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A explosão cambriana. Parte II: Rápida, mas nem tanto assim!

A ‘explosão cambriana‘ é um tema recorrente em qualquer blog ou site que lide com a evolução. Ela é tanto um dos eventos mais importantes da evolução dos animais (se não o mais importante), como é um dos fenômenos mais abusados e distorcidos pelos anti-evolucionistas. Discutimos este evento várias vezes, especificamente (e o mencionamos um número ainda maior de vezes), em posts relacionados aqui no evolucionismo [A Explosão Cambriana”, “Conheça os fósseis dos primeiros animais com ‘esqueleto’”, “Uma Breve História da Vida”, A Explosão Cambriana: Uma introdução””, “De volta ao cambriano: Dividindo o evento”, “O ‘pavio filogenético’ e a ‘explosão cambriana’ não se fundem. e “Como distorcer a genética e a biologia evolutiva: Muita ignorância e pouca humildade].

Nos artigos anteriores sobre este tema já havíamos enfatizado aquilo que a explosão não é e o quanto sabemos sobre este fenômeno que, apesar de extraordinário (com suas possíveis causas ainda sendo bastante discutidas entre os especialistas) não é o mistério insondável que desafia as explicações naturalistas e científicas que os criacionistas sempre parecem querer transformá-la.

Darwin, em uma época na qual conhecíamos muito menos o registro fóssil, chegou, realmente, a sugerir que esta súbita aparição seria de difícil conciliação com o seu modelo de evolução gradual guiado pela seleção natural, uma vez que, em tese, seriam exigidos longos períodos tempo [1]. Esta opinião foi ecoada por pesquisadores posteriores que, por causa disso, como Darwin, defenderam um prelúdio mais longo para a explosão cambriana, porém, que não havia sido registrado na coluna geológica [1]. Alguns destes sucessores de Darwin chegaram a sugerir que este pulso de diversificação fossilífera, além de não poder ser explicável sem que postulássemos uma longo prelúdio pré-cambriano críptico, poderia demandar também que tivéssemos que propor “mecanismos evolutivos desconhecidos”. Estas considerações e as preocupações, na época, legítimas associadas a elas, como os autores de um recente trabalho sobre a questão colocam [1], foram “previsivelmente exploradas por opositores da evolução.”, Porém, “o dilema de Darwin” [1], como a ele se referem estes cientistas, pode ser resolvido de uma maneira muito mais simples e elegante. O primeiro ponto para esta solução já é bem conhecido entre os cientistas e já os comentamos nos artigos anteriores [veja A Explosão Cambriana: Uma introdução”, “De volta ao cambriano: Dividindo o evento”, “O ‘pavio filogenético’ e a ‘explosão cambriana’ não se fundem. e “Como distorcer a genética e a biologia evolutiva: Muita ignorância e pouca humildade] sobre o tópico.

Neles  foi explicado que este evento não marca a origem dos animais, já que existiram faunas anteriores, como a de Ediacara, mas refere-se ao aparecimento no registro fóssil de vários grupos animais, principalmente com simetria bilateral, ‘esqueletizados’, ou seja, com partes duras externas ou internas biomineralizadas‘, conchas, carapaças, ossos, dentes, cartilagem, escamas etc. Esta “radiação evolutiva” representa tanto um aumento da diversidade (o que pode ser estimado pelo número de espécies e gêneros) como um aumento da disparidade, ou seja, dos planos corporais, o que é mais ou menos equivalentes aos filos de organismos, embora, hoje em dia, hajam outras formas de quantificar a disparidade com base em medidas biométricas mais precisas [2].

Também já havíamos discutido que a explosão cambriana não ocorreu instantaneamente, sendo uma ‘explosão’ apenas em um sentido figurado, ou seja, ao adortamos uma perspectiva do tempo profundo, em que milhões de anos podem ser vistos como ‘instantes’ [A Explosão Cambriana: Uma introdução”, “De volta ao cambriano: Dividindo o evento”, “O ‘pavio filogenético’ e a ‘explosão cambriana’ não se fundem.].

A figura acima foi traduzida e retirada da figura do artigo de Marshal (2006). As datações, por sua vez, foram retiradas de Grotzinger et al. (1995), Landinget al. (1998), Gradstein et al. (2004), and Condon et al. (2005). As curvas de isótopos de carbonatos do Neoproterozoico vieram de Condon et al. (2005), do cambriano inicial em sua maioria de Maloof et al. (2005), mas também de Kirschvink & Raub (2003), as do cambriano médio e tardio de Montanez et al. (2000). Na figura é possível perceber a ampla variação desses valores durante parte do cambriano inicial, o que em parte é devido a variação geográfica, mas também a variação medida no Marrocos. As medidas de disparidade são provenientes de Bowring et al. (1993) e as de diversidade são oriundas da tabulação de Foote (2003) derivadas dos dados de gêneros marinhos compilados por Sepkoski (Sepkoski 1997, 2002). Todos os táxons encontrados em intervalos, assim como aqueles que estendem-se através dos intervalos, foram contados e incluídos na análise. As idiossincrasias de curta duração no registro das rochas, podem adicionar ‘ruído’ às curvas de diversidade, devendo assim serem omitidas para descartar este efeito. Marshal ressalta que a diversidade persistente era muito mais baixa que os valores mostrados; muitos dos táxons encontrados em um intervalo do registro estratigráfico não coexistiram. As fronteiras das curvas dos cruzamentos (de acordo com Michael Foote em comunicação pessoal a Marshal) nos fornecem o número de táxons que devem ter coexistido nos pontos mostrados, mas é preciso lembrar que como as fronteiras estratigráficas tradicionais são baseadas em tempos de reviravoltas taxonômicas incomuns, as estimativas podem na realidade subestimarem as diversidades típicas permanentes [Esta versão do texto apareceu originalmente “A Explosão Cambriana: Uma introdução”].

A figura logo acima, extraída de Petterson e colaboradores (2005), mostra o tempo do começo da evolução animal no contexto geológico da transição Neoproterozóico para o Cambriano. Os nós da árvore filogenética estão posicionados de acordo com as estimativas do relógio molecular atualizadas em um trabalho anterior de Peterson e colaboradores. Na base podemos ver uma curva generalizada de isótopos de carbono no Pré-Cambriano que foi retirada do trabalho de Knoll de 2000; já as idades dos limites foram retiradas do ICS de 2003 (a Cartilha Internacional Estratigráfico) exceto para os limites entre os períodos Criogeniano e Ediacarana que vieram de Knoll et al. ( 2004), que foi colocado em 635 milhões de anos, como estimado por Hoffman et al. (2004) e Condon et al. (2005). Estes limites, na verdade, como afirmam Calver et al. (2004) podem ser ainda mais jovens, talvez menos com devendo serem colocados em 580 milhões de anos, portanto, as glaciações Marinoana e Gaskiers pode ter ocorrido mais ou menos ao mesmo tempo. Todas as outras idades estão listadas na Tabela 1. Abreviações: ND; Nemakitano-Daldyniano, T; Tommotiano; A; Atdabaniano, B/T; Botomiano/Toyoniano; M; Oriente. (Adaptado de Knoll e Carroll 1999) [Petterson e colaboradores, 2005]

Porém, mesmo com todas estas ressalvas, a duração deste evento sugere, ainda assim, um processo de rápida inovação fenotípica e genética, ou seja, um fenômeno legitimamente intrigante, embora a velocidade exata e a natureza precisa desta grande radiação evolutiva ainda nos escape. Mas talvez isso esteja mudando de figura [1, 3].

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O auge da ‘explosão’, propriamente dita, durou cerca de 10 milhões de anos, de 530 a 520 milhões de anos, mas seu início pode ser traçado antes mesmo do Cambriano (542 milhões de anos) até, pelo menos, o final do Ediacarano, o período anterior, que é possível encontrar depósitos fósseis com a chamada fauna das “pequenas conchas” (‘small shelly’). Isso sem esquecer as faunas anteriores, como a já mencionada biota de Ediacara, além das evidências de organismos rastejantes com simetria bilateral (baseadas em seus rastros e túbulos etc, os icnofósseis) que jogam a origem dos grupos animais envolvidos na explosão para mais de 580 milhões de anos atrás. Estas estimativas são reforçadas pelas evidências baseadas na reconstrução de filogenias moleculares com dados de organismos modernos.

Embora hajam muitas questões em aberto, o consenso que parece emergir, portanto, favorece a ideia de que realmente a explosão cambriana contou um pavio filogenético ‘queimando’ antes de sua detonação, porém, bem mais curto do que o inicialmente proposto a partir dos primeiros estudos que usaram relógios moleculares restritos e que estimaram tempos muito mais antigos de divergência desses grupos que, mais tarde, diversificariam-se  e evoluiriam seus planos corporais em paralelo,  durante o cambriano [A Explosão Cambriana: Uma introdução e O ‘pavio filogenético’ e a ‘explosão cambriana’ não se fundem.].

Mesmo que suponhamos um pavio filogenético mais longo, ainda assim, esta suposição é consistente com o presente cenário. Isso é assim por que a origem dos filos isto é, o ponto em que os ancestrais dos grupos em questão começaram a divergir não é necessariamente o mesmo que o começo da explosão que foi quando muitas das novidades morfológicas e genético-desenvolvimentais teriam evoluído em paralelo [De volta ao cambriano: Dividindo o evento] , embora seja um pouco mais difícil interpretar certas inovações compartilhadas por vários filos neste cenário derivado ligeiramente alterado e que permite uma pavio mais longo [1].

Este cenário, entretanto, faria ainda mais sentido ainda mais plausível caso as taxas de evolução no final do Pré-Cambriano e começo do Cambriano fossem demonstravelmente mais elevadas, o que reduziria o período crítico e o tamanho do pavio filogenético. Infelizmente, as estimativas precisas de taxas de evolução durante a explosão cambriana são pouco confiáveis e dependem de um registro estratigráfico irregular, durante este intervalo de tempo, o que tem impedido estimativas paleontológicas diretas dessas taxas evolutivas []. Agora, um grupo de pesquisadores que inclui cientistas da Universidade de Adelaide, Austrália, e do Museu de História Natural, em Londres, publicou um novo trabalho, na revista Current Biology, no qual estima as taxas de evolução morfológica e genética de vários grupos de animais vivos durante este momento no tempo [1].

Os pesquisadores responsáveis pelo estudo, Michael S.Y. Lee, Julien Soubrier e Gregory D. Edgecombe, basearam-se na ideia que as taxas de evolução morfológica do passado – ou seja, aquelas envolvendo linhagens ancestrais – podem ser inferidas a partir de diferenças fenotípicas entre os organismos vivos, assim como as taxas de evolução molecular em linhagens ancestrais pode ser estimadas a partir de divergências genéticas entre os mesmos organismos modernos. O grupo de animais investigado foi o dos artrópodes (insetos, crustáceos, aracnídeos e seus familiares), o grupo animal mais diverso desde o período Cambriano até os dias de hoje, mas os resultados, de acordo com a equipe de cientistas, muito provavelmente valem também para os demais grupos. Isso ocorre por que os artrópodes são de longe o mais abundante e bem conhecido filo que surgiu no Cambriano, representando normalmente cerca de 40% das espécies e mais de metade dos espécimes em biotas como as do folheio de Burgess. Tal representatividade continua mesmo nos dias de hoje, sendo os padrões encontrados em artrópodes rotineiramente extrapolados como sendo representativos de todos os táxons surgidos no Cambriano [1].

Hoje já é possível – a partir das sequências de DNA obtidas a partir de espécimens de vários táxons modernos e usando, de preferência, múltiplos pontos de calibração com base no registro fóssil – estimar as relações evolutivas e datas de divergência dos diversos grupos investigados. Estes métodos permitem inferir para cada ramo, simultaneamente, o comprimento do ramo em unidades de tempo (a duração) e o comprimento em termos do número de substituições moleculares (mudança molecular), o que permite calcular diretamente as taxas evolutivas. Um subgrupo destes métodos específico, conhecido como métodos de “relógios relaxados”, pode revelar, inclusive, como as taxas mudaram ao longo do tempo, ao permitir que as taxas de evolução molecular variem entre os ramos, tanto internos (entre dois nós da filogenia, sempre extintos) e externos (levando a uma nó terminal que é tipicamente um grupo de organismos vivos hoje em dia). Embora estas abordagens já estejam sendo aplicadas a dados morfológicos, elas não haviam sido usadas ainda ​​para tratar explicitamente a questão específica de taxas ancestrais de mudança evolutiva [1]. A principal diferença deste estudo para outros recentes foi exatamente esta; enquanto os demais estudos concentravam-se em estimar as datas de divergência, o estudo do Current Biology teve como objetivo explicito estimar como e quanto as taxas de evolução variaram ao longo do tempo [1, 2].

A análise realizada neste artigo envolveu mais de 395 características fenotípicas e 62 sequências gênicas codificadoras de proteínas, tendo como base 20 pontos de calibração tomados do registro fóssil. Os dados em seu conjunto foram analisados por meio de métodos de relógios moleculares relaxados através do pacote BEAST [do inglês “Bayesian evolutionary analysis by sampling trees“] que, ao mesmo tempo estima a topologia filogenética (ou seja, o padrão de ramificação e nós da árvore evolutiva), estima também as datas de divergência, além das taxas de mudança evolutiva morfológicas e moleculares entre os ramos e assim também através do tempo.

BEAST é um programa para análise bayesiana de sequências moleculares usando MCMC (Markov chain Monte Carlo) orientado para filogenias enraizadas e com estimação dos tempos de divergência inferidas usando-se relógios moleculares.

Este software pode também ser empregado tanto para reconstruir filogenias, como para testar hipóteses evolutivas sem que seja necessário condicionar o teste a uma única topologia de uma árvore filogenética. [Para uma visão geral dos métodos de inferência filogenética moleculares e de estimação de tempos de divergência, veja esta resposta aqui do nosso tumblr e para compreender um pouco melhor no que consistem os chamados métodos Bayesianos, aconselho este artigo do Bule Voador].

Esta estratégia computacional, permitiu aos pesquisadores incluíssem os dados fenotípicos, de modo que eles influenciassem a topologia da árvore filogenética e os tempos de divergência, já que, segundo os autores, mesmo na presença e em combinação com os dados genômicos, eles podem ser cruciais para a reconstrução da topologia da árvore e desta maneira dos tempos de divergência absolutos [1].

A topologia da árvore filogenética (e as datações do ramos das mesmas) dos artrópodes foram também coerentes com as árvores obtidas a partir dos mesmos genes nucleares, mas usando através uma amostra mais ampla de espécimens, bem como são também consistentes com as filogenias inferida a partir de uma outra vasta combinação de dados molecular e de conjuntos de dados combinados [1].

As evidências fósseis mais modernas para os crustáceos, por exemplo, sugerem fortemente que os grandes grupos taxonômicos dos artrópodes devem ter divergido e evoluído dentro de uma janela de tempo algo em torno de 40 milhões de anos. Isso quer dizer que as extensas alterações moleculares e fenotípica que ocorreram nos ramos da arvore evolutiva dos artrópodes que levam a grupos como euchelicerata, miriapoda, mandibulata, pancrustacea, oligostracas, vericrustacea e miracrustacea etc devem ter ocorrido neste intervalo mais estreito de tempo, já que os ‘grupos copa‘ – ou seja, os grupos com as características dos representantes do espécimens mais atuais vivos dos táxons e que, com eles, formam um grupo monofilético – têm mais de 500 milhões de anos [1].

Mas afinal quão rápidas foram as taxas evolutivas durante o cambriano?

Os autores do estudo relataram que a taxa média de evolução fenotípica das linhagens que divergiram no começo do Cambriano foi de 0,561% por milhão de anos, o que é aproximadamente 4 vezes maior do que a taxa média das linhagens que divergiram posteriormente (0,136% por milhão de anos) no resto do fanerozoico. Já a taxa média de evolução molecular no começo do Cambriano foi de 0,117% por milhão de anos, aproximadamente, 5,5 vezes maior do que a taxa média posterior que é de 0,022% por milhão de anos, sendo esta última estimativa altamente consistente com as estimativas conservadoras das taxas deduzidas a partir de dados do genoma nuclear obtidas de invertebrados modernos [1].

Assim, as taxas de evolução em linhagens de artrópodes mais antigas mostraraam-se substancialmente mais rápidas do que as taxas para o fanerozoico posterior [“Ver ou não ver? Eis a questão do fanerozóico?”]. As mais rápidas taxas de evolução molecular ocorrem nos ramos que levam ao grupos Arthropoda, bem na raiz, e Pancrustacea que são cerca de 10 vezes maiores do que as taxas médias subsequentes. As taxas de evolução morfológica mais rápidas podem ser observadas no surgimento dos Mandibulata, sendo estas mais de 16 vezes maiores que no resto do fanerozoico [1].

Os resultados do estudo revelaram que as quantidades relativas de mudança evolutiva ao longo da filogenia são consistentes com outras análises disponíveis na literatura científica, como, por exemplo, as que indicam que os ramos mais basais dos artrópodes aqueles que se separaram primeiro durante a evolução, – exibem alterações moleculares e morfológicas mais substanciais ou seja, neste ponto teriam surgido muitas ‘sinapomorfias‘ [1] nos grupo características derivadas inovadoras compartilhadas apenas pelo grupo e subgrupos descendentes [veja os novos posts sobre o tema de nossa colaboradora Ester de Oliveira “Filogenia mastigada para biólogos e demais curiosos 1” e “Filogenia mastigada para biólogos e demais curiosos 2:” e “Filogenia Mastigada 3. Grupos Monofiléticos e Merofiléticos e a filosofia por detrás da Filogenia“]

Logo acima vemos as linhagens de artrópodes que originaram-se durante a explosão cambriana. A maioria delas é de curta duração, rapidamente divergindo, mas passam por grande quantidade de mudança fenotípica e molecular. Os ramos e táxon nestas três árvores estão em ordens idênticas e possuem o mesmo código de cores. Podemos facilmente observar a grande quantidade de variação indicada pelas ramificações longas em negrito (B) e (C), e as durações curtas correspondentes desses ramos em (A). Em (A) pode-se ver uma árvore com os comprimentos dos braços e os tempos de divergência mostrados em relação ao tempo; com sombreados rosas destacando o período que antecede o final do Cambriano (> 500 Ma), durante o qual os mais altos níveis de diversidade (“filo” e “classe”) surgem no animal registro fóssil*. As barras azuis indicam as 95% maiores densidades posteriores (HPDs) para as divergências, que são muitas vezes grandes devido à heterogeneidade extrema das taxas. Já em (B) está ilustrada uma árvore com comprimentos dos ramos proporcionais à mudança molecular; o negrito i ramos com idades maior que 500 milhões de anos (idade do ramo = ponto médio do nó superior e inferior). Por fim em (C) está mostrada uma árvore com comprimentos dos ramos proporcionais à mudança fenotípica; com o negrito mostrando os ramos com idades maiores que 500 milhões de anos [1].

Além de terem conduzido estas análises principais, os pesquisadores também testaram a sensibilidade dos seus resultados frente a outros métodos analíticos, como também investigaram como alterações nas datas de divergência e nas taxas evolutivas interfeririam nas estimativas, analisando os dados moleculares em isolamento e a topologia das árvores filogenéticas por meio da inclusão de novos táxons de artrópodes que foram recentemente propostos na literatura científica [1].

Os pesquisadores empregaram análise de máxima verosimilhança utilizando somente os dados moleculares, inferindo daí apenas a topologia da árvore e, em seguida, estimando as datas nessa topologia foram capazes de recuperar estimavas da ordem e tempo dos eventos muito semelhantes, além de padrões e taxas de evolução muito parecido ao obtido pela abordagem principal. As taxas médias de evolução fenotípica e molecular inferidas desta segunda maneira, após o início do Cambriano, estão dentro dos limites de 5% das estimativas baseadas no método Bayesiano; as características fenotípicas, de acordo com estes métodos, divergiram a uma taxa de 1,17% por milhão de anos, no início do Cambriano, cerca de 8 vezes a taxa média para o restante do Fanerozoico (0,139% por milhão de anos); enquanto a molecular foi de é 0,204% por milhão de anos, ou seja, mais ou menos 9 x maior do que a taxa média subsequente (0,021% por milhão de anos). Isso quer dizer que as medidas foram todas bastante consistentes entre si [1].

A robustez dos pressupostos de calibração também foi testada através da exclusão aleatória de pontos de calibrações internos, bem como por meio do emprego uma série de restrições nos tempos de origem para o grupo dos Panarthropoda, fazendo as idades das raízes da árvore variarem entre os limites rígidos e mais suaves, respectivamente, de < 542 e < 700 milhões que estão dentro dos intervalos da grande maioria das estimativas mais recentes para o início da divergência dos grupos que participaram da explosão cambriana [1].

A conclusão a qual os cientistas chegaram é que as estimativas das taxas evolutivas são bastante robustas de acordo com o estudo, inclusive em relação as suposições sobre a idade precisa da origem dos artrópodes. Na verdade, surpreendentemente, estas estimativas não mudam substancialmente mesmo se a origem dos artrópodes seja comprimida inteiramente no Cambriano (~ 542 milhões de anos atrás), com todo o processo durando pouco mais de 10 milhões de anos até a explosão em si, ou se ela tenha tido suas raízes em um ponto anterior do tempo, ainda no Criogeniano (~ 650 Milhões de anos atrás). Caso pressuponha-se menos restrições na origem da divergência e permita-se que a raiz da árvore filogenética se estenda no tempo para períodos ainda mais antigos, mesmo assim, para os pesquisadores obterem uma redução substancial dessas estimativas das taxas evolutivas tornando as equivalentes as médias subsequentes, eles teriam que pressupor que os Panartrópodes originaram-se a mais ou menos 940 milhões de anos, o que não parece nada plausível. Os Panartrópodes, muito provavelmente, não tem menos de 542 milhões de anos que é quando já existem vários fósseis de rastros potencialmente deste grupo, mas também não ter muito mais de 650 milhões de anos, excedendo as muitas estimativas moleculares recentes, além de ultrapassar a idade para qual temos fósseis de qualquer outro animal [1].

 

Ao lado temos um artrópode vivo (a centopeia do gênero Cormocephalus) rasteja sobre seu parente extinto fossilizado há 515 milhões de anos que viveu durante a explosão cambriana (o trilobita do gênero Estaingia). (Crédito da imagem: Michael Lee; Universidade de Adelaide).

 

 

O mais importante, entretanto, é que estas taxas mais rápidas inferidas neste estudo são completamente consistentes com a evolução por seleção natural e com dados obtidos a partir de estudos com organismos vivos, e, como enfatizam os pesquisadores, os autores podem resolver o tal “dilema de Darwin” [1].

Não há qualquer motivo, portanto, para serem postular taxas inexplicavelmente rápidas ou ‘saltos evolutivos’ para explicar a ‘explosão cambriana’, mesmo em um cenário extremo em que as divergências dos grupos que deram origens aos filos modernos teriam ocorrido todas dentro do Cambriano em um período de menos de 20 milhões de anos. Como concluem os autores:

Pelo contrário, o padrão é consistente com muitas linhagens do Cambriano exibindo taxas de evolução morfológica e molecular acelerada – porém plausíveis. A seleção direcional típica pode aumentar as taxas de evolução fenotípica por ordens de magnitude por curtas escalas de tempo curtas [39], e até mesmo regiões genômicas conservadas podem apresentar diferenças de 10 vezes nas taxas de evolução entre linhagens irmãs vivas [40]. Mais especificamente, em artrópodes, os conjuntos de dados das primeiras e segundas posições dos códons sozinhos muitas vezes apresentam duas vezes, e, ocasionalmente, até 5 vezes, as diferenças entre táxons intimamente relacionados (Figura S2D).” [1]

Estas taxas, apesar de não serem as mais altas documentadas são ainda assim incomuns em comparação com o resto das médias do fanerozoico, especialmente por que estavam presentes em muitos linhagens e não em apenas algumas linhagens isoladas, o que tornam a explosão cambriana um evento impressionante, porém, não inexplicável.

Este trabalho, como é o primeiro do tipo (embora use ferramentas e estratégias que já estão por aí há um tempinho), ainda precisa ser melhor digerido pela comunidade científica e respaldado por trabalhos com abordagens alternativas e complementares que compensem as presentes limitações deste estudo. Como Philip Donoghue, da Universidade de Bristol, no Reino Unido, e Douglas Erwin, do Instituto Smithsoniano, em Washington, EUA, (especialistas não envolvidos com o estudo explicam), o fato dos dados morfológicos dos grupos extintos não terem sido incorporados e de algumas das estimativas de tempo serem um pouco problemáticas, precisamos ter um pouco de calma ao aceitar estes números. Porém, como estes mesmos especialistas concordam, esta nova metodologia é muito promissora, com a combinação de vastos conjuntos de dados morfológicos e genéticos associados ao poderosos novos métodos de computacionais de estimação de tempo, empregando relógios moleculares mais relaxados e usando-se múltiplos pontos de calibragem no registro fóssil, parece ser mesmo o caminho a se seguir [2].

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* Nota: Este é um ponto frequentemente distorcido pelos criacionistas e propenso a mal entendidos. A primeira impressão que algumas pessoas têm ao analisar uma árvore filogenética como essa é que os grandes grupos (‘filos’ e ‘classes’) originam-se primeiro, já que eles são representados pelas primeiras linhas de divergência, como os demais subgrupos originando-se mais tarde. Isso ocorre especialmente por que impomos um sistema de classificação baseado em características dos espécimens modernos para caracterizar os grupos que é, exatamente, o que fizemos ao estabelecer os táxons tradicionais atuais. A questão é que, quando estes ‘grupos’ originam-se, eles não eram ainda ‘filos’ ou ‘classes’, mas apenas espécies que deram origem a outras espécies que, por sua vez, deram origem a outras espécies e assim por diante; processo esse que, durante o qual, as características dos grupos foram surgindo e que, apenas muito mais tarde, em conjunto – e após muitas linhagens com características intermediárias terem sido extintas – foram usadas para caracterizar e diagnosticar os grandes grupos, como ‘filos’ e ‘classes’. Portanto, no começo do processo de cladogênese, ou seja, de especiação e diversificação das linhagens, as duas espécies recém formadas não tinham seus planos corporais distintos, sendo apenas em retrospecto atribuíveis aos filos, quando observamos seus descendentes, após vários eventos de cladogênese e evolução genética e morfológica é que faz sentido falar em um grupo mais amplo e em planos corporais distintos. Além do mais as características fenotípicas e genéticas, mesmo que em uma taxa relativamente rápida foram adquiridas em várias etapas, além de provavelmente terem sido melhor integradas e modificado-se ainda mais durante esses processo. 

A ideia é que quando os primeiros organismos com simetria bilateral estavam divergindo a partir de ancestrais comuns, as diferenças que eles acumulariam em certos eventos de especiação ou ao longo da evolução de uma dada linhagem ancestral dos grupos mais modernos, na época, estas ‘sinapomorfias’ eram relativamente simples. Afinal, um organismo vermiforme bilateralmente simétrico é apenas um pouco distinto de um outro organismo vermiforme bilateralmente simétrico, mas com um maior grau de cefalização ou mesmo com certa segmentação corporal. Esta simples constatação já deveria mais imunes a nos impressionarmos com a supostos saltos qualitativos que estariam envolvidos nos tipos de mudanças morfológicas e genéticas na primeiras fases de evolução dos grupos de animais. Porém, existem evidências ainda mais convincentes de que a classificação dos filos baseados em uma percepção das características e seus padrões de organização modernos impostas em retrospecto é bastante artificial e, como explica Matzke (“Down with phyla!” e “Down with phyla! (episode II)”) eleva diferenças relativamente, inicialmente, simples as suas versões modernas muito mais derivas sugerindo grandes saltos qualitativos, quando de fato esse não foi o caso.

Alterações equivalentes as que caracterizam algumas dessas grandes transições, de fato, ocorrem de maneira muito rápida, como é o caso da “inversão” do eixo dorso-ventral, evento crucial na evolução dos cordados, e que ocorreu a partir de uma mudança da posição neural para a abneural. Este mesmo tipo de mudança na posição da boca evoluiu, a menos de 50 milhões de anos atrás, pelo menos duas vezes, em um grupo de nematoides aparentados ao famoso organismo-modelo, Caenorhabditis elegans. Alterações como estas não parecem, portanto, serem exclusivas do Cambriano, podendo, desta maneira, serem estudadas experimentalmente em organismos modernos que sejam estreitamente relacionados.

  • Fitch, D. H. A. and Sudhaus, W. (2002), One small step for worms, one giant leap for “Bauplan?”. Evolution & Development, 4: 243–246. doi: 10.1046/j.1525-142X.2002.02011.x

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Referências:

  1. Lee, Michael S.Y., Soubrier, Julien, Edgecombe, Gregory D. Rates of Phenotypic and Genomic Evolution during the Cambrian Explosion. Current Biology, 2013 DOI: 10.1016/j.cub.2013.07.055 [Link]
  2. Narbonne, GM The ediacara biota: Neoproterozoic origin of animals and their ecosystems Annual Review of Earth and Planetary Sciences Volume: 33: 421-442, 2005. DOI: 10.1146/annurev.earth.33.092203.122519
  3. Servick, Kelly Evolution’s Clock Ticked Faster at the Dawn of Modern Animals ScienceNow, setembro de 2013.

Créditos das Figuras:

  • Marshall, Charles R. (2006). “Explaining the Cambrian ‘explosion’ of animals.” Annual Review of Earth and Planetary Sciences. 34: 355-384. http://dx.doi.org/10.1146/annurev.e[…]31504.103001
  • Peterson, Kevin J. , McPeek ,Mark A. and Evans, David A. D. Tempo and mode of early animal evolution; inferences from rocks, Hox, and molecular clocks (in Macroevolution; diversity, disparity, contingency; essays in honor of Stephen Jay Gould ) Paleobiology(June 2005), 31(2, Suppl.):36-55 doi: 10.1666/0094-8373(2005)031[0036:TAMOEA]2.0.CO;2

 

Reavaliação da Taxonomia dos Lagartos Peçonhentos

Oi, amigos do Evolucionismo. Faz tempo que não posto uma mensagem de blog por aqui, não é mesmo? Sabe como é, muito trabalho, muito estudo, pouco tempo…Como nas últimas semanas tenho me dedicado muito aos tópicos de sistemática filogenética, resolvi postar trechos da publicação de Daniel Passos, membro do Núcleo Regional de Ofiologia da Universidade Federal do Ceará (NUROF-UFC), publicado em 28 de agosto de 2013 no blog da entidade.

Informa a postagem:

” No último mês (Julho de 2013), uma equipe de pesquisadores norte-americanos publicou no periódico “Amphibian & Reptile Conservation” uma pesquisa que trouxe à tona uma grande descoberta para a herpetologia mundial. Neste trabalho, os autores reavaliaram a classificação taxonômica do “Lagarto de Contas” (Heloderma horridum), uma das espécies verdadeiramente peçonhentas previamente conhecidas, e descobriram que, sob este nome científico, existiam outras três espécies até então desconhecidas pela ciência (Figura 1).”Heloderma

Com base em informações morfológicas (folidose e coloração), moleculares (DNA mitocondrial e nuclear) e biogeográficas, as três novas espécies foram então nomeadas como: Heloderma alvarezi, Heloderma charlesbogerti e Heloderma exasperatum. De acordo com os autores do artigo recém publicado, as quatro espécies divergiram de um ancestral comum há cerca de 35 milhões de anos.

Portanto, após esses novos achados, o número de espécies de lagartos peçonhentos foi elevado para seis, sendo três destas já previamente conhecidas (“Dragão de Komodo” – Varanus komodoensis, “Lagarto de Contas Mexicano” –Heloderma horridum e o “Monstro de Gila” – Heloderma suspectum), além das outras três espécies de “Lagartos de Contas” recém descritas (Heloderma alvarezi,Heloderma charlesbogerti e Heloderma exasperatum).” [1]

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Referência:

  1. Passos, Daniel Os lagartos peçonhentos foram reavaliados: Agora são seis espécies    no mundo! Blog do NUROF-UFC Publicado em 28/08/2013.

Para saber mais:

  • Reiserer RS, Schuett GW, Beck DD. 2013. Taxonomic reassessment and conservation status of the beaded lizard, Heloderma horridum (Squamata: Helodermatidae). Amphibian & Reptile Conservation 7(1): 74–96 (e67). [Link]

Filogenia Mastigada 3. Grupos Monofiléticos e Merofiléticos e a filosofia por detrás da Filogenia

Veja também: Filogenia Mastigada 4

A ideia da filogenia é simples, em princípio, e muito lógica. Através de semelhanças (sejam elas morfológicas, fisiológicas, desenvolvimentais e outras) entre as espécies podemos pressupor sua proximidade em termos de parentesco evolutivo. De modo equivalente, conseguimos supor que tal criança é filha de tal homem e que tal pessoa é irmã de tal outra  através dessas semelhanças. Ou seja, a partir de semelhanças criamos hipóteses de laços familiares e assim de uma árvore genealógica. Com os seres vivos a ideia básica é a mesma e o método Filogenético vem se aperfeiçoando e tendo seus erros corrigidos com o tempo.

Observemos alguns organismos.

Qual dos animais abaixo é o mais próximo do besouro?

Se você respondeu o percevejo, você acertou! Se eu perguntasse “porque o percevejo?” você poderia me responder, mesmo se não tivesse muita base de biologia, que, dentre os demais animais acima, o percevejo e o besouro possuem o corpo duro como uma carapaça, possuem três pares de patas, asas parecidas e formatos de corpo mais semelhantes. E você estaria certíssimo.

Semelhanças nos fazem pensar em parentesco. Eu já ouvi agricultores sem qualquer noção de filogenia se perguntando: “essa qualidade de planta parece muita com aquela, será que são parentes?” E desde Darwin, semelhanças entre espécies nos faz pensar em proximidade evolutivas, ou seja, apomorfias compartilhadas são indícios de ancestralidade comum exclusiva. Com esse postulado começamos a perceber que nem toda semelhança quer dizer parentesco.

Primeiramente devemos saber se a semelhança é uma sinapomorfia ou uma evolução homoplásica, ou seja, se é fruto da evolução a partir de um mesmo ancestral ou se é “coincidência” evolutiva ou ainda falsa semelhança. Você mesmo seria capaz de me dizer que, apesar de as aves e os besouros terem asas, suas asas são bastante diferentes em termos de morfologia, topologia e origem, e possivelmente agrupá-los em um clado que tenta pressupor filogenia através da característica “asa” não seria boa ideia. Neste caso, possuírem asa não é uma sinapomorfia de ambos mas sim uma homoplasia. Aqui poderíamos voltar na questão discutida na parte 2 dessa série, se as ditas convergências evolutivas dentro da evolução homoplásica não seriam, na verdade, um simples caso de mesmo nome pra coisas diferentes. No caso, a asa das galinhas e dos besouros seriam a mesma estrutura derivada do mesmo ancestral? Ou seriam estruturas distintas que recebem o mesmo nome, “asa”, por sua função desempenhada?

Repare bem nas figuras abaixo. Temos, da direita para a esquerda: uma poliqueta marinha (laranja, superior), uma larva de besouro (branca, superior), uma ninfa de percevejo (linha inferior), uma larva de borboleta (verde, central) e um onicóforo (lilás, inferior). Qual seria o organismo mais próximo a esta lagarta de borboleta?

Superficialmente podemos supor que o onicóforo seja mais próximo à lagarta e ao poliqueto. Mas estamos enganados. Estamos nos deixando levar por semelhanças aparentes e superficiais sem estudar com mais cuidado todos os aspectos possíveis de serem analisados dos animais em questão. Tudo indica que a lagarta é mais próxima, dentre os animais acima, ao besouro. O (besouro + lagarta) seriam depois mais próximos ao percevejo. E ((besouro + lagarta) + percevejo) seriam mais próximos à onicófora e por último teríamos o sistema:

{[((besouro+lagarta)+percevejo)+onicófora]+poliqueto}.

Também podemos escrever esse sistema em forma de um dendrograma (ou árvore filogenética), do seguinte modo:

Notem que, no caso, as semelhanças superficiais não nos ajudaram a inferir as relações evolutivas dos grupos acima… porque isso aconteceu? Isso ocorreu porque nos baseamos em homoplasias (em falsas semelhanças ou coincidências evolutivas) e não em semelhanças que proveem de parentesco comum (homologia).

Lembrem-se que semelhanças entre espécies podem ser plesiomórficas, apomórficas ou homoplásicas… traduzindo, podem ser semelhanças que refletem uma característica antiga (plesiomorfia), características derivadas (apomorfias) ou coincidência evolutiva ou falsa semelhança (homoplasias). As duas primeiras, plesiomorfias e apomorfias, supõem um ancestral comum e portanto dão indicações da história evolutiva dos grupos. A homoplasia não. (Se você ainda tem dúvida volte nas postagens anteriores, caso as dúvidas persistam mande sua questão para o Pergunte ao Evolucionismo).

Com homoplasias não se faz inferência filogenética.

E como sabemos se a semelhança indica parentesco evolutivo (homologia) ou se é uma homoplasia? Veja a postagem 2 da série (séries de transformação e polarização) na parte “Mas como podemos saber se as estruturas são homólogas?”

Dalton de Sousa Amorin define assim a filogenia: “O método de reconstrução filogenética é um sistema para listar sinapomorfias e delimitar grupos monofiléticos”.  A frase pode parecer difícil, mas ela quer dizer: “A filogenia é um método para se listar as características compartilhadas que são indicativos de ascendência comum e delimitar quem é mais próximo a quem”.

O Dr. Dalton usou a expressão “grupos monofiléticos”. Vamos ver o que é isso.

Para uma definição rápida podemos dizer:

Grupo Monofilético: possui ascendência comum imediata

Grupo Merofilético: não possui ascendência comum imediata podendo ser:

1)      Parafilético: grupo do qual foi retirado um ou mais grupos monofiléticos internos.

2)      Polifilético: grupo do qual foi retirado um ou mais grupos parafiléticos internos.

Para compreender as definições criamos um raciocínio com comparação à genealogia das famílias humanas. Se você é leigo, inciante, ou tem dúvidas, leia com atenção que tudo ficará mais claro. Caso você já seja mais familiarizado com os termos, pule para “um exemplo no mundo da Filogenia”, após as linhas pontilhadas.

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Monofilético ou Holofilético (holofilético é pouquíssimo usado) quer dizer que o grupo tem um ancestral comum imediato a todos.

Por exemplo, você e seu irmão Cauã (supondo que Cauã é seu único irmão) são (numa comparação didática) um grupo monofilético porque vocês possuem um ancestral comum imediato: sua mãe.

Poderíamos colocar sua árvore genealógica em um outro formato pra possibilitar nossa comparação didática:

Nos diagramas o V é você, o M representa sua mãe e o C, seu irmão Cauã. “Família da sua mãe” é monofilético pois engloba você e seu único irmão.

Você, seu irmão, sua mãe, sua tia Irani (supondo que sua tia Irani é a única irmã da sua mãe) e seus primos Peri e Maiara (únicos filhos da tia Irani) são outro grupo monofilético porque compartilham um ancestral comum imediato: sua avó Açucena.

Se retirarmos alguém desse grupo ou incluirmos alguém sem parentesco estaríamos tornando o grupo merofilético (o oposto de monofilético) porque estaríamos retirando um grupo que também descende do ancestral  vó Açucena ou incluindo alguém que não descende do ancestral vó Açucena.

Temos dois tipos de Merofiletismo: Parafiletismo e Polifiletismo.

 

Vamos retirar o grupo “família da tia Irani” do grupo maior “família da vó Açucena”. Nesse caso o grupo que sobra (“família da vó Açucena” menos “família da tia Irani”) é merofilético e mais precisamente parafilético. O grupo “família da tia Irani” é monofilético por si só, visto que todos os filhos da tia Irani estão incluídos. A exclusão de um grupo monofilético de um grupo maior torna o grupo que restou parafilético. “Para” (ao lado de, proximidade) porque tem uma parte do grupo que está fora do grupo.

Quando excluímos sua mãe e você do grupo “família da vó Açucena”estamos excluindo um grupo parafilético (“você+sua mãe” é parafilético porque falta seu irmão Cauã) de um grupo maior que antes era monofilético (família da vó Açucena), o que torna o grupo maior que restou {(Família da vó Açucena menos (você e sua mãe)} polifilético.  No grupo falta um ancestral imediato a Cauã, antes da vó Açucena, que ficou de fora:  sua mãe. E falta você, que é parte do grupo monofilético “família da sua mãe”. A “família de sua mãe” é uma linhagem monofilética distinta da “família da tia Irani”, mas com um ancestral em comum: Vó Açucena. Sempre que um grupo parafilético é retirado de um grupo maior, o grupo maior se torna polifilético, é dito poli porque inclui mais de uma linhagem diferente.

A comparação em paralelo de relações filogenéticas com unidades familiares ilustra a questão de uma forma bastante didática pois parte de comparação entre grupos que todos conhecem as relações. Todos sabem que “tia” é irmã da “mãe”, e que “avó” é mãe da tia e da mãe, e que “primos” são os filhos da tia, etc… As relações entre os ramos e linhagens são plenamente conhecidas por todos sem problemas de compreensão. Mas o paralelo não é tão bom, visto que para que ele funcionasse melhor eu exclui o “pai” e o “tio” por exemplo…  Árvores genealógicas não são totalmente iguais a árvores filogenéticas, pois essas últimas não ilustram indivíduos e sim linhagens (descendência) de populações se derivando.  Assim, se um ramo representa “tia Irani” na árvore genealógica, na árvore filogenética ele representa uma linhagem. Ou seja, enquanto a árvore genealógica tem ramos discretos de indivíduos a árvore filogenética tem ramo contínuos.

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Um exemplo no mundo da filogenia. Analisaremos a árvore abaixo:

 Se considerarmos “tartarugas”, “dinossauros” , “cobras e lagartos” e “crocodilos” formando o grupo “répteis” estaremos formando um grupo parafilético, porque falta uma linhagem que descende do mesmo ancestral que esses grupos: as aves.  Da mesma forma, se formarmos o grupo “dinossauros” sem as aves estaremos formando um grupo parafilético pois as aves descende de um estoque ancestral de terópodes que são um grupo de dinossauros. Assim, Reptilia é hoje visto como o grupo do qual fazem parte os amniotas exceto mamíferos (isto é, Reptilia = tartarugas, cobras e lagartos, crocodilos, “dinossauros” + aves). E Dinossauria é um grupo formado por Ornithischia e Saurischia, dentro desse último grupo encontramos as aves. (Cuidado com o termo dinossauro. Nem tudo que o público leigo chama de dinossauro faz parte do grupo monofilético “dinossauria”).

Da mesma forma se quisermos montar o clado “animais endotérmicos”, composto por aves e mamíferos, e o clado “animais exotérmicos”, composto por tartarugas, cobras e lagartos, e crocodilos, estaremos criando dois grupos merofiléticos. O primeiro “animais endotérmicos” seria polifilético pois inclui duas linhagens não diretamente relacionadas enquanto exclui vários grupos com descendentes comuns diretos, se incluirmos todos os grupos faltantes (tartarugas, cobras e lagartos, crocodilos e dinossauros) o grupo se torna amniota. O segundo, “animais exotérmicos” seria exatamente o mesmo grupo Réptil e seria parafilético pois faltariam as aves, ao incluirmos aves no grupo ele se torna o grupo Reptilia. Você pode notar que tais grupos são problemáticos porque se baseiam em homoplasias e não em homologias. Provavelmente a endotermia nas aves evoluiu independentemente das dos mamíferos. Para visualizar isso cheque a árvore e aplique o “método de comparação com grupos externos” visto na postagem 2 da série.

No primeiro caso temos representado em roxo o grupo parafilético “répteis” e no segundo caso temos representado em roxo o grupo  polifilético “animais endotérmicos”.

Note que, em uma árvore filogenética, um grupo menor sempre está inserido em um grupo maior. Ou seja, por refletirem descendência os grupos são encontrados um dentro do outro.

Quando analisamos a taxonomia atual e a maneira pela qual organizamos espécies tradicionalmente (a taxonomia de Linneu) vemos uma hierarquia de caixinhas ditas Reino, Filo, Classe, ordem, gênero e espécie, onde uma está dentro da outra. Á primeira vista parece muito condizente com a realidade, não é? Entretanto, tal hierarquia não reflete as relações filogenéticas, pois, dentro de cada uma dessas caixinhas, as subcaixinhas não possuem relação de “contém e está contido” (que é natural dos grupos de seres), mas sim possuem o mesmo nível de hierarquia, ou seja, são colocadas uma do lado da outra. Assim, dentro da caixinha maior “Filo Cordata” temos as tradicionais Classes: “peixes”, “anfíbios”, “mamíferos”, “répteis”e “aves”. Essas caixinhas de Classes são tradicionalmente vistas como opções colocadas lado a lado e não refletem essa sobreposição que é naturalmente encontrada na natureza. Quando nos deparamos com as opções de caixinhas dentro de Cordata não conseguimos visualizar o que conseguimos com a árvore: que do estoque Amniota ancestral se derivaram Mammalia e Reptilia e que do estoque reptilia ancestral surgiram não somente o grupo que consideramos “répteis” (tartarugas, cobras e lagartos e crocodilos) como também o grupo “aves”. E que entre esses grupos existe uma relação de “contém” e “está contido”. Muito já se modificou no modo de se considerar a organização das espécies na taxonomia atual e muitos grupos tradicionais já foram alterados, a taxonomia passa agora por um período de profundas discussões e reflexões que buscam uma coerência entre o sistema de classificação das espécies e a evolução dessas.

Veja também:Filogenia Mastigada 4

Na próxima postagem veremos a leitura de uma árvore filogenética.

E não deixem de visitar o BioSubverso.blogspot.

Texto por Ester Helena de Oliveira

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Para saber mais:

  • Amorim, Dalton de Sousa. Fundamentos de Sistemática Filogenética (1º edição), Editora Holos, 2002.

Uma heresia epigenética?

A palavra ‘epigenética’ tornou-se bem popular, mas sua relação com a biologia evolutiva é frequentemente alvo de confusões e ferrenhas discussões, nem sempre muito proveitosas. Em seu sentido mais básico, atualmente, ‘epigenética’ [veja aqui também] diz respeito aos processos de rotulagem química do DNA (metilação de resíduos de citosina) e de compactação e descompactação da cromatina (por meio, por exemplo, da acetilação e desacetilação de histonas e outras modificações em proteínas associadas ao DNA) que podem causar mudanças mais ou menos persistentes nos padrões de expressão gênica das células que podem, inclusive, serem transferidas para as células descendentes, sendo uma das principais formas de manutenção dos estados de diferenciação de células e tecidos ao longo do desenvolvimento de organismos multicelulares, tendo diversas implicações importantes, inclusive em nossa saúde [1, 2, 3]. Até aí … nenhum problema!

Veja abaixo uma pequena introdução ao que é epigenética [pdf]:

Os problemas surgem, geralmente, quando falamos de certos tipos particulares de modificações epigenéticas que podem, não apenas serem passadas através das linhagens somáticas (isto é, em um único organismo), mas também serem transferidas a outras gerações por meio das linhagens meióticas, ou seja, dos gametas, principalmente, aquelas que pudessem ser induzidas por alterações ambientais. Este tipo de fenômeno é conhecido como ‘herança epigenética transgeracional‘ [4, 5]. Tradicionalmente era presumido que mesmo que certas mudanças desta natureza ocorridas em uma geração fossem transferidas pelos gametas e chegassem ao zigoto, em certa fase do desenvolvimento embrionário, elas seriam completamente apagadas. Porém, muitos estudos, realizados nos últimos 30 anos ou mais, têm mostrado que isso nem sempre ocorre e que certos tipos de modificações epigenéticas podem sim serem transferidas há gerações futuras, não sendo apagadas durante o começo do desenvolvimento ontogenético dos animais e plantas. O fenômeno, portanto, é genuíno [4, 5].

Porém, embora, quando estas mudanças estão atreladas a expressão e herança de certas características fenotípicas, elas configurem um tipo de herança de caracteres adquiridos, isso não nos diz muito sobre sua importância em termos da evolução biológica. Um esclarecimento importante é que essas tais mudanças epigenéticas (‘epimutações’) induzidas por mudanças ambientais não são, via de regra (como alguns pensam ao contrapô-las a evolução por seleção natural) necessariamente adaptativas. Portanto, mesmo elas devem ser triadas por processos convencionais como a seleção natural e deriva genética, assim como as mutações convencionais, para que se tornem evolutivamente relevantes. Mas os problemas, entretanto, não terminam por aí. O maior problema é que, diferente das modificações nas sequências de DNA, as mudanças epigenéticas são ‘meta-estáveis’ e, portanto, muito mais lábis do que as mudanças genéticas tradicionais, o que põe ainda mais em questão sua relevância evolutiva [Veja esta também aqui e aqui]. Porém, novos dados podem mudar esta situação e levar a comunidade científica a olhar com mais carinho e atenção para a possibilidade das mudanças epigenéticas transgeracionais darem uma contribuição maior para a evolução do que normalmente a maioria dos biólogos evolutivos está propenso a atribuir-lhes.

As novidades vem do décimo quarto congresso da Sociedade Europeia de Biologia Evolutiva, realizado em Lisboa, Portugal, em agosto deste ano. Nele, o geneticista quantitativo Frank Johannes, pesquisador da Universidade de Groningen, na Holanda, entre outros trabalhos discutindo a epigenética e evolução, apresentou resultados que ele e seus colegas obtiveram que relacionam padrões de metilação no DNA com variação hereditária no tempo floração e no comprimento de raízes em diferentes cepas da mesma planta (a famosa Arabidopsis thaliana, um dos mais conhecidos organismo-modelo) nas oito gerações* que foram analisadas no experimento [6].

Neste estudo, os pesquisadores foram capazes de detectar precisamente regiões do DNA diferencialmente metiladas que foram responsáveis ​​pela variação em questão, sendo também capazes de mostrar que as sequências de DNA, mais próximas e mais distantes destes sítios, eram praticamente idênticos em todas as linhagens, reforçando a ideia que os padrões eram herdados em virtude da transferência das marcas de metilação [6].

Esse trabalho teve suas origens na pesquisa realizada anteriormente por Vincent Colot, do Instituto de Biologia da Ecole Normale Supérieure, em Paris, e por Philippe Guerche e Frédéric Hospital, ambos da agência de pesquisa agrícola francesa, INRA. Sete anos atrás, estes cientistas haviam cruzado duas linhagens  geneticamente quase idênticas de Arabidopsis, uma normal e outra em que faltava um gene cuja proteína ajudava a manter os padrões de metilação. Através de cruzamentos adicionais, os pesquisadores criaram 500 linhagens de Arabidopsis com padrões distintos de sítios com baixa e alta metilação em seus genomas, ou seja, um incrível catálogo de variação epigenética que permitiria aos cientistas relacionar estas variações com eventuais diferenças nas características físicas das plantas [6]. Porém, como afirma o geneticista Koen Verhoeven, do Instituto de Ecologia da Holanda, em Wageningen:

Muitas evidências mais rigorosas são necessárias antes que se possa afirmar que a epigenética desempenha um papel muito importante na evolução.” [6]

Embora este ainda seja um delineamento completamente artificial e, portanto, as conclusões devam ser vistas com muito cuidado, Johannes também relatou que sua equipe encontrou associações semelhantes entre padrões de metilação e a época de floração em variedades selvagens desta espécie, o que já sugere uma maior relevância destes resultados para populações selvagens. Outro ponto importante é que este estudo, como ressaltado por Pennisi [6], não aborda o aspecto mais controverso das relações entre epigenética e evolução, ou seja, se o estresse ambiental pode alterar as marcações epigenéticas de um organismo levando a mudanças de características permanentemente naquela população e, muito menos, entrou na questão do potencial adaptativo das mudanças em organismos selvagens [6]. Outra questão que não pode ser esquecida é que as oito gerações ainda são pouco para termos uma ideia da estabilidade deste tipo de herança.

Novos estudos nos devem dar um ideia melhor destes aspectos e aos poucos vamos vendo até onde este tipo de fenômeno pode ser importante para a compreensão da mudança evolutiva. Por enquanto, aguardamos empolgados, mas com os pés no chão.

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* Muitos resultados interessantes potencialmente com implicações evolutivas tem sido relatados na literatura científica, mas a estabilidade e a durabilidade deste tipo de herança parece ser sempre um empecilho. Por exemplo, em 2010, um grupo de pesquisadores da Universidade de Stanford, isolou um conjunto de três mutações no verme Caenorhabditis elegans, cada uma delas capaz de aumentar a vida útil destes animais em até 30%, e que estavam relacionadas ao controle de modificações epigenéticas, no caso modificadores do estado da cromatina que agiam nos gametas. O mais impressionante, entretanto, é que os descendentes destes animais de cruzamentos com indivíduos não mutantes e que não portavam as tais mutações originais de um dos seus pais, continuaram, mesmo assim, a apresentar maior expectativa de vida, mas apenas até três gerações depois da geração em que as mutações foram induzidas [Veja aqui e aqui].

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Referências:

  1. Simmons, D. (2008) Epigenetic influence and disease. Nature Education 1(1)

  2. Wagner, C. R. (2010) Germ Cells and Epigenetics. Nature Education 3(9):64

  3. Griffiths AJF, Gelbart WM, Miller JH, et al. Epigenetic Inheritance. In Modern Genetic Analysis. New York: W. H. Freeman; 1999.

  4. Daxinger L, Whitelaw E. Transgenerational epigenetic inheritance: more questions than answers. Genome Res. 2010 Dec;20(12):1623-8. doi: 10.1101/gr.106138.110.

  5. Grossniklaus U, Kelly B, Ferguson-Smith AC, Pembrey M, Lindquist S. Transgenerational epigenetic inheritance: how important is it? Nat Rev Genet. 2013 Mar;14(3):228-35. doi: 10.1038/nrg3435
  6. Pennisi, Elizabeth Evolution Heresy? Epigenetics Underlies Heritable Plant Traits Science 6 September 2013. Vol. 341 no. 6150 pp. 1055. DOI:10.1126/science.341.6150.1055

O Dia Darwin: Fronteiras [7, 14-17 de outubro na UFMG]

“O Dia Darwin: Fronteiras” (http://diadarwin.com.br/) é um evento que ocorrerá em Belo Horizonte, nos dias 7 e 14 a 17 de outubro desse ano. Ele visa a discussão da Biologia Evolutiva a partir de um enfoque transdisciplinar.

A abertura no dia 7 terá palestra da Profa. Eva Jablonka e os temas de cada um dos demais dias serão: Classificação e Sistemática, Cognição e Comportamento e Reducionismo e Emergência. O evento contará com a participação de eminentes acadêmicos, como Patrick Bateson, Alex Rosenberg, Alan Love, Joel Velasco, Mario de Pinna, Charbel El-Hani, dentre outros.

As inscrições estão abertas no valor de R$50,00 para graduação e R$75,00 para pós-graduação e profissionais até o dia 14/09; e R$75,00 para graduação e R$100,00 para pós-graduação e profissionais até o dia do evento. “

Via Michele Araújo (FaceBook)

Filogenia Mastigada 2: Polarização de Séries de Transformações e o conceito de Homoplasia

Veja também: Filogenia Mastigada 3

Essa é a segunda postagem da série „Filogenia mastigada para biólogos e curiosos“. Se você não leu a primeira postagem „Princípios de Filogenia“ cheque o post antes e verifique se você ainda tem dúvidas no assunto da postagem anterior. Qualquer dúvida pode ser enviada ao blog como comentário e será respondida na medida do possível. Críticas e sugestões também são bem vindas. (baseado no livro de Dalton de Sousa Amorim “Princípios de Sistemática filogenética”)

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Recapitulando… Vimos os conceitos básicos de estrutura, carácter, homologia, plesiomorfias e autapomorfia. Esses conceitos são úteis para compararmos os diferentes carácteres que uma determinada estrutura pode apresentar e estudarmos se esses caracteres fazem parte de uma série de transformação e se são homólogos ou homoplásicos (conceito novo pintando na área, já vamos explicar).

O que é uma série de transformação? E o que é a “polarização” dessa?

As séries de transformação são representações de possíveis mudanças de carácter ao longo da evolução de uma estrutura. Assim, em uma série temos representados estados diferentes de uma estrutura. Um exemplo simples: se tivermos a estrutura “membro anterior” em tetrapoda podemos escrever a seguinte série de transformação de carácteres: pata – asa. Quando polarizamos uma série de transformação estamos afirmando que o carácter A é ancestral ao carácter B que, por sua vez, é ancestral ao carácter C. Ou seja, A originou B e B originou C. Por exemplo, podemos polarizar nossa série de transformação para o membro anterior em tetrápodes (pata – asa) da seguinte forma: pata → asa. Essa polarização nos permite contar uma história evolutiva desses carácteres, no nosso exemplo a asa das aves é originada da pata dos tetrápodes. É claro que A pode ter gerado não só B mas também um outro estado D, por exemplo… e assim as relações da série vão se tornando mais complexas.

Percebam que quando propomos uma série de transformação estamos partindo da premissa que as estruturas são homólogas, ou seja, são derivadas da mesma estrutura ancestral. Se propusermos uma série de transformação de estruturas não homólogas estaremos tentando polarizar coisas totalmente distintas e conduziremos nossa inferência filogenética ao fracasso. Mas como podemos saber se as estruturas são homólogas? Como vimos na primeira postagem da série, você pode ter uma ideia da homologia da estrutura através do estudo de sua morfologia, topologia, função, desenvolvimento embrionário e estudo de seus diversos caracteres, assim como a distribuição destes no grupo de interesse e nos grupos externos (grupos próximos ao grupo de interesse, por exemplo, no caso de tetrápodes poderíamos usar como grupo externo os peixes pulmonados).

Como polarizamos séries de transformações?

Geralmente para polarizar uma série de transformação é utilizado o método chamado de “comparação com grupos externos”.

O que são grupos externos?

Grupos externos são grupos provavelmente próximos filogeneticamente de seu grupo de interesse que junto com seu grupo de interesse formem um grupo homofilético mais abrangente.

Como funciona a comparação com grupos externos?

Esse método consiste em buscar qual o carácter da estrutura em questão nos grupos externos e assim pressupor o estado plesiomórfico (ancestral).

Como fazer isso?

Partindo da ideia de que tanto seu grupo de interesse quanto o grupo externo evoluíram de um mesmo ancestral parece lógico aceitar que um estado muito presente em grupos basais seja o carácter do ancestral e que estados presentes em ramos terminais sejam carácteres derivados. Por exemplo, o grupo dos colêmbolas pode ser usado como grupo externo a insecta (ambos estão dentro do grupo maior hexapoda). Os colêmbolas não possuem asas sendo que os grupos basais dentro de insecta também não possuem asas (como as traças) enquanto que os grupos mais terminais de insecta possuem asas. Assim, seria mais provável que os ancestrais comum de insecta que vieram do estoque ancestral de hexapoda não tivessem asas e que elas tenham evoluído em algum ponto dentro do grupo insecta que seja posterior às linhagens basais em insecta. Evidências fósseis e filogenéticas suportam fortemente essa pressuposição.

Em azul linhagens sem asa, em vermelho linhagens com asa (com algumas perdas de asas posteriores em alguns grupos)

Existem sim “pegadinhas” que podem nos levar a conclusões pouco prováveis e errôneas. Por isso as filogenias precisam ser trabalhos extensos muito bem suportados, muito bem analisados e é por isso que existe tanto interesse em se entender filogenia. Vários autores chegam a resultados diferentes, assim como vários autores chegam a resultados semelhantes e o estudo da filogenia da vida terrestre consiste em se somar maior número de informação possível e ir encaixando as pecinhas do quebra cabeça.

Quando polarizamos series de transformações e pressupomos estados plesiomórficos é bom termos em mente que um carácter pode ter evoluído independentemente em dois ou mais grupos. Quando isso ocorre temos uma homoplasia. Ou seja, temos que ser cautelosos e tomar cuidado para não consideramos uma homoplasia como uma homologia.

 

Homologia x homoplasia

Para reforçar, a homologia de uma estrutura sugere um ancestral comum e uma homoplasia sugere evolução independente da mesma estrutura.

Existem três tipos de homoplasia:

      (1)    Paralelismo: quando em duas espécies uma mesma condição plesiomórfica é alterada de modo idêntico produzindo nas duas uma condição apomórfica semelhante. Costuma ocorrer em grupos muito próximos filogeneticamente.

      (2)    Convergência: condições  plesiomórficas diferentes são alteradas e resultam em condições apomórficas finais semelhantes, raramente produzindo estruturas idênticas. O interessante a se ressaltar aqui é o comentário de Dalton de Sousa Amorim de que, em vários casos, essas situações configuram-se mais como casos de homonímias do que de evolução homoplásica (ou seja, é mais um caso de nomes iguais para estruturas diferentes, a isso chamamos homonímia, do que  realmente estruturas semelhantes). Por exemplo, a asa de morcego e de aves e de insetos são estruturas completamente diferentes que por acaso recebem o mesmo nome por terem a mesma função, porém são estruturas tão distintas que pode configurar um exagero chamá-las de evolução homoplásica. Outros exemplos seriam os processos ditos “metamofose” e a convergência entre formas de mamíferos marsupiais e formas de mamíferos placentários.

 

Convergência de formas entre mamíferos marsupiais e placentários: convergência ou homonímia de termos?

   

(3)    Reversão: Para entender a reversão precisamos entender primeiro o que é uma arqueomorfia.

      

        Arqueomorfia?

      

     Arqueormorfia ocorre quando uma característica é apomórfica para um grupo, entretanto quando analisada em um nível maior de abrangência, se mostra sinapomórfica. Assim, a condição hipotética “cor azul” de nossa linhagem X (figura abaixo) é uma arqueomorfia pois é  uma condição ancestral retida num grupo de abrangência menor (Grupo B) no qual as demais linhagens tiveram esse carácter alterado. Assim, quando olharmos o grupo menor B nos parecerá que o carácter cor azul da linhagem B é uma apomorfia (pois todas as demais linhagens do grupo B possuem cor vermelha), entretanto veremos que se analisarmos o Grupo A (uma abrangência maior no qual o grupo B se encontra inserido), veremos que o carácter “cor azul” é um carácter sinapomórfico (ou seja uma condição compartilhada pelo grupo A) sendo esse carácter alterado nas linhagens que formam o grupo B, exceto na linhagem X.

Voltando à Regressão, esse caso de homoplasia ocorre quando uma característica arqueomórfica sofre uma modificação que gera uma condição apomórfica (nova específica para aquele grupo) final semelhante à condição plesiomórfica (antiga do grupo) original. Por exemplo, suponhamos que nossa linhagem X não tivesse retido o carácter “cor azul” de seu ancestral azul, mas sim tivesse um ancestral vermelho que sofreu  uma nova mutação que por acaso lhe deu o carácter “cor azul” similar ao carácter plesiomórfico do grupo A. Assim o carácter “cor azul” da linhagem X seria uma reversão… confira o esquema abaixo:

 

Reversão de carácter na linhagem X

É importante ressaltar que algumas vezes um caso considerado como reversão pode possuir apenas uma similaridade superficial entre a condição plesiomórfica inicial (condição antiga, no exemplo, o azul ancestral) e a apomórfica final (a condição derivada, no exemplo, o azul da linhagem x), a “cor azul” pode parecer a mesma condição para ambos mas pode, numa metáfora, não ser exatamente o mesmo tom de azul e não possuir ligação com o carácter ancestral. Portanto, deve-se fazer uma análise bem detalhada dos carácteres.

Dando um exemplo real: o caso de uma nova perda de asa (perda secundária) em grupos Pterygota (insetos com asas), como pulgas e piolhos. A semelhança quanto à falta de asa entre uma pulga (Pterygota) e um colêmbola (grupo externo e basal a Pterygota) pode ser um caso de reversão, ou seja, o ancestral mais recente da pulga e do colêmbola não tinha asa, o ancestral da pulga adquiriu asa e esta foi perdida na linhagem da pulga. Entretanto, os ancestrais da linhagem que originou o colêmbola jamais tiveram asa. Por outro lado a falta de asa em pulga e em piolhos são um caso de homoplasia convergente porque o mais recente ancestral da pulga e do piolho tinha asa , a linhagem que originou a pulga perdeu a asa e a linhagem que originou o piolho perdeu a asa também. Entretanto ambos, pulga e piolho, não compartilham uma ancestral comum com asas perdidas…  Cheque os esquemas abaixo:

 Condição áptera (sem asa) Pulga x colêmbola

Condição áptera (sem asa) Pulga x Piolho

O caso particular dos grupos secundariamente ápteros (sem asa) de insetos é polêmico quanto a ser ou não uma reversão exatamente pelo questionamento se a condição áptera derivada corresponde à condição áptera inicial.

 

Perceba que a polarização de carácteres por comparação de grupos externos usa como preposição inicial a monofilia do grupo…

Mas como eu sei que o grupo é monofilético?

 

Parece paradoxal, eu sei, afinal uma das respostas que queremos com a filogenia é justamente saber se o grupo estudado é monofilético… entretanto, para propor um estudo filogenético temos que partir de grupos que sejam provavelmente monofiléticos…  ou seja, devemos ter uma boa hipótese de monofilia.

E como inferimos que nosso grupo pode ser um clado monofilético? Para isso precisamos de um conhecimento amplo do grupo de interesse e de grupos próximos, tanto de sua morfologia como fisiologia, embriologia, ecologia, comportamento, genes e mais informações que você puder levantar. A ideia básica é: as semelhanças compartilhadas podem indicar ancestralidade comum (claro que muita análise deve ser feita para não cairmos em pegadinhas). Uma outra alternativa é consultar trabalhos de grupos mais abrangentes que tenham inserido seu grupo na análise e assim checar se existe alguma base nesses trabalhos que sustentem seu grupo.

Um especialista em diptera, por exemplo, conhece muito bem o grupo, as similaridades existentes entre suas espécies e com a prática pode suspeitar de semelhanças que reforcem ancestralidade e semelhanças que não necessariamente teriam vindo do mesmo ancestral (homoplasias). Assim, ele pode pressupor que determinado grupo é monofilético e usar esse conhecimento e as ferramentas da filogenia para testar sua hipótese e propor uma filogenia para o grupo.

Veja também: Filogenia Mastigada 3

Por hoje é só. Você pode acompanhar a série e outras discussões no blog BioSubverso. Na próxima postagem discutiremos a Filosofia da Filogenia e grupos monofiléticos e merofiléticos. 

Até lá!

Texto por Ester Helena de Oliveira

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Para saber mais:

  • Amorim, Dalton de Sousa. Fundamentos de Sistemática Filogenética (1º edição), Editora Holos, 2002.

Filogenia Mastigada 1: Princípios de Filogenia e conceitos básicos

Veja também: Filogenia Mastigada 2

Se você gosta de evolução e quer entender um pouco mais filogenia e como interpretar cladogramas e filogramas, é nosso convidado. Essa série tentará ser o mais didática possível para que não biólogos possam desfrutar de um assunto que é um tantinho complicadinho. Essbees são conceitos fundamentais pra nossas discussões em evolução!

Princípios de Filogenia*

Primeiramente… o que é filogenia?

Filogenia é o conjunto da história da ancestralidade entre todas as espécies de seres vivos que existem (ao assumirmos que a vida se originou uma única vez). Damos o nome de filogenia também ao diagrama que representa essa história.

Nosso conhecimento sobre a filogenia dos grupos de seres vivos é incompleto e recuperar toda a história de relações entre os seres é impossível. Primeiramente, é impossível pois a grande maioria dos seres que já existiram não foram preservados em fósseis e, portanto, jamais os conheceremos. Por outro lado, conhecemos uma parcela ínfima dos seres vivos de hoje e muitos vão desaparecer sem que os conheçamos… Assim nossas reconstruções de filogenias contam com apenas uma parte modesta dos organismos que existem e que já existiram.

Comparando estruturas e pensando em evolução…

O conceito de homologia e o conceito de homogenética

O que é homologia? como aprendemos na escola, homologia se refere à estruturas que se desenvolveram a partir de uma mesma estrutura ancestral. Assim dizer que uma estrutura é homóloga à outra é dizer que as duas espécies se derivaram a partir de um ancestral comum. As estruturas homólogas não são necessariamente iguais… mas vieram de uma mesma origem.

Como saber se uma estrutura é homóloga à outra? Estruturas homólogas podem ser inferidas por formas parecidas, topologia (posição relativa a outras estruturas do corpo) e ontogenia (desenvolvimento embrionário semelhante, por exemplo derivados de mesmo grupo de células). Entretanto, é necessário estudos mais aprofundados da filogenia do grupo para a melhor compreensão das homologias.

O conceito de homologia é anterior à teoria da evolução e dizia respeito somente à topologia do órgão (ou seja, posição espacial) no corpo de um ser. Esse conceito era contraposto ao de analogia, que seria somente estruturas com mesma função… possuindo ou não a mesma posição.

Após a teoria da evolução ficou evidente que muitas vezes semelhanças de função e posição refletem um ancestral comum. E o termo homologia passou a ser usado com um sentido filogenético, portanto, é necessário empregá-lo corretamente.

Ray Lankester fez uma distinção entre as expressões homologia e homogenética. Para ele, como o conceito de homologia já se referia na literatura tradicional à semelhança de topologia entre estruturas, seria melhor usar o termo ‘homogenético’, com a visão evolucionista por detrás, deixando o conceito de ‘homologia’ em sua versão tradicional. Entretanto, o conceito de homologia ganhou espaço nos livros e seu uso fez com que a proposta de Lankester não fosse acatada por todos.

 

Qual a diferença entre carácter e estrutura?

Essas duas expressões muitas vezes são usadas aleatoriamente nos textos mas elas refletem conceitos diferentes.

Estrutura: é qualquer parte do corpo, qualquer expressão fenotípica (seja ela morfológica, comportamental, fisiológica).

Caráter: é o estado da estrutura. Falamos em carácter quando falamos em diferenças entre estruturas homólogas.

Por exemplo: Quando estamos falando sobre membros anteriores em tetrapoda, o ‘membro anterior’ é a estrutura e ‘asa’ é um carácter, assim como ‘pata’ para crocodilia seria outro carácter dessa estrutura. Entretanto, quando falamos em diferenças de asas entre passeriformes, a asa é a estrutura e os caracteres podem ser, por exemplo, ‘cor da pena’ ou ‘extensão do rádio’. Com esse exemplo podemos perceber que carácter e estrutura dependem da escala na qual estamos conversando, se formos conversar na escala ‘tetrápode’ ou se formos conversar na escala ‘passeriformes’.

O mesmo ocorre com homologia, depende do nível no qual está a conversa. A clássica comparação de homologia entre o ‘braço’ do homem e a ‘asa’ do morcego, encontrada em livros textos de biologia do Ensino Médio,  nunca me pareceu bem trabalhada pelos livros e professores. Seriam essas estruturas homólogas? O que os livros estão comparando quando dizem que o ‘braço’ do homem é homólogo a ‘asa’ do morcego está no nível “membro superior” assim se compara as estruturas formadoras desses dois caracteres. A estrutura óssea e muscular do braço do homem é homóloga à estrutura óssea e muscular da asa do morcego. 

Entretanto, já me deparei com pesquisas que apontam que as asas em morcegos teriam evoluído duas vezes, assim as asas desses dois grupos seriam homólogas? E como seria a relação de homologia entre as asas dessas duas linhagens de morcegos e o braço humano? Suponhamos que as asas dos morcegos tenham tido duas origens evolutivas. Neste caso as asas desses dois grupos de morcegos não seriam homólogas pois teriam surgido a partir de estruturas diferentes, entretanto a estrutura óssea dos dois grupos de morcegos seria homóloga… e quanto à homologia entre as estruturas ósseas das asas desses dois tipos de morcegos e o braço humano, poderíamos dizer que são homólogas dentro do grupo  Mammalia. Daí a importância de se considerar escalas.

Propondo evolução de estruturas…

O que são plesiomorfias e apomorfias?

Plesiomorfias: a condição plesiomórfica é a condição mais antiga e que estava presente no ancestral.

Apomorfia: é a condição mais recente, surgida por modificação na condição plesiomórfica.

Por exemplo, em tetrapoda a condição plesiomórfica do membro anterior é ‘pata’ e a condição apomórfica derivada em aves é ‘asa’.

Simplesiomorfias= compartilhamento de condição plesiomórfica. Por exemplo, o homem, o jacaré, a sapo e a tartaruga compartilham a condição antiga para ‘membro anterior de tetrapoda’ que é a ‘pata’, portanto para todos esses animais e todos os demais tetrápodes que compartilham essa estrutura, a ‘pata dianteira’ é condição simplesiomórfica.

Sinapomorfia: Compartilhamento de condição apomorfica. Por exemplo, dentre o grupo dinossauria, as aves e alguns terópodes possuem (e possuíam) penas… assim ‘pena’ é uma sinapomorfia do grupo.

Autapomorfia:  é um tipo especial de sinapomorfia. São caracteres apomórficos compartilhados por um grupo terminal em um cladograma. Assim, ‘asa’ é uma autapomorfia de aves porque somente esse grupo, dentro de archosauria (precisamos de uma escala, lembrem-se), possui essa estrutura e esse é um grupo terminal.

Obviamente os termos ‘apomorfias’ e ‘plesiomorfias’, assim como seus derivados, são dependentes da escala da análise.

Voltamos a conversar sobre filogenia em próximas postagens, Na segunda postagem da série veremos séries de transformações e polarização dessas séries, assim como conceitos importantes como arqueomorfia e homoplasia.

Veja também: Filogenia Mastigada 2

Se você gostou, visite o blog BioSubverso responsável pela série “Filogenia Mastigada”.

 

Texto por Ester Helena de Oliveira

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Para saber mais:

  • Amorim, Dalton de Sousa. Fundamentos de Sistemática Filogenética (1º edição), Editora Holos, 2002.

Pistas sobre os estágios iniciais da evolução regulatória

Tem sido cada vez mais reconhecido que a evolução dos sistemas regulatórios genético-desenvolvimentais são a base da evolução morfológica e mesmo comportamental dos seres vivos. Nisso estão incluídas as mudanças nos sistema ‘cis-trans‘, ou seja, nas ResearchBlogging.orgsequências cis-regulatórias (como os ‘promotores e ‘amplificadores/reforçadores’), nas quais ligam-se proteínas trans-ativas específicas, como os fatores de transcrição, que modulam expressão dos genes ligados as sequẽncias cis.

Recentemente, cientistas ligados ao Instituto Europeu de Bioinformática, do Laboratório Europeu de Biologia Molecular (EMBL-EBI), e da Universidade de Cambridge, divulgaram um estudo conduzido em espécies bem próximas de camundongos, abrindo uma janela para a compreensão dos primeiros passos da evolução destes sistemas de regulação. [Ao lado ilustração de um fator de transcrição modulando a expressão gênica.]

O grupo de cientistas tinha por objetivo caracterizar mecanicamente os tipos de processos microevolutivos que são responsáveis por mudanças na ligação das proteínas que funcionam como fatores de transcrição (FTs). Os pesquisadores encontraram uma quantidade enorme de variação entre as sequências de ligação entre os animais das diferentes espécies de roedores, entretanto, os  os padrões de ligação de combinações de fatores de transcrição mostraram-se bem similares nas diferentes linhagens:

“Muitas vezes, você verá uma combinação específica destes fatores de transcrição que atuam em concerto – e foi fascinante para nós vermos o quão importante são essas combinações. Elas são muito mais propensas a serem conservadas ao longo da evolução do que qualquer sequência de DNA as quais podem estar ligadas.”, afirmou Paul Flicek.

Os pesquisadores estudaram quatro espécies de camundongos intimamente relacionadas umas com as outras (e duas linhagens de laboratório distintas de uma delas), ou seja, ainda no começo de sua divergência evolutiva. De uma perspectiva evolutiva, os comprimentos relativamente menores dos ramos da filogenia das quatro espécies do gênero Mus analisadas no estudo são, aproximadamente, uma ordem de magnitude menores do que os comprimentos dos ramos que separam o seres humanos e os ratos de seu ancestral comum, do qual divergiram a cerca de 80 milhões de anos atrás.

Portanto, foram os tempos de divergência substancialmente menores, refletidos no comprimento dos ramos da filogenia destas espécies de roedores, que permitiu ao pesquisadores identificarem como as variações genéticas entre as espécies contribuem para as diferenças iniciais interespecíficas nos padrões de ligação a FTs [2].

Foram comparadas as formas com que três fatores de transcrição (HNF4A, CEBPA e FOXA1) distintos ligam-se aos regiões regulatórias do DNA para controlar se os genes a elas associadas estão ativados ou desativados em células do fígado ao longo do genoma de animais das cinco espécies.

“Ao olhar para os camundongos que tão intimamente aparentados entre si, fomos capazes de capturar um instantâneo do que está acontecendo na evolução regulatória”, explica Duncan Odom, da Universidade de Cambridge. “Isso é importante porque é muito mais difícil de ver como algo evoluiu quando você não tem uma visão clara do ponto de partida.”

Entre as principais diferenças que já haviam sido encontradas em outros estudos em eucariontes, e que foram corroboradas por este, estão o fato de os mamíferos exibirem alterações quantitativas generalizadas nas intensidades de ligação dos TFs ao DNA, mesmo em espécies estreitamente relacionadas, o que de início mostra que as diferenças morfológicas e comportamentais entre as diferentes espécies não são proporcionais a este tipo de diferenças moleculares, pelo menos, no começo do processo de divergência. Embora mutações individuais, as VUNs (‘Variações de Único Nucleotídeo) em regiões de ligação, nas sequências de ligação do DNA a FTs (e mesmo próximas a elas), possam ser responsáveis por uma fração modesta das diferenças, outras influências parecem desempenhar um papel mais importante.

[Fonte: Wikicommons; Autor: Kelvinsong ]

Valendo-se desta abordagem comparativa e experimental foi também corroborado que as regiões genômicas, nas quais ligam-se várias proteínas reguladores, mostram alterações coordenadas em seus padrões de ligação entre as diferentes espécies e mesmo durante o desenvolvimento ontogenético de uma mesma espécie [2]. Os cientistas demonstraram que FTs funcionam em conjuntos que são conservados, aparentemente, por garantirem a estabilidade genética e evolutiva.

A principal evidência disso é que estes conjuntos de FTs que ligam-se conjuntamente e, aparentemente, cooperam entre si estabilizando-se mutuamente  tendem a desaparecer em concerto. Os autores do artigos testaram esta hipóteses ao nocautearem o gene de um dos FTs componentes destes aglomerados de fatores coligados. Ao investigar os efeitos deste processo de deleção genética, os cientistas descobriram que este procedimento levava a uma concomitante desestabilização sistemática da ligação combinatória dos aglomerados que envolviam o FT geneticamente removido [2].

Para ganharem insights mais amplos, os autores do artigo comparam seus resultados com os padrões de conservação de FT em camundongos com os observados em Drosófilas, outro modelo de pesquisa muito conhecido e estudado.

Ao contrastaram os padrões de ligação individual do FTs, os pesquisadores constaram que haviam muito mais diferenças entre linhagens de camundongos estreitamente relacionadas do que havia entre as linhagens de moscas da fruta distantemente relacionadas, o que sugere uma maior flexibilidade regulatória por parte dos camundongos e, possivelmente, mamíferos de modo geral.

Os resultados deste estudo também deixam claro que a ligação combinatória é mais robusta às variações nas sequências dos motivos nos quais estes fatores ligam-se diretamente do que alguns imaginavam, mostrando também que quanto mais espécies em que uma região de ligação de TF é encontrada, mais forte tende ser a sua ocupação genômica. Portanto, a sequência específica e a região genômica específicas as quais se liga um fator de transcrição parece menos importante e conservada do que a combinação específica de fatores de transcrição.

Segundo os autores, estes resultados permitem concluir que, em resumo, as propriedades bioquímicas e biofísicas da ligação entre os TFs e o DNA que são compartilhadas entre todos os eucariontes são o principal fator que estabelece as muitas características comuns na evolução da ligação a estes fatores entre grupos evolutivamente mais distantes, como são o caso dos roedores e moscas de fruta.

Os cientistas também relataram  outros contrastes reveladores na forma como a evolução da ligação do FTs ocorre nos mamíferos e nas moscas:

1) As diferenças dos locais de ligação dos TF, que estariam ligados aos ganhos e perdas qualitativas destes sítios, acumulam entre mamíferos intimamente relacionadas a uma taxa exponencial.

Por exemplo, nos cerca de 6 milhões de anos, tempo que marca a divergência da espécie Mus musculus domesticus (cepa C57BL/6J) e Mus caroli em relação ao seu ancestral comum, estas duas espécies compartilham apenas metade dos sítios de ligação determinados experimentalmente para estes três FTs principais ligados a diferenciação de células do fígado. Em comparação, praticamente, não são observadas diferenças entre as espécies de mosca de frutas Drosophila melanogaster e D. yakuba (no que concerne a ao Fatores de Transcrição) que acreditamos terem divergido há muito mais tempo, um tempo maior até mesmo que a distância evolutiva entre camundongos (Mus) e ratos (Ratus).

2) Enquanto em moscas de frutas as regiões genômicas funcionais mais fortemente ligadas a FTs tendem a estar próximas ao genes-alvo (sendo que esta ligação entre FTs e os sítios próximos aos genes-alvo ocorre em mais espécies de moscas e são mais fortes em intensidade total), nos mamíferos não há uma correspondência clara com estes resultados.

De fato, os locais de ligação dos TFs presentes em todas as cinco espécies (incluindo aí o rato) de roedores não são preferencialmente localizados perto dos genes alvo de TFs conhecidos [2]. Estes resultados geram, porém, uma dúvida:

Caso as muitas semelhanças moleculares na ligação dos TF entre as moscas e os humanos sejam, na verdade, atribuídas às similaridades bioquímicas e biofísicas compartilhadas entre os contatos e interações DNA-proteína, o que teria impulsionado as profundas diferenças na estabilidade na ligação dos TFs entre as espécies?[2]

Estas grandes diferenças qualitativas, em relação ao padrão de ligação e conservação das regiões genômicas ligadas a estes conjuntos de FTs cooperativos, entre mamíferos intimamente aparentados, quando comparadas diferenças menores, quantitativas nos padrões de coligação entre as espécies Drosófila, refletem como a estrutura do genoma e fatores da genética populacional interagem para moldar a evolução dos sistemas regulatórios.

“Os mamíferos têm grande quantidade de DNA amplamente distribuídos que não codifica proteínas, enquanto as moscas de fruta têm relativamente pouco deste tipo. Então fiação regulatória de um camundongo vai ter muito mais espaço de manobra do que a de uma mosca de fruta tem “, diz Flicek. “Isso nos dá uma imagem mais clara do que mais podemos esperar aprender sobre regulação genética dos mamíferos a partir das moscas de fruta.” [1]

Os pesquisadores, portanto, defendem que as diferenças estão associadas a diferenças na distribuição e distâncias médias entre os sítios de ligação aos FTs entre os dois grupos de animais. Com os camundongos e mamíferos de modo geral tendo populações bem menores, ciclos geracionais mais longos, genomas maiores e cheios de sucata e, portanto, uma menor eficiência na seleção natural purificadora, o que contrastaria com as maiores populações, menor quantidade de DNA sucata e maior eficiência da seleção natural tipica das moscas de fruta. A melhor explicação para estas observações, desta maneira, envolveriam as diferenças inerentes a estrutura e dinâmica populacional das moscas e dos mamíferos que resultaram em arquiteturas genômicas bastante distintas em cada uma das duas linhagens.

A primeira e mais importante diferença está no fato das populações acasalantes das moscas do gênero Drosophila serem enormes, o que eleva um importante parâmetro populacional que influência diretamente o impacto relativo de certos fatores evolutivos, tamanho efetivo da população (Ne), especificamente a deriva genética e a seleção natural. Neste caso, favorecendo a ação da seleção natural em purgar mesmo alterações genéticas com impactos menores no sucesso reprodutivo dos indivíduos [2]. Enquanto isso, os mamíferos exibem populações acasalantes muito menores, diminuindo o tamanho efetivo da população, Ne, e aumentando o poder da deriva genética aleatória e de outros fatores estocásticos em relação a seleção natural purificadora, o que acaba por permitir a fixação maior de variantes neutras ou mesmo ligeiramente desvantajosas em termos do seu impacto no sucesso reprodutivo dos indivíduos [2].

As moscas-de-fruta têm por volta de 15 mil genes que cobrem 24 milhões de pares de bases de sequências codificantes distribuída por um genoma constituído de 120 milhões de pares de base eucromáticas, sendo que cerca de 80 milhões destas bases não codificantes  estão sob restrição seletiva. Já os mamíferos têm cerca de 26.000 genes distribuídos em 45 milhões de pares de base de sequências codificantes distribuídas em um genoma constituído de quase 3 bilhões de bases eucromáticas, com apenas 126 milhões de pares de base sob restrição seletiva. Isso quer dizer que apesar de, em média, cada gene de um mamífero ter, aproximadamente, o mesmo número de bases não codificantes reguladoras sob restrição seletiva que um gene de Drosophila, em mamíferos, estas bases estão distribuídas entre vinte vezes mais DNA eucromático que não estão sob restrição seletiva óbvia. Este resultado é consistente com um modelo de interação molecular  em que TFs competiriam com os nucleossomos (proteínas as quais o DNA liga-se alterando seu estado de empacotamento e portanto acessibilidade a transcrição) por ocupação DNA [2].

 

A explicação para tais resultados foi originalmente proposta em um artigo de Lin e Riggs, publicado em 1975 [citado por 2]. De acordo com esta hipótese, seria necessário um aumento correspondente nas proteínas reguladoras no núcleo de modo que pudessem ocupar locais de ligação aos TFs totalmente funcionais, compensando a diluição deste DNA funcional não codificante em meio ao DNA eucromático evoluindo neutralmente que resultaria em muito mais sítios não funcionais.

Este aumento do número de sítios de ligação de TFs (não-funcionais) poderia explicar, portanto, as duas grandes discrepâncias entre as moscas e mamíferos. Isso ocorreria por causa de dois fatores principais. O primeiro deles está associado ao fato da ligação dos TF dos eucariontes ocorrer ao longo de faixas relativamente estreitas de ocupação (enriquecimento de 10-100 vezes) [2]. Desta maneira, o aumento de 20 vezes no número de potenciais sítios de ligação de TF espúrios não funcionais por gene, em mamíferos, poderia estar mascarando a conexão simples entres funçãointensidade facilmente observada em moscas do gênero Drosophila, em parte, complicando as tentativas de associar TFBRs com genes alvo de regulação.

O segundo fator seria que, na presença de 20 vezes mais potenciais locais de ligação de TFs, seria mais fácil a eventual migração dos sítios funcionais para locais diferentes (ocupando um sítio originalmente espúrio) nas proximidades, bem como o rápido ganho e perda de sítios TFs específicos observados em mamíferos estreitamente relacionadas. Isso poderia ocorrer, simplesmente, por que eventuais mutações que interferissem com ligação de FTs poderiam ser compensadas por mutações que ativassem qualquer um dos sítios espúrios que, por meio, da coligação de fatores transcrição voltariam a estabilizar de maneira cooperativa os demais fatores [2]. Na falta destes sítios extras, onde os FTs se ligariam, por mero acaso, uma mutação que interferisse com função de um dos FTs só poderia ser compensada por uma outra mutação no mesmo sítio, o que seria probabilisticamente menos esperado e, portanto, levando a seleção negativa desta variante por meio da menor chance de sobrevivência e reprodução dos indivíduos que a carregassem, principalmente, por que nas grandes populações características das moscas de fruta a seleção natural e consideravelmente mais eficiente.

A maior tolerância mutacional dos genomas dos mamíferos e maior volume de DNA genômico, apesar de um número parecido de genes e sequências regulatórias em roedores e drosófilas sob ação da seleção purificadora, resultaria em maior ‘mobilidade’ dos sítios de ligação por causa do maior número potencial de sítios espúrios e, portanto, não funcionais:

Em suma, nossos resultados confirmam que as diferenças quantitativas sutis na de ligação TF entre as espécies de mamíferos e outras espécies (como moscas) é muito provavelmente o resultado das biofísica da ligação DNA-proteína que tem sido há muito investigados. Por outro lado, a acumulação de ganhos e perdas qualitativas de TF ligação entre as espécies (mais lentos em moscas e mais rápidas em mamíferos) parece refletir a estrutura de seus respectivos genomas, conforme determinado pela genética da população. [2]

Por fim, os pesquisadores acreditam que este estudo pode ajudar os cientistas a compreenderem melhor a regulação dos genes humanos e como diferenças nestes aspecto de uma pessoa para a outra podem explicar como e porque certas doença afligem algumas pessoas, tendo efeitos distintos em outras [1].

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Referência:

  1. Wired for change” EMBL-EBI News.

  2. Stefflova K, Thybert D, Wilson MD, Streeter I, Aleksic J, Karagianni P, Brazma A, Adams DJ, Talianidis I, Marioni JC, Flicek P, & Odom DT (2013). Cooperativity and rapid evolution of cobound transcription factors in closely related mammals. Cell, 154 (3), 530-40 PMID: 23911320

  3. Phillips, T. & Hoopes, L. (2008) Transcription factors and transcriptional control in eukaryotic cells. Nature Education 1(1) [Link]

Além da seleção natural II: Complexidade e novas funções por caminhos alternativos

Uma visão ainda bem disseminada é a de que a seleção natural é o único fator,  realmente importante, na evolução, sendo o grande responsável pela evolução da complexidade biológica [veja a figura ao lado retirada de Oltvai-Barabasi, Science, Oct 02)]. Embora seja inegável que a evolução biológica como um todo dependa da ubíqua e pervasiva seleção negativa ou purificadora e que a evolução adaptativa dependa de uma forma ou de outra da seleção positiva, muitos outros fatores são reconhecidamente essenciais à evolução. A própria evolução por seleção natural é, essencialmente, um processo em duas fases: a primeira que depende do surgimento de variabilidade fenotípica herdável, por meio das mutações, enquanto a segunda, esta sim envolvendo a seleção natural propriamente dita, que está associada com a reprodução diferencial de certas variantes fenotípicas em virtude delas influenciarem causalmente a performance ecológica e reprodutiva dos indivíduos que as possuem.

Porém, desde os anos 40, com a consolidação da síntese moderna da teoria evolutiva, sabemos que a reprodução diferencial pode não envolver a seleção natural positiva, mas ser resultado da deriva genética, um processo associado a variabilidade estocástica intrínseca das taxas de reprodução e sobrevivência dos indivíduos em populações naturais finitas que torna a deriva genética análoga aos erros estatísticos de amostragem que podem fazer as frequência gênicas oscilarem ao longo do tempo e genes serem perdidos ou fixados em toda a população pelo mero efeito do acaso [Veja “deriva genética” e “Além da seleção natural ou a importância da evolução neutra.“].

O papel das mutações, da deriva genética e de outros fatores estocásticos na evolução ganhou ainda mais atenção e importância a partir dos anos 60 com a descoberta da extrema variabilidade ao nível molecular das populações naturais e, principalmente, devido ao aperfeiçoamento da teoria matemática da genética de populações evolutiva, especialmente com a proposta da teoria neutra da evolução molecular, por cientistas como Motoo Kimura, Thomas Jukes, Jack Lester King, Tomoko Otha e Masatoshi Nei etc. Porém, mesmo assim, a perspectiva convencional entre os biólogos evolutivos continuou sendo a de que seleção natural positiva, operando de forma incremental e contínua na variabilidade natural das populações, era a grande (se não única) causa do aumento de complexidade entre os seres vivos. Isto é, as estruturas complexas evoluiriam sempre a partir de outras mais simples, passo-a-passo, através de um processo de evolução gradual por meio da seleção natural em que cada uma das formas intermediárias, ao longo do caminho evolutivo, seria mais adaptada do que a anterior*.



Contudo, nas últimas décadas, um papel mais construtivo para as mutações, deriva genética e para outros processos estocásticos passou a ser considerado e defendido com mais veemência por muitos pesquisadores dentro da biologia evolutiva [Veja para uma pequena introdução, de como a deriva pode colaborar com a evolução adaptativa, esta resposta de nosso tumblr].

A complexidade biológica, de acordo com estas abordagens, poderia surgir por outros meios, como um efeito colateral da evolução neutra, sem ter sido especificamente um produto direto da seleção natural favorecendo a característica em questão, pelo menos, em seus estágios iniciais de sua evolução. Ainda mais recentemente, esta perspectiva foi estendida da evolução molecular e genômica para a evolução fenotípica.

Carl Zimmer, um dos melhores jornalistas científicos da atualidade, escreveu um artigo na edição de agosto da Scientific American Norte Americana abordando exatamente este tema, concentrando-se nos trabalhos e argumentos de dois autores (sobre os quais já comentamos por aqui no nosso site), o filósofo Robert N. Brandon e o paleobiólogo Dan W. Mcshea [Veja o artigo sobre outro trabalho McShea, “Complexidade por subtração da complexidade”] que propuseram uma ‘lei evolutiva de força-zero‘ como o principal impulsionador da evolução da complexidade biológica.

Diferentemente dos modelos defendidos pelos geneticistas evolutivos, como Michael Lynch, Arlin Stoltzfus, Masatoshi Nei etc [1], a proposta de Brandon e McShea é aplicável a vários níveis da organização biológica já que lida com o conceito genérico de ‘partes’, propondo uma métrica baseada na variância do número e dos tipos de partes como medida de complexidade estrutural, fornecendo uma heurística que permite separar a origem da complexidade em termos puramente estruturais e organizacionais da evolução da complexidade funcional onde a seleção natural, sem dúvida, terá um papel mais proeminente [1].

A ideia básica, que foi apresentada em um artigo de Brandon (e em um livro de 2010, co-escrito por McShea e Brandon, ‘A primeira lei da Biologia‘), como explica Zimmer, é que deveríamos esperar que um monte de partes ou peças que inicialmente eram virtualmente iguais  diferenciar-se-iam ao longo do tempo [1]. No caso dos seres vivos, isso ocorreria por que, sempre que organismos reproduzem-se, um ou mais dos seus genes podem sofrer mutação. Às vezes essas mutações dão origem a mais tipos de partes; o que leva os organismos que tenham mais partes tendo mais oportunidades para tornarem-se mais diferentes.

O exemplo óbvio, ao nível molecular, envolve a duplicação acidental de um gene, após o que, as duas cópias poderiam acumular mutações diferentes umas das outras, passando a tornarem-se cada vez mais distintas [1]. Portanto, ao se começar com um conjunto de partes idênticas, de acordo com McShea e Brandon, haverá uma tendência que elas tornem-se cada vez mais diferentes umas das outras, o que seria a chave para o aumento da complexidade dos organismos ao longo da evolução.

Claro, este processo é limitado pela própria seleção natural purificadora e por outros tipos de restrições biológicas, como por exemplo as oriundas da existência de processos homogeneizadores no genoma, como a conversão gênica que, por exemplo, pode tornar genes parólogos (derivados por duplicação de um gene ancestral) mais semelhantes entre si do que aos seus ortólogos em outras populações e linhagens. Porém, mesmo assim haveria uma tendência geral a diversificação e aumento da variabilidade e, portanto, da complexidade assim definida.

Eventualmente, entretanto, após o surgimento inicial deste tipo de complexidade, alguma característica associada a ela poderia ajudar um organismo a sobreviver mais e melhor e/ou a ter mais descendentes. Caso isso ocorresse, a seleção natural passaria a ser a responsável por espalhar esta característica pela população e, a partir de mais variabilidade genética, aprimorar seus aspectos funcionais com o passar das gerações:

Mamíferos, por exemplo, detectam cheiros por meio da ligação de moléculas odoríficas aos receptores das terminações nervosas em seus narizes. Estes genes receptores foram duplicados repetidamente ao longo de milhões de anos. As novas cópias mutaram, permitindo que mamíferos cheirassem uma ampla gama de aromas. Os animais que dependem fortemente de seus narizes, como ratos e cães, têm mais de mil desses genes de receptores. Por outro lado, a complexidade pode ser um fardo. As mutações podem mudar a forma de uma vértebra do pescoço, por exemplo, tornando-se difícil para a cabeça a girar. A seleção natural vai evitar que essas mutações se espalhes através das populações. Ou seja, os organismos que nascem com essas características tendem a morrer antes de reproduzirem-se, retirando, assim, as características deletérias de circulação quando elas surgem. Nestes casos, a seleção natural funciona contra complexidade.[1]

A principal diferença da perspectiva de McShea e Brandon que a diferencia da visão mais convencional da teoria evolutiva é que eles veem uma tendência a complexidade crescente, mesmo na ausência de seleção natural que, na verdade, poderia, em algumas circunstâncias, ser mesmo antagonizada por este fator:

Esta afirmação é, dizem eles, uma lei fundamental da biologia, talvez a sua única. Eles apelidaram a lei evolutiva da força de zero. [1]

McShea e Leonore Fleming [2], doutoranda de McShea na Universidade Duke, resolveram testar a dita lei de força zero, usando para isso as conhecidas moscas do gênero Drosophila. Como Zimmer explica, cientistas, por mais de um século, vêm criando linhagens de moscas deste gênero, especialmente da espécie Drosophila melanogaster, para uso em experimentos. Porém, diferente de seus parentes selvagens, nos laboratórios, estas moscas têm levado uma vida bem mais confortável, com um fornecimento constante de comida e um clima quente bem controlado, enquanto seus parentes selvagens continuam sendo obrigados a lidar com a fome, predadores, frio e calor. Por causa disso a seleção natural é tipicamente mais forte entre as moscas selvagens, eliminando consistentemente as variantes com mutações deletérias, com exceções, eventuais, óbvias. Porém, isso não é tão verdade nos ambientes protegidos dos laboratórios, o que torna a seleção natural neles bem mais fraca [1].

Os dois pesquisadores fizeram, então, o seguinte: Como a partir da lei evolutiva de força de zero é possível derivar uma previsão bem clara, já que ela implica na existência um forte impulso em direção ao aumento da complexidade que pode, entretanto, ser antagonizado pela seleção natural e por restrições evolutivas de vários tipos, eles pensaram:

ao longo do século passado, as moscas de laboratório deveria ter sido menos sujeitas à eliminação de mutações desfavoráveis ​​e, portanto, deveriam ter se tornado mais complexas do que as selvagens.[1]

Fleming e McShea vasculharam a literatura científica e analisaram 916 linhagens de laboratório de moscas de fruta, realizando muitas medidas diferentes de complexidade em cada uma das populações, publicando os resultados na revista ‘Evolution & Development’ em artigo bem recente [2].

Os dois cientistas mediram a complexidade destes animais com relação aos tipos de partes, suas formas e cores ao longo de dois níveis focais independentes. Os resultados revelaram que, em comparação ao tipo selvagem, os mutantes D. melanogaster são significativamente mais complexos.

Outro resultado interessante é quando as partes dos mutantes são classificadas de acordo com o grau de restrição, as partes fracamente restritas são muito mais complexas do que as partes mais restritas. Segundo, os autores, estes resultados suportam a hipótese da lei evolutiva de força zero, ajudando também a começar a estabelecer até onde esta lei se aplicaria [1]. Na figura a esquerda e acima é mostrada a concepção de um artista [Imagem: Cherie Sinnen – Sciam] que contrasta a anatomia da mosca selvagem típica (esquerda) com algumas das mutações representativas que surgem em moscas de laboratório (à direita).

Alguns dos insetos tinha pernas irregulares. Outros adquirido padrões complicados de cores em suas asas. Os segmentos das suas antenas assumiu diferentes formas. Libertado da seleção natural, as moscas se deleitaram em complexidade.[1]

Nem todos, claro, estão convencidos por estes resultados iniciais. O paleontólogo Douglas Erwin, do Museu Nacional Smithsonian de História Natural, considera a hipótese equivocada pois partiria de pressupostos falhos. Para Erwin, como, de acordo com a lei evolutiva de força zero, a complexidade aumentaria na ausência de seleção, isso seria impossível, pois só poderia ser verdade caso os organismos pudessem realmente existir além da influência de seleção. Erwin argumenta que, além dos fatores ambientais, um animal tal como uma mosca para desenvolver-se adequadamente demanda que centenas de genes interajam em uma coreografia elaborada, transformando uma célula em muitas, dando origem a diferentes órgãos e, desta maneira, a um todo organizado e funcional. Assim, mutações que perturbassem esta coreografia, evitando que as moscas se tornem adultos viáveis, também seriam alvo da seleção  natural [1]​​:

Um organismo pode existir sem a seleção externa – sem que o ambiente determine quem ganha ou perde na corrida evolutiva, – mas ele ainda estará sujeito a seleção interna, que ocorre dentro dos organismos. Em seu novo estudo, McShea e Fleming não fornecem evidências de que a lei da força de zero evolutiva, de acordo com Erwin, “porque eles só considerar variantes adultos.” Os pesquisadores não olhar para os mutantes que morreram de distúrbios do desenvolvimento antes de atingir a maturidade, apesar de ser cuidada por cientistas.[1]

Abaixo e a direita podemos observar [Imagem: Edward Parente – Quanta Magazine] um mutante de Drosophila que tem olhos na forma  de barras, sendo menores que os olhos dos indivíduos normais.

Embora Erwin esteja certo sobre o fato do estudo de McShea e Fleming tenha concentrado-se nos fenótipos (e, portanto, na complexidade) dos indivíduos adultos, aquilo que Erwin chama de seleção interna pode ser incluída nas restrições mencionadas pelos dois autores que refletiriam tanto o complexo mapeamento entre genes e fenótipos, como as restrições associadas a limitações de origem mecânicas e físico-químicas genéricas que estariam por trás da interação entre moléculas, células e tecidos organizados. Contudo, o ponto mais relevante é que o estudo de McShea e Fleming [1] não se propõem a estudar organismos vivos que estejam completamente fora da influência de restrições biofísicas, genético-desenvolvimentais e da seleção natural, mas sim contrastar o nível de complexidade entre organismos e populações mais ou menos submetidas a seleção e restrições.

A outra objeção de Erwin é ainda menos relevante e baseia-se no fato que aquilo que McShea e Brandon chamam de complexidade e medem não é exatamente a mesma coisa que a maioria dos outros cientistas querem dizer com o termo:

Afinal, um olho não só tem muitas partes diferentes. Essas partes também realizam uma tarefa em conjunto, e cada um tem uma tarefa específica a fazer. [1]

Mas, como Zimmer deixa claro, McShea e Brandon defendem que o tipo de complexidade que eles estão examinando e medindo pode levar a complexidade de outros tipos, inclusive a mistura de complexidade estrutural e funcional que os biólogos normalmente aludem.

“O tipo de complexidade que estamos vendo nesta população de Drosophila é o alicerce para coisas realmente interessantes que a seleção poderia se apossar de construir estruturas complexas que funcionam para ajudar a sobrevivência”, diz McShea. [1]

É exatamente por causa da confusão entre estrutura, organização e função que McShea e Brandon propuseram sua medida distintiva baseada na variação e diferenciação de partes, permitindo destrinchar as causas não-adaptativas das adaptativas do aumento da complexidade em sistemas biológicos.

O texto de Zimmer continua, desta vez, citando os exemplos dos trabalhos do grupo de Joe Thornton, da Universidade do Oregon, sobre a ATPase vacuolar de fungos, e os trabalhos de Michael Gray, da Universidade Dalhousie, em Halifax, com a evolução do processo de edição de RNA, que pretendo abordar em um post em separado, principalmente, o impressionante trabalho de Thornton.

Porém, os fatores não adaptativos não estão unicamente envolvidos na evolução da complexidade dos sistemas biológicos, mesmo quando a complexidade é mantida, o acúmulo de variação, mesmo restrito, em sistemas biológicos mais complexos pode gerar uma série de subprodutos potencialmente funcionais que podem ser, em outras circunstâncias ambientais, cooptados, e, assim, darem origem a novas adaptações secundárias.

Recentemente, Andreas WagnerAditya Barve [3], da universidade de Zurique, publicaram na revista Nature um artigo no qual investigam a evolução de redes metabólicas e o papel das exaptações na origem de novas funções. Neste estudo, os dois biólogos evolutivos resolveram avaliar qual seria a proporção de novas funções potenciais (no caso a utilização de fontes alternativas para síntese de biomassa) que surgem como subprodutos da continua evolução destas redes metabólicas com pressões de seleção para a manutenção da utilização de apenas a um substrato específico, por exemplo, a glicose.

A ideia é testar o papel das exaptações ao nível molecular na evolução de redes de reações químicas essenciais para a sobrevivência dos seres vivos pelas quais os organismos sintetizam biomassa e absorvem energia.

O termo ‘exaptação’ foi cunhado pelos paleontólogos Stephen Jay Gould e Elizabeth Vrba [4] como meio de designar aquelas características que surgem como subprodutos da evolução de outras características, adaptativas ou não-adaptativas (‘spandrels‘** ou ‘tímpanos’), mas que, após sua origem, em outras circunstâncias, podem conferir vantagens novas e passarem a evoluir diretamente por seleção natural. O próprio Darwin já havia referido-se a este fenômeno pelo termo, um tanto insatisfatório, ‘pre-adaptação’. O principal mérito desta ideia é que o termo ‘exaptação’ permite diferenciar a origem das características do seu papel atual em organismos vivos que é mantido pela seleção natural, portanto, reconhecendo o papel da contingência histórica na evolução fenotípica dos seres vivos.

O exemplo mais conhecido deste tipo de fenômeno seria o das penas, cuja origem se deu em um contexto adaptativo bem diferente do atual, a termorregulação, sendo estas estruturas mais tarde cooptadas e tendo evoluído por seleção natural em virtude da sua capacidade de permitir o voo, primeiro planado e, depois, por batimento ativo das asas.

A questão principal que surge desta proposta é o quão comum seriam as exaptações em relação as adaptações em sentido estrito. Uma questão que divide a comunidade cientifica desde a proposta original de Gould e Vrba no começo dos anos 80 [4]. A intenção de Wagner e Barye é avaliar esta questão em um sistema biológico mais facilmente controlável, mas que tivesse uma grande importância biológica. Com este intuito, os dois cientistas, conduziram estudo in silico envolvendo simulações sofisticadas de milhares de vias metabólicas da bactéria Escherichia coli [3, 5].

Através de novos métodos computacionais os pesquisadores puderam obter amostras aleatórias de muitas redes metabólicas que podem sustentar vida tendo como base uma fonte qualquer de carbono em particular, mas que, ao mesmo tempo, continham um conjunto aleatório de outras reações bioquímicas conhecidas. Como esta abordagem, Wagner e Barve conseguiram mostrar que, quando as simulações são executadas requerendo-se que tais redes sejam viáveis usando uma fonte de carbono fixa em particular, essas mesmas redes são também tipicamente capazes de usar outras fontes de carbono que não foram alvos do processo de seleção. Wagner e Barve puderam mostrar que todas as redes exibiam exaptações para a possibilidade de utilizar outras fontes de carbono, com algumas redes podendo usar até 20 fontes distintas *** [3, 5, 6].

Por exemplo, de acordo com o artigo, a simulação da evolução de redes que mantenham seletivamente a viabilidade de metabolização da glicose pode implicar que até 44 outras fontes de carbono sejam também viabilizadas pelas mesmas redes metabólicas. Isto quer dizer que qualquer adaptação em particular evoluída diretamente por pressões seletivas específicas destes sistemas metabólicos tipicamente envolverá também várias exaptações potenciais, o que sugere que estes sistemas metabólicos contenham um potencial latente para inovações evolutivas cujas origens não são diretamente adaptativas.

Estes resultados, em linhas gerais, são consistentes com a ideia de Gould de que muitos traços fenotípicos (neste caso específico, os traços metabólicos) podem ter origens não-adaptativas em uma proporção maior do que normalmente apreciado, inclusive podendo desafiar nossas capacidades de distinguir características adaptativas (em senso estrito) daquelas de origem não-adaptativa [Veja também “Fatores não adaptativos e a evolução da regulação gênica em procariontes”]. Esta observação, caso confirmada, de uma perspectiva semântica significaria que boa parte do que chamamos de adaptações (no sentido estrito do termo) são de fato exaptações, ou seja, as funções que estas estrituras, características e sistemas desempenhariam não teriam surgido originalmente por meio da ação da seleção natural favorecendo estas funções específicas. Algumas delas seriam, portanto, ‘pré-adaptações’***, ou seja, teriam evoluído como adaptações para outras funções por meio da seleção natural, enquanto outras seriam ‘spandrels’, isto é, subprodutos originalmente não-adaptativos da evolução fenotípica que poderiam ser resultantes da forma como a base genético-desenvolvimental ou a organização de suas partes estão estruturadas****.

Pretendo, em um outro post, ir mais fundo em um dos exemplos, discutido por Zimmer, sobre o aumento da complexidade em sistemas biomoleculares por processos evolutivos não-adaptativos: o referente ao estudo do grupo de Joe Thornton com as ATPases de membrana dos vacúolos de fungos. Os trabalhos de Thornton e outros biólogos evolutivos que adotam abordagens semelhantes deverão aparecer mais e mais aqui no evolucionismo pois refletem o que a de melhor e mais empolgante da biologia evolutiva molecular moderna. Por enquanto fico por aqui e deixo os leitores com estes impressionantes resultados e as perspectivas que eles abrem, mostrando que a biologia evolutiva, como disciplina científica saudável que é, anda a toda.

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* Esta perspectiva geral inclui tanto a evolução adaptativa bem linear, bem como formas complexas de evolução adaptativa, como a dos olhos, em que pequenas mudanças nas funções, porém bem relacionadas entre si (sensibilidade a luz, diferenciação de luz e sombra, comportamento de forrageio e evasão dirigidos pela visão etc), teriam sido as responsáveis pela evolução da estrutura como um todo.

**Os exemplos de Wagner e Barye [4] podem ser considerados ‘spandrels’, uma vez que eles mesmos – ou seja, as capacidades de utilização de outros substratos que não o substrato original nas simulações não foram diretamente selecionadas, sendo livres para variar – são subprodutos da ocorrência de reações aleatórias, da necessidade da manutenção da coerência organizacional da rede de reações e da restrição associada a obrigatoriamente da utilização da fonte original. Desta maneira, podem ser encaradas como ‘subprodutos arquiteturais’ [7], associadas a manutenção da funcionalidade da rede metabólica em meio a evolução.

***O termo ‘pré-adaptação’ é muitas vezes mal interpretado, sugerindo que a estrutura teria evoluído por meio da seleção natural para atender às necessidades futuras do organismo, o que não faz sentido, mas é uma interpretação possível por causa da ambiguidade do prefixo ‘pré’. Na realidade,  o termo só quer dizer que a origem da estrutura, sistema, característica ou fenótipo deveu-se a uma ‘adaptação prévia’ para outra função, por isso ela seria um ‘pré-adaptação’ para outra coisa.

****Gould e Vrba [4] propuseram chamar ‘exaptações’ e ‘adaptações’ coletivamente de ‘aptações’, denotando a importância da seleção natural (primária ou secundária) em ambas os casos, mas diferenciando os contextos histórico e ecológico-funcional distintos de suas origens. Infelizmente, o termo jamais pegou e as pessoas continuam empregando o termo ‘adaptação’ em muitos sentidos diferentes. Ele é tanto utilizado para denotar o processo de evolução adaptativa que ocorre por meio da seleção natural de variantes herdáveis aleatórias; como para denominar o resultado deste processo (que é o principal uso entre os biólogos evolutivos), ou seja,  ‘as adaptações’; como para o fato de uma dada estrutura ou característica fenotípica poder ter uma função específica, independente de sua origem e destino evolutivo, o que faz com que ela possa conferir vantagens em relação ao sucesso reprodutivo dos organismos que a manifestassem (ou seja o fato dela ser ‘adaptativa’) em relação ao outro indivíduos que não as possuísse e que é a base do processo de evolução por seleção natural, não sua consequência e nem ele próprio. Estes três usos em particular são tremendamente perniciosos pois confundem a base para o processo, o processo em si e o resultado ‘final’ do processo.

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Referências:

  1. Zimmer, Carl The Surprising Origins of Life’s Complexity Quanta Magazine, July 16, 2013. [Zimmer, Carl The Surprising Origins of Life’s Complexity Scientific American, July 16, 2013]

  2. Fleming e McShea: Fleming L, McShea DW. Drosophila mutants suggest a strong drive toward complexity in evolution. Evol Dev. 2013 Jan;15(1):53-62. doi: 10.1111/ede.12014. PubMed PMID: 23331917. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/ede.12014/pdf

  3. Barve, Aditya, Wagner, Andreas A latent capacity for evolutionary innovation through exaptation in metabolic systems. Nature, 2013; DOI: 10.1038/nature12301 – http://www.nature.com/nature/journal/vaop/ncurrent/full/nature12301.html

  4. Gould, Stephen Jay, and Elizabeth S. Vrba (1982), “Exaptation — a missing term in the science of form,” Paleobiology 8 (1): 4–15.

  5. Palmer, Chris ‘Q & A: Evolution Makes Do‘ The Scientist, July 14, 2013.

  6. Great exaptations: Most traits emerge for no crucial reason, Santa Fe Institute News July 15, 2013.

  7. Gould, Stephen Jay (1997). “The exaptive excellence of spandrels as a term and prototype” Proceedings of the National Academy of Sciences USA. 94: 10750-10755. doi: 10.1073/pnas.94.20.10750