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Seleção natural não é uma tautologia [Autor: Fábio Machado]

Por Fábio Machado

Fonte: Haeckeliano

Ann Coulter, o sonho molhado de todo conservador Norte-Americano.
É a da direita, eu suponho…



Um dos argumentos que considero mais irritante utilizado por detratores da síntese evolutiva moderna é que a seleção natural seria uma tautologia. Tal argumento foi colocado pela “pensadora” conservadora norte-americana Ann Coulter em seu livro “
Godless: The Church of Liberalism” da seguinte forma:

A segunda parte da “teoria” de Darwin é geralmente nada mais do que um argumento circular: Através do processo de seleção natural, o mais “apto” sobrevive. Quem é o mais “apto”? O que sobrevive! Oras, veja – acontece toda vez! A “sobrevivência do mais apto” seria uma piada, se não fosse parte de um sistema de crença de um culto fanático infestando a Comunidade Científica. A beleza de ter uma teoria cientifica que é uma tautologia, é que ela não pode ser testada.

É interessante notar que quem se vale desse argumento, não nega a existência da seleção natural, pelo contrário: afirma a sua existência como uma verdade inescapável. Quanto falamos de uma tautologia, estamos falando de uma proposição, a qual assume a seguinte forma:

A apresenta as propriedades de A

Por trás da circularidade e obviedade da preposição, está o fato de que uma tautologia é uma verdade necessária. Afirmar que “A não apresenta as propriedades de A” significaria dizer que existe alguma propriedade de A que não é propriedade de A, ou que A não apresenta todas as propriedades de A, sendo que ambas são absurdos lógicos. Em nenhum caso tal afirmação (ou qualquer outra tautologia) pode ser falsa sem simplesmente fazer uma contradição que fere as leis da lógica (o que as tornam logicamente necessárias). Então, nesse ponto, Coulter está correta: uma tautologia não pode ser falseada, pois ela é uma necessidade lógica. Mas seria a teoria da seleção natural uma tautologia de fato?


“Sobrevivência do mais apto”

Uma das primeiras coisas que devemos notar é que “sobrevivência do mais apto” não é exatamente uma das descrições mais adequadas da Seleção Natural. Mas em primeiro lugar, temos que deixar bem claro um conceito que é comumente confundido, que é o de “aptidão”, “aptidão darwiniana” ou “fitness” em inglês.


A aptidão, em biologia evolutiva, é definida como a contribuição média de um genótipo para o pool gênico da geração seguinte. Por exemplo, se tenho uma bactéria (haplóide) com um dado genótipo que apresenta
fitness=1.47, então a presença do genótipo na geração seguinte será 47% maior do que na geração anterior. Se o fitness=0.91, então aquele gene terá uma presença 9% menor na geração seguinte e por ai vai.


Note que em nenhum momento precisamos falar de sobrevivência. Afinal, o que seria “sobrevivência” no caso de bactérias que simplesmente se dividem? Faz algum sentido falar que a bactéria da esquerda é a que “sobreviveu”, e não a da direita?


Uma historia de amor melhor que Titanic

O ponto é que um organismo não precisa morrer para ter um fitness baixo. Um organismo pode muito bem ter uma baixa fecundidade, sem nunca precisar “deixar de sobreviver” ou, como no caso das bactérias, sobrevivência é irrelevante visto que todos organismos originais deixam de existir após a reprodução. Outro exemplo são algumas espécies de salmão e polvos, que morrem após o acasalamento, louva-deuses e aranhas que consomem os seus machos, ou ainda algumas espécies de ácaros que explodem ao dar luz aos filhotes. Aptidão não tem a ver com sobrevivência.


– Tira esse hectocótilo daí, João!
Esse papo de sexo vai acabar nos matando…


Então, fica bem claro que “sobrevivência do mais apto” não é uma tautologia, pelo simples fato de que “sobrevivência” não é estritamente igual (apesar de poder influenciar) “aptidão”.

 

Isso tudo é apenas para demonstrar que o argumento original utilizado está errado. Porém os mais rápidos vão notar que isso não refuta a proposição de que “seleção natural é uma tautologia”: apesar do argumento dos detratores/criacionistas estar equivocado, ainda poderíamos transformar a proposição original em algo próximo a o que seleção natural realmente significa, produzindo assim uma tautologia. Mas como seria isso? 

 

Aptidão como taxa

 

Se “sobrevivência do mais apto” está equivocado, então como poderíamos frasear a ideia original da melhor maneira possível? 

Sobrevivência do melhor sobrevivênte“? 

É claramente uma tautologia, uma verdade trivial, mas não parece ser exatamente o que temos em mente quando pensamos em “seleção natural”. Poderíamos pensar em algo na linha de

Capacidade superior de contribuir para o pool gênico da geração seguinte do genótipo (ou fenótipo) mais apto

Bom, essa parece mais próxima da ideia original, mas ela dificilmente é uma tautologia. O motivo é muito simples: ela é falsa. O motivo é muito simples, e pode ser ilustrado com uma analogia: a adaptação é uma taxa de variação da frequência de alelos, assim como aceleração é a taxa de variação da velocidade. Se fossemos formular uma proposição análoga para aceleração, teríamos algo similar à

A maior velocidade do que mais acelera

Isso é falso pelo simples motivo de que o que mais acelera pode ser o mais devagar, enquanto o mais rápido pode acelerar menos, mas manter uma velocidade superior pelo simples fato de inicialmente já apresentar uma velocidade superior.


O gráfico abaixo ilustra isso para uma população de organismos haplóides que apresentam dois genótipos, sendo que A2 apresenta uma aptidão duas vezes maior do que A1. q’ é a frequência genotípica após a seleção e q1 é a frequência genotípica de A1 antes da seleção (sendo que a frequência de A2 fica definida como 1-q1).


Assim, fica fácil verificar que, mesmo Atendo uma aptidão duas vezes maior, ele não consegue ser o maior contribuidor para o pool gênico na geração seguinte quando sua frequência inicial é muito baixa (ou quando a frequência de A1 é muito alta, no canto direito do gráfico). Moral da historia: aptidão sozinha não determina sucesso evolutivo na geração seguinte.


Um detrator mais perseverante pode argumentar que, se dermos tempo o suficiente (em outras palavras, um numero muito grande de eventos de seleção ou gerações), o genótipo mais apto irá se fixar, não importando sua frequência original, e ele estaria certo ao dizer isso. Mas note que a premissa “dado muito tempo” precisa ser introduzida para que torne a afirmação verdadeira. Essa premissa pode tanto ser ou não verdadeira (da mesma forma que carros e trens não aceleram indefinidamente), o que torna a proposição condicional, não uma verdade necessária e, logo, a proposição 
não é uma tautologia.

Mas isso tudo gera um impasse. Todas as proposições – tanto as originais, tanto as que tentam se aproximar do significado verdadeiro dos termos no contexto da síntese evolutiva – se mostraram falsas. Seria possível elaborar uma proposição que seja precisa (represente a ideia da seleção natural) e que seja colocada de forma lógica?

Seleção natural como silogismo

Em primeiro lugar, devemos entender como seleção natural ocorre. Não, não estou falando apenas daquele velho e batido exemplo do passarinho comendo os besouros que são mais chamativos, mudando assim a composição da população:


-Na verdade eu enxergo todos os besouros, mas meu médico
disse que uma refeição colorida é uma refeição divertida

Esse é um ótimo exemplo para mostrar como seleção natural pode levar à evolução de um fenotipo de forma direcional (existem mais besouros marrons no final do que no começo), mas existem sistemas mais complexos de seleção que não levam a uma mudança nesse sentido. O exemplo mais claro é o da interação da anemia falciforme e malaria, no qual são mantidos indivíduos com genótipo não-letal da anemia na população. Não há mudança, mas há seleção.
Então, como poderíamos definir seleção natural? Na introdução do Origem das Espécies, Darwin resume brevemente como seria o mecanismo:

Como nascem muitos mais indivíduos de cada espécie, que não podem subsistir; como, por conseqüência, a luta pela existência se renova a cada instante, segue-se que todo o ser que varia, ainda que pouco, de maneira a tornarse-lhe aproveitável tal variação, tem maior probabilidade de sobreviver, este ser é também objeto de uma seleção natural. Em virtude do princípio tão poderoso da hereditariedade, toda a variedade objeto da seleção tenderá a propagar a sua nova forma modificada.

Nesse resumo, ele coloca os 3 principais componentes necessários para que ocorra seleção natural (que eu gentilmente sublinhei, para seu conforto): variação em uma caracteristica, diferenças de aptidão (ele fala de sobrevivencia, mas sabemos que isso não é a única variável) ligadas a variação nessa característica, e hereditariedade dessa característica.


Note que, se uma população apresenta variação em uma característica, mas essa não apresenta nenhuma ligação com aptidão, então a “seleção” de organismos é completamente aleatória em relação a aquele caractere (não sendo seleção natural). Agora, se o caractere é ligado com aptidão, mas não é herdado, então mesmo que organismos com uma dada característica seja selecionada, ele não vai passar tal característica para a geração seguinte. Esses componentes são
necessários (todos precisam estar presentes) e suficientes (nenhum outro componente precisa estar presente) para que ocorra seleção natural, apesar de outros fatores influenciarem a dinâmica de seleção.

Sendo assim, podemos definir seleção da seguinte forma:

[P1.] Existe variação entre indivíduos para uma dada característica;
[P2.] Tal variação está ligada entre progenitores e prole através de uma relação de herança, e que seja parcialmente independente dos efeitos ambientais;
[P3.] Existe uma correlação dessa característica com a habilidade reprodutiva, fertilidade, fecundidade e/ou sobrevivência (ou seja, diferenças em aptidão);

Se tais condições são satisfeitas para uma dada população natural, então:

[C1.] Diferenças na frequência das características ligadas à aptidão na geração subsequente vai ser diferente daquela vista nas populações parentais.

(Modificado de Lewontin, 1970, 1982; e Endler, 1986)


Se as premissas são corretas, então a conclusão segue logicamente. Isso torna a seleção natural, expressa dessa forma, um silogismo, ou uma conclusão dependente das premissas estabelecidas, e não uma tautologia.


Note que para testar cientificamente (no caso, falsear) a hipótese de que uma população está sob seleção natural, um pesquisador pode testar qualquer uma dessas proposições. Afinal, se C1 é falso, então obviamente a população não está sob seleção, mas isso não implica necessariamente que a população está sendo selecionada: uma mudança ambiental pode estar influenciando aspectos dessas características diretamente nos indivíduos, como pele morena em quem toma muito sol. Se os filhos tomam mais sol, eles terão a pele mais escura, sem que isso seja seleção natural. Por esse motivo, é necessário averiguar o quão herdável é uma característica (P2) e se a variação (P1) está ligada a aptidão (P3). De forma geral, é isso que os estudantes de seleção natural fazem, e é a síntese evolutiva moderna que proporciona o arcabouço matemático que nos permite gerar previsões teóricas de como um dado caractere deve se comportar sob o efeito de seleção (dado que ele é apresenta algum tipo de herança mendeliana).


Então… da próxima vez que alguém dizer que evolução é uma tautologia, você pode dizer: “Não, não é. É um silogismo
Quod erat demonstrandum, bitches!”.

 

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Fábio Machado é Pós-graduando em Biologia Evolutiva, especialista em confundir os outros para parecer mais inteligente. Amante de animais, Apple hipster e cínico. Posição política duvidosa.Visualizar o perfil completo

Evolução (Encyclopedia of Earth)

Existe muito material introdutório de boa qualidade sobre a evolução disponível online, mas o texto que traduzo, que faz parte da Encyclopedia of Earth, tem uma enorme vantagem sobre muitos outros que existem por aí. Ele combina, em um mesmo artigo, muito direto e bem escrito, por sinal), um texto conciso e uma ampla cobertura de tópicos da moderna biologia evolutiva, quando o padrão dos textos introdutórios é o foco limitado em alguns pontos bem específicos, como seleção natural, deixando outros, muito importantes, de fora. O texto a seguir, escrito pelo biólogo John Swaddle e editado por J. Emmet Duffy é uma ótima apresentação aos principais mecanismos investigados pelos biólogos evolutivos e pode ser usado com um material de referência rápida.

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Evolução

Publicado em 21 de março de 2010 às 10:04 pm

Atualizado em 21 de março de às 10:04 pm

Autor principal: John Swaddle

Fonte: Encyclopedia of Earth

Tradução: Rodrigo Véras

Tópico:

Ecologia Biologia Evolutiva

Este artigo foi revisado pelo editor do tópico: J. Emmett Duffy

1 –Introdução
2 –Mecanismos da evolução
2.1 –Seleção
2.1.1 –Seleção sexual
2.2 –Deriva Genética
2.3 –Mutação
2.4 –Fluxo gênico
3 –Limitações na evolução
3.1 –Restrições
3.2 –Não independência das características
4 –Juntando tudo
5 –Evolução em níveis multiplos: da micro a macroevolução

6 –Leitura adicional

Introdução:

A evolução é normalmente definida como uma mudança das frequências alélicas (variantes de genes) na população ao longo do tempo. Em outras palavras, a evolução engloba uma série de mecanismos que levam a alterações na proporção relativa de diferentes tipos de genes contidos em uma população na qual estas alterações persistem de uma geração para a outra. Os principais mecanismos que resultam em tais alterações são a seleção, a deriva genética, a mutação e o fluxo gênico.

É comum o equívoco de pensar que a evolução só ocorre por meio da seleção, mas todos os quatro mecanismos co-ocorrem e a seleção não é necessariamente a força dominante da mudança evolutiva. Como Charles Darwin é considerado o cientista mais proeminente a escrever sobre a evolução por meio da seleção natural, este mecanismo é frequentemente denominado de  ‘Seleção Darwiniana’. Na realidade, muitos cientistas estavam desenvolvendo estas ideias sobre evolução ao mesmo tempo que Darwin e a primeira apresentação formal da evolução por meio da seleção natural foi uma comunicação conjunta, em coautoria, de Alfred Russel Wallace e Charles Darwin. No entanto, é o livro seminal de Darwin intitulado “Sobre a Origem das Espécies por meio da Seleção Natural” que é geralmente citado como a gênese da teoria evolutiva já que contem uma abundância de evidências indicando como a seleção opera e como as espécies descendem de ancestrais comuns.

As teorias de Darwin sobre evolução não tinham qualquer conhecimento da mudança genética e foi apenas com a incorporação do trabalho de Gregor Mendel, sobre a hereditariedade genética das características das ervilhas, no pensamento evolutivo que a nova síntese da teoria da evolução nasceu. Esta nova síntese levou a uma onda de pesquisas entre os anos de 1920 e 1960 que descreveram e formalizaram os mecanismos genéticos da evolução. A teoria da evolução mudou substancialmente desde os primeiros dias de Darwin e Wallace.

Como existem agora dezenas de milhares de estudos científicos que demonstram como a evolução funciona, a sua caracterização como uma “teoria” é um pouco enganadora, e muitos cientistas sentem que o termo teoria diminui o peso esmagador das evidências que apoiam a concepção moderna da evolução e de como ela funciona.

Mecanismos da evolução:

Seleção:

Se variantes gênicas (alelos) particulares conferem vantagens em termos de aptidão, então, estas variantes aumentarão de frequência de uma geração para outra por meio da seleção. Vantagens de aptidão ocorrem quando um indivíduo produz mais descendentes (ou seja, prole) que sobrevivem até a idade reprodutiva do que outros indivíduos na população. Assim, genes de indivíduos produzindo mais descendentes estarão mais representados na próxima geração, levando a uma mudança nas frequências gênicas como um todo em favor daqueles alelos selecionados. Fundamental para este processo é a presença de variabilidade herdável (i.e. pelo menos parcialmente determinada geneticamente) na população.

A seleção, geralmente, age do meio ambiente, através dos fenótipos (as manifestações físicas dos genes subjacentes), em direção aos genótipos (a constituição genética dos indivíduos) (Figura 1). Sendo assim, compreender como o fenótipo relaciona-se ao genótipo (i.e. compreender os processos desenvolvimentais e genéticos) é a chave para a compreensão de como a seleção opera em qualquer população.

A seleção pode ser visualizada por meio da relação entre os valores de uma característica geneticamente herdável (uma característica dos indivíduos em uma população, por exemplo, como o tamanho corporal) e uma medida da aptidão (Figura 2). Estes genes que codificam a característica com maior valor de aptidão irão aumentar de frequência na população de uma geração para outra. Apesar de ser tentador ver esta relação entre as características herdáveis e da aptidão como sendo linear (Figura 3a) de fato, esta relação é muito frequentemente não linear e comumente mostra uma distribuição na forma de corcova (figura 3b).

Se a aptidão aumenta proporcionalmente ao tamanho da característica herdável, a característica é descrita como experimentando seleção direcional. Na figura 3a, esta característica está sobre seleção natural direcional positiva. Caso a inclinação da linha fosse negativa (i.e. tamanhos menores conferindo uma vantagem na aptidão) então a característica estaria sob seleção direcional positiva negativa. Neste exemplos, a inclinação da linha é a medida da força da seleção, com inclinações maiores indicando seleção mais forte. Caso a inclinação seja zero (i.e. um alinha reta) então não há seleção e a característica fenotípica é tida como apresentando variação neutra (Figura 2).

Como descrito acima, sob seleção direcional os valores médios das características herdáveis irão mudar ao longo das gerações, deslocando-se tanto na direção positiva ou negativa coincidindo com a direção da pressão de seleção (painéis inferiores da Figura 3a). Este não é o caso da evolução sob seleção estabilizadora, onde o valor médio da característica confere uma vantagem na aptidão (Figura 3b). Nesta situação, a população vai convergir para valores mais próximos aos da média da população nas gerações subsequentes. Assim, o valor médio da característica hereditária, da população, não irá mudar ao longo do tempo, mas a variância (uma medida da dispersão relativa dos valores de características em torno da média populacional) diminuirá (painéis inferiores da Figura 3b). Este resultado é importante por duas razões. Primeiro, demonstra que a evolução não necessariamente leva a mudanças nos valores médios das características ao longo do tempo – os caracteres não precisam ficar menores ou maiores ao longo do tempo quando estando sob seleção. Em segundo lugar, a seleção estabilizadora, explicitamente, corrói a variação genética da população, a variância na característica hereditária torna-se cada vez menor ao longo do tempo. Como variação genética é uma necessidade para a seleção operar (imagine alterar as Figuras 2 e 3 de modo que todos os indivíduos tenham o mesmo valor das característica não havendo como a seleção operar), a seleção estabilizadora pode influenciar bastante a capacidade de mudança evolutiva futura.

A seleção estabilizadora é uma ocorrência comum na natureza. A seleção disruptiva (Figura 3c) é mais rara. Sob seleção disruptiva, os dois limites extremos dos valores das características conferem vantagens na aptidão. Assim, a população tende a dividir-se ao longo do tempo, com os dois grupos de indivíduos emergentes, um com os menores valores das características e um outro com os maiores valores das características. Se seleção disruptiva persiste durante tempo suficiente, haverá muito poucos indivíduos com os valores médios das características e a distribuição de frequência da população se torna bimodal, o que resulta em duas sub-populações. Portanto, a seleção disruptiva é importante para processos de especiação, pois ela pode separar subgrupos dentro de uma população.

Seleção Sexual:

Muitos biólogos evolutivos incluiriam o acasalamento preferencial (ou seja, o acasalamento não aleatório, o que indica, muitas vezes, que machos e fêmeas estão escolhendo e/ou ativamente competindo por seus companheiros) como um mecanismo de evolução, mas esse processo afeta evolução apenas quando o acasalamento leva a diferenças na aptidão. Ou seja, quando há seleção para o sucesso do acasalamento diferencial um subconjunto de seleção natural denominado seleção sexual. A seleção sexual, muitas vezes opera por que um sexo (por exemplo, o sexo feminino) escolhe seletivamente acasalar com um determinado tipo de macho – portanto, a aptidão desses tipos de machos aumentam. Ou quando machos (ou fêmeas) competem uns com os outros para obter acesso ao sexo oposto. De qualquer forma, pode haver características particulares nos machos e fêmeas que os tornam mais atraentes como companheiros ou mais competitivos no acesso aos parceiros. Tais características são referidas como estando sob seleção sexual. Exemplos famosos de características sexualmente selecionadas são as elaboradas caudas dos pavões ou os enormes chifres dos veados. Tais características podem aumentar substancialmente o sucesso de acasalamento, mas elas, ao mesmo tempo, podem também diminuir alguns outros aspectos da aptidão, como a habilidade de fugir de predadores. Portanto, a seleção sexual é muitas vezes vista como estando em conflito com outros componentes da seleção natural.

Deriva Genética:

A deriva genética refere-se a um conjunto aleatório (ou estocástico) de processos envolvidos na produção da próxima geração de indivíduos. Tais processos podem ocorrer ao nível genético, por exemplo, como a possibilidade (basicamente) aleatória de algum das cópias dos alelos  chegarem até células germinativas (espermatozoides e óvulos) através da divisão meiótica reducional. Em muitos organismos de reprodução sexuada, as células contêm duas cópias de cada alelo (diploides) de cada locus porque possuem  cromossomos aos pares. Mas, como a próxima geração é formada pela fusão de um espermatozoide do pai e um óvulo da mãe, as células germinativas passam por um processo aleatório de redução pela metade destes pares de cromossomos (isto é, apenas uma cópia de cada cromossomo chega ao espermatozoide ou óvulo) para que eles possam fundir-se para formar um zigoto (um viável da nova geração) que tem o mesmo número de cromossomos que os adultos. Durante esta divisão meiótica reducional, é praticamente equiprovável qual cópia dos alelos acabará no espermatozoide ou óvulos. Isto significa que o espermatozoide e os óvulos de um mesmo indivíduo raramente são geneticamente idênticos, e é por isso que irmãos são diferentes uns dos outros, apesar de terem os mesmos pais. O embaralhamento meiótico dos genes muda as frequências dos genes de uma geração para outra de forma aleatória alguns alelos têm sorte o suficiente e ‘chegam’ aos espermatozoides que fertilizam o óvulo, enquanto outros alelos são azarados e se ‘perdem’.

Uma analogia útil para este processo de deriva genética é o jogo de cara ou coroa. Cada arremesso da moeda determina qual dos dois alelos de um locus chega a próxima geração. Imagine que a população inicia com 10 indivíduos, o que significaria jogar 10 vezes separadas a moeda. Na primeira vez que você faz isso, você pode obter 6 caras e 4 coroas (ou algo diferente). Em termos de frequências alélicas, isso significa uma frequência alélica de caras de 0,6 (6 em 10). Na segunda vez que você faz isso com a mesma moderna (isto é, do mesmo ponto de início), você provavelmente vai obter uma outra razão entre caras e coroas. Por exemplo, 3 caras e 7 coroas, que traduziríamos como uma frequência alélica de caras de 0,3 (3 em 10). Como você pode ver, as frequências alélicas podem mudar substancialmente em virtude do puro acaso.

A figura 4 mostra algumas alterações típicas nas frequências alélicas sob deriva genética (para um locus com dois alelos) onde gerações são rastreadas no eixo horizontal e a frequência alélica (variando de 0 a 1) no eixo vertical. Se a frequência do alelo chega a zero, ele é perdido para sempre. Em cada gráfico, cinco populações foram simuladas, com cada população independente indicada por linhas de cores diferentes. A deriva genética é caracterizada por um passeio aleatório de frequências dos alelos ao longo de gerações. Em tamanhos de população pequenos (equivalente ao lançamento de uma moeda um pequeno número de vezes), há oscilações maiores na frequências dos alelos porque não é tão improvável obtercara’ todas as vezes (ou seja, obter uma frequência de alelos igual a 1) se você jogar uma moeda só três vezes (i.e, uma população de tamanho 3).

Um exemplo de deriva em uma pequena população (com 10 indivíduos) está representado na Figura 4a. Perceba que existem vários incidentes em que um dos alelos é perdido devido a eventos casuais. No entanto, em geral, em populações de tamanhos maiores a deriva tem menos efeito e as oscilações nas frequências dos alelos são muito menores. Para seguir com a analogia, caso você jogasse a mesma moeda milhares de vezes as chances de todas darem cara seriam muito remotas. Assim, a deriva genética pode ser uma força evolutiva muito influente em populações de tamanho pequeno. Um exemplo de deriva de uma grande população está descrito na Figura 4b. Podemos perceber que existe uma probabilidade muito menor de um alelo ser perdido sob deriva em populações de tamanhos maioress.


A deriva também pode ter uma grande influência sobre a frequência de alelos ao longo de períodos de tempo mais extensos. No contexto da nossa analogia do jogo de cara ou coroa, se você continuar jogando uma moeda de novo e de novo, eventualmente, você vai ter um longo período obtendo ‘caras’, o que iria mudar substancialmente as frequências alélicas. Exemplos de padrões de deriva ao longo de períodos prolongados de tempo são dados na Figura 4c. Note que os alelos podem ser perdidos por acaso ao longo de períodos de tempo maiores, mesmo se a população for grande.


No geral, pequenas populações fragmentadas, são sensíveis à deriva. Da mesma forma, a evolução no decorrer de longos períodos de tempo (por exemplo, como estudado no registro fóssil) também será normalmente influenciada por processos de deriva.

A deriva não está limitada a processos genéticos – quais indivíduos conseguem acasalar para formar a próxima geração de uma população também podem ser bem aleatório. Por exemplo, imagine uma população em uma ilha onde ocorre um terrível incêndio que varre 90% dos indivíduos. Quais indivíduos sobrevivem pode ser determinado de forma completamente aleatória, mas se os 10% remanescentes não são complemente representativos dos 100% da população original, a frequência dos alelos mudará na próxima geração por causa do gargalo de garrafa aleatório pelo qual a população acabara de passar. Estes gargalos de garrafa populacionais são muito importantes de serem considerados em espécies ameaçadas, uma vez que o gargalo geralmente reduz drasticamente a variabilidade genética da espécie, o que restrige como as espécies evoluem e podem responder a outras mudanças ambientais. Por exemplo, guepardos passaram por um gargalo de garrafa tão severo que os cientistas estimam que todos os guepardos sobreviventes espalhados pelo mundo são mais aparentados geneticamente entre si do que irmãos seriam em uma população normal. Como você pode imaginar, isso cria problemas terríveis de consanguinidade e de doenças genéticas raras. Estes problemas são resultado, em grande parte, do processo evolutivo de deriva genética.

Um processo semelhante ao de deriva ao nível individual ocorre quando as novas populações fundadoras são formadas – isso é chamado de “efeito fundador”. Os indivíduos que irão formar uma nova população isolada a partir do grupo original podem ser aleatoriamente diferentes dos do grupo maior. Isto tem sido observado várias vezes em ecologia e foi famosamente documentado em populações humanas. Por exemplo, as populações Amish fundadoras, na América do Norte, não possuem alelos nas mesmas frequências que a população que deixaram para trás na Europa e da qual, por acaso, levaram algumas doenças genéticas raras que ainda são mais predominantes, presentes em frequências dramaticamente mais elevadas, na Pensilvânia do que em outras partes do mundo. Então, porque um pequeno número de indivíduos fundou essas populações a força evolutiva da deriva criou problemas de saúde substanciais em seres humanos modernos.

Mutação:


A variação genética é o combustível para a evolução. Sem variação genética não haverá alteração nas frequências alélicas, já que não haveria nada para mudar. Uma das maneiras principais pelas quais a variação genética é introduzida e mantida em populações é por meio das mutações. Este é um termo genérico que se refere a mudanças hereditárias na informação genética, onde essas mudanças podem acontecer em pequena na escala dos nucleotídeos únicos (ou seja, dos pares de bases componentes no DNA) até a reestruturação em grande escala, perda e ganho de cromossomos inteiros (grandes filamentos de DNA empacotados que contem informação genética).

A mutação, geralmente, acontece como um erro durante o processo de replicação do DNA da célula e dos mecanismos de reparo e, embora a  palavra ‘mutação’ tenha conotações negativas no cotidiano da sociedade, todos carregamos milhões de mutações que são o produto de mutações anteriores. Se as mutações são muito graves, muitas vezes, as células não funcionam adequadamente. Mas se as mutações têm pouco efeito (ou são neutras)  podem facilmente persistir.

De uma perspectiva evolutiva, as mutações mais importantes são aquelas que ocorrem nas células que produzem os gametas (ou seja, espermatozoide e óvulos). Uma vez que são essas células gamética que passam a informação genética para a próxima geração – causando, portanto, as alterações na informação genética caso a mutação seja passada dos pais para os filhos. Assim, uma mutação em uma célula gamética, que forma um zigoto viável, provoca uma mudança evolutiva, já que as frequências alélicas terão mudado em relação a geração parental.

Muitas mutações são neutras (ou seja, não influenciam a aptidão dos indivíduos portadores de mutação), mas algumas vão provocar uma mudança dramática na aptidão. Na maioria das vezes esta mudança resultará em um declínio na aptidão, mas, eventualmente, uma mutação poderá provocar um aumento na aptidão. É importante lembrar que a consequência funcional da mutação não é uma indicação da evolução em si – evolução exige apenas uma mudança hereditária nos genes, o que pode ser produzido tanto por mutações neutras, como por aquelas que aprimorem a funcionalidade, que ocorrem em células gaméticas viáveis.

Fluxo gênico:

Frequentemente o mais negligenciado, mas de certa forma o mais simples, mecanismo da evolução é o fluxo gênico. Este é um termo geral que se refere ao movimento dos genes de uma população para outra. Na maioria dos casos práticos, isso equivale ao movimento de indivíduos de uma população para outra, com os migrantes acasalando com indivíduos em sua nova localidade. A introdução de novas combinações alélicas por meio da prole de tais acasalamentos resulta em uma mudança genética.

Os biólogos evolutivos geralmente pressupõe que um alto grau de fluxo gênico entre as populações tende a ser uma força de homogeneização. Em outras palavras, se os genes e os indivíduos estão constantemente misturando-se através das fronteiras das populações, então, as populações tendem a ficar mais e mais geneticamente semelhantes ao longo do tempo. Como uma analogia, imagine separar um baralho de cartas em montes de seus respectivos naipes e manter essas “populações” de copas, paus, ouro e espada separadas umas das outras. Agora permitimos algum “fluxo gênico”, o que significaria trocar cartas entre as pilhas. Isto muda a relação entre os naipes uns com os outros (isto é, está ocorrendo evolução). Agora, caso você pegue todos as cartas, embaralhando-as por completo e depois coloque-as de volta em quatro pilhas, você terá simulado uma quantidade máxima de fluxo gênico, e as maiores chances são de que você tenha obtido uma bela e uniforme mistura de cada naipe em cada uma das pilhas. Assim, o fluxo gênico aumentado homogeneizou as populações.

A analogia prévia funcionou porque os indivíduos estavam se movendo (genes estavam fluindo) aleatoriamente de uma população para outra. No entanto, se o fluxo de genes é diecionado ou não aleatório, este mecanismo pode ser uma força que resulta em diferenças cada vez maiores entre as populações. Um exemplo disso vem dos chapins-reais (pequenas aves europeias) em Whytham Woods, perto da Universidade de Oxford. , as aves deixam seus locais de nascimento e se estabelecem em diferentes partes da floresta de acordo com o seu tamanho corporal – com as aves maiores movendo-se para um lado e as aves menores movendo-se para outro. Assim, neste exemplo, o fluxo de genes não é aleatória e está provocando uma forma de evolução direcional.

Limitações na evolução:

Embora esta não se destine a ser uma lista exaustiva dos vários fatores que limitam como a evolução ocorre, destacamos duas grandes categorias que comumente afetam a forma como as populações podem evoluir.

Restrições:


Todas as forças
evolutivas agem sob restrições. Não temos a intenção de listar todas as possíveis restrições em detalhes aqui, mas, sim, apontar para algumas das principais restrições que qualquer estudante de evolução deve ter em mente quando interpretam as informações evolutivas.

A variação genética inerente da geração parental restringe as possíveis combinações de alelos que podem ser observados na descendência (somando-se a ela a variação adicional da mutação). Assim, a variabilidade genética é uma restrição grande em como a evolução procede. Não importa o quão forte seja a pressão de seleção, você não será capaz de selecionar cavalos nos quais cresçam asas, já que os cavalos modernos simplesmente não possuem a variação genética para o crescimento de asas. Os biólogos evolutivos muitas vezes referem-se também a restrições filogenéticas – a história evolutiva dos ancestrais comuns, refletidas no DNA, limita as formas com que o genoma pode mudar no futuro.


Outra restrição comum é o padrão geral dos
processos de desenvolvimento e os estágios pelos quais os indivíduos têm de passar. Por exemplo, as rãs são obrigadas a passar por uma fase de girino e não podem pulá-la. Apenas uma alteração nos genes reguladores do desenvolvimento poderia alterar tal sequência de desenvolvimento.


O tempo é também uma limitação considerável sobre
como a evolução procede. Como a evolução é definida como mudança nas frequências alélicas herdadas ao longo do tempo, caso não se passe tempo suficiente, a evolução não pode acontecer. O tempo evolutivo é frequentemente medido em termos de gerações, de modo que “tempo” na evolução bacteriana vai passar a um ritmo muito mais rápido do que o “tempo” de evolução dos elefantes.

As propriedades físicas também restringem a evolução. Por exemplo, os muito temidos insetos gigantes dos clássicos filmes B não podem evoluir por causa das maneiras através das quais os insetos respiram e por causa das relações físicas entre a área de superfície e o tamanho corporal. Insetos obtêm oxigênio através de pequenos orifícios na superfície de suas cutículas – esses buracos são chamados espiráculos. O tamanho desses espiráculos aumenta com a área de superfície do insetos e, consequentemente, aumentam em duas dimensões, comprimento e largura. No entanto, o tamanho do corpo do inseto aumenta em três dimensões (comprimento, largura e altura), portanto, o tamanho do corpo aumenta mais rapidamente do que a área dos espiráculos quando os insetos ficam maiores e maiores. Em outras palavras, os insetos maiores possuem uma área de superfície menor em relação ao tamanho do corpo do que os insetos menores. As propriedades físicas de como os insetos respiram fazem com que os insetos tenham um limite superior de quão grandes eles podem tornar-se, uma vez que se eles chegassem a tamanhos muito grandes poderiam sufocar já que não poderiam receber oxigênio suficiente através de seus espiráculos de modo a suprir sua massa corporal crescente. No mundo natural, as restrições físicas comumente limitam com a evolução pode prosseguir.

Não independência das características:

Os genes, e suas variedades alélicas, não são geralmente independentes uns dos outros. Por exemplo, os genes localizados fisicamente uns ao lado dos outros em um mesmo cromossomo são fisicamente ligados e, muitas vezes, são herdados juntos dos pais para filhos. Se um desses genes é altamente benéfico enquanto o outro é levemente nocivo (prejudicial), o gene desvantajoso pode pegar “carona” com o seu parceiro e aumentar de frequência, mesmo que também leve a um aumento de frequência de um carácter mal adaptativo.

Um fenômeno semelhante pode ocorrer ao nível fenotípico através de uma propriedade genética conhecida como pleiotropia. A pleiotropia é quando um único gene (ou complexo de genes) influencia a expressão de múltiplas características fenotípicas. A pleiotropia é bastante comum e resulta em características fenotípicas correlacionadas entre si por meio de mecanismos genéticos comuns. Desta maneira, caso uma característica seja altamente adaptável, mas uma outra característica ‘pleiotropicamente’ ligada seja ligeiramente prejudicial, a característica desvantajosa pode ser selecionada devido à sua associação pleiotrópica com a característicamais vantajosa. Mais uma vez, os estados mal adaptativos podem evoluir por causa desta forma de correlação entre caracteres.

Características podem também estar ligadas umas as outras por meio de trade-offs na alocação de energia e de recursos. Por exemplo, um organismo em crescimento, com um ‘orçamento’ fixo de energia baseado no que ele come, pode alocar esta energia para várias características e comportamentos, que irão pesar uns contra os outros por causa da limitação de recursos. Um organismo poderia investir mais em atividades reprodutivas, ou mais em crescimento, mas não pode maximizar tudo ao mesmo tempo. Desta maneira, evolução de características da história de vida (que muitas vezes estão intimamente associado com a aptidão) é limitada por causa dos trade-offs.

Juntando tudo:

Embora este esquema seja uma simplificação de um processo muito complexo e dinâmico, a figura 5 resume os principais processos envolvidos na evolução das populações. Uma força evolutiva opera sobre a variação genética na população, trazendo uma mudança hereditária na próxima geração, com a força evolutiva trabalhando dentro de limitações. Como a evolução é iterativa, este processo repete-se constantemente, provocando outras mudanças nas futuras gerações dependendo do balanço das forças evolutivas.

Evolução em múltiplos níveis: da micro à macroevolução

A maioria das descrições até agora têm se concentrado na evolução ao nível individual, com uma população sendo definida como um grupo de indivíduos. No entanto, para que a evolução ocorra não precisamos limitarmo-nos ao nível de pensamento individual. Desde que a característica que nos interessa (a partir de uma perspectiva evolutiva) seja hereditária (isto é passe de uma geração para outra) e variável (ou seja, hajam diferentes versões dessa característica), então a evolução poderá ocorrer. Desta forma, a evolução poderia acontecer ao nível do gene, já que um cromossomo pode ser visto como uma população de genes. Este pensamento ao nível gênico (reducionista) foi popularizado por Richard Dawkins em 1970 e persiste na maior parte da pesquisa sobre evolução molecular.

De modo similar, um grupo de indivíduos pode ser encarado como uma entidade única (imaginemos uma cultura de bactérias que crescem sobre uma fatia de pão) e esse grupo pode ter uma propriedade que não pode ser melhor descrita a um nível inferior (por exemplo, individual). A densidade populacional é uma característica do grupo, já que é uma propriedade de vários indivíduos. Assim, desde que a densidade seja de alguma forma herdável – significando que os grupos com altas densidades tendam a dar origem a outros grupos com alta densidade – então, essa característica grupal também pode evoluir. Se a densidade estiver relacionada com uma medida da aptidão do grupo (isto é, a taxa à qual um grupo dá origem a um outro grupo), então, a densidade pode estar sob seleção de grupo. A seleção de grupo é muitas vezes, incorretamente, definida (especialmente nas ciências sociais), como indivíduos que agem para o bem do grupo, mas esta não é uma definição precisa evolutivo de seleção de grupo.

Como afirmado duas vezes, a variação é a chave para que haja evolução, e ao subirmos na escada organizacional da biologia, dos genes aos grupos e às espécies, tende-se a perder a variação entre as entidades. Por exemplo, se você olhar para a variação de altura entre as pessoas dentro de um grupo (talvez na disciplina que você está cursando ou no time em que você joga), você vai encontrar alguma variação. Mas se você tomar a altura média de seu grupo e compará-la com a altura média de outros grupos (talvez outras classes ou outros times), você vai encontrar variação muito menor. Então, se a variação tende a ficar menor na medida que ascende na escala da organização biológica, a evolução tende a ser mais lenta e as forças evolutivas tendem a ser mais fracas nesses níveis mais elevados. Isso geralmente significa que processos ao nível do indivíduo e dos genes dominam em períodos mais curtos de tempo, mas também implica que a evolução ao longo de períodos de tempo mais extensos (por exemplo, a evolução no registro fóssil) deve ser, relativamente, mais influenciada por processos evolutivos ao nível dos grupos e espécies.

O estudo geral da evolução nos níveis das espécies (ou superiores) é denominado de macroevolução e muitas vezes requer longos períodos (geracionais) de tempo para percebermos qualquer alteração. Os mecanismos fundamentais que temos discutido ao nível da população e abaixo dele (i.e. microevolução, por exemplo) ainda se aplicam aos níveis macroevolutivos mas pode funcionar de maneiras diferentes por causa das diferenças na forma como as características macroevolutivas são herdadas, produzidas e definidas.

Leitura Adicional:

Citação:

John Swaddle (Lead Author); J. Emmett Duffy (Topic Editor) “Evolution”. In: Encyclopedia of Earth. Eds. Cutler J. Cleveland (Washington, D.C.: Environmental Information Coalition, National Council for Science and the Environment). [First published in the Encyclopedia of Earth March 21, 2010; Last revised Date March 21, 2010; Retrieved March 31, 2013 <http://www.eoearth.org/article/Evolution>

O autor:

John Swaddle é professor associado de biologia e diretor do programa Ciências e Políticas ambientais no College of William and Mary, em Williamsburg, Virginia. A pesquisa do professor Swaddle enfatiza a ecologia comportamental e evolução, focando em como alterações antropogênicas influenciam a ecologia e a evolução de populações de aves. Seu trabalho tem englobado desde estudos na mecânica de vôo das aves e o risco de predação até a investigação de como a comunicação animal é afetada pela degradação ambiental. (Full Bio)

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O texto foi traduzido e postado seguindo a licença creative commons, portanto, nossa tradução não implica qualquer apoio ao evolucionismo.org que o publicou em protuguês por parte da EoE – embora, esta tradução tenha sido feita com conhecimento e consenimento do autor e do editor do texto. Esta tradução também encontra-se sob a mesma licença de uso. Então, se quiser usá-la, dê os devidos créditos e siga a mesma licença.

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N.T. Gostaria de fazer apenas alguns esclarecimentos. O autor usa a expressão ‘seleção direcional negativa‘ para se referir ao tipo de seleção em que os organismos favorecidos possuem valores das características fenotípicas menores. Porém, isso pode ser um pouco confuso por que a expressão ‘seleção negativa‘ é empregada com outro sentido que também é capturado pela expressão ‘seleção purifcadora‘ a forma mais comum de seleção natural com relação aos efeitos da aptidão de mudanças ao nível molecular. Diferente do referido no texto, a seleção negativa (ou purificadora) ocorre quando mutações que ocorram sobre os nucleotídeos que alteram os aminoácidos codificados e portanto a função da proteína codificada por aquele gene. Este tipo de seleção, portanto, purga a variação desvantajosa que diminui a aptidão em relação a aptidão normal da versão selvagem do gene. O tipo de seleção direcional ‘negativo’ descrito no texto, do ponto de vista, da evolução molecular seria melhor descrito também como uma forma de seleção positiva, já que modificações nos genes que causem uma determinada mudança de função (diminuam o tamanho do organismo) tendem a ser favorecidos, conferindo uma maior aptidão que a versão selvagem do gene. Esta explicação não é por que a expressão empregada por Swaddle está errada, mas por que uma expressão muito semelhante é usada de maneira bem distinta em estudos de evolução molecular e o leitor deve estar atento para isso.

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Referências adicionais em português:

  • Futuyma, D.J. 2009. 3ª Edição. Biologia Evolutiva. Funpec. Ribeirão Preto. 830 pg

  • Griffhs, Antony J. F. et al. Introdução à genética. 9. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2009, 740 pg

  • Hartl, D. Princípios de Genética de Populações 3ª Edição Ribeirão Preto:Funpec, 2008. 217 pg

  • Lewin, R. Evolução humana. São Paulo: Atheneu, 1999. 526 pg.

  • Meyer, Diogo; El-Hani, Charbel Nino. Evolução: o sentido da biologia. 1ª edição São Paulo: Unesp, 2005. 136 p.

  • Ridley, Mark. Evolução 3ª edição Porto Alegre: Artmed, 2006. 752 p.

  • Williams, George C. O brilho do peixe-pónei: E outras pistas sobre o plano e a finalidade na natureza, Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 168 p.

  • Zimmer, Carl. O livro de ouro da Evolução. 1ª edição Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. 600 p.

Afinal, viemos ou não viemos dos macacos? Três respostas possíveis.

A pergunta que empresta o título a este post é uma das questões que frequentemente aparecem quando se está envolvido com divulgação científica sobre evolução. Esta interrogação é tanto uma questão honesta proveniente de pessoas que estão sinceramente tentando compreender qual nossa relação com os macacos, como é uma típica pergunta viciada, usada por criacionista como preludio para uma outra questão realmemte absurda, Se viemos dos macacos por que ainda existem macacos que trai a profunda ignorância dos mesmos sobre evolução e mesmo sobre relações genealógicas.

Neste pequeno ensaio vou defender que existem pelo menos três respostas adequadas a esta primeira questão e que cada resposta pode ser usada dependendo da exata intenção por trás da pergunta e do tipo de dúvida associada a ela, às vezes, mesmo sendo necessárias as três respostas:

1) “Não!”

A primeira resposta é um sonoro “Não!”. Nós não viemos de nenhum macaco moderno. Nós não somos descendentes dos chimpanzés, nem dos gorilas, nem dos orangotangos e nem de qualquer outras espécies de macaco que tenham coexistido com nossa espécie e nossos ancestrais mais diretos nos últimos milhões de anos. Os macacos, como nós seres humanos, são primatas simiiformes (antropoides) que se originaram nos últimos 40 ou 50 milhões de anos e portanto são nossos parentes. Então, da mesma forma que não somos descendentes de nossos irmãos, mas compartilhamos com eles ancestrais comuns (nossos pais) e não somos descendentes de nossos primos irmãs, como os quais compartilhamos um par de avós, nós e dos diversos macacos somos por assim dizer primos de uma perspectiva evolutiva. No caso nossos parentes vivos mais próximos são as espécies do gênero Pan, chimpanzés e bonobos com as quais compartilhamos um ancestral comum como o ancestral comum (uma população ancestral, na verdade) de ambas que deve ter vivido por volta de 5 ou 7 milhões de anos atrás.

Esta resposta negativa é importante por que refuta a ideia simplista de que seríamos descendentes diretos de alguma espécie de macaco moderna e que os demais macacos não teriam evoluído, o que é falso [veja “Entendendo a filogenia Parte 1 e2“]. No processo de divergência de populações ancestrais ambas as linhagens derivadas continuam evoluindo, mas o fazem de maneira diferente de acordo com o histórico de mutações, estruturação da população e mudanças demográficas e pressões ecológicas particulares que as diversas populações de cada linhagem emergente passaram. Porém, esta resposta deixa uma dúvida que é a seguinte:

Tudo bem, nós não somos descendentes de macacos modernos, mas se chimpanzés e bonobos são macacos, o ancestral que compartilhamos com eles também não seria um macaco?

Isso nos leva a segunda resposta possível:

2) “Sim!”

Nós, seres humanos, descendentes sim de macacos. Embora realmente não descendamos de macacos modernos, os nossos ancestrais comuns com estes macacos eram, sim, tipos de macacos. Esta resposta é importante por que nos aproxima da questão primordial da evolução humana. Nós somos animais. Não somos criações em separado e sem relações de parentesco como os demais seres vivos. Somos produtos da evolução e, portanto, somos formas descendentes de espécies ancestrais que em muitos aspectos tinham várias características que consideramos primitivas (no sentido de serem a forma mais antiga) e que não mais estão presentes em nossa espécie que possui versões mais derivadas, ou seja, originadas das versões mais antigas, de muitas destas características

Ao nos compararmos aos demais macacos, especialmente as espécies hominoideas mais próximas a nos, como chimpanzés, gorilas, e orangotangos, notamos que divergimos deles em vários aspectos, como em relação a nossa cobertura de pelos, a forma de nossos crânios e de nossas proporções craniomandibulares, também com relação a nossa postura e proporção entre os membros, além de sermos bem diferentes com relação aoss detalhes de nossas cinturas escapulares e pélvicas e de nossas mãos. Isso sem esquecer do nosso comportamento e de nossas habilidades cognitivas. Porém, cada uma dessas espécies é também bem diferente uma da outra, ainda que compartilhem algumas destas características superficiais que fazem parte do esteriótipo que atribuímos aos macacos e que nós não compartilhamos, pelo menos, não de maneira tão intensa. Contudo, por meio de um exame mais detalhado, especialmente de nossos genes e genomas, notamos que as nossas similaridades com os chimpanzés (Pan troglodytes) e bonobos (Pan paniscus),  e deles conosco,  são maiores do que as nossas similaridades com qualquer outro macaco [Ao lado cariótipos humano e do chimpanzé çado a lado].

Esta segunda resposta  – que sem dúvida deve ser qualificada com a primeira resposta,  esclarecendo que os macacos dos quais descendemos são também ancestrais dos macacos com os quais coexistimos e dos quais somos, por assim dizer, ‘primos’ – é uma forma de começar a atacar o preconceito contra nossas raízes animais que faz tanta gente rejeitar a evolução. Porém, ela nos leva a outra questão que está por trás de boa parte da confusão terminológica que cerca estas questão:

Mas, afinal de contas, o que é um macaco?

Antes de responder esta pergunta é importante ressaltar que ‘macaco’ é um termo popular e não um ttermo científico, tendo suas origens em um período pré-Darwiniano e por isso não reflete o que sabemos sobre evolução, com o que temos descoberto sobre estrutura de parentesco entre os diversos grupos de seres vivos. O termo é normalmente usado para designar parte dos primatas mebros da infraordem simiiforme ou antropoidea. Esta infraordem inclui, além dos macacos vivos e extintos, nós os seres humanos, outros representantes do nosso gênero Homo já extintos (bem como de outros gêneros estreitamente relacionados a nossa linhagem, como o Australopthecus e o Ardipithecus, entre outros, já extintos), mas não primatas, tradicionalmente, agrupados no grupo dos ‘prossímios’, como lêmures e tarsos*.

Os problemas começam para a moderna sistemática filogenética (ou ‘cladística‘) por que os grupos taxonômicos devem refletir as relações de parentesco evolutivo entre os seres vivos, e não apenas nossas impressões superficiais sobre os mesmos. Portanto, devemos usar métodos específicos de inferência filogenética capazes de reconstruir tais relações e usá-los para agrupar os diversos seres vivos. Além disso, os clados devem ser monofiléticos, isto é, devem conter o ancestral comum e todos os descendentes dele, ninguém mais e ninguém menos.

A sistemática filogenética é uma abordagem de classificação que possui um método bem particular de inferir relações filogenéticas, ou seja, de inferir a estrutura de parentesco entre os seres vivos. Este método foi originalmente proposta pelo entomólogo alemão Willi Hennig e é atpé hoje extremamente influente, com seus princípios sendo amplamente aceitos entre os biólogos,  influenciando mesmo os demais métodos e estratégias de inferência filogenética surgidas desde então que usam critérios de escolha entre as árvores distintos, do critério de parcimônia proposto por Hennig.

De acordo com a cladística, o resultado de seu método, um diagrama em forma de árvore chamado de cladograma, é uma hipótese sobre o relacionamento evolutivo dos grupos analisados e pode ser testado com bases em novos dados. Este método baseia-se na ideia de que os membros de um grupo compartilham uma história evolutiva comum, estando mais “intimamente relacionados” entre si do que os membros de outros organismos. Devido a esta história filogenética comum mais íntima, tais grupos podem ser reconhecidos através do compartilhamento de certas características únicas distintivas ditas derivadas, ou seja, que não estão, portanto, presentes em seus ancestrais mais distantes, originando-se das características ancestrais, primitivas, que estavam presentes nestes ancestrais mais distantes. Estas semelhanças entre características compartilhadas derivadas  são chamadas de sinapomorfias e sua identificação constitui a base do método cladístico que permite o agrupamento dos seres vivos em grupos ditos monofiléticos [Veja “Journey into Phylogenetic Systematics“].

O ponto que deve ser enfatizado e que não é suficiente que organismos compartilhem características em sentido geral. É perfeitamente possível que dois organismos compartilhem um grande número de características e mesmo assim não sejam considerados membros de um mesmo grupo por não serem proximamente aparentados. Pense, por exemplo, em tubarões, golfinhos e ictiossauro, todos animais aquáticos como morfologias semelhantes, mas de grupos bastante distintos, o primeiro um condrictio, o segundo um mamífero e o terceiro um arcossauro. Por isso os sistematas modernos insistem não apenas a presença de características comuns, que é importante, mas na presença de características comuns derivadas [Veja “Journey into Phylogenetic Systematics” e para saber mais detalhes sobre como é a metodologia cladistica veja “Methodology of a Cladistic Analysis”  e o livro de Amorim, 2002]

Como vemos na figura acima e a direita, os cladogramas são formado por vários linhas (os ramos) que podem ser encarados com linhagens de ancestrais e descendentes diretos de organismos, os pontos de convergência das linhas (os nós internos e a raíz), que representam os ancestrais comuns entre pares de linhagens e as linhagens derivadas dessas linhagens, e, por fim, nos extremos das linhas, os nós terminais, que ilustram as espécies de interesse.

Ao observarmos os cladogramas abaixo é possível constrastar os clados monofiléticos com os agrupamentos parafiléticos e polifiléticos, ambos não considerados adequados pois não refletem adequadamente o padrão genealógico dos grupos de seres vivos [Para saber mais veja “Construindo a Árvore” e “Homologias e Analogias“, “Usando a árvore para classificação“, além de “Árvores, não escadas“].

No diagrama cladistico acima que ilustra a estrutura de parentesco ente as espécies A, B, C, D, E e F podemos ver em azul os clados, isto é, agrupamentos monofiléticos, de espécies que incluem o ancestral comum, representados pelos nós internos e a raíz que é o ancestral comum a todas as espécies representadas. Este dendrograma nos mostra que as espécies B e C são um grupo monofilético, assim como as espécies D e F. Da mesma forma, também são grupos monofiléticos, os grupos formados pela espécie A o grupo formado pelas espécies B e C cujo ancestral comum compartilha um ancestral comum com A. O mesmo ocorre com o grupo formado pelas espécies D e E e a espécie F, já que a espécie F compartilha um ancestral comum com a ancestral de D e E. Por fim, todos os grupos compartilham um ancestral comum que é denotado pela raíz. Agota, veja a próxima figura:

Acima podemos ver representado um grupo polifilético, ou seja, formado por espécies que não compartilham ancestrais comuns próximos, mas apenas o mesmo ancestral que compartilham com todas as outras. Este tipo de agrupamento é análogo ao grupo ‘homeotermea’ que foi proposto (e  jamais amplamente aceito) que era formado por mamíferos e aves. A simples posse da homotermia não é sificiente para agrupar estes dois grupos de vertebrados tetrápodes e provavelmente surgiu de maneira independente por evolução convergente em cada um dos grupos, constituindo-se no que os sistematas chamam de homoplasias. Mas existe ainda outra possibilidade de agrupar os seres vivos e que também não reflete adequadamente as relações de parentesco entre os grupos. Veja abaixo:

Os grupos parafiléticos agrupam o ancestral comum, mas deixam de fora algum ou alguns dos seus descendentes. Esse é, por exemplo, o problema com grupos como ‘peixes’ e ‘repteis’, pelo menos na maneira como são tradicionalmente concebidos. O problema é se os vertebrados terrestres são descendentes de peixes, então, também deveríamos ser considerados peixes. Assim, como se os mamíferos descendem de répteis, então, nós também deveríamos ser répteis. Abaixo é mostrado um cladograma dos Tetrápodes com o clado Sauropsida e a classe tradicional dos Répteis (Reptilia) destacados. Como pode ser observado, ambo os grupos sobrepõem-se fotemente, mas a classe traditional Reptilia é baseada em características ancestrais que incluem as existentes nos amniotas primitivos e no, às vezes, chamados ‘répteis mamimeferóides’, isto é, alguns terapsidas primitivos  e outros sinapsídeos primitivos.

Normalmente isso é resolvido evitando-se usar o termo popular ao discutir-se a questão evolutiva  (já que abandoná-lo por completo geralmente é inviável) ou simplesmente redefinindo-o. Por exemplo, uma das soluções para o termo réptil é torná-lo sinônimo de sauropsida, o que faria não só lagartos, serpentes, tuataras, tartaruras (e seus parentes) e crocodilianos serem considerados répteis, mas também as aves, cujos parentes mais próximos vivos são os crocodilianos, que são basicamenete dinossauros terópodes remanescentes. Porém, neste caso, nós mamíferos não podemos ser considerados descendentes dos répteis, mas membros de uma linhagem irmã dos répteis (sauropsídeos) chamada de Synapsida que como os répteis são um grupo dos amniotas.

Mas o que tem isso a ver com o termo ‘macaco’?


Como eu havia dito, o termo ‘macaco’ normalmente designa parte dos simiiformes, ou seja, os simiiformes não-humanos. Isto mesmo, o termo nos exclui arbitrariamente, mesmo quando nós, seres humanos, somos mais próximos dos chimpanzés (e em menor grau dos demais grandes macacos sem cauda) do que eles e nós somos de todos os demais macacos.

Então, embora o termo inclua nossos ancestrais (caso reconheçamos que os ancestrais comuns entre nós e os macacos modernos eram também macacos, como é perfeitamente plausível), ele não engloba todos os descendentes deste ancestral comum, já que nos deixa de fora deste grupo. Este esclarecimento nos leva a nossa terceira resposta.

3) Sua premissa está errada! Nós somos ‘macacos’!!

Caso queiramos que este termo seja mais preciso e que faça mais sentido do ponto de vista evolutivo, devemos admitir que somos sim um tipo de macaco, mesmo que tenhamos algumas características externas bem derivadas em relação as demais espécies viventes, mas que, em parte, são evidentes por que nós mesmos as investigamos e julgamos, e, em outra parte, por que vários de nossos parentes mais próximos dos últimos 5 ou 6 milhões de anos, simplesmente, não existem mais. Caso eles ainda existissem (e é o que nos damos conta quando olhamos para os fósseis), perceberíamos como os ‘macacos’ (primatas simiiformes, nos incluindo) são, na verdade, bem mais variados que nosso esteriótipo desenvolvido por vivermos em certo período específico em que somos os únicos membros na subtribo hominina (e mesmo do gênero Homo) vivos. Ao lado uma filogenia molecular dos primatas bem recente [Perelman et al., 2011)] que mostra mais detalhadamente as relações entre os diversos primatas, incluindo os simiiformes.

Estas três respostas nos permitem perceber a quantidade de mal entendidos e equívocos que existem, não só, entre os criacionistas, mas na imagem popular da evolução humana. Por isso pode ser uma boa estratégia, usar este tipo de pergunta para desfazer mitos, mal entendidos, distorções e explicar o que os estudos de biologia evolutiva, especialmente de sistemática, primatologia, antropologia, paleoantropologia e genética evolutiva humana nos mostram de verdade.

Caso você interesse-se por compreender melhor nossas relações com os demais primatas vivos (e com nossos parentes extintos), aconselho uma série de posts e respostas sobre o tema, a começar pelo post, “99% confuso!” em que discuto (e tendo desfazer) as confusões sobre as diferenças mostradas, em termos de porcentagem, entre os genes e genomas humanos e dos chimpanzés, além dos artigos Supresas sobre as origens do cromossomo Y humano:”, Reajustando e recalibrando o relógio da evolução humana”, ‘Quem somos nós e como sabemos quem somos? Parte I , Parte II e Parte III’  e “Mais vislumbres de miscigenações ancestrais no DNA humano“. Respesotas recentes do nosso tumblr também discutem estas questões e podem ser encontradas aqui, aqui, aquiaqui e aqui.

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*Como já comentei em outra oportunidade, o próprio grupo dos ‘prossímios’ é parafilético, uma vez que os tarsos (tarsiiformes) são mais próximos aos simiiformes, formando com eles o grupo Haplorhini, e não de animais como os lêmures, por exemplo.

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Referências:

  • Amorim, D. S. 2002. Fundamentos de Sistemática Filogenética. Holos ed. 156pp.

  • Benton. M. J. Reptilia. Encyclopedia of life sciences. Macmillan, London, 2005. 11 pp. pdf

  • Freeman, S; Herron, J. C. . Análise Evolutiva.   Porto Alegre: ArtMed Editora, 4ª ed, 2009. 831 pg

  • Futuyma, D.J. Biologia Evolutiva. Ribeirão Preto: Funpec Editora 3ª ed , 2009. 830 pg

  • Lewin, R. Evolução humana. São Paulo: Atheneu, 1999. 526 pg.

  • Lewin, R., Foley, R.A., Principles of Human Evolution, 2nd Ed., Blackwell Science Ltd, 2004. 576 pg

  • Perelman P, Johnson WE, Roos C, Seuánez HN, Horvath JE, et al. (2011) A Molecular Phylogeny of Living Primates. PLoS Genet 7(3): e1001342. doi:10.1371/journal.pgen.1001342 

  • Ridley, M. 2006. Evolução.  Porto Alegre: ArtMed Editora 3ª ed., 2006. 806 pg

  • Wood, B. Human Evolution: A Very Short Introduction.Oxford University Press, New York, 2005. 144 pg.

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Créditos das Figuras:

As figuras com imagens de primatas são modificações da figura original obtida daqui

Cladograma dos Tetrapodes (fonte:  wikicommons; autor, Petter Bøckman)
DAVID GIFFORD/SCIENCE PHOTO LIBRARY
JJP/EURELIOS/SCIENCE PHOTO LIBRARY

Foto de Willi hennig em 1972 (fonte: wikicommons; autor: Gerd Hennig)

Reajustando e recalibrando o relógio da evolução humana

Sem dívida, um dos maiores desafios dos pesquisadores que trabalham com genética evolutiva é estimar, com maior precisão, quando, certos eventos evolutivos considerados importantes na história da vida, devem ter ocorrido. Na história da evolução humana um desses marcos ocorreu quando parte de nossos ancestrais deixaram o continente Africano e começaram sua expansão pelo resto do mundo. Rastrear estes primeiros passos e datá-los não é algo simples e exatamente fácil, embora vários métodos e estratégias tenham sido desenvolvidas nas últimas décadas. Uma das formas de produzir estas estimativas é usando os chamados ‘relógios moleculares‘ que tradicionalmente são calibrados através de fósseis bem datados de hominídeos, mas este método tem lá seus problemas, como a eventual falta de fósseis de parentes mais próximos durante os eventos que devem ser datados, além de termos que presumir que os primeiros fósseis disponíveis de uma determinada linhagem marcariam o surgimento da mesma, o que simplesmente não parece ser verdade em muitos casos. Contudo, mais recentemente, essas calibragens tem sido feitas a partir do cálculo das taxas de mutações basedaos na frequencia de novas mutações em genomas de organismos recentes, inclusive seres humanos [1].

Os modernos métodos de sequenciamento de alta performance têm permitido aos geneticistas sequenciarem uma quantidade de genomas completos em pouquíssimo tempo, o que lhes permite calcular diretamente o número de mutações, em um grande número de famílias, que diferenciam trios de indivíduos relacionados, o pai, a mãe, e um de seus filhos. Nos últimos três anos os resultados de oito estudos, que foram revisados por Aylwyn Scally e Richard Durbin em um artigo da revista Nature Reviews Genetics, permitiram aos autores estimarem uma taxa bem mais lenta de mutação do que a obtida empregando-se os métodos anteriores, de acordo com Gibbons [3]. Um destes estudos, publicado em agosto do ano passado, em que os genomas completos de 78 trios de pais e crianças islandeses, permituoiu, a partir de medidas diretas, estimar a taxa de mutação em populações humanas. Este estudo mostrou que, em média, cada recém-nascido carrega 36 novas mutações espontâneas, ou seja, que não são herdadas de nenhum dos pais, as chamadas mutações de novo [2].

Na figura ao lado: relógio molecular foi reajustado através de DNA antigo coletado entre outras fontes de três humanos enterrados há 31 mil anos, em Dolni Vestonice, na República Checa, de dois esqueletos enterrados há 14 mil anos, em Oberkassel, na Alemanha (vistos no detalhe). [Crédito: S. Svoboda; (no detalhe) J. Vogel/LVR-Landes Museum, Bonn; retirado de e traduzido de [1]]

Porém, talvez o mais impressionante, foi o fato de todos estes estudos chegarem mais ou menos a mesma estimativa da taxa de mutação humana, algo em torno de 1,2 ×10 8 mutações por geração em qualquer sitio de nucleotídeo, o que daria cerca de uma em 2,4 bilhões mutações por sítio por ano, supondo-se um tempo médio de geração de 29 anos, o que é menos da metade das taxas de mutação estimadas a partir da calibração por fósseis [2].

Este relógio molecular empurrou para trás no tempo várias datas importantes, como a separação entre as linhagens dos seres humanos e dos chimpanzés e o êxodo dos humanos modernos da África, com uma das estimativas para a grande última migração para fora da África, que era de menos de 80.000 anos atrás, passando a ser algo entre 90.000 e 130.000 anos atrás, como explicado por Ann Gibbons para o Science Now [1]. 

Contudo, talvez estas estimativas não estejam muito corretas, como vários autores têm defendido, quando extrapoladas para tão longe no passado e os velhos métodos não estivessem tão incorretos assim. Agora, um novo estudo, empregando uma nova e promissora metodologia, revisou mais uma vez estas datas e promete colocar em patamares ainda mais rígidos as estratégias de calibração dos relógios moleculares. Vários cientistas em artigo de autoria de Fu e colaboradores [3], usando o DNA mitocondrial antigo – de um indivíduo congelado, Ötzi, o famoso Homem de Gelo (reconstruído à esquerda), de amostras coletadas de restos humanos mais modernos e de fósseis humanos ainda mais antigos, para realizar estas datações – estimaram, este mesmo evento, o êxodo Africano, como tendo ocorrido, no máximo, cerca de 95 mil anos atrás , e, talvez mesmo, há apenas 62 mil anos [1].

Johannes Krause, geneticista evolutivo da Universidade de Tübingen, na Alemanha, líder da equipe, e vários colegas resolveram sequenciar o DNA das mitocôndrias (mtDNA) – pequenas organelas típicas dos eucariontes e que são herdada de nossas mães – de restos mortais e fósseis de seres humanos modernos que viveram nos últimos 40 mil anos e que haviam sido datados de maneira confiável por métodos como oradiocarbono, como forma de calibrar o seu relógio molecular. O princípio é o seguinte, caso a idade do fóssil for de 40.000 anos, por exemplo, estaria faltando 40 mil anos de evolução, que teria tido lugar na linhagem entre aquelas pessoas e uma pessoa vivente, o qur quer dizer que haveriam mutações faltando no genoma antigo que seriam aquelas que teriam surgido durante o tempo desde que o ser humano fossilizado morreu e que agora estão presentes em nós [1].

Com base neste princípio, os pesquisadores analisaram 10 restos humanos e de fósseis bem datados, entre os quais estavam um homem medieval, que viveu na França há 700 anos, o já referido homem de gelo, de 4.550 anos de idade; dois fósseis de seres humanos de 14.000 anos de idade, encontrados em túmulos em Oberkassel, na Alemanha; três seres humanos modernos aparentados de 31 mil anos atrás, encontrados em Dolni Vestonice, na República Checa, além de humanos modernos bem antigos de cerca de 40 mil ano, encontrados, em Tianyuan, na China. Ao aplicarem as taxas de mutação do DNA antigo para estimarem a data da migração para fora da África, obtiveram como resultado que este evento deve ter se dado entre 62.000 e 95.000 anos atrás (o que é quase metade do que havia sido calculado pelo método usando taxas de mutações determinadas de novo, a partir de humanos atuais), evento que marcaria a separação dos não-Africanos dos Africanos subsaarianos do haplogrupo L3, o mais intimamente relacionado com os não-Africanos [3].

As novas estimativas encaixam-se bem melhor com as evidências dos fósseis e dos dados arqueológicos, como as referentes as ferramentas de pedra, do que com as estimativas de datas mais antigas anteriores para os mesmos eventos usando-se as estimativas de novo [1, 3].

“A coisa boa sobre isso é que era semelhante as evidências arqueológicas”, diz Krause [1].

O método usado pela equipe de cientistas para verificar a taxa de mutação foi elogiado mesmo por Aylwyn Scally, geneticista do Instituto Wellcome Trust Sanger, em Hinxton, Reino Unido, co-autor do artigo que havia calculado uma taxa mais lenta mutação em seres humanos vivos e empurrado o êxodo Africano mais para o passado:

“É excelente que eles foram capazes de obter uma base melhor para calibrar a taxa de mutação do mtDNA, olhando DNA antigo.” [1]

O estudo, entretanto, não deixou de receber críticas. Por exemplo, o próprio Scally, enfatizou que o mtDNA representa apenas uma única linhagem genética, que aliás nem é típica do genoma nuclear com uma taxa de mutação mais alta e com uma maior proporção de genes sob a seleção do que ocorre no genoma nuclear. O próprio Krause, bem como o conhecido paleogeneticista Svante Pääbo, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva em Leipzig, Alemanha (coautor do estudo), concordam que é necessário muito mais trabalho para resolver as diferenças entre as taxas de mutação do mtDNA e dos genomas nucleares.

“É possível que hajam coisas que não entendemos sobre a herança mitocondrial e seus padrões de mutação”, disse Pääbo [1].

A questão é ainda mais complicada pois o problema também poder ser fruto dos pesquisdires terem subestimado o número de mutações nucleares em seres humanos vivos. Afinal de contas é bastante fácil perder alguma coisa quando estamos falando em cerca de 30 ou 50 novas mutações em um total de 3.200.000.000 de bases no recém-nascido do genoma. Segundo Krause, os métodos de sequenciamento correntes ao realizar estas contagens estão no limite das suas capacidades de distinguir mutações verdadeiras de erros de sequenciamento, podendo jogar dados reais fora [1].

“O caminho a seguir é realmente dominar o sequenciamento de genomas nucleares de forma precisa, disse Pääbo [1].

Na figura abaixo podemos ver uma árvore para os mtDNAs dos 54 humanos atuais, 10 seres humanos modernos antigos, e 7 seres humanos arcaicos. A filogenia, que pode ser vista no painel superior, foi construída utilizando o método de ‘Máxima Parcimônia’ e foi enraizada usando-se o enraizamento pelo ponto médio. Os ramos para os seres humanos de hoje em dia não terminam todos no mesmo ponto, indicando a incerteza inerente às medidas de tempo com base no DNA mitocondrial, devido a limitação da extensão dessas sequências. No entanto, o encurtamento consistente dos ramos dos seres humanos mais antigos, em relação ao seus parentes humanos atuais mais próximos, é evidente na figura e é a base da calibração do relógio molecular usado pelo grupo de Krause. As amostras antigas pré e pós-neolíticas são indicadas por círculos vermelhos e azuis, respectivamente, e os quadrados coloridos mostram a origem geográfica dos 54 seres humanos atuais cujas amostras de mtDNA foram co-analisadas, com as amostras de seres humanos antigos, pelo trabalho de Fu e colaboradores [3]. As estimativas para as datas dos eventos mais importantes de divergência entre populações Africanas e não-Africanas são mostradas nos nós da filogenia; e no painel inferior é mostrado um mapa em que são destacadas as origens geográficas das amostras (Fu, et al., [3])

De acordo com Krause, isso é fundamental, já que uma melhor noção dos tempos envolvidos na evolução humana é crucial para conseguirmos compreender em maior detalhe diversos eventos importantes. Por exemplo, também de acordo com Krause, como relatado no artigo de Gibbons [1], saber quando os seres humanos modernos se espalharam para fora da África, permitiiu aos cientistas responsáveis pelo artigo mostrarem que os seres humanos modernos eram os mesmos na Europa antes e depois das geleiras terem coberto o continente e, portanto, puderam concluir que essas populações tiveram a capacidade de adaptar-se a esta drástica mudança climática [1]. Os cientistas conseguiram chegar a esta conclusão ao descobrir que os seres humanos modernos que viveram na Europa, antes e depois da última idade do gelo, compartilhavam a mesma linhagem de mtDNA, o que os descendentes diretos um dos outros [1].

O ‘fora da África’ é um dos principais eventos dentro da evolução humana”, diz Krause[1].

“Nós precisamos saber quando isso aconteceu.”, complementa o cientista [1].

Os autores também enfatizam que, seguindo as críticas de Scally, embora loci únicos, como os representados pelo mtDNA, realmente forneçam estimativas tendenciosas dos tempos de divergência entre as populações, eles, ainda assim, podem fornecer limites superiores válidos e, neste caso, já serviriam para excluir as datas mais antigas para as divergências populações africanas e não-africanas que foram recentemente sugeridas por métodos baseados em taxa de mutação de novo obtidas para o genoma nuclear [3].

Este trabalho ilustra outra característica importante das ciências. Mesmo que não possamos deixar de fazer certas pressuposições, sempre que possível devemos testá-las e comparar nossas conclusões e estimativas obtidas a partir delas com as obtidas a partir de outras pressuposições e por outros métodos de modo a avaliar a robustez das mesmas. Só assim avançamos e podemos passar a conclusões mais sólidas e precisas. Os métodos apresentados, as questões que surgem a partir de sua implemetação e a discussão de suas limitações são, portanto, mais uma exemplo do que tornam as ciências essas empreitadas dinâmicas e críticas, em constante revisão, em que as investigações não possuem um fim. A possibilidade de usarmos os dois novos métodos, o de novo e o basedo em sequenciamento de restos de organismos antigos e extraídos de fósseis bem datados, além da resolução das inconsistência entre ambos, oferece oportunidades de tornar o processo de estimação de datas de eventos evolutivos importantes muito mais preciso e confiável.

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Referências:

  1. Gibbons, Ann Clocking the Human Exodus Out of Africa Science Now, published on 21 March 2013.

  2. Gibbons A. Human evolution. Turning back the clock: slowing the pace of prehistory. Science. 2012 Oct 12;338(6104):189-91. doi: 10.1126/science.338.6104.189. PubMed PMID: 23066056. DOI: 10.1126/science.338.6104.189 [pdf]

  3. Fu, Qiaomei; Mittnik, Alissa; Johnson, Philip L.F.; Bos, Kirsten; Lari, Martina; Bollongino, Ruth; Sun, Chengkai; Giemsch, Liane; Schmitz, Ralf; Burger, Joachim; Ronchitelli, Anna Maria; Martini, Fabio; Cremonesi, RenataG.; Svoboda, JiY ; Bauer, Peter; Caramelli, David; Castellano, Sergi; Reich, David; Paabo, Svante; Krause, Johannes A Revised Timescale for Human Evolution Based on Ancient Mitochondrial Genomes Current biology, 21 March 2013  doi:10.1016/j.cub.2013.02.044

Credito das figuras:

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Um único gene, muitas histórias:

Em um novo estudo, pesquisadores de Harvard e da Universidade do Kentucky mostram que mudanças na cor da pelagem em camundongos silvestres são o resultado não de uma única mutação, mas de muitas mutações, todos em um único gene [1].

Embora acumulemos cada vez mais e mais evidências do processo de evolução adaptativa, ainda temos muitas dúvidas este processo ocorre em detalhe, especialmente ao nível molecular. Uma questão que se destaca, por exemplo, e para qual não temos uma boa resposta e se a evolução pro seleção natural ocorre por mudanças genéticas de grandes efeitos ou, como sugerido por Darwin e modelado por Fisher, ocorreria através de pequenas mudanças incrementais*, de modo a minimizar efeitos pleiotrópicos que são aqueles causados pelos multiplos papéis exercidos por muitos genes.

Felizmente, as modernas técnicas de sequenciamento genômico e análise genotípica vêm sendo aplicadas a modelos experimentais de evolução fenotípica e a dados oriundos de populações naturais, cuja ecologia, genética e demografia são muito bem conhecidas e que podem ser analisadas por estratégias computacionais e estatísticas capazes de detectar as marcas da seleção natural e de outros processos evolutivos. Um destes modelos de estudo é o ‘camundongo veadeiro (Peromyscus maniculatus). Estes pequenos roedores são um dos mamíferos mais abundantes e mais amplamente distribuídos na América do Norte, normalmente, exibindo um cobertura de pelos escuros que lhes permite confundirem-se com os solos escuros da maioria das regiões onde vivem, evitando que potenciais predadores como aves de rapinas os vejam e alimentem-se deles. Para o qual a coloração dos pelos pode ser um questão de vida e a morte. Acontece que em algumas regiões habitadas por estes animais, o solo não é escuro.

Na realidade, em algumas delas, o solo é bem claro e animais com pelagem escura destacam-se contra o fundo arenoso, tornando-se alvos fáceis para vários predadores que se orientam pela visão. Por exemlo, os animais desta espécie que vivem nas Sand hills (‘colinas de areia’), no estado de Nebraska, enfrentam estas condições, mas, não por acaso, evoluiram suas próprias formas de prosperar nestes habitats, acabando por nos oferecer uma incrível oportunidade estudo da evolução adaptativa.

Nossa história começa quando os primeiros camundongos desta espécie com pelagem escura, colonizaram esta região. O problema é que por causa de sua coloração escura e padrão de pelagem eles destacavam-se dramaticamente contra a coloração clara, do terreno arenoso. Porém, ao longo dos 8.000 anos seguintes, as populações desses camundongos evoluíram um sistema de camuflagem, com coberturas de pelagem bem mais claras, além de mudanças no padrão depelame que incluiam alterações nos limites entre a região dorsal e ventral do corpo e  listras mais claras em suas caudas, ou seja, mudanças estas de pigmentação corporal que lhes permitiram misturar-se melhor em seu habitat.

Vários estudos usando estes animais como modelo têm sido realizados nos últimos anos e têm ajudado a mostrar como a evolução adaptativa da camuflagem ocorre, mas, até agora, a identificação das mutações precisas que estavam por trás dessas mudanças de fenótipo ainda não havia sido feita com precisão, o que era absolutamente necessário para que pudésemos responder a questão dos tamanhos dos efeitos das mutações envolvidos na evolução fenotípica adaptativa [1]. Até agora!

Agora, as pesquisadoras da universidade de Kentucky, Catherine Linnen, e da universidade de Harvard, Hopi Hoekstra, estão usando este modelo para investigar exatamente esta questão, ou seja, o tamanho dos efeitos das mutações que caracterizariam o processo de evolução adaptativa dos fenótipos. Os resultados foram descritos em artigo publicado, no dia 15 março, na revista Science, por uma equipe de cientistas que colaboraram com Linnen, a primeira autora do artigo, e Hoekstra, a autora sênior que vem trabalhando com estas populações de animais há anos.

As cientistas juntamente com seus colaboradores [2] foram capazes de mostrar que as mudanças na coloração da pelagem dos camundongos são o resultado não de uma única mutação, mas de pelo menos nove mutações em um mesmo gene único [1, 2].

“Os resultados demonstram como o efeito cumulativo da seleção natural, agindo em muitas pequenas mudanças genéticas, pode produzir uma mudança rápida e dramática” [1], disse Linnen que é a a primeira autora do artigo e acrescentou:

“Isso nos ajuda a compreender, a partir de uma perspetiva genética, o estranho ajustamento entre tantos organismos e seus ambientes. Ao agir sobre muitas pequenas mudanças, em vez de um punhado de grandes, a seleção natural pode produzir adaptações muito finamente ajustadas.” [1]

Mas como estes cientistas conseguiram descobrir isso?

Para começar, em função de estudos anteriores, já era bem conhecido que a coloração clara destes animais, que habitam estas colinas arenosas, estava fortemente ligada a mudanças em um única região do DNA, o locus Agouti, principalmente, alterações que ocorrem em uma região cis-ativa – ou seja, em partes não codificantes do gene, mas onde ligam-se proteínas chamadas de fatores de transcrição, capazes de regular a magnitude e a duração da expressão deste gene durante o crescimento dos pelos que é o que provoca um aumento concomitante na largura das bandas mais claramente pigmentadas nos pelos individuais. O papel deste gene chamado agouti, na camuflagem, foi originalmente descoberto por Linnen, Hoekstra e colegas em 2009, sendo já sabido que as alterações neste gene as responsáveis por alterações na pigmentação na pelagem de muitos outros animais. Por exemplo, todo gato preto domestico possui uma deleção na sequência de DNA deste gene [1]. Então, o gene agouti era um velho conhecido dos biólogos, sendo responsável pelo nível de pigmentação e pelo padrão da coloração exibido pela pelagem dos mamíferos.

O produto principal deste gene é uma pequena proteína chamada ‘peptideo de sinalização agouti (ASP de ‘Agouti Signaling Peptide‘) formado por de cerca de 131 aminoácidos, apesar de existirem diversos produtos distintos que surgem por processamento alternativo do RNA mensageiro formado a partir da sequência deste gene. O ASP está envolvido com o controle das quantidades relativas de eumelanina (o pigmento de cor marrom-preto) e feomelanina (pigmento de coloração amarelo-vermelho) expressas nos folículos pilosos dos mamíferos. Este peptídeo inibe a produção eumelanina induzida pelo α-MSH, resultando em uma faixa subterminal de feomelanina frequentemente visível na pele dos mamíferos, aparentemente, por que, ao ligar-se nos receptores de melanocortina, este peptídeo age como um agonista inverso o ligante α-MSH.

Apenas com base nesta informação poderíamos concluir que, como é um único gene que controla as mudanças de fenótipo existentes entre as duas formas de camundingos, o fenótipo teria evoluído em uma único passo ou no máximo bem poucos. Mas para nossa felicidade, as pesquisadoras não pararam por aí e foram adiante. 

De fato, a um exame mais detalhado, é possível perceber que a coloração clara não é uma única característica homogênea, mas, na realidade, é o produto de várias características distintas, como a coloração do dorso, a coloração do ventre, uma elevação da região fronteiriça entre ambas as partes e, por fim, da pigmentação da faixa caudal, como pode ser visto na figura abaixo e a esquerda, onde estão destacados os animais claros das colinas arenosas e os tipos selvagens de pelagem escura [2].

São estes vários caracteres separados que dão origem ao padrão de cobertura pilosa críptica dos animais que vivem nesta região em Nebraska. Todos eles associados a mudanças no locus agouti, como mostram estudos em animais criados em laboratório [2]. Mas não foi o simples fato deste gene estar envolvido com as mudanças de coloração que mais surpreenderam Linnen, Hoekstra e sua equipe de cientistas. O que realmente chamou a atenção dos pesquisadores foi que cada uma das nove mutações estavam associadas a uma mudança única na pelagem dos animais desta espécie e que todas as novas mutações levaram a melhor coloração de camuflagem; e, além disso, com essas mutações tendo ocorrido em um período relativamente curto, isto é, cerca de 8.000 anos [1, 2].

“Basicamente, parece que estas mutações – cada qual faz o camundongo um pouco mais claro e mais camuflado – acumularam-se ao longo do tempo”, disse Hoekstra.

Porém, estes dados ainda não eram suficientes para definir se essas mudanças eram todas causadas por alterações pleiotrópicas de grande efeito que influenciariam todas estas características ao mesmo tempo ou se teriam sido causadas por mudanças pequenas em porções diferentes deste mesmo locus que poderiam ter sido fixadas mais ou menos independentemente [2]. Mas antes de resolver esta questão era preciso confirmar que estes padrões de coloração eram realmente adaptativos, ou seja, se eles de fato conferiam vantangens em termos de sobrevivência aos seus portadores naquele ambiente.

Os autores do artigo utilizaram-se de massinha de modelar, para criar modelos dos animais em cores claras e escuras, como forma de testar a hipótese de que essa pelagem clara era realmente uma adaptação para a ocultação, medimos as taxas de ataque aos modelos dois tipos de modelos (veja a figura abaixo) quando estes eram colocados sobre múltiplos locais nas Sand hills. Com este experimento ficou claro que os modelos com coloração escura, que destacavam-se sobre as superfícies arenosas claras, eram atacados significativamente mais frequentemente do que os modelos com colorações claras, crípticas (P <0,05). Estes resultados somam-se aos de experimentos anteriores em que foram empregadas aves e camundongos vivos, e em conjunto sugerem fortemente que as colorações claras da variedade de camundongos das Sandhills são realmente uma adaptação recente que, pelo menos em parte, se deveu a pressão ecológica por predadores visualmente orientados.

A equipe de cientistas, então, coletou dados de variação fenotípica (cor e padrão de coloração) e genotípica de 91 camundongos silvestres que foram capturados de uma população diversificada fenotipicamente localizada perto da borda das Sand hills. Eles mediram três características de coloração que foram extraídas a partir de uma análise de componentes principais (PCA) uma estratégia de análise multivariada que pode revelar padrões subjacentes aos dados a partir de combinações de múltiplas medidas por técnica de álgebra linear dos dados espectrofotométricos (tonalidade dorsal, brilho dorsal e coloração ventral), além de duas características associadas ao padrão de coloração (fonteira dorso-ventral e listras caudais). Os resultados mostraram que os fenótipos nesta população selvagem eram amplamente independentes, mostrando correlações estatísticas muito baixas (com os R2 variando de 0,04 a 0,27), o que é reforçado pelo fato de vários pares de características não terem qualquer correlação significativa, mesmo com um grande tamanho amostral. Portanto, os dados sugerem que estas características de pigmentação estão sendo controladas de maneira independente.

Usando estratégias de enriquecimento direcionadas e técnicas de sequenciamento de última geração, os pesquisadores puderam gerar dados de polimorfismo para cerca de 2100 regiões não ligadas com 1,5 mil pares de base em de extensão de uma região de 185-kbp dentro do locus Agouti que incluía as regiões codificadoras de proteínas, bem como todos os elementos conhecidos reguladores do gene (Fig. 2B).

O próximo passo foi identificar as ligações entre estes genótipos associados ao locus agouti e os diversos fenótipos. Para este trabalho, os cientistas usaram tanto regressões lineares dos SNPs (polimorfismos de nucleotídeo único) e uma abordagem bayesiana envolvendo múltiplos SNPs que revelaram que cada uma das cinco características fenotípicas analisadas, e que em conjunto conferem a aparência clara críptica aos animais, estavam estatisticamente associadas com um único conjunto de SNPs (isto é, variantes genéticas especpificas) que, ao todo, explicavam de 16 a 53% da variação de cor e padrão de coloração, com apenas uma das variante (uma deleção no exon 2 que levava a perda de um aminoácido serina (DSer) na proteína codificada pelo locus) que estava tanto associada com coloração ventral (P = 8,5 × 10-5) e com a franja caudal (P = 5,4 × 10-6) [2].

Os resultados destas análises indicam que múltiplos mecanismos moleculares são responsáveis pelas mudanças de cor e dos padrões de coloração nos animais das Sand hills, incluindo mudanças nas regiões codificadoras do genes, como nas regiões não codificadoras, cis-regulatórias, que controlam sua expressão. De posse destas informações, os cientistas passaram a investigar se essas diversas mudanças no locus Agouti, que contribuem para o revestimento de cor clara, haviam sido submetidas a seleção natural positiva deixando assinaturas específicas no padrão de polimorfismos de SNPs

A equipe de Linnen e Hoekstra valeu-se de duas estratégias para identificar assinaturas moleculares da seleção natural positiva. Primeiramente, usaram o programa dadi para produzir um modelo demográfico da população de camundongos da região e estimar seus  parâmetros. Os resultados iniciais desta estratégia forneceram evidências que sugerem que a população destes animais deve ter experimentado uma drástica redução de seu contingente, um gargalo de garrafa no jargão dos geneticistas de populações, mais ou menos, há uns 2900 anos. Este gargalo teria levado a redução da população para 0,4% do seu tamanho original, diminuição que foi seguida por uma recuperação exponencial que fez com que a população chegasse até cerca de 65% do seu tamanho original [2].

A segunda estratégia envolveu o uso da ferramenta sweepfinder, idealizada por Ramus Nielsen e colaboradores [3] e que tem por objetivo detectar as chamadas ‘varridas seletivas’ (selective sweeps) a partir de dados genômicos de SNPs por um método que utiliza a verossimilhança composta. Este procedimento, segundo seus criadores [3], possui um alto poder para identificar estas ‘varridas seletivas’, sendo bastante robusto com relação as suposições sobre as taxas de recombinação e variações nos parâmetros demográficos, tendo uma baixa incidência de erros estatísticos do tipo I. Esta estratégia também  fornece estimativas da localização das varridas seletivas, isto é de onde encontram-se os alelos selecionados, e da magnitude do coeficiente de seleção envolvido no processo, ou seja, a intensidade da seleção [3].

A ideia por trás de desta estratégia é que quando alelos estão sob seleção positiva em virtude de seu efeito sobre a sobrevivência e o sucesso reprodutivo dos organismos, e aumentam de prevalência na população, estes alelos deixam assinaturas distintas, ou padrões, de variação genética nas sequências de DNA a sua volta [4]. As chamadas ‘varridas seletivas’ ocorrem quando uma nova mutação, devido ao seu efeito benéfico sobre  os indivíduos que as portam, sobe muito rapidamente de frequência em uma população, arrastando com sigo também vários polimorfismos neutros ou quase neutros que estão em regiões muito próximas no mesmo cromossomo do alelo vantajoso que por causa disso recombinm-se com menos frequêcia. Na figura abaixo (retirada de 4) podemos ver um esquema de como este evento de seleção modifica o padrão de alelos ancestrais em uma população, reduzindo assim a variação em vários loci próximos ao do alelo selecionado [Os alelos ancestrais são mostrados em cinza e os alelos derivados (não-ancestrais) são mostrados em azul.], quando um novo alelo positivamente selecionado (em vermelho) aumentando até uma frequência elevada, carregando de ‘carona’ um conjunto de outros alelos também a elevada frequência, criando esta varrida seletiva [4].

Então, empregando o modelo demográfico obtido com o daddi e a abordagem de detecção da seleção positiva implementada pelo Sweepfinder, os pesquisadores avaliaram os padrões de seleção tanto no conjunto total de dados, ou seja, todos os 91 indivíduos amostrados, como em 10 conjuntos de dados polarizados, isto é, em que haplótipos associados a colorações claras e escuras foram definidos pelo genótipo nos SNPs candidatos de interesse [4]. A partir desta abordagem foram identificadas duas regiões para as quais haviam evidências de seleção positiva, mas atuando em todos os camundongos amostrados independentemente da cor da pelagem (Fig. 3A). Porém, ao compararem com conjuntos dos dados polarizados, os pesquisadores encontraram picos significativos de verossimilhança agrupando-se em torno da localização dos SNPs ‘polarizadores’, o que é consistente com a seleção natural recente agindo sobre, ou muito próximo, estes SNPS correlacionados a variação da coloração [4].

Para cada uma das mutações associadas com a mudança da coloração, encontramos também um sinal de que ela era consistente com a seleção positiva”, disse Hoekstra.

Além disso, para cada SNP candidato foi observado que quanto mais forte era o seu efeito sobre o fenótipo de cor, mais forte era a estimativa da força da seleção, o que sugere que estas mutações provavelmente tinham um mínimo de consequências pleiotrópicas. Estes resultados, quando combinados com os resultados do experimento com os modelos de massinha, os dados mostrando a extensiva recombinação em toda esta região, bem como com os estudos de mapeamento de associação, apoiam um cenário em que múltiplas mutações, independentes, no locus Agouti – cada uma delas contribuindo para uma característica distinta da cor ou padrão de coloração dos animais que estavam associada com os fenótipos mais claros – foram selecionadas por causa de seu efeito na coloração críptica nos animais vivendo nas Sand hills de Nebraska [2]:

“O que implica que cada uma das alterações específicas para a pigmentação é benéfica. Isto é consistente com a história que estamos contando, sobre como essas mutações estão a afinar essa característica.” [1], complementou a cientista.

Embora os resultados ofereçam insights valiosos sobre a maneira com a seleção natural opera, Hoekstra ressaltou, que é extremamente importante  continuar as investigações até o fim [1]. Por exemplo, o que teria ocorrido se o grupo de cientistas tivesse se dado por satisfeito ao indentificar o gene agouti como o único responsável pelas mudanças fenotípicas e não ido mais fundo e avaliado o papel de mutações individuais nas diversas características que dão origem ao fenótipo críptico?

“A questão sempre foi se a evolução é dominado por estes saltos grandes ou pequenos passos” [1], disse ela. “Quando implicamos pela primeira vez o gene agouti, poderíamos ter parado por ali, e concluído que a evolução esses grandes passos já que apenas um gene principal está envolvido, mas teria sido errado. Quando nós olhamos mais de perto, dentro deste gene, descobrimos que mesmo dentro desse único locus, há, de fato, muitos pequenos passos.” [1], completou.

Os autores concluem que, de acordo com seus resultados, cada característica ligada a coloração (por exemplo, cor dorsal, listras da cauda etc) afeta a aptidão dos indivíduos de maneira independente. Isso é possivel por que um único de grande efeito fenotípico pode ter seus componentes fracionados em muitas pequenos efeitos contribuintes para o efeito total, cada um associado a diferentes mutações que podem modulá-los e ajustá-los mais finamente. Outro ponto importante é que apesar do locus Agouti ter vários efeitos sobre pigmentação e mesmo, em outros modelos, efeitos pleiotrópicos  e que afetam a aptidão em diversos outros fenótipos além da coloração, isso não é observado de maneira tão dramática ao  nível mutacional, o que leva os autores a declararem em sua conclusão [2]:

Além disso, embora o gene Agouti tenha vastos efeitos sobre a pigmentação, ​​efeitos pleiotrópicos mensuráveis estão ausentes no nível mutacional, o que serve como um lembrete de que, embora seja comum discutir o grau de pleiotropia de genes individuais, são as mutações individuais, e não genes, que trazem uma população mais perto para do seu ótimo fenotípico. [1]

Os planos de Hoekstra são de ir ainda além, já que sua equipe pretende desvendar a ordem em que as mutações aconteceram, o que lhes permitiria reconstruir como os camundongos alteraram-se ao longo do tempo:

“Para os biólogos evolutivos, isso é excitante porque nós queremos aprender sobre o passado, mas só temos os dados do presente para estudá-lo”, [1] disse a pesquisadora e em seguida afirmou: “Esta capacidade de voltar no tempo e reconstruir um caminho evolutivo é muito emocionante, e acho que este conjunto de dados é especialmente adequado para este tipo de viagem no tempo.” [1]

Hoekstra explica que empregar tempo, não só para compreender que genes estão envolvidos, mas para determinar quais mutações específicas podem estar sendo selecionadas por estarem por trás das mudanças adaptativas, dá aos pesquisadores uma imagem muito mais completa, não só dos mecanismos moleculares pelos quais as mutações alteram características fenotípicas, mas também da história evolutiva de um organismo [1].

“Ao fazermos isso, nós descobrimos todos os tipos de coisas novas”, disse Hoekstra. “Embora muitas vezes nós pensamos nas mudanças que acontecem em todo o genoma, os nossos resultados sugerem que, mesmo dentro de uma unidade muito básica – o gene – podemos ver evidências de ajuste fino evolutivo [1].

Como argumentam os cientistas, o exemplo da evolução fenotípica do camundongos veadeiros das Sand hills, oferece uma rota evolutiva em que pequenas mutações (com efeitos pleiotrópicos mínimos, podendo mesmo ocorrem dentro de um único gene) podem conduzir a evolução adaptativa rápida em vários traços fenotípicos bem associados.

Embora a generalidade deste exemplo ainda precisa ser averiguada, a bela história que estes experimentos e análises nos contam mostram claramente como a evolução adaptaiva pode acontecer sem grandes transtornos e envolvendo várias características que se combinam para gerar um novo fenótipo completo.

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*Aqui quero enfatizar que ao falarmos em ‘mudanças grandes’ os cientistas não estão se  referindo necessariamente as ‘macromutações’ em sentido tradicional como as propostas por Goldshmidt (e outros ‘saltacionistas’), mas simples mutações com efeitos fenotípicos mais evidentes e amplos, como a mudança de todo o padrão de coloração.

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Referências:

  1. Reuell, Peter  [Harvard Staff Writer]  One gene, many mutations Harvard Gazette, Thursday, March 14, 2013.

  2. Linnen, C., Poh, Y., Peterson, B., Barrett, R., Larson, J., Jensen, J., & Hoekstra, H. (2013). Adaptive Evolution of Multiple Traits Through Multiple Mutations at a Single Gene Science, 339 (6125), 1312-1316 DOI: 10.1126/science.1233213[pdf]

  3. Nielsen, R. (2005). Genomic scans for selective sweeps using SNP data Genome Research, 15 (11), 1566-1575 DOI: 10.1101/gr.4252305 [pdf]

  4. Schaffner, S. & Sabeti, P. (2008) Evolutionary adaptation in the human lineage. Nature Education 1(1) 

Créditos das figuras:

Crédito da foto de Hoekstra: Bear Cieri [1]

As demais figuras foram retiradas do artigo [2] e das páginas do laboratório de Hopi Hoekstra e da página pessoal de Catherine Linnen.

Supresas sobre as origens do cromossomo Y humano:

Essa história começa com a história de um homem em particular, mas diz respeito a história de nós todos que portamos cromossomos Y. Tudo começou quando uma parente de Albert Perry, um afro-americano recentemente falecido, submeteu uma amostra de seu DNA a uma empresa chamada de Family Tree [1] que faz análises genealógicas. Este tipo de amostra permite aos geneticistas identificarem linhagens familiares e aos geneticistas evolutivos rastrearem nossas origens enquanto espécie. O problema é que o material derivado do cromossomo Y (que são transferidos apenas através das patrilinhagens, isto é, de pai para filho) de Perry era muito diferente de todas as amostras conhecidas deste cromossomo até hoje [1, 2].

O cromossomo Y de Perry era tão diferente que não se encaixava na perspectiva moderna de um ‘Adão do cromossomo Y‘ tendo vivido entre 60 000 e 140 000 anos atrás. [Aqui vale a pena lembrar que o ‘Adão do cromossomo Y’ e a ‘Eva mitocondrial’ não são o primeiro par de indivíduos humanos. Não, de modo algum. Eles são indivíduos diferentes que viveram em épocas diferentes em que coexistiam com outros milhares de indivíduos, tão humanos quanto eles, mas cujo cromossomo Y e DNA mitocondrial, respectivamente, não chegaram as populações modernas, por causa da natureza estocástica do processo reprodutivo que leva a perda de muitas das variantes genéticas, especialmente as transmitidas de modo monoparental. Além disso, cada porção de nosso genoma tem seus próprios ‘concestrais‘, mas, como o nosso DNA nuclear autossômico (isto é dos demais cromossomos não sexuais) está sujeito a recombinação, estes ‘concestrais’ são mais difíceis de rastrear e são mais variados que os representados pelos cromossomos Y e pelo genoma mitocondrial que além de não recombinarem (ou recombinarem muito pouco quando comparados as demais porções do genoma nuclear), são transferidos por linhagens monoparentais, ou seja, as mitocôndrias só são passadas através das mulheres – isto é, de suas filhas e das filhas de suas filhas e assim por diante (já que os homens, além de herdarem apenas as mitocôndrias das mães, não as transferem as suas para os seus filhos e filhas) – e o cromossomo Y apenas pelos homens, já que as mulheres não os possuem. A questão entretanto é que o ‘Adão do cromossomo Y’ era a fonte dos cromossomos Y de todos os homens modernos, menos, aparentemente, dos de Perry [1, 2].

O cromossomo Y de Perry era tão diferente de todos os analisados até então que parecia ter uma tido uma origem ainda mais antiga, evidenciando que as raízes das populações humanas modernas podem ser, na realidade, muito mais antigas do que acreditávamos, talvez mesmo,com mais do dobro da idade máxima das estimativas anteriores [1, 2].

E é aí que entra o geneticista Michael Hammer, do qual já falamos por aqui, que trabalha na Universidade do Arizona, em Tucson, nos EUA, e seus colaboradores. Quando Hammer ouviu falar do incomum cromossomo Y de Perry [1] começou a compará-lo e a realizar testes estatísticos. Os resultados publicados no periódico American Journal of Human Genetics em 28 de fevereiro último, por Fernando Mendez, primeiro autor do artigo, Michael Hammer, autor sênior, e uma grande equipe de cientistas colaboradores, revelou fatos surpreendentes [1, 2]:

Ao sequenciarem cerca de 240 mil pares de base do cromossomo Y de Perry, identificando mutações específicas derivadas desta linagem que foi batizada de A00, puderam estimar o tempo desde o ancestral comum mais recente (TMRCA, de “Time to the Most Recent Common Ancestor”) para a árvore do cromossomo Y. Este ancesral teria vivido há algo em torno de 338 mil anos (intervalo de confiança 95% = 237-581 kya), o que excede também as estimativas da mtDNA TMRCA, ou seja, da Eva mitocondrial [1].

O time de pesquisadores, analisando os bancos de dados de DNA de Africanos com cerca de 6000 cromossomos Y, encontrou algumas amostras colhidas de 11 homens moradores de um única vila em Camarões que se assemelhavam ao cromossomo Y de Perry, sugerindo que talvez fosse dali ou desse grupo que teriam vindo os seus antepassados Africanos. Como a idade desta variante A00 é muito antiga e como ela é também muito rara, encontrada apenas em frequência baixíssima na África Central, os pesquisadores defendem a necessidade de considerarmos modelos mais complexos para a origem da diversidade do cromossomo Y [1,2].

Abaixo uma figura retirada do trabalho de Mendez et al. [2] que mostra a genealogia das linhagens A00, A0, e dos sequenciamentos de referência, isto é, as linhagens em que as mutações foram identificadas e aquelas que foram usadas ​​para colocar essas mutações na genealogia. Elas são indicados como linhas grossas e finas, respectivamente. Os números das mutações identificadas em um ramo são indicados em itálico (quatro mutações em A00 não foram genotipadas mas são indicadas como compartilhadas pelos Mbo nesta árvore). As estimativas de tempo (e intervalos de confiança) são indicados por ‘kya’ (milhares de anos) para três dos nós: o mais recente ancestral comum, o ancestral comum entre A0 e as sequencias de referência (REF), e o ancestral comum de dos cromossomos A00 de um indivíduo Afro-americanos e dos Mbo de Camarões. Dois conjuntos de idades são mostrados: à esquerda estão as estimativas (em preto) obtidas com a taxa de mutação com base nos recentes resultados dos sequenciamentos completos de genomas como descrito no texto principal, e à direita estão as estimativas (em cinza) baseadas nas taxas de mutação usada por Cruciani et al [apud Mendez et al. [2]].

Como já comentado, estas estimativas excedem em muito as estimativas anteriores para o ‘Adão do cromossomo Y’ e ‘Eva mitocondrial’, mas, além disso, elas excedem os mais antigos fósseis de seres humanos anatomicamente modernos, já que estes fósseis remontam há apenas 195 mil anos [1].

“A árvore do cromossomo Y é muito mais antiga do que pensávamos”, afirmou Chris Tyler-Smith, pesquisador não envolvido no estudo que trabalha no Wellcome Trust Sanger Institute, em Hinxton, Reino Unido [1].

Outro geneticista, Jon Wilkins, do Instituto Ronin em Montclair, em Nova Jersey, EUA, também mostra empolgação com o artigo e afirma:

“É uma descoberta legal”[1]

“Nós, os geneticistas temos olhado os cromossomos Y a tanto tempo como temos olhando para tudo. Alterar onde estaria a raiz da árvore de cromossomo Y é neste ponto extremamente surpreendente.”[1].

Acima (retirado de Mendez et al [1]) um mapa mostrando Camarões e a localização aproximada onde os falantes de Mbo vivem, de onde saíram as 11 amostras similares as de Perry.

De acordo com Mendez et al. [2] os modelos alternativos a serem explorados incluíriam a forma com que as populações humanas antigas estavam estruturadas, bem como a possibilidade de introgressão de cromossomos Y arcaicos em nossa linhagem, ou seja, miscigenação de populações antigas de seres humanos anatomicamente modernos com populações antigas de seres humanos arcaicos em algum ponto próximo após origem de nossa linhagem de seres humanos anatomicamente modernos. Então, este evento de introgressão se somaria aos outros exemplos conhecidos revelados nos últimos anos, com o como os neandertais no Oriente Médio, e com os misteriosos Denisovanos, em algum lugar no sudeste da Ásia.

Em outras palavras, o cromossomo Y de Perry pode ter sido herdado de uma população arcaica humana que, após esta contribuição para o nosso ‘pool genético’, teria se extinguido. Esta possibilidade, ou seja, de miscigenação de populações de seres humanos anatomicamente modernos africanas ancestrais com populações ancestrais de seres humanos arcaicos, já havia sido levantada pelo próprio Hammer e seus colaboradores em outro estudo com base em outros dados [3].

Além disso, existem evidências fósseis que apoiariam o cenário da introgressão, pois em 2011, pesquisadores, examinando fósseis humanos de um sítio na Nigéria, conhecido como Iwo Eleru, identificaram uma estranha mistura de características antigas e modernas nestes fósseis humanos, o que também pode sugerir que tenha ocorrido cruzamento entre humanos anatomicamente modernos e populações com características mais arcaicas [1].

“A aldeia em Camarões com uma assinatura genética incomum é bem na fronteira com a Nigéria, e Iwo Eleru não é muito longe”, afirma Hammer.

Um cientistas que analisou os fósseis de Iwo Eleru, Chris Stringer,  que trabalha no Museu de História Natural, em Londres, afirmou que os novos resultados sobre este ‘novo’ cromossomo Y, destacam a necessidade de obtermos e analisarmos mais dados genéticos de populações modernas de africanos subsaarianos e também somam-se ao coro dos que enfatizam a importância de considerar cenários evolutivos mais complexos:

Os fósseis humanos mais antigos conhecidos, tanto no Oeste da África, em Iwo Eleru, como na África Central, em Ishango [na República Democrática do Congo] mostram inesperadamente características arcaicas, por isso certamente parece que temos um cenário mais complexo para a evolução dos humanos modernos na África”

Os autores do estudo, por fim, alertam para a natureza estocástica do processo genealógico e como isso pode afetar a inferência a partir de dados vindos um único lócus, nos forçando a ter bastante cuidado ao interpretarmos a localização geográfica de ramos divergentes da árvore filogenética do cromossomo Y de modo que possamos elucidar com mais confiança e precisão as origens de nossas espécie e das populações modernas de seres humanos.

Como um amigo geneticista/biólogo molecular comentou ao divulgar o artigo, “Sabemos que estamos no trabalho certo quando nos emocionamos com os resultados obtidos em nossa área de trabalho.a É para empolgar e emocionar não só aos biólogos e pesquisadores da área, mas a todos que são curiosos e fascinados pela evolução humana e biológica de modo geral. É sempre inspirador pensar que peças de nosso quebra cabeças genealógicos podem estar dentro de qualquer um de nós.

Para saber mais veja as postagens da série ‘Quem somos nós e como sabemos quem somos? Parte I , Parte II e Parte III’  e “Mais vislumbres de miscigenações ancestrais no DNA humano“.

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Referências:

  1. Barras, Colin The father of all men is 340,000 years old New Scientist [Updated 21:45] 06 March, 2013.

  2. Mendez, Fernando L.; Krahn, Thomas; Schrack, Bonnie; Krahn, Astrid-Maria; Veeramah, Krishna R.; Woerner, August E.; Fomine, Forka Leypey, Mathew; Bradman, Neil; Thomas, Mark G.; Karafet, Tatiana M.; Hammer, Michael F. An African American Paternal Lineage Adds an Extremely Ancient Root to the Human Y Chromosome Phylogenetic Tree American journal of human genetics volume 92 issue 3 pp.454 – 459 doi:10.1016/j.ajhg.2013.02.002

  3. Wall J, Hammer M: Archaic admixture in the human genome. Curr Opinin Genet Dev 2006, 16:606-610. http://dx.doi.org/10.1016/j.gde.2006.09.006

Créditos das Figuras:

Disponíveis nos sites dos autores citados e no artigo por eles publicados.

Bactérias modernas e os primórdios da evolução da divisão celular

Uma das características distintivas das bactérias é a posse de paredes celulares compostas de peptidoglicanos, mas, surpreendentemente, muitas bactérias modernas são capazes de mudar para um estado sem parede, chamado ‘forma-L’ [1, 2].

A parede celular é uma estrutura em camadas que envolve as células que as protege e mantém em sua forma, encontrando-se presente em todas as principais linhagens conhecidas de bactérias, estando presente também, muito provavelmente, no último ancestral comum de toas as células [1]. O fato desta estrutura ser tão importante inclusive a torna um dos principais alvos dos antibióticos, com algumas bactérias patogênicas sendo capazes de mudar para forma-L como forma de resistência a estes fármacos [3].

Contudo, o ponto realmente interessante sobre as formas-L é sua capacidade de proliferação dispensando completamente o maquinário de divisão celular, normalmente essencial, baseado na proteína FtsZ[imagem obtida aqui] que então passa a ocorrer por meio da formação de bolhas e túbulos de membrana [1].

Agora, um grupo de pesquisadores, Romain Mercier, Yoshikazu Kawai e Jeff Errington, mostrou que certas mutações em Bacillus subtilis que levam ao excesso de síntese de membrana (por meio do aumento da síntese de ácidos graxos) podem induzir a divisão celular típica das formas-L. De maneira complementar, no artigo publicado no dia 28 de fevereiro na altamente respeitada revista Cell, os cientistas conseguiram também mostrar que, ao aumentar artificialmente a área de superfície membranar em relação ao volume total da célula nas variantes selvagens – ou seja, sem as mutações – alterações de forma muito semelhantes as das formas-L também ocorrem, além da própria indução da divisão celular.

“Nosso estudo abre o caminho para a compreensão de como as formas-L bacterianas causam doenças e resistem aos antibióticos”, diz o autor senior do estudo Jeff Errington da Universidade de Newcastle. [3]

Assim, segundo os pesquisadores, este simples processos biofísico pode ter sido o responsável pela proliferação celular eficiente durante a evolução das células primordiais, antes que o complexo aparato bioquímico atual evoluísse, tornando o processo mais confiável e preciso. Portanto, as chamadas formas L bacterianas fornecem um modelo de como as células primordiais poderiam proliferar mesmo na ausência do complexo maquinário bioquímico de divisão celular, permitindo investigar com mais clareza o problema da origem das primeiras células.

“A principal surpresa para mim foi como era simples o mecanismo. Ele não requer qualquer tipo de maquinário proteico sofisticado” [3], diz Jeff Errington e complementa:

“Isso o torna plausível como uma explicação de como as células muito primitivas poderiam ter proliferado nos primórdios da evolução”[3]

“Ele também oferece um sistema modelo para futuras experiências destinadas a explorar os mecanismos de replicação possíveis de células primitivas que poderia ter existido antes da explosão de vida bacteriana no planeta cerca de quatro bilhões de anos atrás.” finaliza Errington [3]

Veja o video do grupo de Errington abaixo:

Estes resultados são ainda mais interessantes por que, há poucos anos, o grupo do conhecido biólogo molecular Jack Szostak [4], havia constatado que o crescimento de grandes vesículas multilamelares em novas vesículas ocorria por meio da formação de túbulos, o que indicava uma via para o acoplamento do crescimento e da divisão de vesículas, oferecendo uma explicação para como o processo de proliferação teria ocorrido ainda em uma fase protocelular. Como o processo é robusto e simples, os autores sugerem que esta via, ou uma muito semelhante, seria viável em condições pré-bióticas. Apesar do mecanismo exato ainda ser desconhecido, algumas observações microscópicas sugerem que os longos e finos túbulos de membrana estariam sujeitos à “instabilidade de perolação” que seria uma função da minimização da energia das superfícies possibilitada pela transformação espontânea de uma forma cilíndrica para a forma de um fio de contas [4].

Os finos elos da ‘corrente’, unindo as pequenas regiões esféricas adjacentes, seriam, assim, os pontos fracos que poderiam ser facilmente interrompidos por forças de cisalhamento. A formação destes túbulos é algo similar ao visto no processo de proliferação das formas-L e embora existam outras grandes diferenças estas semelhanças mostram a importância deste processos físicos e químicos bem básicos na evolução dos primeiros sistemas biológicos e que ainda podem ser observados em sistemas celulares modernos apesar de toda evolução de sistemas de controle refinado por meio de redes gênicas que agem por meio de seus produtos proteicos [4].

Com base nas informações de Mercier e colaboradores [1], em artigo/comentário na mesma edição, dois outros cientistas, Eugene Koonin e Armen Y. Mulkidjanian [5], sugeriram um modelo de transição evolutiva dos sistemas primitivos de divisão celular “mecânicos” para os modernos dependentes do complexo maquinário bioquímico. Neste cenário, as primeiras protocélulas possuiram membranas abiogênicas e se dividiriam por meio de algum processo mecânico análogo ao investigado e induzido experimentalmente por Mercier, Yoshikazu; Errington [1], e talvez em linhas similares ao descrito nos experimentos de Zhu e Szostak [4]. De acordo com Koonin e Mulkidjanian [5] nestes sistemas protocelulares primitivos a divisão poderia ser impulsionada por flutuações ambientais, tais como a evaporação periódica em poças de água pouco profundas, com esta forma de divisão mecânica persistindo até o último ancestral celular comum universal (LUCA, de ‘Last Celular Universal Ancestor‘) que de maneira plausível sintetizava membranas primitivas e quimicamente muito simples [5].

Os dois autores sugerem então que os sistemas de membranas modernos e os maquinários proteicos de divisão celular teriam então evoluído, de maneira independente, naos antepassados das duas grandes linhagens de procariontes, as bactérias e as archaea, possivelmente, impulsionadas pela evolução da paredes celulares. Na figura abaixo retirada do artigo de Koonin e Mulkidjanian, as membranas primitivas e quimicamente simples são mostradas com linhas tracejadas, e as membranas mais avançadas do moderno são mostradas por meio de linhas sólidas. As linhas vermelhas dentro das “células” indicam os protogenomas e genomas. Nas protocélulas primitivas estes protogenomas são mostradas como vários segmentos (de moléculas possivelmente de RNA), enquanto que o LUCA e o ancestrais diretos dos archaea e das bactéria são mostrados com seu único cromossomo circular típico das formas modernas de procariontes [5].

Esta convergência entre os estudos in vitro com modelos sintéticos de sistemas protocelulares, como os do grupo de Szostak [4], e os engenhosos experimentos com modelos in vivo moderno, como os apresentado por Mercier, Yoshikazu e Errington [1], são um exemplo de como os estudos sobre a origem da vida e o começo de sua evolução m avançando nas últimas décadas mesmo que ainda exista um longo e tortuoso caminho a percorrer para que possamos realmente compreender como este processo deve ter se dado.

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Referências:

  1. Mercier, Romain; Kawai, Yoshikazu; Errington, Jeff Excess Membrane Synthesis Drives a Primitive Mode of Cell Proliferation Cell, 2013; 152 (5): 997 doi: 10.1016/j.cell.2013.01.043

  2. Errington J. L-form bacteria, cell walls and the origins of life. Open Biol.2013 Jan 8;3(1):120143. doi: 10.1098/rsob.120143. PubMed PMID: 23303308. doi: 10.1098/rsob.120143

  3. How did early primordial cells evolve? Eurekaalert

  4. Zhu TF, Szostak JW. Coupled growth and division of model protocell membranes. J Am Chem Soc. 2009 Apr 22;131(15):5705-13. doi: 10.1021/ja900919c. PubMed PMID: 19323552; PubMed Central PMCID: PMC2669828. doi: 10.1021/ja900919c

  5. Koonin EV, Mulkidjanian AY. Evolution of cell division: from shear mechanics to complex molecular machineries. Cell. 2013 Feb 28;152(5):942-4. PubMed PMID: 23452845. doi:10.1016/j.cell.2013.02.008.

Do violeta ao ultravioleta (e às vezes, de novo, ao violeta): Evolução paralela da visão de cores em pássaros

Nada menos que 8 vezes, aves diferentes, teriam evoluído visão Ultra-Violeta (UV) de maneira independente a partir de um mesmo fotorreceptor retiniano ancestral sensível a luz violeta, de acordo com um novo estudo publicado no BMC evolutionary biology [1]. Este tipo de fenômeno é o que os biólogos evolutivos costumam chamar de evolução paralela, em que grupos distintos, porém, aparentados, em função de pressões seletivas equivalente uma mesma característica derivada de uma característica ancestral comum mais por um histórico de mutações, deriva e seleção natural diferente. A capacidade de detetar pistas visuais em ultravioleta pode muito ser útil na identificação de conspecíficos especialmente parceiros sexualmente maduros, além de poder ser importante para se evitar a predação e ajudar na busca de alimentos. 

As aves, em relação a visão de cores, podem ser divididas em dois grupos, aquelas que são sensível ao ultravioleta (UVS) e as que são sensíveis a luz violeta (VS). A distribuição destas duas classes tradicionalmente têm sido considerada como altamente conservada, ou seja, os especialistas costumavam acreditra que estas duas categorias haviam mudando muito pouco entre as diversas espécies ao longo da evolução. Porém, de acordo com os pesquisadores de um novo estudo sobre a filogenia da visão de cores em aves, como normalmente era muito difícil determinar a sensibilidade espectral dos fotorreceptores dos cones (células fotossensíveis da retina), até muito pouco tempo atrás, na realidade, muito poucas espécies haviam sido realmente investigadas em relação a esta característica de modo mais aprofundado. Felizmente, atualmente é possível distinguir se qualquer ave é UVS ou VS por meio do sequenciamento genômico dos genes que codificam proteínas fotorreceptoras conhecidas como opsinas, que existem nos cones, do tipo SWS1* UV/violeta [1, 2].

A dupla de pesquisadores da Universidade de Uppsala e da Universidade Sueca de Ciências Agrícolas, autores do estudo “The phylogenetic distribution of ultraviolet sensitivity in birds”, Anders Ödeen e Olle Håstad, sequenciaram o gene SWS1 de espécimes pertencentes a 40 espécies de aves, correspondentes a 29 famílias e 21 ordens de aves, identificando os resíduos de aminoácidos mais importantes que conferiam a sensibilidade ao UV (ajuste espectral) que são encontrados em duas posições (ou sítios) ao longo da sequência de aminoácido das opsinas SWS1, que seriam as equivalentes aos resíduos 86 e 90.

Os cientistas de posse desses dados, e outros adquiridos anteriormente, mapearam-nos sobre uma filogenia molecular, isto é, um gráfico das relações de parentesco inferidas através de conjuntos de dados desequências biomoleculares de várias aves. Esta filogenia mostrou que a visão de cores em aves mudou entre VS e UVS pelo menos 14 vezes durante a evolução desses grupos, com substituições de um único nucleotídeo podendo explicar todas essas mudanças e em 11 casos ocorreu exatamente a mesma mudança no mesmo nucleotídeo [1, 2].

Acima e à direita, podemos ver a reconstrução filogenética da evolução da opsina SWS1 [Clique na figura para ampliá-la]. A árvore, redesenhada da árvore de Hackett et al. [veja artigo, na referência 1], mostra as mudanças entre a sensibilidade ao violeta e ao UV do receptor SWS1. Os táxons novos neste estudo são apresentados em negrito e em parênteses estão códons e os resíduos de aminoácidos correspondentes ao ajuste espectral nas posições 86 e 90, respectivamente, acima da linha e abaixo da linha. Em minúsculas estão identificadas as substituições de nucleotídeos em sua mais provável posição evolutiva na árvore. O número de espécies analisadas por táxon é mostrado após os nomes do táxons. Nesta figura, para simplificação, os autores preferiram juntar os táxons charadriiformes e passeriformes, mesmo por que a evolução da SWS1 nestas ordens já foi reconstruída em outros trabalhos anteriores. Por fim, o asterisco (*) indica que o resíduo de aminoácido C86 foi encontrado num subconjunto, a família accipitridae , da ordem accipitriformes [1].

Essas alterações teriam ocorrido a partir de um antepassado dos passeriformes (o grupo que inclui a grosso modo, os ‘passarinhos’ e outras aves bem aparentadas, incluindo cotovias, andorinhas, melros, tentilhões, aves do paraíso e corvos) e dos psitacídeos (papagaios, periquitos e afins) que possuíam visão sensível ao violeta e que em diversas linhagens derivadas teriam evoluído sensibilidade a radiação ultravioleta e, em alguns casos, em passeriformes, revertido para visão violeta a partir da ultra violeta. Então, apesar de estar relativamente claro que o ancestral comum das aves, muito provavelmente, tinha um fenótipo VS, o estado ancestral em pássaros, da opsina SWS1 que é responsável pelo ajuste espectral, ainda não pode ser resolvido com muita confiança. Assim, com a distribuição filogenética da visão em cores UVS/VS em aves é muito complexa, tendo ocorrido tantas mudanças independentes, os cientistas aconselham muito cuidado ao inferir as sensibilidades espectrais a partir de táxons mesmo intimamente relacionados, sendo uma tarefa que deve ser feita com muita cautela.

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*Existem dois tipos principais de células fotorreceptoras, cones e bastonetes, que medeiam a visão na maioria dos animais. Estes dois tipos celulares têm formas diferentes e contêm os pigmentos fotossensíveis compostos de um proteína opsina e cromóforos, isto é, a rodopsina e os opsinas sensíveis a vários comprimentos de onda, com as rodopsinas dos bastonetes sendo responsáveis ​​pela visão crepuscular, especialmente o contraste entre claro e escuro, e os pigmentos dos cones, responsáveis pela visão de cores diurna. As opsinas dos cones são normalmente divididas em quatro subgrupos, LWS, MWS(Rh2), SWS1/SWS2, que, a grosso modo, teriam sua absorbância máxima, respectivamente, na faixa do vermelho (comprimentos de onda longos), verde (comprimento de onda médios), azul e violeta/UV (comprimento de onda mais curtos).

Veja também o artigo do evolucionismo, “Evolução da visão tricromática em primatas

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Referências:

  1. Odeen A, Håstad O. The phylogenetic distribution of ultraviolet sensitivity in birds. BMC Evol Biol. 2013 Feb 11;13(1):36. [Epub ahead of print] PubMed PMID: 23394614. DOI: 10.1186/1471-2148-13-36 [PDF]

  2. Birds evolved ultraviolet vision several times AlphaGalileo Foundation, 8 de fevereiro de 2013.

Créditos das Figuras:

VOLKER STEGER/SCIENCE PHOTO LIBRARY

Sobre Cachorros e Lobos

No mês passado publiquei no blog Biorritmo uma matéria que dei o mesmo título acima. Coincidentemente, na mesma semana saíram duas matérias sobre o mesmo assunto que eu acreditava já tão batido: ou seja, a origem das diferenças entre cães e lobos. No meu blog foquei o assunto a partir de uma palestra proferida pelo renomado primatólogo Aldemar Coimbra Filho na sede da Associação dos Amigos do Jardim Botânico do Rio de Janeiro em 2008.

Na ocasião, Coimbra Filho expôs que as numerosas raças de cães existentes são resultado da domesticação de mais de 50 subespécies de Canis lupus, o lobo, que há alguns milhares de anos vem sendo realizada pelo homem.

O primatólogo explicou também que a forma nominal do lobo europeu, Canis l. lupus, própria da Europa, possuía muitas raças geográficas distribuídas pela Eurásia. Atualmente encontra-se praticamente desaparecida, sobrevivendo precariamente na maior parte da Europa, mas ainda existente nas montanhas da Itália, nos Pirineus, na Espanha, na Serra da Estrela, em Portugal, sendo mais abundante em florestas da Europa Oriental e em muitos lugares da Ásia. 

Os lobos são animais gregários, com fortes laços sociais, o que favoreceu sua domesticação, principalmente quando eventuais filhotes foram criados pelos homens, com os quais se identificavam, passando a ser membros da alcateia. Este fato não ocorre com as demais espécies de canídeos sociais, como o Lycaon pictus (African hunting dog) da África negra e o Cuon alpinus (dhole) do sudeste asiático, que têm no regurgitamento de alimento para os filhotes o seu mais importante fator de união entre os indivíduos, esclareceu o palestrante.

A notável seleção zootécnica de que foi alvo o Canis lupus resultou em mais de 400 raças de cães, várias ainda em formação e outras em fase de desaparecimento, acrescentou Coimbra Filho. Conforme o mencionei no início, dois novos estudos publicados em janeiro deste ano procuraram compreender as origens das diferenças entre esses animais. Um, da bióloga evolutiva Kathryn Lord da Universidade de Massachusetts, sugere que a diferença comportamental entre cães e lobos está relacionada com as primeiras experiências sensoriais e o período de socialização desses animais.

“A pesquisadora decidiu estudar como sete filhotes de lobo e 43 cachorrinhos reagiam a novos cheiros e estímulos visuais. Os animais foram avaliados semanalmente e concluiu-se que o desenvolvimento dos sentidos ocorrem ao mesmo tempo. Porém, as duas subespécies de Canis lupus experimentavam o ambiente de forma diferente durante o desenvolvimento conhecido como período de socialização, que acontece durante quatro semanas logo no início da vida dos filhotes.” [*]

“De acordo com as observações, a pesquisadora confirmou que tanto cães quanto lobos desenvolvem os sentidos de olfato na idade com duas semanas de vida. No entanto, as duas subespécies entram no período de socialização em idades diferentes. Cachorros entram neste período com quatro semanas de vida, enquanto lobos começam com duas semanas.”[*]

“Kathryn descobriu também que quando os filhotes de lobos, ainda com duas semanas de vida, andam pela primeira vez, eles ainda não enxergam nem ouvem” [*].

Ninguém sabia isso sobre lobos, que quando eles começam a explorar o mundo, eles ainda são cegos e surdos e estão num estágio ainda primário do olfato”, disse.

Quando os filhotinhos de lobo começam a ouvir, eles ficam muito assustados com os novos sons, assim como quando começam a enxergar, eles sentem medo do que veem. Cada novo sentido que despertava, os lobos se assustavam, o que não aconteceu com os cachorros”, completou. 

“Os cães, por outro lado, só começam a explorar o mundo após o olfato, visão e audição estarem funcionando [*].”

É quase surpreendente o quanto cães e lobos são diferentes no início da vida se levarmos em conta o quão semelhantes geneticamente eles são. Alguns filhotes de cães são incapazes de se mexer. Já os lobos são ativos exploradores que caminham com boa coordenação e são capazes até de escalar pequenos obstáculos”, disse.

O outro estudo saiu na Nature e envolve sequenciamento de genoma. Segundo Erik Axelsson e colaboradores, a assinatura genômica de domesticação do cão revela uma adaptação a uma dieta rica em amido. Eles realizaram um estudo do genoma inteiro de cães e lobos e identificaram 3,8 milhões de variantes genéticas usadas na identificação de 36 regiões genômicas que, provavelmente, representam alvos para a seleção durante a domesticação do cão. Dezenove destas regiões contêm genes importantes na função cerebral, oito dos quais estão relacionadas com o desenvolvimento do sistema nervoso central e, potencialmente, com as  alterações comportamentais subjacentes para a domesticação do cão . 

Dez genes com papéis-chave na digestão do amido e no metabolismo da gordura também mostraram sinais de seleção. Esses resultados indicam que as novas adaptações que permitiram aos primeiros ancestrais dos cães modernos desenvolverem uma dieta rica em amido, em relação à dieta carnívora dos lobos, constituiu um passo decisivo na domesticação inicial dos cães.

Referências:

  • Axelsson E, Ratnakumar A, Arendt ML, Maqbool K, Webster MT, Perloski M, Liberg O, Arnemo JM, Hedhammar A, Lindblad-Toh K. The genomic signature of dog domestication reveals adaptation to a starch-rich diet. Nature. 2013 Jan 23. doi: 10.1038/nature11837. [Epub ahead of print] PubMed PMID: 23354050.

  • Lord, K. A Comparison of the Sensory Development of Wolves (Canis lupus lupus) and Dogs (Canis lupus familiaris). Ethology, 2013 119: 110–120. doi: 10.1111/eth.12044

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Para saber mais:

*Estudo explica por que cães e lobos são tão diferentes

Sobre Cachorros e Lobos

Palestra Boa pra Cachorro

Crédito das imagens:

DUNCAN SHAW/SCIENCE PHOTO LIBRARY

EMELY/SCIENCE PHOTO LIBRARY