, Oxford University Press.
  • Sober, E. (1984). The Nature of Selection: Evolutionary Theory in Philosophical Focus. Cambridge, MA, MIT Press.
  • Stich, S. P. (1990). The Fragmentation of Reason: Preface to a Pragmatic Theory of Cognitive Evaluation. Cambridge, Mass., Cambridge University Press.
  • Uexküll, J. v. (1957). A Stroll Through the Worlds of Animals and Men: A Picture Book of Invisible Worlds. Instinctive Behavior: The Development of a Modern Concept. S. C. H. New York, International Universities Press, Inc.: 5-80.

Este é um resumo de uma palestra ministrada no Fórum de Filosofia Blackheath, com base nas idéias desses dois artigos: Griffiths, PE e JS Wilkins (no prelo). “When do evolutionary explanations of belief debunk belief? Darwin in the 21st Century: Nature, Humanity, and God. P. Sloan. Notre Dame, IN, Notre Dame University Press; Wilkins, J. S. and P. E. Griffiths (In Press). “Evolutionary debunking arguments in three domains: Fact, value, and religion. A New Science of Religion.”J. Maclaurin and G. Dawes. Chicago, University of Chicago Press.

* Plantinga usa seu ceticismo evolutivo para atacar a visão de que não há Deus criador. Para uma introdução à vasta literatura filosófica sobre o argumento de Plantinga ver Beilby, JK, Ed. (2002). Naturalism Defeated?: Essays on Plantinga’s Evolutionary Argument Against Naturalism. Ithaca, NY, Cornell ¸University Press.

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Notas e comentários:

Trade-off” é um termo originado da economia, mas amplamente utilizado em biologia evolutiva, especialmente, no que se refere a evolução de características da história de vida dos organismos. O termo é aplicado quando a evolução de características diferentes, mas correlacionadas, em um mesmo organismo, esbarram em algum tipo de conflito entre ambas o que demandaria um balanço com perdas e ganhos, do ponto de vista da aptidão, envolvendo um compromisso entre ambas, por exemplo como a evolução do tamanho e da agilidade de um organismo em um determinado contexto ecológico. Como fica bem evidente na citação utilizada por Griffiths de Maynard Smith, não é possível ter tudo ao mesmo tempo. Assim, compromissos e trade-offs  serão sempre esperados. Na verdade, como oikosjeremy comenta sobre um artigo (discutindo por que esperar trade-offs na economia), estas limitações na possibilidade de se otimizar tudo ao mesmo tempo são uma decorrência natural do próprio processo de seleção natural passado que remove a concorrência e limita os tipos alternativos disponíveis:

Versão mais curta: esperamos ver trade-offs, porque eles são um “fantasma da competição passada’ (Connell 1980 Oikos 35:131-8). A concorrência entre os genótipos (ou espécies) purga os menos aptos, de modo que apenas os mais aptos, permanecem. E como os fenótipos dos mais aptos são propensos a exibirem trade-offs (ou clusters perto de um ótimo único), mesmo na ausência de restrições.

[1] Fodor e Piattelli-Palmerini basicamente recusam-se a aceitar que o que define o sucesso reprodutivo dos organismos (por exemplo, frente aos seus rivais co-específicos) possa variar de situação para situação. Algo que fica claro no exemplo da evolução do “aceno de perna” através da ‘seleção para’ a propriedade de ser “à prova de ruído” desta característica, em contraste com a propriedade de ser silenciosa. Esta segunda propriedade configura outra possibilidade causal que poderia, em um outro contexto, atrelar maior sucesso reprodutivo aos animais capazes de acenar com as pernas para potencias parceiros, mas que dado as informações existentes não foi a causa da evolução do “aceno de perna”, apenas uma propriedade fortuitamente associada a esse comportamento. Fodor e Piattelli-Palmerini, em uma situação um tanto diferente da de Plantinga, cometem um erro semelhante a ele. Não compreender o processo de seleção natural, desconsiderando completamente as maneiras pelas quais os cientistas valem-se deste princípio para investigar a evolução de características funcionas dos seres vivos, acomodando fatos, fazendo predições sobre seu comportamento em certos ambientes e seu impacto esperado no sucesso reprodutivo dos mesmos, criando modelos e teorias explicativas tremendamente elegantes. Fodor e Piattelli-Palmerini, apesar de não duvidarem da tese naturalista, como faz Plantinga, vão além e criticam a seleção natural como um princípio explicativo que para eles deve sempre tomar a forma de uma lei de cobertura. Segundo estes autores, para que a seleção natural funcionasse como tal, deveria definir, de forma independente do contexto, sempre quem é o indivíduo com maior aptidão. Mas como aponta Sober em uma discussão online com Fodor, o tipo de generalidades e comportamento “legiforme” que podemos detectar na evolução não são encontrados em um nível tão alto e abstrato, como querem Fodor e  Piattelli-Palmerini. Precisam ser buscados no nível ecológico-funcional e investigados de acordo com a situação e isso não deveria ser encarado como demérito já que a vida é tremendamente diversa e a evolução contingente.

A teoria da evolução por seleção natural é uma teoria eminentemente ecológica e é neste nível, o das interações entre indivíduos e deles com o seu meio em um dado contexto ecológico-demográfico, que as regularidades aparecem e no qual modelos – como o de alocação sexual, predador-presa, etc – nos permitem explicar e testar as explicações evolutivas.

Fodor e Piattelli-Palmerini apressam-se em negar a relevância da prática diária dos biólogos evolutivos, desdenhando de sua capacidade de compreender a própria seleção natural (considerando que tais conhecimentos tratam-se apenas de “mera” história natural), afirmando, de forma idiossincrásica, que a mera definição do princípio de seleção natural, caso fosse uma tese científica, deveria ser capaz de prever sempre quem é o mais apto. Como se hipóteses para serem testadas não precisassem de informações sobre as condições iniciais e de contorno, suposições e hipóteses auxiliares e demais informações contextuais.  Como enfatiza Sober, os autores confundem a definição do princípio de seleção natural com a teoria e os modelos de seleção natural.  

Os “mais aptos” e as estruturas e comportamentos mais adequados a este conferir esta propriedade, dependerão tanto da variação particular presente em um dado momento, como de sua herdabilidade e das formas alternativas que estas estruturas e comportamentos tomam nos indivíduos rivais, bem como dos detalhes demográficos da população em questão. Apenas a partir do conhecimento destes fatores é que será possível estimar quais indivíduos deixariam mais descendentes, de acordo com o princípio de seleção natural, e, assim, comparar a aptidão esperada com o que de fato ocorre, a aptidão real dos organismos. Testando, desta maneira, as predições de modelos de seleção natural específicos e avaliando se outros fatores evolutivos (deriva genética, restrições de desenvolvimento, trade-offs envolvendo outras características etc) estão presentes e são mais ou menos importantes do que a seleção natural.

Também discuti os problemas dos argumentos de Fodor e Piattelli-Palmerini em uma resposta do formspring e ali são fornecidos vários links sobre o assunto além de um para uma discussão entre Fodor e Sober, bastante esclarecedora e ao mesmo tempo exasperante, principalmente, devido a cabeça dura de Fodor, um em outras circunstâncias excelente filósofo, e por causa da paciência e exasperação de Sober que tenta ao máximo colocar um pouco de juízo no colega.

[2] A concepção clássica de conhecimento às vezes também denominada de concepção tripartite, define a verdade como uma forma de crença, mas não qualquer forma de crença. Especificamente, uma crença que seja ela mesma verdadeira e adequadamente justificada. Em forte associação com esta concepção de conhecimento está uma outra concepção, ainda mais epistemicamente profunda, a da verdade como aquilo que corresponde a realidade, a chamada concepção de correspondência da verdade. Porém, caso tomemos ao pé da letra esta concepção de verdade e a definição tripartite de conhecimento, nos deparamos com um problema muito sério, como chegar à verdade sobre o mundo.

Um longo histórico de debates sobre estas concepções caracterizam a filosofia, desde seu surgimento na Grécia antiga. As críticas a esta definição de conhecimento vão desde aquelas que apontam que esta concepção é por demais exigente – i.e. por prescindirmos de outras maneiras de verificar a veracidade de algo, além das que utilizamos para justificar nossas crenças, que fossem elas mesmas infalíveis (a não ser em situações em que a verdade é fruto de definições e axiomas, portanto, de pouca ajuda para compreendermos os fatos do mundo), jamais alcançaríamos o conhecimento a não com relação a questões triviais – até as propostas que consideram tal definição insuficiente, pois haveriam casos em que possuiríamos a crença verdadeira baseada em uma boa justificativa, mas cuja veracidade não se deveria a justificativa assumida, e a verdade da crença seria uma mera questão de coincidência, como os indicariam os exemplos de Edmund Gettier.

Por isso outras concepções de conhecimento e verdade são investigadas, defendidas e  debatidas pelos filósofos, geralmente, reconhecendo a falibilidade de nossas crenças e concentrando-se nos métodos que utilizamos para certificarmo-nos delas e na confiabilidade dos mesmos, principalmente, ao considerarmos seu histórico de “rastreamento da verdade”. Como os pragmatistas Norte-americanos e outros filósofos argumentaram, não faz muito sentido prático defendermos concepções de verdade completamente dissociadas dos métodos que usamos para avaliar a adequação de nossas crenças ao mundo a nossa volta. Claro, nesta perspectiva, a avaliação e as justificativas não são jamais consideradas perfeitas e absolutas, e nossas crenças são sempre passíveis de revisão, existindo espaço para o erro. A consciência dessa possibilidade nos tornaria, na verdade, mais vigilantes e cuidadosos a respeito do que consideramos verdade e sobre as maneiras que utilizamos para chegarmos a nossas crenças.

  • Law, Stephen 2008 Guia Ilustrado Zahar de Filosofia Coleção Guia Ilustrado Zahar [Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges e Revisão técnica: Danilo Marcondes] JZE 1a.ed 352pp ISBN:978-85-378-0070-6 [veja especialmente “O que é conhecimento?” nas páginas 58-63]
  • Recomendo também os ótimos artigos disponíveis no porta crítica na rede sobre o tema.

[3] Como Griffiths afirma, o termo “umwelt” foi criado pelo pesquisador Jakob Johann von Uexküll que nasceu em 8 de setembro de 1864 e faleceu em 25 de Julho de 1944 na Estônia, nas proximidades do mar Báltico. O Biólogo de ascendência germânica trabalhou com fisiologia muscular e comportamento animal, sendo um dos pioneiros na abordagem cibernética no estudo dos seres vivos. No entanto, sua mais lembrada contribuição foi à biologia teórica, o conceito de umwelt (“mundo em torno”) que pode ser considerado como o marco na criação da chamada Biossemiótica.

O unwelt de um ser vivo seria definido pelas formas que este organismo interage com o meio a sua volta, onde apenas as interações realmente relevantes para a sobrevivência e reprodução seriam as constitutivas de significação para este ser. Desta maneira seria o próprio organismo (de forma não consciente, claro) que definiria o seu “mundo em torno”. Assim, por exemplo (de acordo com a paráfrase de Uexküll por Agambe citada na wikipedia), para um carrapato o seu mundo, o Umwelt, seria constituído apenas por apenas três portadores (biossemióticos) de significância: (i) o odor de ácido butírico, que emana dos folículos sebáceos de todos os mamíferos; (ii) a te (mperatura de 37°C (correspondente a temperatura do sangue de todos os mamíferos); e (iii) a tipologia peluda dos mamíferos. Da mesma forma, o umwelt de uma bactéria envolveria a acidez do meio, as relações entre viscosidade, densidade e temperatura e fatores de escala associados a números de Reynolds muito pequenos, o nível de açúcar e outros nutrientes, além dos sinais químicos (como feromônios) de outras bactéria co-específicas ou não.

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O argumento de Plantinga já havia recebido uma análise superficial no nosso antigo formspring, onde são indicadas referências e links extras para artigos e entradas em blogs de autores, como o próprio Sober, além de Paul Draper, Evan Fales e Stephen Law que destrincham outros problemas na argumentação do renomado filósofo da religião.

Em uma nota mais pessoal e de um leigo, o argumento de Plantinga não prova ou mesmo demonstra ser mais provável que exista um Deus criador que garanta a confiabilidade de nossas faculdades e, portanto, de nossas inferências sobre o mundo que dão base a nossas crenças. No meu entender apenas argumenta que se assumirmos de antemão que existe tal ser, e que ele agiria desta maneira, poderíamos confiar em nossas crenças e estarmos certos de que elas seriam verdadeiras. Entretanto, tal teses não nos imuniza ao argumento cético já que não podemos ter certeza de nenhum dos pressupostos necessários para tanto, tornando tal crença um ato de fé. Mas mais do que isso, quando fazemos essa suposição e ao mesmo tempo aceitamos os resultados das ciências naturais, e algumas de suas implicações, podemos ser confrontados com certas consequências, no mínimo, muito estranhas caso resolvamos encarar as coisas como parece sugerir o argumento Plantinga.  Foi exatamente esta possibilidade uma das coisas que primeiro chamaram a minha atenção ao ler pela primeira vez o argumento de Plantinga, e que fiz menção na referida resposta dada no formspring:

“Posso estar simplificando demais e até não ter compreendido direito os argumentos de Plantinga, mas eles parecem sugerir que mesmo que o conceito de Deus seja supérfluo na prática diária das ciências – e até, como alguns sugerem, improvável dado o avanço das ciências – isso, na realidade mostraria que, de fato, Deus existe pois só sobre a premissa sobrenaturalista isso faria sentido e poderia refletir a verdade. O que me soa como uma piada.”

Meu problema com o argumento de Plantinga é que ele precisa, não só pressupor que Deus guiaria a evolução de modo a dar aos seres humanos faculdades, não apenas que aumentassem o seu sucesso reprodutivo, mas que fossem capazes de detectar a verdade – mas que a evolução, por ela mesma (isto é de forma completamente naturalista), não pudesse assim fazê-lo (como Griffiths mostra ser uma conclusão completamente infundada)-, mas, além disso, Plantinga tem que aceitar que este mesmo Deus teria criado um mundo que, dado suas aparências e o modo como nossas faculdades perceptivas e cognitivas funcionam (e como as ciências se estruturam), nos levaria a concluir que estas mesmas faculdades colocariam dívidas sobre nossa capacidade de detectar a verdade. Este simples fato, ao mesmo tempo, levaria muitos cientistas e filósofos a crerem na falta de necessidade de um criador divino (e até na incompatibilidade deste estado de coisas com a existência de um criador sobrenatural benevolente), o que seria reforçado pela escassez de qualquer evidência clara de sua existência ou mesmo a inexistência de um consenso mínimo sobre como obter estes tipos de evidência. Assim, a partir da pressuposição sobrenaturalista de Plantinga muitas das verdades cujo nosso conhecimento das mesmas seriam garantidas pelo ente divino, parecem depor contra a a possibilidade desse conhecimento e mesmo da existência do ente que supostamente as garantiria. Não ganhamos nenhuma nova compreensão da questão ao assumir a existência de um Deus que tenha conferido confiabilidade a nossos sentidos e faculdades mentais. Tal suposição caso levada ao extremo é posta em cheque pelos próprios fatos que mostram com erramos e nos confundimos em várias situações (fatos esses utilizados no próprio argumento); e, caso admitamos nossa imperfeição, tal pressuposição, torna-se irrelevante já que não é capaz de nos dizer quais as faculdades mais confiáveis e nem em que situações poderíamos confiar nelas. Também não resolve a questão epistemológica fundamental sobre como podemos saber que realmente sabemos de algo, dado a concepção tradicional de conhecimento, sendo de fato muito pouco esclarecedora. Ao invés de nos dar bases seguras, o argumento de Plantinga, assume esta segurança e a atribui a uma divindade criadora e benevolente, mas que ao mesmo tempo nos permite manter uma série de crenças contraditórias o que nos leva de volta ao problema de como diferenciá-las e saber quais as corretas. O argumento evolutivo contra o naturalismo, caso minha interpretação esteja correta, seria, então, um golpe também na própria versão sobrenaturalista defendida por Plantinga, a menos que ele forneça razões, independentes, para justificar que apenas as crenças que sustentam a existência da divindade estariam corretas. Obviamente não é assim que pensa Plantinga, mas as razões que o levam a acreditar na superioridade da teses sobrenaturalista – conjugada ao que nos é mostrado pelas ciências, especialmente pela biologia evolutiva – não são claras ou, pelo menos, não são tão divulgadas como o argumento contra o naturalismo em si.

O problema com o argumento de Plantinga pode ter se originado de uma confusão por parte do filósofo  entre o naturalismo metafísico e a versão mais difundida entre os cientistas, a metodológica (que deixa questões de cunho religioso de lado), esta última uma crença adquirida a posteriori e não simplesmente pressuposta, como parece querer Plantinga. Isto é, adquirida por causa de seu sucesso em explicar a natureza, sua simplicidade e sua operacionalidade atingida, principalmente, ao não assumir de antemão a existência de entidades metafísicas extras-naturais – completamente fora de nosso controle e de nossa capacidade de explicação, não cerceadas por leis – recorrendo apenas a princípios, mecanismos e leis que possamos utilizar na investigação minuciosa dos problemas científicos e avaliar empiricamente.

O ponto crucial talvez seja que é muito mais simples admitir que realmente somos limitados e o tipo de certeza que querem alguns teólogos e filósofos parece ser apenas uma quimera, sendo essas limitações e enviesamentos perceptivos e cognitivos são melhor explicados pela contingência do processo evolutivo que caso seja “guiado” (seja lá o que signifique isso) não deixou (até o momento) qualquer evidência científica consensual disso. Contudo, como exposto por Griffiths e outros filósofos, essas limitações não significam que sejamos de todo não confiáveis em lidar com a realidade e mesmo em rastrear a verdade (mesmo que de forma imperfeita) e que, a partir dessas faculdades, possamos adquirir conhecimento, pelo menos, nas acepções menos ambiciosas do termo, deixando questões teológico-filosóficas sobre a realidade metafísica última de lado, pelo menos no que se refere a prática e teorização diária dos cientistas.

Créditos das figuras:

http://commons.wikimedia.org/wiki/File:AlvinPlantinga.JPG (autor:Jonathunder)
CORBIN O’GRADY STUDIO/SCIENCE PHOTO LIBRARY
NATURAL HISTORY MUSEUM, LONDON/SCIENCE PHOTO LIBRARY

[1] Fodor e Piattelli-Palmerini basicamente recusam-se a aceitar que o que define o sucesso reprodutivo dos organismos, por exemplo, frente aos
seus rivais co-específicos possa variar de situação a situação, como o
exemplo da evolução do aceno de perna através da ‘seleção para’ a
propriedade de ser “à prova de ruído” desta característica e não de ser
silenciosa, outra possibilidade causal que poderia em um dado contexto
atrelar maior sucesso reprodutivo aos animais capazes de acenar com as
pernas para potencias parceiros. Fodor e Piattelli-Palmerini, de forma
um tanto diferente de Plantinga, cometem um erro semelhante, ao não
compreenderem o processo de seleção natural, desconsiderando
completamente as maneiras pelas quais os cientistas valem-se deste
princípio para investigar a evolução de características funcionas dos
seres vivos, acomodando fatos, fazendo predições sobre seu comportamento
em certos ambientes e seu impacto esperado no sucesso reprodutivo,
criando modelos e teorias explicativas tremendamente elegantes. Fodor e
Piattelli-Palmerini, apesar de não duvidarem da tese naturalista como
faz Plantinga, vão além e criticam a seleção natural como um princípio
explicativo, a semelhança de uma lei de cobertura, por que para
funcionar desta maneira deveria definir, de forma independente do
contexto, sempre quem é o indivíduo com maior aptidão. Mas como disse
Sober, o tipo de generalidade e comportamento “legiforme” que podemos
detectar na evolução não são encontrados em um nível tão alto e
abstrato.

A teoria da evolução por seleção natural é uma teoria ecológica e é nestes nível, o das interações entre indivíduos em um dado contexto
ecológico-demográfico é que as regularidades aparecem e no qual modelos,
como o de alocação sexual, predador-presa, etc nos permitem explicar e
testar as explicações evolutivas. Também discuti os problemas dos
argumentos de Fodor e Piattelli-Palmerini em uma resposta do formspring
e ali são fornecidos vários links sobre o assunto além de um para uma
discussão entre Fodor e Sober, bastante esclarecedora e ao mesmo tempo
exasperante, principalmente, devido a cabeça dura de Fodor, um em outras
circunstâncias excelente filósofo, e por causa da paciência e
exasperação de Sober que tenta ao máximo colocar um pouco de juízo no
colega.

O verme que veio do espaço ou É a evolução genética previsível? Parte III

Ao contrário do anunciado pela maioria dos veículos de comunicação na época, houveram sobreviventes do desastre com o ônibus espacial Columbia ocorrido em 2003. Infelizmente, não foi nenhum dos tripulantes, mas algumas centenas de vermes cilíndricos da espécie Caenorhabdittis elegans, um dos mais utilizados sistemas-modelo na pesquisa biológica e biomédica básica. Essas fantásticas criaturas foram descobertas nos destroços do ônibus espacial Columbia quando ninguém esperava que nada fosse sobreviver a queda. Em uma tragédia com essa, pelo menos fica a lembrança da persistência da vida e do legado científico daqueles que pereceram no arriscado e fascinante trabalho de exploração do espaço.

O container no qual estavam os animais foi descoberto em fevereiro, no Texas, junto aos destroços na nave, mas foi deixado de lado até abril do mesmo ano, quando os cientistas os abriram e tiveram a surpresa. Foram recuperados cinco recipientes cilíndricos (quatro deles com espécimens ainda vivos) contendo cada um oito placas de petri com aqueles que seriam a sexta geração de nematodes após o acidente, algo que pode ser inferido pelo seu ciclo de vida de sete a dez dias. Há poucos dias um novo estudo científico foi publicado mostrando que três linhagens diferentes de nematodes, uma delas sendo descendente* direta da que foi recuperada dos destroços do Columbia, haviam perdido basicamente os mesmos genes ao serem submetidos ao mesmo tipo de pressão ecológica: criação em alta densidade populacional. Este resultado é mais um em uma série de trabalhos sobre convergência e paralelismo evolutivo que mostram que apesar de todo o caráter aleatório das mutações e contingente da evolução, em algumas condições é possível prever, em linhas bem gerais, alguns desfechos do processo de adaptação e de sua base molecular [Veja também os outros posts desta série, Parte I e Parte II].


Para compreendermos como este novo estudo traz luz a questão, é preciso primeiro nos determos um pouco no ciclo de vida das espécies de nematodes investigadas. Em condições naturais (ou seja fora do “conforto” dos laboratórios) ou em condições que as mimetizem, esses vermes, como o conhecido Caenorhabditis elegans, podem seguir por dois caminhos desenvolvimentais distintos, (i) amadurecer em cerca de três dias, reproduzir-se e morrer em um prazo de aproximadamente 2 semanas, ou (ii) entrar em um estado de animação suspensa, mantendo-se na forma daquilo que o conhecido como larva Dauer [Veja o comentário de Pennisi sobre o assunto].


As larvas Dauer não se alimentam, e podem sobreviver a condições ambientais estressantes por um período de meses antes que amadureçam e transformem-se em adultos. São três as pistas ambientais que deflagram a transformação dos jovens nematodes em larvas Dauer: pouco alimento, condições de temperatura inadequadas e superpopulação, mais especificamente o crescimento em altas densidades. Esses animais são capazes de estimar quando seu número está muito alto através do “odor”. Fazem isso ao detectar a concentração de certos produtos químicos chamados feromônios emitidos por seus congêneres. Caso as concentrações de feromônio sejam muito altas, eles adotam a forma de larva Dauer, o que poupa recursos e permite que esperem por tempos de maior bonança.

O feromônio provoca uma extensão específica da segunda fase larval acoplada a uma diminuição transitória na taxa de crescimento da fase L2. Larvas neste segundo estágio, L2, cultivadas na presença de feromônio são morfologicamente distintas das larvas L2 cultivadas sem o feromônio. Esta fase pré-Dauer é denominada L2d e a retenção Dauer pode se dar nesta segunda muda L2d. A formação da larva Dauer implica alterações coordenadas em um todo o corpo do animal envolvendo uma ampla rede de genes e de sinais endócrinos. Antes da muda Dauer, o animais se alimentam, armazenando gordura e carboidratos e durante morfogênese ocorre a supressão da ingestão de alimentos, o corpo do animal passa por constrição radial e várias tecidos corporais passam por remodelamento. Durante a diapausa, como os animais não se alimentam, consomem suas reservas, convertendo a gordura em glicose através do ciclo do glioxilato. A respiração aeróbica é suprimida em favor do metabolismo glicolítico e da fermentação.

As larvas Dauer permanecem imóveis boa parte do tempo, mas podem mover-se rapidamente quando estimuladas. Seus orifícios permanecem selados e uma cutícula espessa, resistente à desResearchBlogging.orgsecação, se forma, com cerdas cuticulares chamadas “asas” que permitem o movimento rápido. São em geral altamente resistentes a todas as formas de estresse, incluindo por inanição, térmico e oxidativo. Apesar de sua aparência quiescente, uma grande quantidade de genes importantes para a sobrevivência continuam sendo expressos. São essas características da diapausa Dauer que conferem a esses animais a capacidade do sobreviver por meses em condições adversas e, assim, prevalecer. Quando as condições favoráveis retornam, a larva Dauer rapidamente recupera-se e volta a se desenvolver nos estágios pós-Dauer L3/L4 e por fim em adultos reprodutivos, com a expectativa de vida normal.

Em três situações independentes em duas espécies de nematodes do gênero Caenorhabditis foi possível mostrar que, nos três casos, populações de cada uma delas evoluíram de maneira a suprimir a via de desenvolvimento Dauer induzida por superpopulação. Mas mais do que isso, os cientistas foram capazes de mostrar que, em todos os casos, a causa do novo fenótipo (perda da fase Dauer induzida) ocorreu por mutações que impediam o funcionamento de receptores para o feromônio indutor deste estágio ou um receptor equivalente que desempenhava um papel semelhante no sistema de indução ambiental do aprisionamento Dauer.

Duas linhagens de Caenorhabditis elegans (LSJ2 e CC1) cultivadas em altas densidades, de forma independente, adquiriram resistência multigênica a formação de larvas Dauer induzida por feromônio. Em cada uma dessas linhagens a resistência ao sinal indutor do feromônio ascaroside C3 foi consequência de uma deleção que perturbou a expressão dos genes adjacentes dos quimiorreceptores, proteínas com domínios transmembrana do tipo serpentina da classe dos receptores acoplados à proteína G srg-36 e srg-37. Experimentos de expressão incorreta, mostraram que estes genes codificam G-receptores redundantes acoplados à proteína G para o feromônio ascaroside C3.

 

Note que foram constatadas diferenças nas regiões perturbadas das duas linhagens, o que sugere fortemente que foram mutações independentes e relativamente diferentes que causaram a mudança do fenótipo, apenas impediam o funcionamento dos mesmos receptores. Entretanto, talvez o mais interessante, foi o fato uma linhagem de outro nematode, Caenorhabditis briggsae, cuja espécie deve ter divergido de C. elegans há mais de 20 milhões de anos, evoluíram a resistência ao feromônio por perda multigênica para a formação da larva Dauer, em resposta ao cultivo em alta densidade populacional, em parte, resultante de mutações que eliminavam um gene srg, parálogo aos srg-36 e srg-37, cuja perda de funcionalidade foram responsáveis pelo fenótipo das duas linhagens cuja via Dauer foi suprimida. Usando construtos genéticos transgênicos foi possível inclusive resgatar a via Dauer ao inseri-los nas cepas anteriormente não responsivas ao feromônio [Veja a figura abaixo].

Estes resultados, como afirmam McGrath e seus colaboradores, demonstram que a rápida remodelação do repertório dos quimiorreceptores é uma adaptação a ambientes específicos, e indicam que mudanças paralelas em um mesmo (ou pelo menos muito semelhante) substrato genético comum podem influenciar a história de vida e características entre espécies [Razib Khan do blog Gene Expression tece alguns comentários bem pertinentes sobre o assunto]. A perda da larva Dauer, em um primeiro momento, ilustra a contingência do processo evolutivo através de sua dependência de contexto. Entrar nesta fase significa geralmente aumentar as chances de sobrevivência e, portanto, de reprodução (lembre dos tempos de bonança), o que torna-se fácil de compreender caso o ambiente esteja repleto de competidores e os recursos sejam limitados, o que é o caso na maioria das condições selvagens. Mas isso não é verdadeiro para os vermes cultivados em laboratórios nos quais o suprimento alimentar e de outros recursos é continuamento provido e ajustado pelos pesquisadores, a menos que resolvam fazer algum experimento de seleção ou tenham sofrido um inesperado corte de verbas.

Nesta situação, uma mutação que simplesmente elimine a fase Dauer se disseminará rapidamente na população, pois enquanto os animais selvagens estariam em um estado de animação suspensa em que quase não se alimentam, mas fundamentalmente, não se reproduzem, os mutantes que perdem a fase Dauer estarão alimentando-se e reproduzindo-se. Cada vez mais mutantes Dauer e menos tipos selvagens. Este é um exemplo simples e direto de seleção natural, mas ainda assim uma questão importante ainda demanda uma resposta. Os autores do artigo em seu abstract declaram:

A evolução pode seguir trajetórias previsíveis genéticas, indicando que discretas mudanças ambientais pode selecionar para reprodutíveis mudanças genéticas. Indivíduos da mesma espécie são uma característica importante do ambiente de um animal, e uma fonte potencial de pressões seletivas.”

Por que o fenômeno foi observado exatamente nestes receptores ao invés de em qualquer um dos mais de 50 genes envolvidos na formação de larvas Dauer, em princípio, todos capazes de abolir esta via de desenvolvimento?

Uma possibilidade é que mesmo com toda a aleatoriedade da evolução alguns tipos de caminhos são mais fáceis e mais prováveis do que outros. Pode haver caminhos de menor resistência encarnados em certos elos bioquímicos que ocupam uma certa posição na hierarquia de redes genéticas e bioquímicas que controlam o desenvolvimento. David Stern, ao comentar este estudo, enfatiza que certos genes ocupam uma posição tal nesses circuitos o módulos desenvolvimentais que qualquer mutação neles tem efeitos bastante específicos. Estes genes (genes input-output) integrariam diversas vias de sinalização intracelular que seriam responsáveis pelo controle dos processos de desenvolvimento, circunscrevendo estes efeitos a uma ou poucas funções ou uma ou poucos tecidos, estruturas, fases ou sistemas.

Mutações em qualquer um dos outros genes envolvidos poderiam na realidade interferir com múltiplos sistemas e funções, causando efeitos nocivos secundários ou poderiam apenas abolir parcialmente a resposta fenotípica adaptativa. Então, no primeiro caso resultariam em deficiências fenotípicas graves que ameaçariam a sobrevivência dos indivíduos portadores e no segundo caso não confeririam as mesmas vantagens das mutações nestes genes focais. Desta maneira, o arranjo genético-desenvolvimental dos seres vivos determinaria as vias de menor resistência pelas quais determinados fenótipos poderiam ser atingidos de maneira menos traumática, isto é, com menos custos aos organismos e a sua reprodução.

Como explica o especialista em evolução e desenvolvimento de nematodes Patrick Phillips, da Universidade do Oregon, em Eugene:

 

“É um estudo impressionante”, “Alguém poderia ter previsto que haveriam muitas maneiras de quebrar um sistema”. “Mas somente alguns podem fazê-lo sem afetar outras partes do organismo.” [Citado por Pennisi, 2011].

Como disse alguém sobre o comportamento de um príncipe Dinamarquês,Apesar de ser loucura, revela método”.

A compreensão dos processos e mecanismos moleculares, celulares e teciduais por trás do desenvolvimento dos fenótipos dos seres multicelulares nos permite fazer a ponte entre mudanças no material genético (ou em certos casos até herdadas epigeneticamente) e fenótipos específicos que medeiam a interação direta dos organismos com certos fatores ambientais. Isso nos possibilita traçar a evolução destes sistemas desde seus aspectos moleculares, passando pela dinâmica populacional dessas mudanças (e a dos organismos que as portam), além dos padrões, processos e mecanismos desenvolvimentais que estão por trás delas, chegando, por fim, à interação ecológico-funcional que define o valor adaptativo da característica. Com esses conhecimentos têm sido possível desvendar algumas regras que regem o processo de evolução (pelo menos em certos contextos), como a ideia de que existem caminhos mutacionais de menor resistência, de um lado, e a de que certos fenótipos parecem poder ser obtidos de forma mais fácil do que outros, por outro lado, evidenciando a complexidade do mapeamento genótipo-fenótipo e a importância da liberação de restrições para a evolução genética e fenotípica.

A partir de um processo muito simples – a mudança transgeracional das características herdáveis de populações através da reprodução diferencial dos indivíduos a cada geração – uma incrível diversidade pode ser esperada, mas ainda assim algumas regras mais ou menos gerais, válidas em certos contextos, podem ser aduzidas ao mesmo tempo que a marca da história e da aleatoriedade jamais poderá ser eliminada. Contingência, acaso e regularidade são todos expressos no processo evolutivo, evidenciando o incrível poder da evolução.

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Nota* Outros descendentes dessa linhagem, sobrevivente do desastre com o Columbia, foram reenviados ao espaço no ônibus espacial Endeavor em maio deste ano.

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Referência:

 

  • McGrath PT, Xu Y, Ailion M, Garrison JL, Butcher RA, & Bargmann CI (2011). Parallel evolution of domesticated Caenorhabditis species targets pheromone receptor genes. Nature PMID: 21849976

 

Referências Adicionais:

 

  • Pennisi, Elizabeth [on 17 August 2011, 1:01 PM] Is Evolution Predictable? Science ScienceNow.

  • Fielenbach, N., & Antebi, A. (2008). C. elegans dauer formation and the molecular basis of plasticity Genes & Development, 22 (16), 2149-2165 DOI: 10.1101/gad.1701508

  • Golden JW, & Riddle DL (1984). The Caenorhabditis elegans dauer larva: developmental effects of pheromone, food, and temperature. Developmental biology, 102 (2), 368-78 PMID: 6706004

  • Szewczyk, N., Mancinelli, R., McLamb, W., Reed, D., Blumberg, B., & Conley, C. (2005). Survives Atmospheric Breakup of STS-107, Space Shuttle Columbia Astrobiology, 5 (6), 690-705 DOI: 10.1089/ast.2005.5.690

Créditos das figuras:

JAMES KING-HOLMES/SCIENCE PHOTO LIBRARY

NASA/SCIENCE PHOTO LIBRARY

 

Szewczyk NJ, Mancinelli RL, McLamb W, Reed D, Blumberg BS, Conley CA. Caenorhabditis elegans survives atmospheric breakup of STS-107, space shuttle Columbia. Astrobiology. 2005 Dec;5(6):690-705. PubMed PMID: 16379525.

A Terceira Onda de Extinção

Li uma matéria na Revista Planeta nº448 (Editora Três) e fiquei, ao mesmo tempo, maravilhado e indignado por saber que estamos vivendo a terceira onda de extinção. Mas não é qualquer ondinha, não. Trata-se de uma verdadeira  tsunami exterminadora de espécies viventes do nosso planeta, engendrada pela mais cruel das criaturas: o bicho-homem. Achei tão interessante o texto que resolvi publicá-lo (de uma forma adaptada no meu blog, o Biorritmo. Vejam como ficou o texto após a adaptação: 

Iniciada em 1970, a terceira onda de extinção está em andamento e, dependendo da perspectiva de cada cientista, deve, nos próximos 30 anos, responder pelodesaparecimento de cerca de 20% a 50% das espécies vivas. Entre elas há grandes predadores, como o tigre; primatas, como o chimpanzé, o orangotango e o gorila-da- montanha; pássaros, como o albatroz; anfíbios, como o sapo-dourado; os recifes de coral e todas as formas de vida que eles sustentam. A interferência humana é fator substantivo nesse quadro desastroso, particularmente por conta das alterações climáticas que seu modus operandi vem deflagrando.

Em texto publicado no site do jornal russo Pravda, o engenheiro florestal e doutor em agronomia brasileiro Fabio Rossano Dario aponta três ondas de extinção de porte considerável desde que o homem surgiu na face da Terra. A primeira, que abrange o período entre 40 mil anos atrás e o fim do século 15, foi marcada pelo desaparecimento de toda a megafauna da Europa e do norte daÁsia (Neandertais inclusos), além dos grandes mamíferos das Américas, de dezenas de espécies de marsupiais australianos e da fauna de Madagascar e de 15% das espécies de pássaros do mundo.

Entre as perdas dessa onda estão o mamute, o mastodonte, o urso-de-cara-achatada, o rinoceronte-lanudo, o leão-das-cavernas, cerca de dez espécies de moa (pássaro enorme que habitava a Nova Zelândia) e 12 espécies delêmures gigantes (um dos quais atingia dois metros de altura). O auge da extinção nesse período foi há cerca de 10 mil anos – a chamada “matança do Pleistoceno” -, fase de grandes alterações climáticas e de intensificação das atividades de caça dos humanos.
A era das grandes navegações, iniciada pouco antes do fim do século 15, e o ano de 1970 delimitam a segunda onda de extinção, que conviveu com o colonialismo europeu, a revolução industrial e o surgimento do capitalismo. Uma das regiões mais afetadas foi o Caribe, cuja flora e fauna perderam centenas de espécies. Duas delas, vítimas da caça indiscriminada, foram a foca-monge (Monachus tropicalis), chamada por Cristóvão Colombo de lobo-marinho, e a vaca-marinha-de-steller (Hydrodamalis stelleri), um tipo de peixe-boi giganteencontrado no Pacífico Norte e que chegava a atingir 7 metros de comprimento e 10 toneladas de peso.
Na lista de mamíferos desaparecidos nesse período figura a quaga (Equus quagga), tipo de zebra da África do Sul que possuía listras apenas na parte posterior do corpo, exterminada por caçadores na segunda metade do século 19. Outro espécime é o tigre-da-tasmânia (Thylacinus cynocephalus), marsupial semelhante a um cachorro com listras verticais na parte de trás do corpo, à maneira do tigre. Acusado pelos fazendeiros locais de matar ovelhas, ele foi exterminado impiedosamente.
A caça indiscriminada também fez muitas aves darem adeus à superfície do planeta nessa época. A mais conhecida entre delas é o dodô (Raphus cucullatus), das Ilhas Maurício, mas merecem destaque ainda a huia (Heteralocha acutirostris), da Nova Zelândia, e a alca-gigante (Pinguinus impennis), que vivia na Islândia.
O poder do homem pode não se mostrar tão devastador, mas, segundo alguns pesquisadores, é sem dúvida respeitável: em seu livro The future of life (O futuro da vida), publicado pela Vintage Books em 2003, o professor de biologia Edward Wilson, da Universidade Harvard (Estados Unidos), prevê que, no ritmo atual de destruição humana da biosfera, 50% de todas as espécies de seres vivos desaparecerão da face do planeta em 100 anos. Cálculo semelhante já havia sido apresentado oito anos antes pelo paleontólogo inglês Richard Leakey em The sixth extinction (A sexta extinção), escrito em parceria com o jornalista Roger Lewin e publicado pela Doubleday.
O desaparecimento de espécies não chega a ser algo a se estranhar sob o prisma estatístico: os cientistas afirmam que 99,9% de todas as formas de vida que existiram sobre a face do planeta já se foram. (A probabilidade de que nós, humanos, sigamos o mesmo caminho é, portanto, bem alta.) O que pode não surgir tão claramente aos olhos dos observadores é o real papel do Homo sapiens em todo esse processo. Certamente não é o do meteoro que formou a cratera deChicxulub, na região do Yucatán, e precipitou o desaparecimento súbito dos dinossauros.
O homem parece mais ser um dos protagonistas de uma erosão contínua dabiodiversidade associada a outros fatores, em especial mudanças climáticas, e que se amplia exponencialmente conforme os ecossistemas vão sendo destruídos. “Se você soma os números de espécies que foram extintas nas últimas centenas de anos, descobre que os números ficam bastante aquém de uma extinção em massa“, assinala o professor Norman MacLeod, administrador da área de paleontologia do Museu de História Natural de Londres. “É apenas quando você olha para os números de criaturas que estão na iminência de serem erradicadas que o quadro se torna alarmante.”
Ainda é possível reverter esse quadro geral? A resposta fica no âmbito da profecia, dada a dificuldade de fazer a crescente consciência ambiental da sociedade se transformar em ações internacionais amplas. A maioria dos especialistas antevê tempos sombrios, nos quais o homem descobrirá por si mesmo as consequências de viver em meio a uma biodiversidade muito mais pobre.

A longa história do olho humano

A edição de agosto da Scientific American Brasil merece destaque. Com o nosso Nicolelis na capa, todos os temas que se enquadram no âmbito de interesse dos assuntos tratados nesta rede social estão muito interessantes, em especial aquele que trata da evolução do olho dos vertebrados. Farei a seguir um breve comentário de cada um deles.

 

Em “Mente Fora do Corpo” o próprio Miguel  Nicolelis narra sua aventura quase dramática para superar o ceticismo da comunidade de cientistas de sua área que ele mesmo caracterizou como “ultraconservadora” e relata os avanços que obteve em suas pesquisas antevendo um futuro quase que de um cenário de ficção científica, com possíveis “fusões de mentes” conectadas em redes, controle de máquinas à distância através de comandos cerebrais e muitas outras possibilidades intrigantes.

 

Na seção de  Fisiologia, Douglas Fox, jornalista colaborador do New Scientist escreve sobre o possível relacionamento entre a capacidade de processamento de informações do cérebro dos seres vivos relativamente às variáveis volume cerebral absoluto, quociente de encefalização, lei de potência e seus deslocamentos (ver gráfico da página 41) e explora as consequências de um hipotético aumento do volume cerebral nos humanos com base nas leis da física e na impossibilidade de um “retorno à prancheta”.

 

Em ciências do meio ambiente, o professor de geociências da Pennsylvania State University, Lee R. Kump, traça um quadro comparativo entre alguns eventos de aquecimento global no passado geológico, o efeito estufa do Cretácio (lento), o MTPE , Máximo Térmico do Paleoceno-Eoceno (com duração de alguns milhares de anos) e o atual ritmo de aquecimento (ultra-rápido, acelerado) e suas possíveis consequências.

 

Na seção de Biologia, nosso quarto e último assunto (e o mais importante no que diz respeito ao debate evolução-criação especial) trata da evolução do olho dos vertebrados escrita pelo pesquisador Trevor D. Lamb, ativo em dois grandes centros de pesquisas, artigo este entitulado “A Fascinante Evolução do Olho”. O autor realiza uma incrível viagem ao passado procurando pistas no período conhecido como “Explosão Cambriana” com o olho de um investigador criminal colocando em evidência as diferenças entre o olho composto dos insetos e o dos vertebrados tipo câmera, acentuando o papel do acaso na diferenciação de funções relativamente ao período de tempo transcorrido desde os estágios iniciais identificados em vertebrados primitivos (peixe-bruxa e lampreia) até o seu estágio final tal como é conhecido nos atuais vertebrados, entre eles nós, os humanos. Termino aqui e para quem se interessar, boa leitura.

Simpósio Internacional de Filosofia da Biologia

Recentemente a UnB sediou o Simpósio Internacional de Filosofia da Biologia, organizado pelo professor Paulo Abrantes do departamento de filosofia da UnB. Eu tive o privilégio de participar de dois dos três dias do Simpósio, e trago aqui um breve relato das discussões que mais me interessaram.

Anteriormente ao simpósio, houve a publicação no começo desse ano do livro Filosofia da Biologia. Pesquisadores internacionais e nacionais, tanto biólogos como filósofos, integram os colaboradores do livro assim como boa parte deles também foram palestrantes no simpósio, juntamente com outros pesquisadores convidados.

De um modo geral, as comunicações dos palestrantes estimularam e ilustraram uma visão muito clara e enfatizada pelo professor Abrantes: ciência e filosofia estão intimamente atreladas, uma tendo contribuições fundamentais para oferecer avanços à outra. Não me refiro aqui à óbvia relação histórica entre ambas, mas à atual de dependência entre elas. A ciência necessita de uma discussão filosófica que esclareça seus problemas de investigação e que facilite a sua construção teórica através de uma ênfase na clareza e na lógica do uso de seus conceitos e de suas teorias. A filosofia precisa usar o conhecimento produzido pela ciência se quiser ter avanços em suas investigações, do contrário ela perde uma grandiosa contribuição.

O simpósio reforçou uma idéia que cada vez mais percebo como verdadeira – não há como separar a investigação científica da filosófica. Como Sam Harris preconiza, boa parte do que se faz em ciência depende diretamente de idéias filosóficas e, especialmente hoje em dia, a filosofia depende dos avanços científicos. Não é a toa que cada vez mais filósofos estão se confinando em laboratórios e cientistas estão tendo preocupações epistemológicas em seus problemas de trabalho. A separação está cada vez mais difícil de ser feita, o que representa um sinal otimista de que estamos avançando num caminho muito frutífero e que tardou a percebermos a sua utilidade.

O primeiro dia começou com a provocante palestra do professor Charbel sobre as recentes discussões sobre o conceito de gene. Com o título da palestra “Como entender o gene no século XXI?”, Charbel discursou acerca das críticas que o conceito de gene vem sofrendo desde a época da nova síntese na genética. Para alguém de fora da biologia, o que o professor ilustrou causou uma estranheza enorme, tamanha é, aparentemente, a centralidade do conceito de gene na biologia molecular contemporânea. E ele é de fato muito importante, mas sua conceitualização apresenta algumas dificuldades que andam sendo revisadas por muitos autores.

Charbel expôs sua proposta, apoiada também por outros autores, de passarmos a localizar os genes no RNA ao invés do DNA como vem sendo feito. Segundo o Charbel, devemos abandonar a unidade de função como característica dos genes e usar apenas a unidade estrutural como fundamental para o conceito de gene. Genes são transitórios, eles se formam no momento da síntese proteica e depois se desfazem. Genes não “estão no DNA”, o que existe no DNA são bases para a produção do gene. O que herdamos de nossos ancestrais não são genes, mas sim os mecanismos epigenéticos de herança. Por fim, Charbel concluiu que muitas anomalias do conceito de gene desaparecem quando o situamos no RNA.

Outra palestra interessante desse dia foi a do professor Sergio Muñoz intitulada “O que é um mecanismo e como serve para explicar um processo?”. O professor esclareceu que explicações na ciência consistem na derivação de inferências a partir de modelos dos mecanismos envolvidos na produção de um fenômeno, sendo que os modelos caracterizam as partes e operações relevantes de um processo que ao serem organizadas de certa maneira, produzem o fênomeno. Outro ponto enfatizado pelo Sergio, relevante não só para a biologia mas para todos outros campos da ciência, é que os mecanismos descritos em diferentes níveis de análise descrevem fenômenos diferentes, sendo que as diferentes áreas da ciência tratam de diferentes relações entre níveis. A importância dessa observação é especial para campos como o da Ciência Cognitiva, que é um dos grandes interesses de pesquisa do própio professor Sergio Muñoz.

Essa foi uma observação extremamente relevante de ser levantada no simpósio e que inclusive seria salutar se fosse mais enfatizada no cursos de graduação em ciências, visto que muitas vezes a falta de entendimento desse tipo de questão conceitual acaba criando grandes confusões estéreis em diferentes àreas. Na psicologia, por exemplo, observo isso cotidianamente.

Várias palestras dos três dias se focaram na discussão de outros mecanismos envolvidos na evolução das espécies – teoria neutra, deriva genética, equilíbrio pontuado, seleção sexual e migrações. Uma palestra que me chamou a atenção foi a do professor Diogo, intitulada “Evolução sem seleção natural”. O Diogo é um pesquisador na área de genética das populações e em sua palestra expôs resultados de algumas pesquisas da área que se baseiam na teoria neutra. Essa teoria “assume que a maioria da variação encontrada em seqüências de DNA e proteínas tanto dentro como entre diferentes espécies é neutra com relação à seleção e considera que boa parte dos diferentes alelos para um mesmo loco possui o mesmo valor adaptativo”.

O interessante da fala do Diogo foi quando ele disse que a teoria neutra que embasava sua pesquisa já estava refutada – já haviam problemas suficientes com a teoria para saber que ela não seria uma alternativa à altura da seleção natural e de outros mecanismos. Entretanto, ele argumentou que mesmo já estando refutada por uma série de observações, ainda assim é muito útil usá-la, pois ela nos permitirá mapear e entender melhor o seu alcance e qual a importância de processo desvinculados da seleção natural na diversidade genética de populações, ou seja, o modelo está certamente equivocado, mas ainda assim é útil explorá-lo para nos situarmos.

O terceiro dia do simpósio foi o mais interessante para quem é da psicologia e de outras ciências sociais, pois boa parte das comunicações envolveu a discussão das contribuições da biologia para o entendimento do comportamento e da mente humana. O professor Paulo Abrantes comentou sobre as principais áreas de pesquisa que vêm empreendendo essa ponte entre biologia e psicologia em sua comunicação intitulada “Mente e cultura nas abordagens atuais da evolução humana”. O Paulo discutiu principalmente a Psicologia Evolucionista e as teorias de dupla herança ou de coevolução gene-cultura, além de comentar rapidamente sobre a Ecologia Comportamental. O Fábio Portela também trouxe uma discussão muito interessante sobre a teoria de dupla herança de Richerson e Boyd na comunicação intitulada “A evolução da mente normativa: origens da cooperação humana” e o professor Filipe Cavalcanti da Silva Porto tratou da famosa hipótese do cozimento para a evolução humana, proposta por Richard Wragham. Ambas comunicações renderam discussões muito interessantes sobre questões cruciais dessas propostas, como os módulos cognitivos e o programa adapatacionista presente em especial na Psicologia Evolucionista.

Uma das comunicações que mais me chamou a atenção foi a do Gustavo Leal Toledo sobre “O nascimento do homem e do meme”. As teorias dos memes têm gerado muitas discussões desde sua proposição inicial de Dawkins em seu livro O Gene Egoísta, e desde então uma onda de autores tem defendido versões alternativas do que seriam os memes (i.e. Blackmore, Dennett, Aunger). Gustavo propôs que discussões sem fim, muito comuns na literatura, poderiam e deveriam ser deixadas de lado, e que os pesquisadores da área deveriam se empenhar em fazer uma ciência dos memes ao invés de tentar resolver todos os seus problemas inicialmente. Ele defendeu claramente uma posição mais pragmática e empírica no estudo dos memes ao invés da ênfase exagerada em definições precisas e detalhadas apriorísticas sobre todos os mecanismos envolvidos na transmissão dessas unidades sociais que seriam os memes.

Depois de tantos dados, discussões teóricas e conceituais, a última palestra do simpósio trouxe não só uma grande e complexa discussão teórica, como também trouxe emoção. O professor Waldenor Barbosa da Cruz discutiu sua trajetória pessoal na construção de uma teoria da “vida” em sua palestra intitulada “Biologia teórica e Filosofia: uma trajetória pessoal”. Depois de uma exposição de aspectos conceituais de sua teoria, o professor Waldenor comentou sobre o aspecto pessoal e emotivo envolvido na atividade de um cientista. Ele acredita que a emoção que motiva a busca pelo conhecimento, e que sem essa emoção dificilmente um cientista estaria disposto a incorrer nos entraves e frustações que comumente acompanham a prática científica rigorosa. A ciência se constrói na base dos erros e da crítica incessante. Saber lidar com isso e simultaneamente com as emoções inbuidas na prática cientifica é talvez uma das tarefas mais difíceis e que mais prejudicou pessoas brilhantes na história da ciência. Ao mesmo tempo que essa emoção nos motiva, ela pode nos dominar e ser prejudicial para a ciência que fazemos.

O simpósio foi muito informativo e inspirador. Quem foi aprendeu muito sobre biologia, evolução, ciência e ser humano.

Perdendo para ganhar?

ResearchBlogging.org

Mais de 30 anos já se passaram desde que Mary-Claire King e Allan Wilson propuseram que a maioria das diferenças genéticas entre seres humanos e chimpanzés deveriam estar não nos genes em si, mas na forma que eles são expressos e regulados. A conclusão dos rascunhos do projeto genoma humano e do chimpanzé e a posse das informações de tantos outros genomas de mamíferos (e outros vertebrados) nos coloca em uma situação privilegiada para testar esta engenhosa hipótese. Nas últimas décadas vários pesquisadores, mais notadamente Sean Carroll e Greg Wray, vem batendo na tecla que mutações nas sequências cis-regulatórias, aquelas em que fatores de transcrição protéicos ligam-se – ajudando a modular a expressão dos genes ligados as sequências em questão – são o locus por excelência das grandes mudanças morfológicas que ocorreram durante a evolução dos organismos. Alguns cientistas, entretanto, tem defendido um posicionamento um pouco mais cauteloso, como Jerry Coyne e H. E. Hoekstra, alertando para a prematuridade de se jogar para um segundo plano as mudanças em regiões codificantes de genes, especialmente os fatores de transcrição, receptores de membrana e nucleares e outras proteínas ligadas a transdução de sinal intra-celular [sobre isso veja mais no evolucionismo.org].

 

As primeiras comparações entre os genomas dos chimpanzés e dos seres humanos acharam algumas diferenças em regiões codificantes, algumas delas, inclusive, exibindo marcas de evolução rápida em nossa linhagem, mas não na dos chimpanzés, possivelmente mediada por seleção natural positiva [1]. O mais celebrado desses exemplos é o famoso gene FOXP-2 – um gene de uma proteína que age como fator de transcrição, cuja variedade mutante existente em algumas famílias humanas produz um problema na aquisição da fala [2]. Este mesmo gene, em sua variedade não-patológica quando comparado ao de outras espécies contém outras alterações que evidenciam também um padrão de mudança rápida em nossa linhagem, um dos indicadores de evolução por seleção natural.

 

Outro caso bem comentado é o de genes associados a microcefalia – em que os pacientes afetados podem ter uma redução de até 70% do volume cerebral – como os genes MCPH1, CDK5RAP2 e CENPJ, mas especialmente ASPM (“Abnormal spindle-like microcephaly-associated protein”, Proteina semelhante ao fuso associada a microcefalia) para o qual também existem evidências de vários eventos de rápida mudança ao longo da história das linhagens de primatas, especialmente na nossa [veja essas respostas do formspring sobre o assunto, form_1 e form_2].

Porém, um resultado não muito divulgado é que mais genes parecem ter evoluído por seleção natural positiva na linhagem dos chimpanzés do que na nossa. Ao investigar quase 14000 genes Bakewell e colaboradores, revelaram que o número de genes positivamente selecionados é significantemente menor em nossa linhagem quando comparado a dos chimpanzés. A equipe achou 233 genes do chimpanzé que teriam sido alvo da seleção natural positiva, em contraste com apenas 154 em nós seres humanos, desde que os chimpanzés e os humanos divergiram de seu ancestral comum cerca de 6 milhões de anos atrás. Apesar disso, uma alta proporção de mudanças ditas não-sinônimas, ou seja, mudanças na sequência de nucleotídeos que alteram aminoácidos na proteína codificada por um dado gene, puderam também ser detectadas em nossa linhagem. Mas isso pode ser melhor explicado por um gargalo populacional que se acometeu sobre nossa espécie, e a conseqüente diminuição da eficiência da seleção natural[3] e acumulo de mutações ligeiramente deletérias[4]. Este estudo valeu-se da então recente publicação de um rascunho do genoma de outro primata , o macaco Rhesu (Macaca mullata) o que permitiu avaliar melhor alterações linhagem-específicas, além de contar com melhores informações sobre a qualidade das sequências disponíveis e métodos estatísticos de identificação de seleção mais rigorosos.

 

Estudos adicionais feitos por outros grupos revelaram outras áreas que mostram sinais de aceleração em nossa linhagem, as chamadas HAR (Human Accelerated Regions), identificadas em estudos mais recentes. Muitas dessas mudanças entretanto, ocorreram em regiões não-codificantes mas que eram relativamente conservadas em outras linhagens. Uma dessas regiões, a região HAR1, é constituída de 118 pares de bases próximas ao telômero do braço q do cromossomo humano 20. Ao comparar-se a HAR1 humana com a porção equivalente de outros animais, os cientistas puderam perceber que antes de nós, seres humanos, entrarmos na história, a evolução desta pequena região caminhava a passos bem lentos. Por exemplo, esta mesma porção nos genomas de galinhas e chimpanzés, duas linhagens que divergiram centenas de milhões de anos atrás, diferenciam-se em apenas duas bases. Porém, quando olhamos para o genoma humano, 18 diferenças podem ser encontradas em relação aos nossos parentes mais próximos, os chimpanzés, de quem nos separamos a meros 6 milhões de anos. O fato da HAR1 ter ficado essencialmente congelada no tempo através de centenas de milhões de anos – indicando que cumpre um papel muito importante – e ao mesmo tempo tantas diferenças podem ser achadas em seres humanos sugere que esta função foi significativamente modificada em nossa linhagem.

 

A possível relevância desta região está no fato de que ali encontram-se sobrepostos dois genes HAR1F e HAR1R, um dos quais HAR1F expressa não proteínas, mas RNAs regulatórios, os chamados microRNAs. Um desses RNAs é co-expresso no embrião (da 7a. a 19a. semana) juntamente com a proteína reelina em um tipo particular de célula (Cajal-Retzius) que, por sua vez, está associada a corticogênese (desenvolvimento do córtex cerebral). Essas células servem como arcabouço temporário para eventos de migração celular ajudando no desenvolvimento do tecido cortical, sendo muito importantes na formação das seis camadas corticais típicas de nossos cérebros. Acredita-se, portanto, que os RNAs regulatórios derivados do gene HAR1F ajudem a regular a proteína reelina e assim a controlar esse processo.

 

Infelizmente nem tudo é muito claro e direto. O problema é que estes RNAs (assim como outros genes) também são expressos nos ovários e testículos, tecidos cujos genes também sofreram rápida evolução em nossa linhagem desde que divergimos dos chimpanzés. As relações com a comportamento e inteligência, portanto, são ainda especulações, mas se constituem, sem dúvida, em possibilidades que valem a pena ser bem investigadas. Muitas outras diferenças já detectadas (que supostamente teriam evoluído sobre a ação da seleção natural) são muito mais provavelmente devidas a evolução da resposta a infecção e do sistema imune de forma mais ampla, algo fundamental no processo de sobrevivências das populações.

 

A HAR2 é uma outra dessas regiões que também mostra marcas de rápida evolução em nossa linhagem, abrangendo porções regulatórias de um outro gene, mas neste caso aparentemente não relacionado com nosso desenvolvimento neural. Este outro caso é bastante sugestivo e torna certas interpretações quase que irresistíveis. Alguns pesquisadores foram capazes de mostrar que algumas diferenças específicas que ocorrem apenas na versão humana da HAR2 induzem a expressão do gene associado a esta região no pulso e no polegar durante o desenvolvimento fetal, algo que não ocorre em outros primatas. É quase que impossível não pensar que esta sequência em particular guarda parte dos segredos da evolução da destreza manual que foi tão importante na fabricação de utensílios e na utilização de ferramentas complexas. Contudo, isso ainda precisa ser melhor investigado antes que conclusões mais robustas possam ser tiradas.

 

Mas as diferenças relevantes e que talvez possam explicar o que nos faz humanos, podem ser ainda mais sutis, contrariando algumas intuições mais simplistas sobre a complexidade humana. Exemplos recentes, como os provenientes do estudo de várias espécies e populações de peixes esgana-gatos, mostram que mutações que “estragam” certas regiões regulatórias e que, por isso, impedem a expressão dos genes em algumas regiões podem ser responsáveis por grandes alterações nos padrões das armaduras de espinhos que algumas dessas linhagens adquiriram durante a evolução em determinados contextos ecológicos.

Para compreender o que nos torna humanos precisamos deixar alguns esteriótipos para trás. Dois exemplos são ilustrativos. O primeiro, como já comentado, é que nossos genes deveriam ter sofrido muito mais seleção natural ao longo de nossa evolução do que as demais linhagens de grandes primatas. O segundo, talvez um contra-intuitivo, é que as mudanças em nossa linhagem deveriam sempre envolver a aquisição de novos e rebuscados genes.

 

Ao nos apercebermos que evoluir nem sempre significa melhora e muito menos a continua aquisição de complexidade, fica mais fácil de encarar outros cenários. O tipo de mudanças ilustradas por algumas das espécies de esgana-gatos nos ajudam a compreender como outras possibilidades podem também ter ocorrido durante nossa evolução. A perda de genes e estruturas pode possibilitar a aquisição de novas ou expansão de outras. Às vezes simplesmente “menos é mais” e o “mais” raramente têm qualquer sentido absoluto. Muitas vezes precisamos perder para ganhar, reduzir certas formas de complexidade para evoluir outras.

 

Um novo estudo busca as bases moleculares das diferenças de muitos aspectos da anatomia, fisiologia e comportamento entre nós, seres humanos, e os outros animais. A semelhança do estudos sobre a região HAR, neste trabalho, os pesquisadores identificaram eventos moleculares que seriam capazes de produzir mudanças regulatórias significativas nos seres humanos, mas no caso de forma análoga aos esgana-gatos, procuram em nossa espécies a eliminação completa de sequências que, de outra maneira, são altamente conservadas em outras espécies, como nos chimpanzés e outros mamíferos.

 

Maclean e vários colaboradores investigaram deleções específicas de nossa espécie em escala genômica global. Tais deleções foram identificadas através de regiões nos genomas dos chimpanzés que podiam ser claramente mapeadas no genoma de Macaca, ou seja, em que poderiam ser identificados ortólogos** precisos, mas que não pudessem ser mapeadas mais precisamente a qualquer sequência presente em nossa espécie. Essas sequências foram então contrastadas com sequências altamente conservadas em chimpanzés que estariam sobre forte influência de seleção purificadora, ou seja, cuja perda acarreta grandes prejuízos na sobrevivência e no sucesso reprodutivo dos indivíduos. A partir daí obtiveram-se os hCONDELs que são as deleções de sequências em nossa espécie, mas que são altamente conservadas em outros primatas.

 

Os investigadores tomaram vários cuidados metodológicos adicionais, tornando improvável que esses CONDELs fossem consequência apenas um subproduto de outro fenômeno, como pelo simples fato de se encontrarem em regiões com altas taxas de mutações, os chamados “hotspots”, uma possibilidade que tem sido discutida em relação a outras sequências que mostram evolução acelerada em nossa linhagem.

 

Apenas uma das sequência validadas dentre os hCONDELs (os CONDELS humanos) interferia diretamente com regiões codificadoras de uma proteína, as demais sequências mapeavam em regiões não codificantes, 355 delas inter-genéticas e 154 delas presentes dentro de introns, ou seja, nos elementos intra-gênicos que não estão envolvidos na especificação dos aminoácidos de uma proteína. Muitas dessas deleções correspondem a elementos regulatórios que controlam em outras linhagens a expressão de genes em sua vizinhança.

Talvez o mais interessante é que das sequências que puderam ser validadas, 88% delas também estavam ausentes no genoma dos Neandertais, em acordo com o fato da separação de nossa linhagem dos Neandertais ser muito mais recente do que a separação de nossa linhagem comum da linhagem dos chimpanzés.

 

O estudo foi capaz de confirmar 510 perdas em nossa linhagem quase exclusivamente restritas a regiões não codificantes e especialmente abundantes nas vizinhanças de genes envolvidos na sinalização endócrina por hormônios esteróides e na função neural. Uma dessas exclusões, por exemplo, é a de um amplificador/reforçador (“enhancer*) associado ao gene do receptor androgênico (AR) humano que em outros animais em que está presente controla a formação de uma vibrissa sensorial e espinhos (de epiderme queratinizada) penianos. Outra dessas deleções remove um outro elemento amplificador próximo ao gene supressor tumoral de parada do crescimento induzível por dano ao DNA gama (GADD45G), cuja perda em nós humanos correlaciona-se com a expansão de algumas regiões cerebrais. Cortes histológicos de embriões transgênicos mostram que as seqüências do chimpanzé e do camundongo induzem a expressão do gene repórter lacZ em regiões cerebrais específicas, como a zona subventricular do septo (SVZ), a área pré-óptica, além de regiões do tálamo e do hipotálamo ventral. A expressão deste gene repórter corresponde a um subdomínio específico de expressão do gene GADD45G que normalmente é expresso na SVZ e no diencéfalo. A área pré-óptica gera interneurônios inibitórios que migram para o telencéfalo ventral e para o neocórtex. Já o domínio do tálamo ventral corresponde a uma região que produz interneurônios inibitórios, um tipo específico de célula nervosa que segundo os autores aumentou notadamente em proporção no talamo humano.

Estes resultados sugerem uma base molecular plausível para o crescimento na produção de um tipo bem específico de células nervosas através de mudança de expressão de um gene de supressão tumoral.

 

Esses dois exemplos mostram como a perda de sequências “amplificadoras” específicas que controlam a expressão gênica em determinados tecidos biológicos em nossa linhagem pode estar ligada tanto a perda como ao ganho de certas características distintivamente humanas.

 

Os autores são cuidadosos ao afirmar que com base nesses dados não é possível excluir a possibilidade de que a perda dessas sequências tenha se dado como consequência do afrouxamento da seleção natural seguindo outras mudanças genéticas associadas a outras alterações anatômicas. Contudo, a partir dos resultados experimentais e do conhecimento do papel delas na formação de vibrissas e espinha peniana (AR) e no controle da proliferação celular tecido-específico (GADD45G), é bem provável que as deleções nestes elementos amplificadores/reforçadores tenham contribuído tanto para a perda como o ganho desses padrões fenotípicos específicos humanos.

 

O conjunto completo de hCONDELs pode trazer ainda mais surpresas, revelando mais loci associados a outras características humanas específicas, algo que precisará ser investigado por novos estudos funcionais dessas mesmas seqüências conservadas não-codificantes que surpreendentemente estão ausentes de nosso genoma.

 

Livrar-se de certa visão mais simplista sobre a evolução pode nos ajudar muito e trazer, quem sabe, um pouco mais de humildade a nossa espécie.

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*Seqüência de DNA na qual ligam-se proteínas reguladoras de genes, que influenciam a taxa de transcrição de um gene estrutural, que podem ser muitos milhares de pares de bases de distância do gene regulado.

**Ortólogos e Parólogos são os dois principais tipos de homólogos investigados em estudos de sequências de biomoléculas. Enquanto os ortólogos originam-se pela simples separação entre linhagens, então são basicamente o mesmo gene mais nas versões espécies diferentes. Já os parólogos têm sua origem através da duplicação das sequências de DNA. Por causa desses processos uma sequência em uma espécie pode ser homóloga a uma ou a várias sequências em outra espécie e a outras sequências de seu próprio genoma. Este fenômenos pode ser um pouco difícil de estudar por que ao longo da evolução sequências (inclusive genes) podem ser tanto ganhas como perdidas. Em geral o mapeamento por sintenia das sequências alinhadas é usado para identificar a correspondência na ordem dessas sequências nas espécies em comparação. Fenômenos como a translocação e a TLG (transferência lateral de genes) através de vírus e ação de elementos genéticos móveis podem adicionar complicações extras, por exemplo, gerando “xenólogos” ou genes quiméricos com domínios originados de genes diferentes.

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Notas:

[1] Como grande parte das mutações genéticas aleatórias não trazem nem malefícios nem benefícios aos organismos, elas acabam por acumular-se em uma taxa relativamente constante (steady state) que reflete o tempo desde a separação das linhagens, funcionando como o “tick”de um relógio molecular. Aceleração na taxa de mudança em determinadas porções dos genomas, em contraste com outras, é uma das marcas da seleção natural positiva, o processo em que as mutações que ajudam na sobrevivência e reprodução dos organismos são passadas mais frequentemente adiante às futuras gerações. Assim, as partes do genoma que passaram por mais mudanças desde a separação de nossa linhagem das dos chimpanzés são provavelmente as sequências que “deram forma” a espécie humana. Como se faz isso?

Primeiro, os pesquisadores analisaram cada nucleotídeo (uma das 4 “letras” que forma o DNA: ATCG) em que os genes humanos ou chimpanzés em busca de diferenças daquilo que seria previsto do nosso ancestral, como inferido a partir de comparações dos genes correspondentes em Macaca. Eles observaram então se estas diferenças resultaram em proteínas alteradas. Lembre-se o código genético é redundante e muitas torcas de letras na terceira posição dos códons (as unidades “lidas” pelo ribossomos e que correspondem aos aminoácidos a serem polimerizados em sequência, além de avisos de início e parada de leitura do RNA mensageiro). Os atuais métodos de detecção do efeito da seleção natural em genes estipulam que os genes que sofreram seleção natural mostram uma proporção anormalmente elevada de mutações desse tipo, não silenciosas, ou seja, que levam a alterações nas sequências protéicas. , em relação as silenciosas, isto é, aquelas que não alteram a sequência protéica.

 

[2] Indivíduos heterozigotos para a versão mutada do gene FOXP2 têm dificuldades em executar movimentos complexos sequências da boca subjacente (dispraxia verbal desenvolvimental) discurso e tem prejudicada tanto a linguagem receptiva quanto expressiva, ao passo que outros aspectos de cognição e desenvolvimento são relativamente poupadas, ainda que haja um pouco mais de discussão sobre esse tópico.

 

[3]Por causa do efeito destes gargalos demográficos (em função de extinção de populações locais e recolonização por outras populações) o tamanho efetivo das populações humanas durante boa parte de sua evolução deve ter sido substancialmente reduzido. De acordo com a moderna genética de populações isso resulta em uma redução da eficácia da seleção negativa em purgar mutações ligeiramente deletérias. Essas seriam facilmente removidas em populações maiores já que pequenas diferenças de aptidão reprodutiva seriam mais do que suficientes para suplantar os efeitos da deriva genética aleatória, processo intrínseco à loteria reprodutiva e de sobrevivência que afeta cada geração, desviando do que seria esperado.

 

Entretanto, esta mesma constatação nos leva a uma possibilidade bastante interessante, defendida por pesquisadores como John Hawks. Assim como durante muitos milhares de gerações a população efetiva humana deve ter permanecido bastante pequena, nos últimos séculos e especialmente nas últimas décadas dado a explosão demográfica humana a seleção deve ter se tornado muito mais forte, pelo menos em várias populações humanas; mesmo que em muitos países desenvolvidos e regiões mais prósperas tenha havido um certo desacoplamento entre o sucesso reprodutivo dos indivíduos de uma gama de condições que poderiam interferir com a mortalidade precoce ou viabilidade dos indivíduos.

 

[4] Como discutido em outras ocasiões, aqui mesmo no evolucionismo (veja ‘O preço da complexidade‘ e ‘Além da seleção Natural…‘), a redução da eficiência da seleção natural negativa como resultado da diminuição das populações efetivas pode ter consequências construtivas e inovadoras, sobretudo quando mais tarde passam a trazer diferenças na aptidão dos indivíduos. A menor eficiência da seleção natural ao permitir o acumulo de mutações ligeiramente deletérias também possibilita o acumulo de “embelezamentos” e outras “complicações estruturais” que em um primeiro momento seriam quase que certamente purgadas pela seleção natural caso as populações efetivas fossem suficientemente grandes. Porém, em pequenas populações esses “embelezamentos” poderiam se acumular, criariam uma situação em que mutações adicionais e compensatórios pudessem aparecer reduzindo os custos reprodutivos iniciais, eventualmente conferindo vantagens subsequentes que poderiam, assim, ser alvo de seleção natural positiva, ao aumentar o sucesso reprodutivo de seus portadores.

 

Artigos sobre o assunto apareceram na internet [aqui e aqui, para dois exemplos] e algumas partes já foram discutidas por mim no formspring evolucionismo.

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Referências:

  • Bakewell, M., Shi, P., & Zhang, J. (2007). More genes underwent positive selection in chimpanzee evolution than in human evolution Proceedings of the National Academy of Sciences, 104 (18), 7489-7494 DOI: 10.1073/pnas.0701705104
  • Carroll SB. Genetics and the making of Homo sapiens. Nature. 2003 Apr 24;422(6934):849-57. Review. PubMed PMID: 12712196
  • Carroll SB, Prud’homme B, Gompel N. Regulating evolution. Sci Am. 2008 May;298(5):60-7. PubMed PMID: 18444326.
  • Enard W, Przeworski M, Fisher SE, Lai CS, Wiebe V, Kitano T, Monaco AP, Pääbo S. Molecular evolution of FOXP2, a gene involved in speech and language. Nature. 2002 Aug 22;418(6900):869-72. Epub 2002 Aug 14. PubMed PMID: 12192408.
  • Fisher SE, Scharff C. FOXP2 as a molecular window into speech and language. Trends Genet. 2009 Apr;25(4):166-77. Epub 2009 Mar 21. Review. PubMed PMID: 19304338.
  • Hawks, J., Wang, E., Cochran, G., Harpending, H., & Moyzis, R. (2007). Recent acceleration of human adaptive evolution Proceedings of the National Academy of Sciences, 104 (52), 20753-20758 DOI: 10.1073/pnas.0707650104
  • King, M.C. and Wilson, A.C. (1975) Evolution at two levels in humans and chimpanzees. Science Vol.188, pp.107-116 (see also commentary Science Vol.189, pp.446-447).
  • McLean CY, Reno PL, Pollen AA, Bassan AI, Capellini TD, Guenther C, Indjeian VB, Lim X, Menke DB, Schaar BT, Wenger AM, Bejerano G, & Kingsley DM (2011). Human-specific loss of regulatory DNA and the evolution of human-specific traits. Nature, 471 (7337), 216-9 PMID: 21390129
  • Pollard KS. What makes us human? Sci Am. 2009 May;300(5):44-9. PubMed PMID: 19438048

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Evolução em ação: Três experimentos demonstrando a Seleção Natural

Autora: Wendy A. M. Prosser, Ph.D.

Postado originalmente em Decoded Science [Evolution in Action: Three Experiments Demonstrating Natural Selection] em 7 de julho, 2011 às 10:54

Tradução: Rodrigo Véras

 

Como qualquer teoria científica*, a teoria da evolução por seleção natural pode ser testada experimentalmente. Desde a publicação de A Origem das Espécies, em 1859, biólogos vêm desenvolvendo muitas maneiras engenhosas de examinar o efeito da seleção natural nos organismos vivos. Este artigo analisa três desses estudos.

 

Os Guppies de Endler


No final nos anos 70, o zoólogo Norte-Americano John Endler testou a teoria de Darwin usando uma espécie de peixes de aquário bem popular, o guppy (
Poecilia reticulata). Guppies machos têm manchas com coloração viva para atrair as fêmeas, mas essas manchas também atraem predadores. Já havia sido observado anteriormente que os machos que vivem em córregos onde haviam muitos peixes predadores tendiam a ter menos dessas manchas coloridas, o que reduzia o risco de serem comidos, enquanto aqueles que viviam em rios com menos predadores tinha mais manchas.

O número de manchas nos guppies machos é relacionado com o número de predadores em seu ambiente.

Para replicar este efeito experimentalmente, Endler colocou grupos de guppies machos e fêmeas em três lagoas que eram idênticas, exceto que uma delas não continha predadores, uma continha uma espécie de peixes predadores de guppies, e uma continha uma espécie  de peixe predatória mas que não se alimentava de guppies.

Depois de deixar o guppies procriarem por 20 meses (representando várias gerações para peixes que começam a reproduzir quando estão com cerca de 3 meses de idade), Endler descobriu que os machos nas lagoas que não continham predadores ou predadores que não comem guppies tinham significativamente mais manchas do que os machos que compartilharam sua lagoa com um predador de guppies. Como a coloração das caudas dos guppies machos é herdada de seus pais, esta experiência fornece forte evidência de que o número de manchas nas caudas de guppies evoluiu como um “trade-off” entre a necessidade de atrair parceiros e a necessidade de evitar ser devorado.


Variação Ecotípica no Anolis Dominicano


Enquanto os guppies de Endler mostraram como a seleção natural pode levar a uma mudança acentuada em uma característica que afeta a sobrevivência e a reprodução de uma população, pesquisas recentes sobre um lagarto dominicano (
Anolis oculatus), ilustra uma das maneiras através da qual novas espécies podem surgir.

 

O comprimento dos dedos dos pés, o padrão de escamas e outras características do Anolis variam de acordo com seu habitat. Neste experimento, os pesquisadores colocaram grupos semelhantes de Anolis em recintos seguros, localizados em uma variedade de habitats insulares que vão de regiões costeiras secas à floresta tropical de montanha. Quando mais tarde mediram característica que já haviam se mostrado, pelo menos parcialmente herdáveis, como comprimento de pernas e pés, -a largura da cabeça e a cor e forma das escamas – eles descobriram que essas características agora variavam entre as diferentes populações de lagartos em um padrão que dependia de seu habitat.


Este achado é especialmente interessante porque aponta para como a especiação pode ocorrer na natureza. Se os grupos experimentais de A. oculatus tivessem sido mantidos em isolamento por muitas mais gerações, as diferenças entre eles poderiam ter, eventualmente, tornado-se tão grandes que zoólogos tenderiam a classificá-los como espécies separadas.

 

Na verdade, a especiação devido à separação geográfica – um processo conhecido como “especiação alopátrica” ​​- parece ter já acontecido entre os lagartos Anolis no Caribe, onde ilhas diferentes, com habitats diferentes, são cada uma lar de espécies diferentes.


Melanismo industrial na mariposas


Talvez o exemplo mais famoso de evolução em ação seja o caso das mariposas (
Biston betularia), que ilustra o conceito de “pressão seletiva” – a força que impulsiona a evolução. A forma negra das mariposas prosperava em áreas industriais poluídas.

A mariposa britânica alimenta-se à noite e passa o dia descansando em troncos de árvores, onde encontra-se em risco de ser comida por aves. Até meados dos anos de 1890, todas as mariposas tinham uma coloração pálida e salpicada que fornecia camuflagem contra o fundo de líquens claros que cobriam as cascas das árvores. Na segunda metade do século XIX, no entanto, uma forma negra da mariposa foi observada pela primeira vez e em 1900 quase todas as mariposas em áreas urbanas eram negras, enquanto a maioria daquelas em áreas rurais permaneceu clara. Este período de 50 anos coincidiu com a ascensão da industrialização nas cidades britânicas e foi sugerido que a mudança na cor das mariposas em áreas urbanas teria sido devida a fuligem de dióxido de enxofre originada das fábricas que matava os líquens sobre troncos das árvores. As cascas escuras por baixo passaram a ser uma boa camuflagem para as formas de mariposa escuras, e as mariposas pálidas estavam agora em desvantagem, porque elas eram mais facilmente avistadas pelos pássaros predadores.

Em 1956, o entomologista H. Bernard Kettlewell começou a examinar esta hipótese através da coleta, marcação e liberação de mariposas escuras e claras em Birmingham (área urbana) e Dorset (área rural). Ele, então, colocou mais armadilhas para recapturar as mariposas marcadas, e observou que uma menor proporção de formas claras era recapturada em Birmingham e uma proporção menor da formas escuras em Dorset. Esta descoberta foi consistente com a sugestão de que as mariposas claras eram mais evidentes – e, portanto, presas fáceis para as aves – em áreas com  árvores escurecidas pela poluição, enquanto as mariposas escuras eram mais propensas a serem comidas em áreas rurais, com líquens claros cobrindo as árvores. Concluiu-se que a pressão seletiva por predação de aves tinha dirigido a evolução das duas formas diferentes de B. betularia.

O experimento de Kettlewell tem sido repetido, e sua conclusão confirmada várias vezes, mais recentemente em 2003. Desde o Clean Air Act de 1956, no entanto, as emissões de dióxido de enxofre diminuíram no Reino Unido, e os estudos posteriores têm documentado o declínio da mariposa escura em regiões industriais. Em 1985, esta forma tinha praticamente desaparecido das Midlands e era encontrada em grande número apenas no extremo noroeste da Inglaterra.


Espécies de vida curta fornecem evidências da Seleção Natural 


Pode ser difícil observar a evolução em animais com longas gerações como tartarugas, elefantes e seres humanos, mas, como essas três experiências mostram, peixes, insetos e outras espécies com tempos de geração mais curtos são os alvos ideais para o estudo da seleção natural em ação.


Fontes


Butler, D., Gillman, M., Metcalfe, J., Robinson, D. Life. Milton Keynes: The Open University, 2008.

Cook, L. The Rise and Fall of the Melanic Peppered Moth. Accessed 06-07-11.

Endler, J. Natural Selection on Color Patterns in Poecilia reticulata. Evolution. Accessed 06-07-11.

Thorpe, R., Reardon, J., Malhotra, A. Common Garden and Natural Selection Experiments Support Ecotypic Differentiation in the Dominican Anole (Anolis oculatus). The American Naturalist. Accessed 06-07-11.

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SWendy A. M. Prosser, Ph.D.obre a autora

Wendy A. M. Prosser, Ph.D.

A Doutora Prosser tem mais de 17 anos de experiência como escritora e editora de ciência e medicina. Ela é bacharel e doutora em zoologia pela Universidade de Oxford e publicou sua pesquisa sobre simbiose em afídeos no Journal of Insect Physiology.

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Notas do tradutor:

 

*Para ser mais preciso muitas teorias são testadas a partir de dados observacionais, como é o caso da astronomia  e geologia e também da biologia evolutiva em se tratando de inferências sobre o passado remoto.

 

Veja também o post recente sobre B. betularia aqui no evolucionismo, “Gene do melanismo encontrado em mariposas de Manchester (ou quase)“.

99% confuso!

As ciências permeiam praticamente todas as atividades humanas e as evidências científicas são um importante instrumento de decisão e convencimento. Sendo assim a citação de dados da literatura científica (reais ou imaginados) desempenham um papel na retórica moderna em nossa sociedade. Infelizmente esse status privilegiado do conhecimento científico (mas que inspira também ataques e desconfiança) frequentemente é utilizado muito mais para ofuscar do que para informar. Em uma dessas tardes que parecem infinitas, assistindo a um programa de entrevistas capitaneado por um apresentadora de TV bem conhecida, comecei a prestar a atenção em uma dupla de entrevistados que aparentemente haviam criado um baralho de Tarot usando a biota local do Brasil.

Em um dado momento, o criador principal do baralho começou a falar de ciência, pior especificamente de biologia. Durante um rompante de multidisciplinaridade um dos dois entrevistados citou o “fato provado cientificamente” (essas palavras gelam o sangue da maioria das pessoas que tem um pouco mais de familiaridade com metodologia e com a prática científica. É quase uma reação instintiva de quem espera o pior, logo após ao proferimento dessa sentença) que 99% do DNA do homem era igual ao do Chimpanzé (senti alguns espasmos de dor, mas nada que não pudesse superar, por enquanto era apenas imprecisão), mas se comparássemos o Homem com um gafanhoto* também encontramos 99% de semelhança. Mas tão frustrante quanto a declaração foi o fato de que ninguém  no programa pareceu estranhar ou se incomodar com tal asserção que contraria quase tudo que sabemos sobre genética, genômica e evolução. Mesmo não havendo ali nenhum especialista é muito claro que tal afirmação é, no mínimo, muito estranha.

Depois do mal estar e da frustração por não poder entrar na TV, comecei a pensar por que algumas informações são banalizadas de um jeito que as despe de toda sua relevância. Sem um pouco de contexto esse tipo de número é completamente mistificador. Frequentemente acabam caindo  sendo utilizados por criacionistas que os usam para apontar  as supostas contradições e discrepâncias e, a partir daí, decretar a falência da biologia evolutiva, sem precisar produzir um átomo de evidência científica original. Mas esta linha de raciocínio é claramente completamente destituída de qualquer mérito. É apenas um pseudo-argumento. Os diferentes números que podem ser encontrados em publicações científicas não são derivados de contradições entre os estudos ou de grandes incertezas nas estimativas, mas simplesmente do fato de que coisas diferentes estão sendo comparadas em momentos diferentes usando métricas diferentes entre grupos de seres vivos diferentes. Uma parte da culpa, sem divida, está nos próprios pesquisadores e divulgadores das ciências que não contextualizam essas porcentagens e nem sempre as apresentam de forma mais clara ao dirigirem-se ao publico leigo. Mas este problema está ligado a uma questão mais geral, o fato que, muitas vezes, as questões metodológicas – “o como sabemos deste tipo de coisa” – ficam em segundo plano já que são os resultados e conclusões dos cientistas que mais chamam a atenção.

Para compreendermos um pouco melhor o que tais quantidades significam, precisamos considerar as mudanças que ocorrem ao longo da evolução  que acontece após a separação das linhagens. Os genomas mudam de muitas maneiras diferentes ao longo da evolução. Além das substituições de um nucleotídeo por outro, os SNPs (Single Nucleotide Polimorphism), pedaços maiores podem ser deletados ou duplicados, genes inteiros são perdidos e outros ganhos (bem como cópias adicionais de um mesmo gene e de sequências não codificantes), pedaços são invertidos ou translocados de um cromossomo para outro, quando não cromossomos inteiros são fundidos.

 

                                                      Adaptado de Phillippy (2006)

Cada uma desses eventos pode exigir uma métrica diferente e não faz sentido comparar o resultado de uma dessas medidas utilizada em uma comparação entre duas espécies, com o resultado de outra medida diferente para outras duas espécies. Por exemplo, a porcentagem de diferenças entre os genes de chimpanzés e seres humanos não pode ser confundido com a similaridade quantificada a partir do número de inserções e deleções que diferenciam os seres humanos dos camundongos, mas muitas vezes é exatamente esse tipo de comparação indevida é que é feita. Mas ao utilizarmos a mesma métrica consistentemente em várias espécies obtém-se sempre o padrão ramificado aninhado típico da evolução biológica, por exemplo, colocando os seres humanos e chimpanzés muito mais próximos do que qualquer um deles é de outro animal, como camundongo, Baiacu, Drosófila ou mesmo o gorila.

A principal questão, entretanto, é que é preciso, primeiro, comparar aquilo que é equivalente em ambas as linhagens estudadas. Mas para isso são necessários métodos específicos de comparação que permitam detectar o que é equivalente entre os genomas das espécies em estudo. Isso ocorre por que em um genoma uma porção específica pode ser alinhada com duas, três ou quatro do outro, por causa de eventos de duplicação em uma das linhagens e não na outra após a separação e ambas, em outro caso podem haver nucleotídeos faltando deixando as sequências com tamanhos diferentes mascarando as semelhanças ancestrais. O alinhamento entre sequências, ou mesmo  alinhamento inteiros dos genomas, ou seja, o processo de mapeamento das regiões de um genoma em outro e as técnicas matemáticas e algoritmos computacionais responsáveis por isso, estão na base desses procedimentos.

Adaptado de Phillippy (2006)

 

No caso das comparações entre nossa espécie (Homo sapiens) e os chimpanzés (Pan troglodytes) – Homo-Pan – cerca de 95% das regiões de ambos os genomas podem ser mapeadas umas nas outras e são idênticas, apenas 5% de nosso DNA não tem equivalentes nos genomas dos chimpanzés. Acontece que se fizermos o mesmo tipo de comparação entre seres humanos e camundongos (Mus musculus) – Homo-Mus – esta identidade é de apenas 28%. Isto é, 72% das sequências não são nem comparáveis. Se deixarmos essas porções de lado e compararmos apenas as porções equivalentes de cada par de genomas (95% para Homo-Pan e 28% de Homo-Mus) a semelhança entre chimpanzés e seres humanos é de 99% de bases idênticas alinhadas e 69% entre seres humanos e camundongos. Isso mostra que se nos restringirmos às sequências comparáveis, a semelhança entre as diversas espécies de animais (não só Homo-Pan-Mus) é muito maior, muito provavelmente por causa da relevância funcional dessas regiões que são mantidas por intensa seleção negativa ou purificadora. Ainda assim as diferenças são proporcionais as distâncias evolutivas em acordo com as filogenias obtidas a partir de dados morfológicos, por exemplo.

 

Tabela adaptada da apresentação de Katherine Pollard disponível no youtube.

Boa parte dessas diferenças são observadas em porções não codificadoras dos genomas, ou seja, que não são expressas na forma de produtos gênicos, como proteínas. Essa conservação é ainda mais notável caso nos limitemos as comparações apenas de genes, ou seja, aquelas sequências que codificam polipeptídeos. Neste caso a identidade entre Homo-Pan é de cerca de 99% – das 97% de bases que podem ser alinhadas entre um genoma e outro – e entre Homo-Mus esta semelhança é menor, mas não tão menor como as comparações anteriores, sendo de 85%, mas aqui apenas 40% das bases podem ser alinhadas entre os dois genomas. Ao nos determos somente nos genes, cerca de 30% dos produtos protéicos dos genes de seres humanos possuem ortólogos idênticos em chimpanzés, ou seja, sequências exatamente iguais. Mas mesmo os demais genes têm sequências  codificadoras extremamente parecidas com as nossas. Comparando um gene típico humano e um gene típico de Chimpanzé são esperadas em média diferenças em apenas 2 aminoácidos entre as duas espécies, um aminoácido diferente em cada linhagem.

Voltando às comparações mais gerais, outro ponto importante é que essas comparações referem-se apenas às diferenças envolvendo a troca de um nucleotídeo em um genoma por outro, em outro genoma, os chamados SNPs. Caso incluamos indels (inserções e deleções) essas diferenças aumentam, mas aumentam em proporção à distância evolutiva desde a separação das linhagens, mantendo o padrão filogenético típico. Esta, aliás, é outra fonte de confusão, inclusive alguns estudos indicam que a inclusão dos indels em comparações de distância é um tanto problemática devido algumas características estatísticas dessas comparações (veja por exemplo Cartwright, 2008).

Através dessas comparações entre espécies diferentes e entre indivíduos dentro de cada espécie, podemos não apenas estimar a divergência e a diferença entre as diversas espécies e populações, mas também investigar a fundo que tipos de mudanças foram estas e tentar correlacioná-las com especifidades morfológicas, desenvolvimentais, fisiológicas e comportamentais de cada linhagem, bem como estimar o efeito da seleção natural, deriva, migrações etc.

Este tipo de comparação traz outras surpresas, mas que serão abordadas em um outro post. Por enquanto, fica a mensagem que muitas vezes os números citados ao serem discutidas as diferenças entre as especies parecem confusos por que o contexto e os detalhes metodológicos por trás das comparações estão sendo ignorados. Informar efetivamente aquilo que está sendo comparado deveria ser a regra, assim poderíamos apreciar mais nossas diferenças e semelhanças e pensar de forma menos simplista sobre elas.

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* Por que gafanhoto? Essa é uma dúvida que continua a me assolar, realmente não sei a resposta Nunca descobri um projeto de genoma do gafanhoto.

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Referências e literatura recomendada:

  • Cartwright RA. Problems and solutions for estimating indel rates and length distributions. Mol Biol Evol. 2009 Feb;26(2):473-80. Epub 2008 Nov 28. PubMed PMID: 19042944; PubMed Central PMCID: PMC2734402.

  • Cohen J. Evolutionary biology. Relative differences: the myth of 1%. Science. 2007 Jun 29;316(5833):1836. PubMed PMID: 17600195.
  • Kehrer-Sawatzki H, Cooper DN. Understanding the recent evolution of the human genome: insights from human-chimpanzee genome comparisons. Hum Mutat. 2007 Feb;28(2):99-130. Review. PubMed PMID: 17024666.

  • Phillippy, Adam M [July 21th, 2006] Whole Genome Alignment TIGR Training Seminar.

  • Pollard KS. What makes us human? Sci Am. 2009 May;300(5):44-9. PubMed PMID: 19438048.

  • Watanabe H, Hattori M. [Chimpanzee genome sequencing and comparative analysis with the human genome.] Tanpakushitsu Kakusan Koso. 2006 Feb;51(2):178-87. Review. Japanese. PubMed PMID: 16457209.

  • Yoko K, Atsushi T, Hideki N, Asao F. [Comparative studies on human and chimpanzee genomes]. Tanpakushitsu Kakusan Koso. 2005 Dec;50(16 Suppl):2072-7. Review. Japanese. PubMed PMID: 16411432.

Créditos das figuras:

JEAN-FRANCOIS PODEVIN/SCIENCE PHOTO LIBRARY

JEAN SOUTIF/LOOK AT SCIENCES/SCIENCE PHOTO LIBRARY