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Charles Darwin eo Método Científico

Sem querer desmerecer o trabalho dos evolucionistas modernos e as suas considerações e análises bem fundamentadas a respeito da Teoria da Evolução, não podemos prescindir do legado de Charles Darwin para a biologia atual. A forma metódica e o raciocínio científico de Darwin em relação ao mecanismo evolutivo servem como exemplo de como a ciência é construída passo a passo e não resulta de descobertas mirabolantes processadas instantaneamente. Neste particular, leiam o que publiquei no blog Biorritmo sobre Charles Darwin e o método científico:
“Na visão popular, os avanços científicos são produto da genialidade de homens, que, por meio de insights, concebem idéias com força para abalar as estruturas do conhecimento. Na realidade, a ciência é fruto de dedicação e de um longo percurso de pesquisa. Nessa área é preciso seguir um método, ou seja, regras básicas que norteiam a investigação científica: problematização, observação, investigação, pesquisa em diversas fontes, registro durante o percurso e conclusão.
Dotado de grande capacidade de observação e de registros, apoiado nas pesquisas científicas mais recentes e tendo contato com especialistas de diversas áreas, Darwin conseguiu desenvolver a Teoria da Evolução seguindo estas 5 etapas indispensáveis- e que estão presentes até hoje no ensino de Ciências.
Em 1831, aos 22 anos e recém-formado, Darwin foi convidado a participar de uma expedição patrocinada pelo governo inglês até os trópicos, como acompanhante do comandante do navio HMS Beagle. Durante os 5 anos da aventura, ele pôde observar, pesquisar e refletir sobre a diversidade da vida. Nas 20 paradas do navio, pelos 4 continentes em que aportou, ele realizou experimentos, coletou fósseis, espécimes vivos de animais e vegetais, fez centenas de registros por meio de desenhos e anotações, respondeu a dezenas de perguntas e trocou correspondências e opiniões com diversos estudiosos ingleses.
Foi Darwin que deu consistência necessária á Teoria da Evolução, cujo fundador foi o francês Jean Baptiste de Lamarck (1744-1829). Para não deixar furos no estudo, Darwin seguiu à risca os procedimentos de pesquisa, tendo o cuidado de unir o maior número de provas e de checar cada ponto abordado com as autoridades científicas mais respeitadas da época. Tanto zelo e preocupação fez com que publicasse a teoria mais de duas décadas depois, em 1859, com o poético título Sobre a Origem das espécies por Meio da Seleção Natural ou a Preservação das Raças Favorecidas na Luta pela Vida.
Segundo a teoria de Darwin, tanto os organismos vivos como os que encontrou fossilizados se originavam de um ancestral comum e se transformavam ao longo do tempo. Semelhante a uma bactéria, esse primeiro ser vivo sofreu modificações até gerar toda variedade de animais e plantas do planeta, seguindo um padrão evolutivo (que permanece ativo). Assim, o homem deixou de ser visto como um animal especial e mais evoluído para ser encarado como mais um ramo da grande árvore da vida.”

A Genética e o Jogo da Evolução

Uma das estratégias mais importantes na biologia é identificar os modelos experimentais mais simples do fenômeno que se pretende entender. Com relação à evolução de um determinado padrão corporal, a cor é o melhor modelo. Padrões de coloração corporal de mosca-das-frutas se diversificaram rapidamente entre espécies proximamente relacionadas, e a análise de como esses insetos adquiriram suas manchas e listras ilustra como e por que a evolução dos dispositivos de ativação genética define a evolução da anatomia.
Em algumas espécies, os machos têm manchas de negro intenso na ponta das asas, enquanto outras espécies não as têm. Em algumas dessas mesmas espécies, os machos têm o abdômen muito escuro (que é como a mosca-das-frutas mais famosa, a Drosophila melanogaster, recebeu seu nome: melanogaster significa “barriga preta”), enquanto machos de outras espécies não possuem essa faixa negra. Em espécies com asas pintadas, o macho exibe suas pintas para a fêmea quando a corteja com uma dança. Descobrimos que, em espécies manchadas, a proteína Amarelo é produzida em níveis muito altos nas células que comporão as manchas e em níveis baixos no resto das células da asa. Em espécies sem manchas, a Amarelo é produzida em níveis baixos em toda a asa, gerando apenas um pontilhado claro de pigmento negro.
Para entendermos como a Amarelo é produzida em uma mancha da asa em algumas espécies e não em outras, buscamos nas seqüências de DNA próximas ao gene Amarelo os acentuadores que controlam sua expressão em várias partes do corpo. Nas espécies sem manchas, há um acentuador que estimula a expressão do Amarelo em um padrão baixo e uniforme por toda a asa. Essa atividade acentuadora na asa gera a coloração cinza claro. Quando a porção correspondente de DNA de uma espécie manchada foi analisada, descobrimos que ela estimula tanto esse padrão de expressão gênica de baixa intensidade quanto o padrão intenso de manchas. O que ocorreu no curso da evolução das espécies manchadas é que novos sítios de ligação para fatores de transcrição produzidos na asa evoluíram na seqüência acentuadora de DNA do Amarelo. Essas mudanças criaram um padrão de expressão – manchas na asa – sem alterar onde a proteína Amarelo é fabricada ou como ela funciona em outros locais do corpo.
Uma história semelhante ocorreu na evolução da faixa preta no abdômen mas com uma diferença. Embora tenhamos uma tendência natural a pensar que a presença de uma característica em uma espécie e sua ausência em outra espécie relacionada é o resultado de um ganho pela primeira, muitas vezes esse não é o caso. O outro lado da moeda na evolução, a perda de características, é muito comum, apesar de menos conhecida. Talvez a perda de características corporais ilustre melhor por que a evolução dos acentuadores é o caminho mais provável da evolução da anatomia.
Um acentuador do gene Amarelo comanda sua expressão no abdômen. Em machos de espécies com a faixa negra, esse acentuador direciona a expressão do gene Amarelo em altos níveis em células da parte posterior do abdômen. Mas algumas espécies, como aDrosophila kikkawai, perderam essa faixa pigmentada no curso da evolução. Na D. kikkawai, o acentuador não é mais capaz de estimular altos níveis de expressão de Amarelo na parte posterior do abdômen porque algumas mutações degradaram alguns de seus sítios de ligação para fatores de transcrição
É importante enfatizar que o gene Amarelo permanece ativo no restante do corpo e que sua função bioquímica está intacta. Embora um dos caminhos para perder a faixa negra pudesse ter sido por meio de mutações que desativassem o gene Amarelo e sua proteína, essa via não é permitida pela seleção natural, já que a perda da função da Amarelo em outros lugares do corpo teria conseqüências adicionais negativas.
A perda de características pode ou não ser benéfica para a sobrevivência ou maior sucesso reprodutivo, mas algumas perdas são adaptativas porque facilitam alguma mudança no estilo de vida. Membros posteriores, por exemplo, foram eliminados várias vezes no caso de vertebrados – como cobras, lagartos, baleias e peixes-boi –, e essas perdas estão associadas à adaptação a diferentes hábitats e meios de locomoção. Os precursores evolutivos dos membros posteriores dos vertebrados são as barbatanas pélvicas dos peixes. Diferenças cruciais na anatomia delas também evoluíram em populações de peixes proximamente relacionadas. O peixe-espinho aparece em duas formas em muitos lagos da América do Norte – em águas profundas, sua pelve é completamente coberta de espinhos; aqueles que vivem no assoalho de águas rasas tiem a pelve dramaticamente reduzida e os espinhos, atrofiados. Em águas profundas, os espinhos ajudam a impedir que o peixe seja engolido por predadores maiores. No entanto, no assoalho do lago, esses espinhos são um ponto fraco, pois larvas de libélula que se alimentam dos peixes jovens conseguem agarrá-los.
As diferenças na morfologia da pelve entre esses peixes evoluíram repetidas vezes em apenas 10 mil anos desde a última era glacial. Grandes peixes-espinho oceânicos colonizaram muitos lagos separados, e a variedade com pelve reduzida evoluiu de forma independente diversas vezes. Como esses peixes são muito próximos e conseguem ter reprodução interespécies em laboratório, os geneticistas podem mapear os genes envolvidos na redução da pelve.David M. Kingsley, da Stanford University, juntamente com Dolph Schluter, da University of Bristish Columbia e seus colegas, demonstraram que mudanças na expressão de um gene envolvido na construção do esqueleto da pelve estavam associadas à sua redução. Como a maior parte dos outros genes de construção corporal, o Pitx1tem várias funções no desenvolvimento do peixe. Mas sua expressão é perdida de forma seletiva na área do peixe que dará origem ao broto da barbatana pélvica e seus espinhos. Mais uma vez, mudanças evolutivas em um acionador são as responsáveis. Não há mudanças codificantes na proteína Pitx1 entre as diferentes formas de peixe-espinho.
O Amarelo, o Pitx1 e a maioria dos outros genes de construção e definição das formas do corpo são pleiotrópicos, ou seja, influenciam a formação e o aparecimento de várias características. Mutações na seqüência codificante de um gene pleiotrópico provocam uma série de efeitos em todas as características controladas por ele, e é improvável que uma quantidade drástica de mudanças seja tolerada pela seleção natural. A lição crucial da evolução de pintas, faixas e esqueletos é que as mutações em seqüências regulatórias contornam os efeitos pleiotrópicos em seqüências codificantes e permitem uma modificação de partes individuais do corpo. Mutações nas seqüências regulatórias não são o único modo de evolução – são apenas a via mais provável quando um gene tem vários papéis e um deles é modificado seletivamente.
Postagem publicada no Blog Biorritmo (www.profjabiorritmo.blogspot.com)

Atividade Revisora do DNA

Atividade Revisora do DNA


Na natureza existem formas alternativas das quatro bases nitrogenadas que formam o DNA, chamadas formas tautoméricas (formas isoméricas de compostos orgânicos). A freqüência com que estas bases ocorrem é baixa, porém muitas ordens de grandeza acima da freqüência de erros admissíveis no DNA (lembre-se que a adição de uma base errada na seqüência de um gene é uma mutação, que pode ter conseqüências importantes para o portador do gene mutante).
Cada vez que uma dessas bases tautoméricas é empregada, provoca um erro de pareamento. Se ela não for retirada antes da próxima replicação, uma mutação será introduzida no DNA. Por isso, as DNA polimerases (I, II e III, em Escherichia coli e muitos outros procariotos, a e b em eucariotos) têm a capacidade de rever, imediatamente após a adição, se o pareamento da base adicionada com a base da fita molde foi correto.
Qualquer erro de pareamento é refletido pela alteração na estrutura da dupla hélice. Esta alteração deve fluir por um canal iônico da própria DNA polimerase. Se a hélice estiver alterada a DNA polimerase pára, volta na direção 3’-5’ despolimerizando a cadeia recém sintetizada e, após algumas dezenas ou até centenas de bases, recomeça o trabalho.
Pode parecer um processo pouco econômico, mas lembre-se que a integridade da informação genética está em jogo e, portanto, a preservação das características e funções de todas as células de uma mesma espécie.
Outra enzima comum e essencial no processo é a DNA ligase (polinucleotídeo ligase) que liga os nucleotídeos após a correção feita pela DNA polimerase I.

Postagem publicada no Blog Biorritmo (www.profjabiorritmo.blogspot.com)

É a evolução genética previsível? Parte II ou Além da genética parte I

A mudança de perspectiva (em que a atenção vai dos genes isolados, e da ação de seus produtos imediatos, para os circuitos genéticos modulares e as suas redes de interações) é uma das marcas da atual biologia evolutiva e caracterizam a emergente biologia evolutiva do desenvolvimento, a popular Evo-Devo. Esta perspectiva, entretanto, não é exatamente nova e também não é completamente destituída de problemas, além daqueles que Stern e Orgogozo (veja ‘É a evolução genética previsível? Parte I‘) mesmos ressaltaram em seu interessante artigo (Stern e Orgogozo, 2009).

A onda de interesse nas seqüencias cis-regulatórias tem ganhado muita divulgação, não só pelo trabalho do grupo de Stern, mas principalmente pelos trabalhos (inclusive de divulgação) de Sean B. Carroll, autor do ótimo livro “Infinitas formas de grande beleza”, e de Neil Shubin que, além de um paleontólogo membro da expedição que achou o fóssil do peixe-tetrápode Tiktaalik, mantém um laboratório de biologia do desenvolvimento e lançou, a pouco tempo, o também excelente livro “A história de quando éramos peixes:“. Esta perspectiva tem sido também alvo de críticas por parte de alguns biólogos evolutivos, como Jerry Coyne (um especialistas em genética evolutiva da especiação) e Hoekstra (especialista em adaptação por melanismo) que tem defendido que ainda é prematuro concluir que a evolução morfológica ocorreria, principalmente, por mutações em seqüencias cis-regulatórias, em detrimento de mutações em regiões codificadores dos genes, que para eles ainda deveriam ser o principal foco de atenção. Porém, mesmo discordando de pesquisadores como Carroll e Wray, Coyne e Hoekstra concentram-se em exemplos de mutações em regiões codificantes de elementos Trans-ativos, principalmente fatores de transcrição, os ‘parceiros’ inseparáveis das seqüencias cis-regulatórias. O que mostra que a evolução regulatória é realmente a principal aposta dos biólogos evolucionistas, especialmente os adeptos da Evo-Devo, para explicar os processos de especiação, mas especialmente para compreendermos como ocorrem as grandes alterações morfológicas ao longo da evolução. Então, mesmo a divergência entre pesquisadores como Carroll e Stern, de um lado, e Coyne e Hoekstra, de outro, apontam para uma consenso inegável do reconhecimento da evolução de sistemas de regulação gênica e desenvolvimental.

Talvez ainda mais interessante, seja a discussão que se encontra por trás destas novas abordagens e da grande miríade de dados que começam a se acumular, suportando-as. O fato de sistemas regulatórios estarem organizados de acordo com um padrão distribuído modular, mas ainda assim hierárquico, o que é denotado pelo tipo de topologia particular destas redes bioquímicas, aponta para a importâncias das restrições e de coerções associadas com a evolução das formas.

Um trabalho recente, de 2008, publicado no Plos Computational Biology (Borenstein & Krakauer, 2008), “An End to Endless Forms: Epistasis, Phenotype Distribution Bias, and Nonuniform Evolution“, ajuda a ilustrar esta perspectiva.
A teoria das redes é uma abordagem relativamente nova que tem sido amplamente aplicada a toda uma gama de fenômenos naturais e sociais que parecem exibir certos padrões semelhantes que dependem menos da composição particular de cada sistemas, modelados por esta abordagem, e mais dos padrões de interação e conectividade das unidades que forma estes sistemas, possibilitando um nível de abstração e generalidade que permite toda sorte de comparações de diferentes sistemas.

A vantagem de utilizar representações em rede, baseadas nos insights
de Watts e Strogatz (1998), é que elas tornam possíveis comparações quantitativas em grandes escalas espaciais e de um grande número de sistemas diferentes. Muitos sistemas, como o cérebro e a internet, exibem, por exemplo, propriedades livres de escala. Além disso, o padrão de conectividade dessas redes assemelham-se às das
chamadas redes de ‘mundo pequeno’, como a representada pela idéia de 6 graus de separação. Estas redes apresentam comprimentos de caminho médios, entre quaisquer dois nós arbitrários (L no diagrama), baixos; ao mesmo tempo que contém elevados coeficientes de agrupamento (C no diagrama). Este tipo de propriedade parece ser típica de sistemas auto-organizados. Abaixo representações esquemáticas de redes encontram-se 3 exemplos de redes (regulares, ‘mundo pequeno’ e aleatórias) em que existe um aumento da conectividade ao caminharmos da esquerda para direita.

As exuberantes formas observadas na natureza são ainda mais impressionantes por que parecem representar apenas uma pequena fração do ‘espaço’ de possibilidades morfológicas, aglutinando-se próximas a algumas formas mais básicas. Esta fato pode ser um mero artefato de uma amostragem incompleta, ao longo da história da vida em nosso planeta, do ‘espaço’ de possíveis genótipos (Borenstein & Krakauer, 2008).

“Se considerarmos o volume astronômico do ‘espaço genotípico’, então o conjunto de todas as cadeias de DNA que foram produzidas durante a história da terra constituem apenas uma pequena fração do espaço total de seqüências possíveis. Além disso, os genótipos que têm existido são o resultado de um processo evolutivo – de descendência com modificação a partir de um ancestral comum – que é um processo gerativo localmente delimitado. A diversidade fenotípica é ainda mais limitada por outros processos, intrínsecos à produção de variedades adaptáveis, os mecanismos de desenvolvimento que determinam o mapeamento entre os genótipos e os fenótipos.” (Borenstein & Krakauer, 2008)

Há muito se sabe que o mapeamento entre genótipo e fenótipo (em praticamente todos os seus níveis) está muito longe de ser linear, não apresentando uma relação de ‘um para um’, como às vezes algumas metáforas usadas na divulgação científica deixam transparecer. Entretanto, este emaranhado de sistemas interativos também não é caracterizado por uma topologia onde a conectividade é máxima. Na verdade, a organização modular, como revelada pelo estudo de sistemas de integração de ‘entrada-saída‘, como shavenbaby, nos oferecem uma lógica subjacente pela qual a evolução morfológica dos animais (e possivelmente plantas), possivelmente tem se dado nos últimos 500.000000 de anos.

Segundo Borenstein & Krakauer (2008) desenvolvimento ontogenético induz um mapeamento não-linear e altamente degenerado entre o ‘espaço dos genes’ e o ‘espaço dos fenótipos’, pelo qual muitos genótipos produzem (ou estão intimamente associados a) fenótipos semelhantes (ou idênticos) e, concomitantemente, garantindo que existam muitos fenótipos que não podem ser gerados por qualquer genótipo.

Tais propriedades podem ser explicadas pela dinâmica genética neutra associada as vias de desenvolvimento e pela evolução de mecanismos específicos que garantam a robustez e estabilidade de fenótipos funcionais frente a variação ambiental e genética. Os chamados mecanismos de ‘canalização‘ podem incluir a redundância funcional, associada a múltiplos sistemas equivalentes, e a divisão destes sistemas em módulos semi-autônomos fortemente conectados internamente mas frouxamente conectados a outros módulos.

A degenerescência, outra propriedade exibida pelos sistemas desenvolvimentais, tem como efeito isolar, pelo menos parcialmente, os genótipos do processo seletivo, restringindo as possibilidades desenvolvimentais, o que talvez possa tornar uma grande parte dos fenótipos potenciais na realidade inacessíveis (Borenstein e Krakauer, 2008).

Para Borenstein e Krakauer (2008) estas restrições na variação ‘arquitetônica’ implicam em limitações ao processo evolutivo e até mesmo à capacidade de adaptação. Porém, estas implicações não são imediatamente óbvias já que boa parte da evolução ocorre através da ‘busca’ entre fenótipos semelhantes que estariam aglutinados em determinadas regiões super-populadas do morfo-espaço, o espaço dos fenótipos, o que está em estrita conformidade com a genética evolutiva de populações.

A distribuição esparsa das formas acessíveis em aglomerados no espaço fenotípico, entretanto, tem implicações diretas nos padrões em larga escala da evolução, o que, segundo estes e outros autores, só pode ser devidamente apreciado através da introdução, na análise da dinâmica evolutiva, de modelos adequados de desenvolvimento que façam a ponte entre a genética de populações (e a evolução molecular) e evolução fenotípica. Toda esta complexidade emerge da combinação de sistemas de regulação hierarquizados, do controle multigênico, da epistasia e da pleiotropia.

Nas últimas décadas um grande volume de dados e trabalhos teóricos têm apontado para certas características associadas a origem e diversificação morfológica ao longo da evolução: (i) a variação morfológica dos planos corporais era extensa no início da história da vida multicelular; (ii) fenótipos são esparsamente distribuídos no “espaço de fenótipos potenciais”; (iii) a diversidade é melhor predita pela variação na estrutura das redes de regulação do que através da presença ou ausência de genes estruturais (Borenstein e Krakauer, 2008). Porém, boa parte destes trabalhos vem de duas áreas de pesquisa mais gerais:

  1. A análise das propriedades estatísticas e dinâmicas de desenvolvimento a partir de mapas, entre genótipos e fenótipos, em sistemas simples, sobretudo as chamadas redes neutras de RNAs;
  2. A investigação de propriedades das redes regulatórias dos genes durante o desenvolvimento em animais através do estudo de sistemas modelo;

A bioinformática e a biologia computacional vêm ampliando estas perspectivas, oferecendo novas ferramentas e formas de investigação in silico. Borenstein & Krakauer (2008), por exemplo, propuseram um modelo que, utilizando-se de uma representação genérica, procura captar a forma em que múltiplas entradas (‘imputs’) genéticas interagem de forma combinatória para influenciar várias características fenotípicas, sem assumir a seleção, constituindo-se, portanto, em um modelo neutro, isto é, de nulidade das relações entre genética, desenvolvimento e fenótipos. Veja figura ao lado.

O mais interessante, entretanto, é que esta abordagem nos remete, de novo, aos estudos de Stern e Orgogozo (2009), já que tal modelo pode ser interpretado de sem comprometimento como produto da interação gênica através de elementos cis-regulatórios. Com este modelo, Borenstein & Krakauer (2008), tem por objetivo mostrar que uma propriedade geométrica básica das rede que controlam o desenvolvimento ontogenético provê um modelo nulo capaz de explicar o enviesamento e a falta de uniformidade na distribuição dos fenótipos dos animais.

O modelo foi usado para analisar uma série de regularidades estatísticas do mapeamento do desenvolvimento induzido durante o estudo. Foi obtida a fração dos fenótipos visíveis gerados durante o desenvolvimento e a dependência desta fração do nível de interação entre os elementos genéticos. Também foram caracterizadas as distâncias entre os fenótipos visíveis, e que ocorriam frequentemente, e influência do desenvolvimento sobre as relações filogenéticas. Os resultados mostram-se compatíveis com muitas das regularidades empíricas, desenvolvimentais e paleontológicas mencionadas anteriormente, já que estas puderam ser recuperadas ao usar este modelo nulo (Borenstein e Krakauer, 2008). Veja figura abaixo.

Esta constatação nos leva a outra interessante possibilidade, a de que a evolução seja ela mesmo passível de evoluir, a ‘evolutibilidade’ (evolvability). Quando nos deparamos com estas estimulantes possibilidades, passamos a olhar para os padrões evolutivos dispostos na coluna estratigráfica de forma diferente, o que, talvez, nos deva levar a examinar com mais carinho a possibilidade da evolução operar em múltiplos níveis ao mesmo tempo.

Assim, processos como ‘sorting’ e a seleção de espécies (e de clados) fazem muito mais sentido, principalmente se pensarmos que estas propriedades desenvolvimentais, como robustez e canalização, poderiam ser vistas como propriedades emergentes de espécies e clados e sua variabilidade inter-taxonômica, parcialmente, responsáveis pelas diferenças de probabilidade de especiação e extinção relativas (veja Jablosnky, 2008). Claro, que precisamos reconhecer que mecanismos mais prosaicos atuando nos nível individual podem ser perfeitamente capazes de explicar estes processos (veja para discussão Leroi, 2000 e Erwin, 2000). Como dizem os anglófonos, sobre esta questão ‘o juri ainda não se decidiu’.

Ainda assim, quando mudamos o foco para as redes de sinalização e para os controle genético, parece restar algo não explicado. Isto é, parece haver um certo distanciamento entre os sistemas de sinalização intra-celular e inter-celular, mediados por módulos bioquímicos e genéticos particulares – mas que são apenas arbitrariamente ligados aos fenótipos que geram ao interagir com o ambiente – os fenótipos, e sua realização concreta, em si.

Felizmente, mesmo esta constatação é remediável, e vem sendo remediada há décadas através de uma tradição de pesquisa que remonta a morfologia racional de Étienne Geoffroy St. Hilaire, a Naturephilosophen de Goethe e a tradição matemático-teórica em biologia, de D’Arcy Wentworth Thompson, hoje, às vezes, chamada de ‘estruturalismo de processo’. Esta abordagem deixa um pouco de lado as redes e os sistemas de regulação, e concentra-se em aspectos mais abstratos do processo de geração, desenvolvimento e mudança dos seres vivos, como nos processos de [auto]construção dos fenótipos propriamente ditos, ou seja, na dinâmica física e química das interações célula-célula, célula-matriz e entre os tecidos organizados.

Obras como “On Growth and form” de Thompson (veja Arthur, 2006) influenciaram muitos biólogos e ajudaram a criar um campo multidisciplinar conhecido como biologia matemática (ou biomatemática) que produziu interessantes e elegantes modelos, infelizmente, muitas vezes estragados por ‘horrendos fatos‘. Uma das idéias mais interessantes de Thompson é exemplificada pelos seus diagramas que ilustravam como, a partir de deformações geométricas específicas, que mudavam as proporções das estruturas anatômicas dos seres vivos, poderíamos gerar as formas de outros seres aparentados com os primeiros. Os trabalhos de Thompson mostram sua aguda compreensão de que apenas através de alterações nos padrões espaciais e nas taxas de crescimento e proliferação celular, durante do desenvolvimento, é a evolução animal poderia ter se dado.

A utilização, por Thompson, de gradeados com coordenadas cartesianas bidimensionais, ilustra esta idéia. Através de deformação diferencial de certos setores dos planos é possível gerar formas corporais típicas de outras espécies relacionadas (Arthur, 2006). Esta idéia tem semelhanças com outra idéia que ganhou alguma importância no final do século XIX e começo do século XX, a heterocronia, explorada em outra obra de S.J. Gould (esta infelizmente nunca traduzida para o português), Ontogeny and Phylogeny.

Sean Rice (2010) define Heterocronia (do grego, “tempo diferente”) como a variação na taxa ou no tempo de desenvolvimento de alguma característica. Uma mudança heterocrônica, portanto, envolve alterações nas taxas ou tempos de desenvolvimento de algumas linhas de células no organismo em relação as outras. Uma mutação que altere a taxa na qual uma linhagem celular se desenvolve em relação a outras linhagens é uma mutação heterocrônica (Ridley, 2003). Atualmente, se fala mesmo em heterocronia molecular e genética, focando nas alterações bioquímicas e genéticas responsáveis por este processo, mas o conceito original é morfológico-desenvolvimental.

No entanto, esta definição é um pouco vaga e alterações nas taxas de desenvolvimento podem englobar quase todo tipo de mudança morfológica. Uma definição mais restrita exigiria, para que uma esta se qualifique de forma não-ambígua, como heterocronia com aquelas a mudança nas taxas e no ‘timing‘ de algum processo de desenvolvimento sejam uniformes (Rice, 2010).

O termo foi cunhado pelo biólogo alemão Ernst Haeckel (1834-1919) para descrever uma exceção à sua lei biogenética (“a ontogenia é uma recapitulação sucinta e rápida da filogenia”). Haeckel acreditava que a morfologia adulta dos ancestrais de um organismo era repetida nas fases pelas quais um organismo passa ao se desenvolver do ovo a adulto. Isso significa que o tempo e a posição em que uma característica aparece pela primeira vez, em um embrião em desenvolvimento, deve corresponder ao tempo histórico em que esta característica apareceu na evolução e na sua posição morfológica inicial. Haeckel identificou dois processos que poderiam confundir o padrão esperado: heterotopia, uma mudança no local em que surge uma características, e heterocronia, uma mudança no ponto no tempo do surgimento da característica. Embora a lei biogênica tenha sido rejeitada, o termo heterocronia tem persistido, embora o seu significado tenha mudado (Rice, 2010).

Foi o grande embriologista sir Gavin de Beer, que nos anos 30, ajudou a elevar a heterocronia como uma classe de mecanismos evolutivos, ao descrever oito tipos diferentes de heterocronia. Estes correspondiam a diferentes formas pelas quais a presença ou ausência de uma característica, em juvenis e adultos, poderiam mudar. Por exemplo, a neotenia é definida como um caso em que uma estrutura morfológica vista nas formas juvenis de uma forma ancestral vem a ser encontrada na forma adulta de um grupo descendente (Rice, 2010).

“Esta abordagem de distinguir diferentes tipos de heterocronia foi continuada por S.J. Gould (1977), que modificou um pouco a classificação de Beer e reformulou o conceito em termos de tamanho e forma, ao invés de presença ou ausência. O “modelo de relógio”Gould define diferentes tipos de heterocronia considerando uma fase de crescimento específico (como a maturidade sexual) e observando o quanto o tamanho e forma evoluíram de um descendente em relação ao seu antecessor na mesma fase. Nesta perspectiva, a neotenia é um caso em que o descendente adulto é do mesmo tamanho como seu antepassado, mas é a forma do ancestral numa idade mais jovem.” (Rice, 2010)

O modelo de relógio de Gould, que considera apenas o tamanho e a forma em um determinado momento, não inclui representações diretas das alterações do desenvolvimento per se. Abordagens como a de ‘trajetórias ontogenéticas’, desenvolvida por Pere Alberch e colegas (1979), resolve este problema plotando curvas que representam o valor de alguma característica em função do tempo (idade) para os ancestrais e descendentes. Desta forma os diferentes tipos de heterocronia correspondem a diferentes formas em que a trajetória ancestral teria que ser transformada para produzir a trajetória descendente.

Seguindo Rice (1997, 2010), hoje identificamos seis tipos de heterocronia:

  1. Hipermorfóse- O desenvolvimento da característica descendente continua além do ponto em que parou no ancestral.
  2. Progênese- O desenvolvimento da característica descendente para mais cedo do que ocorre na ontogenia do antepassado.
  3. Aceleração- O caráter se desenvolve a uma taxa mais elevada na descendente do que no antecessor.
  4. Neotenia- A característica se desenvolve a uma taxa inferior no descendente do que no antecessor.
  5. Pós-deslocamento- A característica começa a desenvolver mais tarde na vida do descendente do que ocorre com ela no antepassado.
  6. Pré-deslocamento- A característica começa a desenvolver precocemente no descendente em relação ao que ocorria no antepassado.

Além de outros dois termos habitualmente usados:

  • Paramorfose- A forma adulta ancestral parece a forma juvenil do descendente.
  • Pedomorfose- O descendente adulto se assemelha a forma juvenil do ancestral.

Esta tradição, mesmo que tenha sido sempre, em um certo sentido, periférica, conseguiu influenciar muitos cientistas e ajudou a criar algumas abordagens mais formais para problemas biológicos fundamentais, como o da origem da ‘forma biológica’. Esta tradição de pesquisa e modelagem é uma parte integrante daquilo que é conhecido também como biologia teórica, disciplina que possui interfaces diretas com a biomatemática, biologia computacional e como a filosofia da biologia.

Uma das queixas habituais de muitos biólogos teóricos é que a ‘síntese moderna da biologia evolutiva‘ haveria deixado de lado a embriologia, assumindo uma visão mais simplistas que desconsiderava todo o contexto de interações epigenéticas (clique na figura ao lado para saber mais sobre epigenética) que ligavam as variações dos genes (originalmente identificados com segmentos cromossômicos e mais tarde com seqüencias de DNA envolvidas na síntese de biopolímeros) diretamente aos fenótipos morfofisiológicos adultos, trabalhando basicamente com as correlações, entre estes dois níveis, em contextos idealizados nos quais os detalhes não importavam.

Entre os que se opunham a este viés, que caracterizava a, então emergente, biologia evolutiva moderna, encontravam-se muitos embriologistas que vinham desta tradição mais formalistas e menos preocupados com questões adaptativas e funcionais. Estes cientistas longe de negar a evolução, apenas achavam que o arcabouço teórico da síntese evolutiva moderna era insuficiente para explicar a evolução, já que simplesmente ignorava os aspectos biológicos que eles julgavam mais importantes para a compreensão da origem e mudança dos seres multicelulares, principalmente dos animais. Neste período, que se seguiu imediatamente à “nova síntese”, talvez ninguém mais do que o embriologista, geneticista e biólogo teórico Conrad Hal Waddington tenha personificado esta escola de pensamento que buscava integrar estes outros aspectos à biologia evolutiva. Waddington enfatizava a importância daquilo que ele chamava de ‘paisagem epigenética’, um modelo esquemático que buscava contextualizar a ação dos genes e de seus produtos durante o desenvolvimento.

Em tempos mais recentes, talvez a pessoa que mais tenha colaborado para divulgar esta perspectiva foi o biólogo teórico canadense, Brian C. Goodwin (orientado de Wadington), falecido no ano passado. Goodwin, “o poeta da biologia teórica”, segundo Stuart Kauffman (Lewin, 1994), estudou biologia na universidade McGill e matemática em Oxford e era interessado em aspectos matemáticos da formação de padrões biológicos, particularmente durante o desenvolvimento embriológico seguindo a tradição estruturalista. Seu livro “How The Leopard Changed Its Spots: The Evolution of Complexity”. Seu principal interesse científico era, portanto, compreender a “origem das formas biológicas”. Goodwin, em um artigo chamado “The life of form. Emergent patterns of morphological transformation“, publicado em 2000 faz a seguinte colocação:

“É necessário começar com as razões pelas quais a forma não pode ser entendida em termos de composição molecular e história, embora esses dois aspectos contribuam para a forma. Estes aspectos são os particulares da forma, os atributos idiossincráticos que fazem uma instância de um forma individualmente distinta de outra. Qualquer sistema complexo, constituído de várias partes vai, de fato, possuir uma composição individualmente distinta e uma história particular, onde a história aqui significa a influência de circunstâncias particulares que o sistema experienciou. Na física isso geralmente significa as condições iniciais de um sistema, incluindo o arranjo do dispositivo de medição. Podemos nos referir a elas como o “ambiente” do sistema em observação. Em biologia, os organismos têm, pelo menos, duas dimensões históricas, desenvolvimental (ontogenética) e evolutiva (filogenética). Estes incluem influências ambientais e jeito como eles afetam a composição genética e atividade. (Goodwin, 2000)

A partir de uma visão organicista e sistêmica, Goodwin afirmava que existem fenômenos biológicos que ainda resistem, de forma recalcitrante, a redução, seja ela molecular, genética ou histórica:

“O primeiro deles é o próprio desenvolvimento, o surgimento de organismos complexos partir de ovos ou brotos. Isso não pode ser explicado em termos de um programa genético, pela simples razão de que a geração de formas macroscópicas tridimensionais (morfogênese) não pode ser explicado em termos de variações na composição molecular dos organismos em desenvolvimento, para a qual um programa genético, provê, em princípio, uma descrição completa. A dificuldade aqui é geral, não particular à biologia: a composição não determina a forma. Além disso, adicionar restrições (constraints) históricas (sob a forma de condições iniciais, por exemplo) e as influências ambientais não altera esta conclusão geral. Para explicar como forma macroscópica é gerada, é necessário incluir uma descrição do padrão espacial das forças, ou da ordem relacional, que caracteriza o regime particular do sistema em estudo, que é chamado de ‘campo’. Sólidos, gases, líquidos e cristais líquidos são descritos pelas teorias que combinam as propriedades de composição com descrições de como o estado de qualquer região é influenciado por (e influenciam) regiões vizinhas dentro do sistema, definindo sua ordem relacional como um campo. Organismos em desenvolvimento são descritos por ‘campos morfogenéticos’, que são o contexto espaço-temporal organizado em que mudança na composição molecular (controlado por um programa genético) exerce sua influência. Diferentes tipos de campos morfogenéticos foram descritos matematicamente para diferentes tipos de sistema em desenvolvimento (os exemplos incluem [11, 12, 13, 14, 15, 16 e 17]. Todos eles partilham certas propriedades que revelam semelhanças gerais da forma gerada, mas não há ainda nenhuma teoria satisfatória geral da morfogênese. No entanto, isso não altera a lógica da argumentação [18]. Para compreender os organismos em desenvolvimento, é necessário ter uma teoria adequada dos campos morfogenéticos. Isso foi claramente demonstrado por estudos clássicos de desenvolvimento, e a situação mantém-se inalterada hoje.(Goodwin, 2000)

Aqui cabe uma explicação e um alerta importante. A expressão ‘campos morfogenéticos‘ é adequada e científica da forma que Goodwin a usa neste texto. Esta expressão descreve o contexto espaço-temporal em que as forças físicas e processos morfogenéticos, em sua ordem relacional, ocorrem durante o desenvolvimento. O uso desta expressão tem um longa tradição histórica dentro da embriologia e da biologia do desenvolvimento, inicialmente, derivada de uma analogia aos campos da física. Esta expressão, e os processos por ela descritos, não é sinônima dos famigerados ‘campos mórficos’ advogados pelo bioquímico/parapsicólogo Rupert Sheldrake. Sheldarke apenas se inspirou na idéia de campos morfogenéticos, da embriologia clássica do começo dos anos 20, e lhe deu uma roupagem do tipo ‘nova era’ e, até o momento, completamente pseudocientífica, sobretudo ao propor a chamada ‘ressonância mórfica‘ como um suposto mecanismo para toda a sorte de fenômenos bizarros sejam eles corroborados ou não pelas ciências modernas. Não é de ‘campos mórficos’, portanto, que estamos falando neste texto, mas sim de um construto teórico científico que pode ser evidenciado empiricamente e nos ajuda a compreender o contexto espaço-temporal do desenvolvimento biológico.

Scott Gilbert (Gilbert, 1996) um dos mais respeitados biólogos de desenvolvimento coloca a questão da seguinte maneira:

“Além de descobrir as notáveis homologias entre os genes homeobox e seus domínios de expressão, a genética do desenvolvimento propôs recentemente homologias entre processos que complementam as antigas homologias de estrutura. Vias homólogas de desenvolvimento, tais como as que envolvem os genes wnt, são vistos em numerosos processos embrionários, e são vistos ocorrendo em regiões discretas, os campos morfogenéticos. Estes campos (que exemplificam a natureza modular do desenvolvimento embrionário) são propostos como intermediando entre o genótipo e o fenótipo. Assim como a célula (e não o seu genoma) funciona como a unidade de estrutura orgânica e função, do mesmo modo, os campos morfogenéticos (e não os genes ou as células) são vistos como a grande unidade da ontogenia cujas mudanças provocam alterações na evolução.

Gilbert identifica as próprias redes genéticas e bioquímicas modulares, usadas reiteradamente no desenvolvimento de diversos tecidos em diversos animais, como os ‘campos morfogenéticos’. Portanto, para Gilbert os campos são instanciados de uma forma um pouco diferente da proposta por Goodwin que considera em sua definição todo o contexto geométrico e físico no qual (e sobre o qual) estes módulos estão inseridos.

Os aspectos salientados pelo biólogo H.F. Nijhout (que prefere o termo mais
geral “campos de desenvolvimento” ao invés de “campos morfogenéticos”, apesar de fazer referência ao artigo de Gilbert, 1996) são as fronteiras de comunicabilidade celular, portanto, mais uma vez, é o contexto espaço-temporal dos campos morfogenéticos o centro da questão. Nijhout faz também uma distinção entre desenvolvimento embrionário e pós-embrionário que para os fins deste artigo não importam muito:

Não há nenhum mecanismo de controle centralizado que coordene o desenvolvimento embrionário. Até onde sabemos, cada célula do embrião em desenvolvimento simplesmente responde aos sinais que recebe das células que o rodeiam. Tais sinais entre as células regulam a expressão dos genes nas células recipientes, e a expressão gênica alterada, por sua vez, define as condições que causam a próxima rodada de eventos de desenvolvimento. A observação da homeostase desenvolvimental, juntamente com o reconhecimento de que não há controle centralizado durante o desenvolvimento embrionário, sugere que o desenvolvimento embrionário é quase totalmente auto-organizado. A situação é completamente diferente durante o desenvolvimento pós-embrionário. Como um animal cresce durante o desenvolvimento, a comunicação de longo alcance através de sinais de célula a célula torna-se cada vez mais ineficiente. Na medida que os sinais regulatórios e indutivo podem estender-se apenas por pequenas porções do animal em desenvolvimento, a regulação do desenvolvimento torna-se em grande medida uma questão local. As regiões nas quais as células são capazes de se comunicar, umas com as outras, são chamadas de ‘campos de desenvolvimento’, e campos do desenvolvimento distantes podem interagir apenas caso movimentos morfogenéticos (como a gastrulação ou involução) tragam-nos fisicamente próximos (Nijhout, 1999).

Estas considerações nos levam a pensar em como estes processos e esta dinâmica agiram durante a evolução biológica. Um dos representantes mais modernos desta forma de pensar é o físico-químico e biólogo do desenvolvimento Stewart Newman, do New York Medical College, que em sua página afirma:

“O mapeamento estreito entre genótipo e o fenótipo morfológico, em muitos metazoários modernos levou à noção geral de que a evolução da forma organísmicas é uma conseqüência direta da evolução de programas genéticos. Este ponto de vista padrão entrou em conflito com a evidência de discordâncias entre alterações genotípicas e fenotípicas no desenvolvimento e evolução. Como alternativa a essa visão, temos explorado a idéia de que a atual relação entre genes e forma é uma condição altamente derivada, um produto da evolução, em vez de sua condição. Antes de seleção para a canalização das vias bioquímicas de desenvolvimento e de estabilização dos fenótipos, a interação dos organismos multicelulares com seus ambientes físico-químicos ditou um mapeamento ‘um-para-muitos’ entre genomas e formas. Estas formas teriam sido geradas por mecanismos epigenéticos: inicialmente, os processos físicos característicos da materiais quimicamente ativos, condensados; e mais tarde [mecanismos] condicionais, interações indutivas entre os tecidos constituintes do organismo. O conceito de que os mecanismos epigenéticos são os agentes geradores dos planos corporais e da originação de caracteres morfológicos ajuda a explicar os resultados que são difíceis de conciliar com o modelo neo-darwinista, por exemplo, a explosão de planos corporais no começo do Cambriano, as origens das inovações morfológicas, a homologia, a mudança rápida e de forma.”http://www.nymc.edu/sanewman/evodevo.htm

Moléculas, células, tecidos e o embrião: Considerando aquilo que realmente importa

Salazar-Ciudad, Jernvall, Newman (2003) fornecem alguns exemplos esquemáticos dos mecanismos básicos de desenvolvimento sobre os quais os processos evolutivos atuam e que precisam ser bem compreendidos para que possamos ter uma teoria integral da evolução biológica que não seja exclusivamente centrada na genética evolutiva de populações, mas também na biologia do desenvolvimento e em considerações teóricas mais amplas.

Três tipos de mecanismos gerais estão envolvidos na [auto]construção dos fenótipos, são eles:

  1. Mecanismos celulares autônomos;
  2. Mecanismos indutivos;
  3. Mecanismos morfogenéticos.

Mecanismos celulares autônomos:
O primeiro tipo de mecanismos envolve propriedades internas às células, dependendo, desta forma, dos seus sistemas metabólicos e de sinalização intra-celular. Aqui a organização citoplasmática e nuclear é fundamental. Pequenas alterações ou assimetrias nas distribuições de certas moléculas podem ter um papel chave e ajudar a estabelecer (pré)padrões no embrião em formação. Implícitos nestes mecanismos estão as propriedades físico-químicas e mecânicas das células individuais especialmente a capacidade destas propriedades de influenciarem e ser influenciadas pelo micro-ambiente extracelular e pelo próprio genoma celular.

Mecanismos indutivos:
Mecanismos indutivos estão entre os mais estudados por embriologistas e biólogos do desenvolvimento. Estes envolvem processos de sinalização célula à célula, tanto através de secreções exócrinas como autócrinas, isto é, envolvendo a liberação de pequenas moléculas difusíveis que interagem com receptores nas membranas celulares de células vizinhas, ou no caso de moléculas lipossolúveis (como ácido retinóico) diretamente com proteínas receptoras citoplasmáticas ou mesmo nucleares. Além disso, estes mecanismos podem ocorrer pela ligação direta das porções extra-celulares de proteínas transmembrana à proteínas receptoras na superfície de células adjacentes.

Mecanismos morfogenéticos:
Aqui princípios mais sutis entram em ação, princípios estes associados às propriedades mecânicas e viscoelásticas dos tecidos e como estas influenciam sua dinâmica ao serem comprimidas, esticadas, torcidas etc.

Apesar deste aspecto ficar mais óbvio na última classe de mecanismos, aqui também a física e a química são essenciais para compreendermos estes processos e apreciarmos como, durante a evolução biológica, estas propriedades podem ter sido ‘exploradas’ através de mutações e mudanças epigenéticas transgeracionais. Neste contexto, as propriedades das células individuais também são importantes, sobretudo aquelas relacionadas a suas capacidades de resposta a deformação mecânica, especialmente em relação a forças como tensão e compressão. Nas últimas décadas Douglas Ingber, do Children’s Hospital de Boston ligado a escola de medicina de Harward, e outros pesquisadores, tem estudado a forma com que células respondem a compressão e a tensão, gerada por células vizinhas ou por alterações na matriz celular sobre a qual estão assentadas.

O ponto crucial aqui é que as reações bioquímica intracelulares não ocorrem em uma solução livre, mas através de arcabouços e estruturas citoplasmáticas, mesmo dentro do núcleo das células vivas. Este sistema organizado e estruturado não pode ser deixado de lado, especialmente a interface entre as mudanças na forma celular e as alterações em sua função e estado de ativação genética.

Ingber aborda o tema a partir da ‘tensegridade‘, um princípio de construção, descrito pela primeira vez pelo arquiteto R. Buckminster Fuller. Sistemas que se organizam através da tensigridade são estabilizados pela tensão contínua ou “integridade tensional” e não por compressão contínua (por exemplo, como em um arco de pedra). Existem duas classes de estruturas que se comportam de acordo com o princípio de tensigridade, as protendidas (pré-tensionadas) e as geodésicas, cuja integridade depende da contínua transmissão de forças de tensão quando estas se encontram sob estresse mecânico. O modelo de tensigridade celular trata as células como estrutura protendidas, isto é, previamente tensionadas, embora estruturas geodésicas também sejam encontradas em célula em escalas menores, como nas vesículas revestidas por clatrina e em capsídeos virais. No modelo, as forças tensionais são suportadas por microfilamentos e filamentos intermediários do citoesqueleto, e essas forças são equilibradas por elementos estruturais interconectados que resistem à compressão, principalmente por ‘vigas internas’ formadas por microtúbulos e pela adesão à matriz extracelular (Ingber, 1998, 2006 veja também o site do laboratório de Ingber).

Alguns dos modelos de Ingber ilustram como o tecido epitelial pode sofrer alterações locais e dar origem a novos pontos de ramificação e de crescimento mesmo em ambientes quimicamente homogêneos, isto é, em que as concentrações de fatores de crescimento e outros morfógenos não variam especialmente (Ingber, 2006). Clique nas figuras abaixo e acima à direita para ver os modelos em questão.

Os processos físicos atuantes durante o desenvolvimento ontogenético, de sistemas biológico modernos, embora estejam sujeitos à restrições específicas (além de raramente agirem de forma “pura”) são basicamente os mesmos processos comuns à todos os meios viscoelásticos e quimicamente excitáveis, sendo eles vivos ou não:

  1. Difusão livre;
  2. Imiscibilidade de líquidos (adesividade diferencial celular);
  3. Comportamento químicos oscilatórios (oscilações bioquímicas);
  4. Estados químicos multi-estáveis;
  5. Acoplamento entre reação-difusão
  6. Responsividade/excitabilidade mecanoquímica.
A ‘matéria mole‘ e os ‘meios excitáveis‘:

Dois conceitos podem nos ajudar a compreender melhor esta questão, muito bem explicados nas palavras de Newman e colaboradores (2006):

“Materiais viscoelásticos não-vivos, tais como a argila, borracha, lava e geléia, por exemplo, estão sujeitos a serem moldados, formados e deformados pelo ambiente físico externo. Tais materiais têm sido chamados de “matéria mole” (soft matter), pelo físico Pierre-Gilles de Gennes (de Gennes, 1992). A maioria dos tecidos vivos são ‘matéria mole’ e todos eles são também o que os físicos termo “meios excitáveis” (Mikhailov, 1990); (Winfree, 1994, Winfree, 2002), materiais que respondem de maneira ativa e previsível ao os seus ambientes físicos. É claro que alguns, se não muito dos resultados da plasticidade organismal das propriedades desses materiais.” (Newman, Forgacs & Müller, 2006)

Webster (2007) descreve um padrão interessante em relação a diversidade fenotípica intra-específica de trilobitas no começo do cambriano em relação as espécies do final do cambriano e mais derivadas. Esta era muito maior no começo deste período e em espécies mais basais, sugerindo uma maior plasticidade fenotípica inicial, talvez, associada a um menor controle e canalização genético-desenvolvimental destes fenótipos e maior dependência deles de mecanismos genéricos e das condições ambientais.

Esta constatação, seguindo algumas das observações e conclusões de Borenstein & Krakauer (2008) sobre a flexibilidade dos sistemas desenvolvimentais dos seres multicelulares do período pré-cambriano, levam a propostas interessantes como a de Newman, Forgacs & Müller (2006):

“Sugerimos que esses processos tiveram livre reinado em estágios iniciais da história da vida multicelular, quando pouca evolução tinha ocorrido dos mecanismos genéticos para a estabilização e fortalecimento de morfologias funcionais de sucesso.” (Newman, Forgacs & Müller, 2006)

O que os levou a sugerir um cenário também bem interessante:

“A partir disso, elaboramos um cenário hipotético para a formação de padrões e morfogênese nos primeiros metazoários. Nós mostramos que as morfologias esperadas que sugeriam durante este relativamente irrestrito estágio “físico” da evolução corresponde à morfotipos oco, multicamada e segmentado, vistos nos embriões na fase de gastrulação dos metazoários modernos, bem como [ao que aparece] em depósitos de fósseis do Ediacariano [cerca de] 600 000000 anos atrás. Nós sugerimos várias maneiras em que os organismos, que eram originalmente formados por mecanismos predominantemente físicos, poderiam ter evoluído mecanismos genéticos para perpetuar suas morfologias.” (Newman, Forgacs & Müller, 2006)


Durante o desenvolvimento ontogenético são ‘empregados‘ uma série de mecanismos físicos básicos que são comuns aos materiais reunidos sobre a alcunha de ‘matéria mole’ ‘meios excitáveis’ que tanto constituem sistemas vivos como não-vivos. Mecanismo estes que Newman tem chamado de “genéricos” (Newman e Comper, 1990 apud Newman, Forgacs & Müller, 2006). Enquanto existe, de fato, debate em torno de cada um destes mecanismos em relação à sua eficácia relativa na determinação dos padrões e transições desenvolvimentais, todos eles são confirmados experimentalmente.

Difusão:

O “amontoamento molecular” no interior de cada célula individual limita em muito o papel da difusão livre neste contexto. Entretanto, existem boas evidências quantitativas para o envolvimento deste processo no estabelecimento de gradientes na escala de embriões multicelulares e de primórdios (brotos) de órgãos.
A difusão do morfógeno Decapentaplegic (DPP) parece ser importante na formação dos discos imaginais em moscas do gênero Drosophila, já que as taxas de difusão extracelulares, a cinética de ligação à proteína receptora para o DPP e sua taxa de ocupação foram mais consistentes com as medidas das taxas de transporte dos modelos envolvendo difusão do que com as dos modelos alternativos sem difusão. Mas, mecanismos ativos, além da difusão, também parecem estar envolvidos no transporte DPP (Newman,
Forgacs & Müller, 2006).
Gradientes da proteína Bicoid materna (BCD) são outro exemplo de processo em que a difusão desempenha um papel, neste caso em um sincício (também não uma célula única). Aqui, mais uma vez, outros processos se somam a difusão, já que o sinal da BCD parece ser “corrigido” por outros fatores, provavelmente incluindo o produto de outro gene maternal, Staufen (Newman, Forgacs & Müller, 2006
).


Adesão diferencial:


Agregados celulares, especialmente quando oriundos de tecidos embrionários, ‘enrolam-se’ como gotas de líquido. Algo análogo ocorre quando pares de tecidos, que diferem em termos de coesividade – baseado no comportamento de espraiamento em um substrato comum e em resposta a forças compressivas – que acabam por se comportar como líquidos imiscíveis, formando interfaces através nas quais as células não se misturam, ou, no caso de misturas heterotípicas de células, estas se separam em fases. Assim, cada tecido, em um dado par, vai engolfar o outro ou ser engolfado, de acordo com a relação coesividade previsível a partir de medições físicas.
Estes comportamentos, segundo Newman e colaboradores (2006), podem ser considerados ‘genéricos’, já que podem ser atribuídos inteiramente às diferenças quantitativas na adesividade celular. Entretanto, ainda existe certa controvérsia sobre se a adesividade diferencial desempenha um papel determinante no desenvolvimento embrionário, mas em muitos dos sistemas investigados a adesão diferencial parece ser bastante importante, embora nem sempre aja de forma exclusiva, na determinação da formação de fronteiras entre territórios celulares.

A adesão diferencial através da expressão de moléculas adesivas homogêneas em toda superfície de células individuais desempenha um papel durante o desenvolvimento, como nos tecidos epitelióides que são formados por células com moléculas adesivas uniformemente distribuídas. Assim, essas massas de tecido epitelial tornam-se epiteliais pela expressão de proteínas que medeiam ou regulam a adesão de uma forma polarizada. Então, como resultado do movimentos aleatórios das células ou de morte de células, que se destacam de seus vizinhos, as regiões de celulares com baixa afinidade aderem-se automaticamente formando em seu interior cavidades ocas ou lúmens. Nos mamíferos, por exemplo, a formação do blastocisto é impulsionada pela expressão de conjuntos específicos de produtos de genes (por exemplo, caderina-E e catenina) que direcionam a aquisição de polaridade celular dentro do trofoectoderma, que é o primeiro epitélio a se formar, durante o desenvolvimento, e a camada celular circundando a blastocele e a massa celular interna (Newman, Forgacs & Müller, 2006).

Oscilações bioquímicas:
A geração ‘temporalmente-periódica de complexos de proteínas funcionalmente ativas, ou expressão de genes, desempenha um papel importante no desenvolvimento. Na fase de clivagem dos embriões da rã Xenopus as 14 divisões celulares que produzem a blástula são acionadas por atores promotores da fase-M (MPF), uma proteína quinase, que consiste em duas subunidades:cdc2 (a subunidade catalítica) e ciclina B (subunidade reguladora). MPF fosforila uma série de proteínas envolvidas na quebra do envoltório nuclear, condensação cromossômica, formação do fuso e outros eventos da meiose e mitose. Considerando que cdc2 está presente em um nível constante durante todo o ciclo celular, a concentração da ciclina B e, portanto, MPF, variam de forma contínua, aumentando para um valor de pico pouco antes do fase M e caindo para um valor basal nas células na saída da fase M . Porém, o mais interessante é que nenhuma transcrição é necessária para produzir esta oscilação. Em extratos citoplasmáticos, livres de núcleos, de óvulos imaturos do anfíbio, ocorrem, mesmo assim, oscilações espontâneas da
proteína MPF, com um período de cerca de 60 min. Isso ocorre por que a ciclina é periodicamente degradada nestes extratos e ressintetizada de uma forma que depende exclusivamente da presença de seus RNAms no citosol (Newman, Forgacs & Müller, 2006).
Oscilações na expressão dos componentes da via de sinalização célula-célula justácrinas, como Notch-Delta e respectivas entidades reguladoras da transcrição (c-hairy em galinhas; HER1 e Her7 no peixe zebra, Danio rerio) são responsáveis pela formação progressiva dos
somitos da placa segmentar em vertebrados. Isto parece envolver também um gradiente espacial de FGF8 cujo ponto alto está na ponta da cauda do embrião e seu ponto mais baixo final fornecem uma “portão”ou “limite”, para além da qual, as células são re-especificadas pelo determinantes oscilantes. Essas oscilações, controlando tanto fase de clivagem do ciclo celular e a somitogênese, são propriedades “genéricas” da rede bioquímica e de seu timing. Os mecanismos dinâmicos propostos para explicar esses relógios bioquímicos dependem menos da identidade molecular única dos produtos gênicos envolvidos, do que das relações formais entre eles: retroalimentação positiva e negativo, atrasos temporais na reposta, limiares de excitação etc (Newman, Forgacs & Müller, 2006). São a partir deste tipo de interações não-lineares que estas propriedades emergem.

Estados bioquímicos multi-estáveis:
Os comportamentos oscilatórios são apenas um dos tipos de dinâmica que as redes bioquímicas intra-celulares, em certas condições específicas, são potencialmente capazes de exibir. A alternação entre estados composicionais estáveis distintos é outro exemplo. Em contraste com sistemas químicos fechados (que sempre evoluem em direção a um estado único macroscópico de equilíbrio químico, veja o artigo “Termodinâmica e evolução:O velho argumento da segunda lei”), as células vivas sendo sistemas abertos, caso possuam um certo nível de complexidade dinâmica, podem exibir vários “atratores dinâmicos” (veja
Lewin, 1994 e Milnor, 2006), para os quais o sistema irá evoluir, terminando em um ou outro estado diferente (Newman, Forgacs & Müller, 2006).
As oscilações bioquímicas do ciclo celular e os ‘relógios somíticos’ são atratores desse tipo: pequenas alterações nos parâmetros do sistema (constantes de velocidade, lapsos de tempo) podem suprimir a oscilação. Para sistemas multi-estáveis, estados alternativos, oscilatórios ou não oscilatórios, podem potencialmente ser atingidos por diferenças nas condições iniciais dos sistema, mas, quando sistemas multi-estabilidade dinâmica é empregada em organismos modernos, como no ciclo celular eucariótico ou na estabilização de estados diferentes de células (ou seja, a robustez, veja abaixo) está se dá através de complexidade bioquímica adicional (Newman, Forgacs & Müller, 2006).
Experimentos com a bactéria Escherichia coli, envolvendo redes de utilização de lactose, demonstraram multi-estabilidade dinâmica que tem sido também proposta como base da diferenciação de células eucarióticas:

“O fenômeno dinâmico da “diversificação isóloga” (Kaneko, 2003, Furusawa e Kaneko, 2006), em que sistemas (células modelo) apresentam estados alternativos de composição somente quando em comunicação com outras cópias do mesmo sistema, proporciona um modelo para a ‘efeito de comunidade’ visto durante o desenvolvimento muscular em Xenopus (Buckingham, 2003, Standley et al., 2002).”


Acoplamento reação-difusão:

Em sistemas dinâmicos complexos, do tipo que apresentam oscilações bioquímicas e multi-estabilidade e permitem a difusão de fatores liberados (por exemplo, os tecidos embrionários descrito acima), há uma tendência genérica para formação padrões espaciais complexos (“Complexo” aqui significa mais elaborado do que os gradientes que pode emergir da simples difusão) de um ou mais dos fatores difusíveis ou morfógenos. A base para a formação de tal padrão – acoplamento de reação-difusão foi proposto pelo matemático Alan Turing, ainda na década de 50 (Newman, Forgacs & Müller, 2006):

“Mecanismos de reação-difusão foi uma curiosidade teórica durante várias décadas após o artigo de Turing, até que o mecanismo foi demonstrado de forma inequívoca, em vários sistemas físico-químicos não vivos (Castets et al. 1990, Ouyang e Swinney, 1991).”

Clique na figura ao lado que ilustra um processo de reação-difusão, gerado pelo software Cardiff de Warren Weckesser (A Reaction-Diffusion Cellular Automaton Program by Warren Weckesser).


Estritamente falando sistemas de reação-difusão, de acordo com Nicolis e Wit (2007), podem ser caracterizados como:

“No sentido estrito do termo, os sistemas de reação-difusão são sistemas envolvendo componentes localmente transformados em outros através de reações químicas e transportados no espaço por difusão. Eles surgem, naturalmente, em química e engenharia química, mas também servem de referência para o estudo de uma ampla gama de fenômenos encontrados para além da esfera estrita da ciência química, tais como meio ambiente e ciências da vida.” (Nicolis and De Wit,2007)


Newman, Forgacs & Müller (2006) definem este tipo de acoplamento da seguinte maneira:

“A idéia básica é que um ‘ativador’ difusível, positivamente autoregulado (por exemplo, o mesmo fator de Even-skipped no sincicial embrionário de Drosophila (Harding et al., 1989), ou TGF-β no broto mesênquimal do membro, Miura e Shiota, 2000b ) tenderá, se não coagido em sua ação, a criar uma frente explosiva que se espalha de sua própria produção e de qualquer efeito, subordinado, a sua atividade. Se, no entanto, o ativador também induz, na mesma população de células, um inibidor de sua ação que se difunde ou se espalha mais rápido que o próprio ativador, haverá uma zona em torno de qualquer pico de ativação na qual não poderá ocorrer a ativação. Novos picos de ativação se formarão apenas a uma distância suficiente, de outros picos, nas quais o efeito do inibidor já tenha desaparecido. Esses sistemas, portanto, tem um comprimento de onda química intrínseca “.

Porém, desde então, evidências acumularam para um papel para este tipo de mecanismo em diversos sistemas biológicos em desenvolvimento:


Newman, Forgacs e Muller (2006) alertam, entretanto, que alguns candidatos supostamente óbvios como o do genes Even-skipped não dependem da mecanismos de reação-difusão, assim, exigindo-nos adotar um certo cuidado:

“As sete faixas de Even-skipped no embrião de Drosophila têm a aparência de um padrão de reação-difusão, mas na verdade é gerado de uma forma mais complexa (AKAM, 1989, Clyde et al. 2003, Small et al., 1991), o que pode ser o resultado da evolução para a estabilidade do desenvolvimento (Newman, 1993, Salazar-Ciudad et al. 2001b), como discutiremos a seguir.”

Excitabilidade mecanoquímica:
Os sistemas teciduais citados anteriormente descritos são todos exemplos de ‘meios excitáveis’. Estes armazenam ou geram energia em várias formas e podem reagir a estímulos através da produção contínua de uma atividade característica. A auto-regulação positiva associada aos processos de reação-difusão é um exemplo disso e geração de oscilações químicas também dependem da excitabilidade. E, adição a excitabilidade bioquímica estes materiais podem exibir excitabilidade mecânica, quando um estímulo evoca uma resposta mecânica ativa. Este tipo de resposta, no entanto, não é muito relevante em tecidos mais fluidos como os descritos em relação a adesão diferencial, já que a mobilidade destas células dentro desses agregados, dissipa as perturbações a maioria desta pertubações mecânicas. Membranas basais complexas como as do epitélio, entretanto, conferem rigidez a estes tecidos, facilitando o armazenamento de energia mecânica, o que, em combinação com um componente celular bioquímico excitável e a continuidade mecânica promovida pela ligação celular superfície-citoplasmática, torna, então, o epitélio embrionário capaz de exibir movimento coletivo de células dependente de tensão, levando à dobramentos complexos e ramificação.
Fica mais fácil de perceber os vínculos
modernos entre a evolução ‘genética’ e os mecanismos físicos e químicos ‘genéricos’ ao analisarmos o papel funcional de algumas moléculas associadas a formação de padrões desenvolvimentais, ao considerarmos as propriedades ‘genéricas’ a que elas estão associadas.
Newman e Bhat (2009) propõe
que a origem, desenvolvimento e evolução morfológica de organismos complexos depende do uso reiterado destas moléculas, que eles chamam de “módulos dinâmicos de padronização” (DPMs, “Dinamics Patterning Modules“.

Os DPMs, segundo Newman e Bhat (2009), constituiriam-se em um subconjunto dos produtos gênicos daquilo que muitos geneticistas, embriologistas e biólogos do desenvolvimento (que trabalham com Evo-Devo) batizaram de “kit de ferramentas” (veja Carroll, 2008) genético-desenvolvimental.

Este “kit” seria formado pelos genes, e seus produtos associados, à formação de padrões durante o desenvolvimento, isto é, principalmente, na determinação do eixos anterior-posterior e dorso-ventral, formação de brotos de apêndices/membros/nadadeiras distais e segmentação corporal e formação de sistemas visual. Estas moléculas incluiriam moléculas adesivas, que seriam expressas na superfícies das células, proteínas ligadas a sinalização intracelular (como as proteínas quinases e fosfatases), além dos nossos já bem conhecidos fatores de transcrição (elementos Trans-ativos) juntamente com seus elementos Cis-regulatórios proximais e distais (Newman e Bhat, 2009).


Estas moléculas não representam os processos e forças físicas per se, mas é através delas que a dinâmica desenvolvimental é instanciada. Mudanças nestas e em outras moléculas, mas, sobretudo, em seu padrão de atividade e conectividade na rede de interações nas quais elas estão envolvidas, é que irão influenciar a geometria, biofísica e bioquímica do desenvolvimento, fazendo, assim, a ponte entre a evolução molecular e as forças físicas e mecanismos químicos a partir dos quais as formas emergem durante o desenvolvimento e se modificam através da evolução.

Os DPMs funcionariam em associação com os processos físicos ‘genéricos’ que seriam por eles mobilizados. Os produtos gênicos controlariam parte dos parâmetros destes processos físicos e químicos, “tais como as característica químicas e de excitabilidade mecânica típicas de certos sistemas mesoscópicos de agregados celulares como: coesão, viscoelasticidade, difusão, heterogeneidade espaço-temporal com base na interação do inibidor do ativador, e multi-estáveis e dinâmica oscilatória” (Newman e Bhat, 2009).

Muitos dos genes (e seus produtos) que compõe este ‘kit de ferramentas’ dos metazoários já existiam antes do aparecimentos deste grupo de organismos, portanto, adquirindo “novas funções morfogenéticas simplesmente em virtude da mudança de escala e de contexto inerente à multicelularidade“.

A ação destas moléculas (DPMs), agindo isoladamente e em combinação com outras, formariam um espécie de linguagem, uma “linguagem de padrões” ou uma “linguagem de padronização” capaz de gerar todos os planos, além das formas de estruturas e órgãos, dos corpos dos metazoários (Newman e Bhat, 2009).

As trajetórias relativamente estáveis de desenvolvimento morfológico, e dos fenótipos de maneira geral, que encontramos atualmente nos organismos multicelulares modernos, então, seriam, em certo sentido, novidades. Consideradas produtos ou refinamentos secundários alcançados a partir de seleção natural que privilegiou as mudanças genéticas dos sistemas (e de subsistemas extras de controle) que tornassem os fenótipos mais estáveis e mais fielmente replicáveis geração após geração, assim menos dependentes do ambiente. Assim, sistemas de canalização que mantém a robustez dos fenótipos frente a perturbações genéticas (mutações) e ambientais, talvez tenham sido uma aquisição tardia da evolução animal. A modularização das redes de controle genético-desenvolvimental que possibilita a evolução semi-autônoma de características fenotípicas, pode também ter se seguido a este período mais flexível da evolução da multicelularidade (Newman e Bhat, 2009):

Esta perspectiva resolve o aparente “paradoxo analogia-homologia molecular”, onde muito tipos divergentes de animais modernos utilizam o mesmo conjunto de ferramentas moleculares durante o desenvolvimento, mas fazem-no, invertendo o princípio neo-darwinista que a disparidade fenotípica foi gerada durante longos períodos de tempo em concerto com, e em proporção à mudança genotípica (Newman e Bhat, 2009).


Assim, um ‘cerne’ genético-desenvolvimental comum permanece até hoje, ainda muito coeso (pense no genes Hox e Pax-6, ambos fatores de transcrição, respectivamente ligados a
formação do eixo antero-posterior em vertebrados e invertebrados e do sistema visual), enquanto variações sobre estes temas – típicos de um processo de ‘bricolagem‘ (Jacob, 1977), em que novos ‘incrementos’ e ‘refinamentos’ (ou a simples readequação às mudanças no contexto ecológico, no qual vivem os animai) se dá através do uso reiterado de elementos contingentemente disponíveis – foram obtidos pela simples modificação de sistemas anteriores (veja a importância dos processos de formação de novos genes aqui e aqui), utilizando-se basicamente das mesmas ‘peças’ e das ‘mesmas ferramentas‘, apenas combinadas de forma diferente, em contextos diversos e de forma mais controlada e restringida.

Newman e
Bhat (2009) sugerem um modelo hipotético de como a ação combinatória das diversas moléculas DPM, ao modular as diversas forças e propriedades físicas e químicas, poderiam dar origem a diversas características dos sistemas em desenvolvimento. Características estas fundamentais para a construção dos planos corporais típicos de animais.

O uso reiterado destes módulos de padronização, e dos processos que eles ajudam a modular (como difusão, adesão diferencial, acoplamento de reação-difusão, oscilações bioquímicas e manutenção de regimes multi-estáveis etc), podem gerar muitas das características típicas dos planos corporais e estruturas do metazoários; e, mais tarde, através da adição de circuitos genéticos extras e vias de sinalização redundantes (e semi-autônomas que se sobrepõem parcialmente) estabilizar a morfogênese aumentando sua fidedignidade (veja a figura acima e a direita para maiores detalhes).

Os módulos DPM podem se originar a partir de processos típicos associados à origem de novos genes e circuitos regulatórios que vem sendo estudados nas ultimas três décadas, especialmente a partir da duplicação gênica.

Este processo pode ser visualizado através da figura abaixo, na qual a duplicação gênica é seguida de mutações que levam aquisição de novas funcionalidades. Estas figuras são inspiradas em alguns dos exemplos exibidos nos trabalhos de Sean B. Carroll (como Carroll, 2005; Prud’homme, Gompel & Carroll, 2007 e Carroll, Prud’homme & Gompel, 2008) que sugerem como modificações em circuitos regulatórios Cis– e em proteínas Trans– através a partir da duplicação de genes seguidas de neofuncionalização ou subfuncionalização, o que pode não só criar novas proteínas, mas criar novos sistemas e módulos regulatórios.

Aos poucos o quadro teórico torna-se mais claro e podemos entender os fenômenos evolutivos de forma bem mais ampla, ao mesmo tempo que certos detalhes ficam cada vez mais compreensíveis.

Começamos a compreender em um nível cada vez mais refinado os processos de origem das mutações (veja Mutações: A aleatoriedade em sua essência), através de processos fundamentalmente quânticos (e imprevisíveis ao nível individual), e destino destas mutações. Temos condições de apreciar, em um nível excepcional de resolução, como processos estocásticos (como a deriva aleatória e o arrasto genético. particularmente via efeito carona) podem agir em combinação com a estrutura genética e demográfica das populações e com a seleção natural. Ao mesmo tempo, acompanhamos como alguns tipos de mutações tem conseqüências potenciais diferentes de outras que podem ir das mais simples (mutações pontuais, inserções e deleções) até grandes alterações cromossômicas e genômicas, passando por processos intermediários como a duplicação gênica, conversão gênica enviesada, fissão e fusão gênica, além de efeitos de transposição, todos essenciais na produção de novo material genético.

Avançando ainda mais, percebemos que certos processos são gerativamente enviesados – em função do complexo mapeamento entre genes e fenótipos e por causa dos próprios mecanismos de duplicação e reparo genômico – e outros são funcionalmente enviesados, isto é, seus resultados prestam-se mais a evolução pois envolvem alterações em circuitos gênicos em um nível hierárquico, e de uma forma, que minimizam potenciais efeitos deletérios pleiotrópicos e epistáticos. A organização em rede dos genomas parece ser tanto um processo adaptativo como espontâneo fruto da dinâmica auto-organizada de redes emergentes como os resultados de sugerem Borenstein & Krakauer (2008). Além disso, muitos dos elementos e ‘embelezamentos’ genômicos, como a aquisição de introns, modularização de circuitos gênicos (por duplicação e subfuncionalização) e origem de elementos Cis- e regiões UTR (regiões não traduzidas do RNA mensageiro) são em parte explicadas pela maior tolerância a mutações ligeiramente deletérias associadas a diminuição no número efetivo das populações de animais, sobretudo vertebrados e a menor eficiência da seleção purificadora, como os trabalhos de grupos como o de Michael Lynch tem indicado (veja para maiores detalhes Além da seleção natural ou a importância da evolução neutra), além dos efeitos da deriva genômica e evolução de famílias gênicas por eventos de “nascimento e morte” refletidos nos resultados do time de Masatoshi Nei e os trabalhos de pesquisadores como Arlin Stoltzfus, Austin L. Hughes, Lev Y. Yampolsky sobre viés mutacional.

Desta forma, mesmo os tópicos mais complicados e difíceis de investigar vão tornando-se mais coerentes e compreensíveis, na medida que os novos métodos e dados empíricos se acumulam, permitindo que uma visão mais abrangente da evolução biológica se desenvolva, formando-se da união de novas e antigas perspectivas teóricas potencializadas por novos métodos experimentais e de prospecção e análise de grandes quantidades de dados biológicos.
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Epidermal growth factor receptor (EGFR) signaling pathway. http://commons.wikimedia.org/wiki/File:EGFR_signaling_pathway.png (author Eikuch)

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Resenha: “Como derrotar o evolucionismo”, de Phillip E. Johnson

RESENHA DO LIVRO “COMO DERROTAR O EVOLUCIONISMO COM MENTES ABERTAS”, DE PHILLIP E. JOHNSON


POR ROBERT T. PENNOCK – DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA, UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MICHIGAN


NATIONAL CENTER FOR SCIENCE EDUCATION (NCSE), EUA


Quem leu os livros “Darwin no banco dos réus” (original de 1991) e “Reason in the Balance” (1995), de Phillip E. Johnson, vai reconhecer imediatamente seu argumento e sua retórica no último livro. Johnson, denovo, apresenta a explosão do Cambriano e outras características do registro fóssil que ele diz que os biólogos não podem explicar, mas ele se opõe à teoria evolutiva primariamente através de um ataque ao naturalismo científico. Ele discursa sobre a necessidade de proteger os jovens contra a “doutrinação” (p. 10) pelas mãos dos “naturalistas dominantes” (p. 22) que fazem os estudantes memorizarem a “doutrina naturalista” (p. 34). Ele continua insinuando que há uma conspiração de elites darwinianas ateias que controlam as ondas de rádio – “os donos dos microfones da mídia [que] decidem quem é mocinho e quem é vilão” (p. 33).

Embora seus argumentos contra a evolução sejam largamente filosóficos em vez de científicos, ele ignora a maior parte da história da filosofia, e ainda insiste persistentemente, por exemplo, que aceitar Deus como um fundamento sobrenatural é a única maneira de evitar o relativismo tanto no conhecimento quanto na moralidade. Quando “declaramos nossa independência de Deus” (nos anos 60, é claro, logo após o centenário da obra de Darwin em 1959), perdíamos o pressuposto de que “a lei foi baseada num conjunto de princípios morais que vieram em última instância da Bíblia”, e isto, opina Johnson, resultou primeiro no advento do divórcio, depois na revolução sexual, na revolução feminista, e inevitavelmente no direito ao aborto e na liberação homossexual (pp. 103-4). Esses temas, e também as notas caracteristicamente estridentes de Johnson, agora já ficaram cansativamente familiares. Há, entretanto, alguns poucos desenvolvimentos interessantes no livro.

A novidade mais significativa no ataque de Johnson à evolução é que, pela primeira vez, ele se expõe explicitamente contra a tese da ancestralidade comum. Em muitos textos anteriores Johnson ignorou alegremente o significado básico de evolução que os livros-texto trazem, e usou sua própria definição idiossincrática que não mencionava nada sobre descendência com modificação [expressão original usada por Darwin no lugar da palavra evolução]. Suspeitava-se sempre que Johnson fosse um criacionista mais tradicional do que se mostrava, mas ele se recusava a ser específico e restringia suas objeções ao mecanismo darwiniano (que ele chamou de “tese do relojoeiro cego”) e à pretensa “filosofia dogmática” do naturalismo que ele alegou ser parte de sua definição.

 

O autor promoveu o “design inteligente” como a alternativa correta, mas se recusou a dizer qualquer coisa sobre essa “teoria” além da alegação vaga de que o planejamento intencional de Deus era a explicação verdadeira para a complexidade biológica, deixando aberta a possibilidade de Deus não ter criado os tipos biológicos ex nihilo, mas guiando o processo de descendência. Entretanto, como alegou anteriormente que o mecanismo darwiniano era uma doutrina falsa apoiada no naturalismo, ele agora diz o mesmo sobre a descendência com modificação: “Deixando de lado o materialismo”, conclui, “a tese da ancestralidade comum é tão dúbia quanto o mecanismo darwiniano” (p. 95). Talvez num livro futuro ele finalmente nos dirá o que a teoria do design inteligente tem a dizer sobre a estratigrafia e o Dilúvio de Noé.

Uma segunda novidade significativa aqui é uma indicação de como os teóricos do “design inteligente” esperam atualizar o velho argumento criacionista do conteúdo de informação das moléculas biológicas. Johnson sugere (incorretamente) que informação é um conceito radicalmente antimaterialista. Alega que a informação é primária e anterior ao material, notando que o evangelho de João diz que “no princípio era o Verbo”, não a matéria. Esta é uma ideia assumidamente interpretativa e, dada a real importância de questões sobre a teoria da informação em biologia, podemos esperar que os criacionistas se safem desta. Johnson introduziu sua ideia num artigo de 1996 na revista Biology and Philosophy, garimpando algumas frases do biólogo George C. Williams quando este discutia (de maneira bastante informal, eu diria) sobre informação biológica. Williams havia dito que a informação não era “realidade objetiva física” e era um “domínio mais ou menos incomensurável” em relação à matéria, e Johnson propôs que este era um reconhecimento de um dualismo ontológico de matéria e informação, e que portanto matéria nunca poderia explicar a origem da informação.

 

Williams e Richard Dawkins escreveram réplicas enérgicas e contundentes, mas no livro “Como derrotar o evolucionismo” Johnson simplifica demais as objeções. Ele admite que é fácil explicar a origem da informação se seu conteúdo é pequeno, mas alega que não há como explicar de forma natural a “informação altamente especificada” de organismos complexos. Não se surpreenda se esta for a próxima empreitada dos novos criacionistas pelo design inteligente. Quando acontecer, observe a petição de princípio sutil em palavras como “especificada”, que levam a pensar em um “agente inteligente” (um especificador), em que “especificado” ficaria mais preciso.

 

Na próxima vez que Johnson disser que “o Verbo (informação) não é redutível à matéria, e até mesmo precede a matéria” (p. 71), não se esqueça de perguntar por um exemplo de informação que seja anterior à matéria (ou a qualquer entidade física) – ele não terá o exemplo porque a informação é uma propriedade relacional que não pode existir numa forma “desencarnada”. E não se deixe ignorar por alegações fáceis sobre irredutibilidade, pois este é um conceito filosófico difícil e controverso. Enquanto é verdade que, num sentido simples de redução, a informação não é redutível à matéria (isto é, a mesma informação pode aparecer num número de formas materiais diferentes), este não é um sentido de redução que levaria a qualquer forma de dualismo fantasmagórico ou necessariamente precisaria de um autor inteligente.

 

Uma mudança menos substanciosa mas talvez mais importante neste novo livro é a troca explícita do público-alvo de Johnson. Numa entrevista em 1993, Jonhson havia dito que ele não estava interessado em discutir como o debate sobre o criacionismo deveria ser conduzido nas escolas. “[O] sistema das escolas públicas não é minha praia”, explicou, “não é onde quero discutir. É nas universidades e na comunidade científica que eu realmente começo a debater” (Barbero 1993). Agora Johnson está preparado para mudar de cena e escreve que o objetivo deste novo livro é dar “uma boa educação de nível médio sobre como pensar sobre a evolução” (p. 11). Seu público-alvo consiste nos “adolescentes – jovens do ensino médio ou iniciando o curso de graduação” (p. 9) e seus pais e professores. Ele até nos conta como projetaria um currículo em evolução para esses estudantes. Aparentemente, Johnson agora quer que a questão seja articulada nas escolas, pois ele diz que o currículo de biologia deveria ser construído em torno de princípios de pensamento crítico. Ele quer virar o jogo sobre os céticos científicos e fazer com que os estudantes treinem o que Carl Sagan chamou de detector de mentiras sobre a teoria evolutiva. [O autor da resenha se refere ao capítulo “A arte refinada de detectar mentiras“, do livro “O mundo assombrado pelos demônios”.]

 

Johnson passeia pela lista de Sagan para detecção de apelos falaciosos à autoridade, uso seletivo de evidência, petição de princípio, argumentos ad hominem, e etc., mas ilustrando-os com formas que ele alega que os biólogos evolutivos têm de esconder as mentiras/bobagens. Por exemplo, ele diz que os estudantes deveriam ser ensinados a buscar a “estratégia” dos evolucionistas de começar falando do que chamam de “o fato” da evolução e então subrepticiamente inflá-lo para incluir o mecanismo. (Gould e alguns outros biólogos evolutivos falam sobre a descendência comum com modifcação como “o fato” da evolução para distingui-la da “teoria” do(s) mecanismo(s) pelos quais ela aconteceu. Na seção sobre o currículo Johnson define [a descendência comum] enganosamente e a ignora como sendo apenas um ponto incontroverso quando “organismos têm certas similaridades como o código genético do DNA, e são agrupados em padrões” [p. 58], embora a use mais tarde no sentido de Gould para se referir à descendência comum quando ele [Johnson] rejeita essa tese [p. 94].)

 

Incrivelmente, Johnson alega que esta distinção importante entre produto e processo é “apenas um artifício de debate” (p. 59) para esconder problemas com o mecanismo darwiniano. Ele alerta aos professores que se eles quiserem tentar ensinar sobre a “escamoteação” evolutiva eles podem ter problemas em não chamar a atenção dos “assim chamados advogados de liberdades civis” (p. 116) e oferece seus serviços e os de seus colegas para ajudá-los. Ele sugere que os professores acessem o sítio eletrônico “Access Research Network” (www.arn.org), que se tornou a loja outlet para o criacionismo do “design inteligente”, onde seus materiais serão postados.

 

Devemos aplaudir o convite de Johnson para ensinar o pensamento crítico, mas seu programa de sete passos para aplicá-lo ao currículo de biologia é ridículo. Imagine sugerir que o jeito certo de ensinar geologia é dizendo aos estudantes que o assunto é pouco mais que “dogma filosófico” e que os geólogos são “enganadores” que intencionalmente “fogem das perguntas difíceis” e que devem ser “vistos com suspeita”. Ensinar uma disciplina acadêmica desta maneira seria intelectualmente irresponsável e moralmente repreensível. Mesmo pais que são criacionistas e gostariam de ver esta abordagem crítica da evolução nas escolas podem ficar não muito felizes de ouvir que Johnson também recomenda que os estudantes aprendam na aula de biologia a usar seus detectores de mentiras em suas próprias crenças religiosas. Ele argumenta que acreditar em Deus apenas pela fé em vez da razão é um “erro” ou uma “estratégia de defesa racional nascida do desespero” (p. 20), e que os estudantes devem confrontar os problemas teológicos que resultam de aceitar a evolução.

 

Acredite ou não, o pensamento crítico sobre tais assuntos teológicos também está em um ou outro dos sete passos que Johnson incluiria em seu currículo de biologia. Johnson quer colocar toda a culpa no naturalismo científico, mas este não é mais ou menos um “pressuposto” de qualquer outra ciência teórica ou aplicada do que é do darwinismo; se o currículo de Johnson é justificado para aulas de biologia, então por que ele não recomenda consistentemente que ele seja aplicado igualmente na aula de física ou na prática de mecânica?

 

Johnson diz aos estudantes do ensino médio que eles precisam “aprender a usar os termos precisa e consistentemente” (p. 57), mas que os biólogos são intencionalmente escorregadios em seu uso do termo evolução, de forma que quando o ouvirem “seus ponteiros no detector de mentiras devem apontar para ‘alerta de escamoteação'” (p. 116). Estudantes que leiam este livro vão ganhar muito apontando seus detectores de mentiras sobre ele, pois o uso que Johnson faz da terminologia não é exemplo das virtudes que ele acertadamente prega. Além do desleixo terminológico apontado acima, descobre-se que Johnson é similarmente desleixado com outros conceitos evolutivos quando é para sua própria vantagem. Um exemplo é o que ele chama de “erro de Berra”.

 

Em “Evolução e o mito do criacionismo” (1990), o zoólogo Tim Berra ilustrou uma ideia sobre a natureza de uma sequência evolutiva usando uma série de fotografias que mostram o desenvolvimento do [Chevrolet] Corvette ao longo de várias décadas. Johnson diz que Berra errou porque “[A] sequência do Corvette… não ilustra de forma alguma a evolução naturalista. Ela ilustra como projetistas inteligentes tipicamente atingirão seus propósitos adicionando variações ao plano básico do projeto” (p. 63). Mas é Johnson quem está sendo enganosamente ambíguo aqui, pois Berra nunca alegou que este era um exemplo de seleção natural, mas diz explicitamente que é uma ilustração de um tipo de descendência com modificação. Ele usa o exemplo para ilustrar como pequenas mudanças, onde o parentesco de formas intermediárias é facilmente reconhecível, podem se acumular em diferenças tais que o produto final é quase irreconhecivelmente diferente do ponto de partida. Para este propósito o exemplo do Corvette, usando seleção artificial em vez de seleção natural, funciona perfeitamente bem.

 

Além disso, é uma ilustração importantíssima e básica com um exemplo familiar, já que muitos criacionistas continuam a se agarrar à imutabilidade das espécies e insistem que a seleção cumulativa de pequenas variações numa espécie (microevolução) não pode se acumular para formar espécies novas a partir de espécies antigas (macroevolução). Jonhson enganosamente define a microevolução como “variação cíclica dentro do tipo” (p. 57) de forma que ela pareça se encaixar na ideia criacionista do fixismo dos tipos. Johnson alega que essas pequenas mudanças não podem se acumular formando novas espécies a partir de outras (macroevolução); e o exemplo familiar [do Corvette] serviu para ilustrar o contrário. Logo, é Johnson, não Berra, quem cometeu um erro. Além disso, devemos mesmo levar a sério a sugestão implícita sobre descobrir os propósitos divinos do projetista numa analogia com os projetistas de carros? Se é assim, o que deveríamos concluir sobre os propósitos de Deus para os seres humanos, chimpanzés, gorilas e os vários hominídeos fósseis dado que todos não passam de variações no “plano básico” primata? Parece que o Homo sapiens é apenas a última versão numa linha de montagem de modelos que falharam na maior parte.

 

A imprecisão e inconsistência de Johnson são ainda mais pronunciadas quando se trata dos conceitos filosóficos sobre os quais trabalha tanto. Por exemplo, sem levar em conta a distinção básica entre naturalismo ontológico e naturalismo metodológico, Johnson continua a falar genericamente do “naturalismo” como uma metafísica dogmática (veja Pennock 1996). A evidência que ele apresenta de que os biólogos estão comprometidos com o posição ontológica de que Deus não existe e que a natureza “é tudo o que há” vem da Declaração de Posicionamento da Associação Nacional Americana de Professores de Biologia (NABT) em 1995, que disse que a evolução era um processo “sem supervisão” e “impessoal”. O fato de a NABT ter retirado recentemente esses dois termos de sua declaração para permanecer apropriadamente agnóstica sobre o papel de Deus [na evolução] (como requer o naturalismo metodológico [das ciências]) repudia a acusação de Johnson.

 

Ao compor a tergiversação acima, Johnson também confunde o naturalismo científico com o materialismo. O materialismo mecanicista se tornou a ontologia naturalista dominante no século XVII, mas o naturalismo científico permite outras categorias explanatórias do ser, contanto que não violem as leis naturais. De fato, é mais comum na filosofia da ciência hoje falar em fisicalismo em vez de materialismo, de forma a não enfatizar exageradamente a matéria sobre o espaço-tempo, forças, campos e outras categorias básicas que foram adicionadas à física ao longo dos séculos, e de forma a não fazer petições de princípio definitivas sobre a metafísica.

 

Johnson corrige (temporariamente) um erro filosófico sério que cometeu no livro “Reason in the Balance“. Nele seu alvo principal foi o “modernismo”, mas ele descreveu incorretamente os modernistas como relativistas éticos e epistêmicos, e atribuiu ao modernismo características que na verdade pertencem ao “pós-modernismo”. Em Como derrotar o evolucionismo ele se sai melhor, escrevendo que “os modernistas acreditam numa racionalidade universal fundada na ciência; pós-modernistas acreditam numa miríade de racionalidades diferentes e consideram a ciência como apenas um dos modos de interpretar o mundo. Em outras palavras, mordenistas são racionalistas; pós-modernistas são relativistas” (p. 90). Mas depois de admitir essa diferença ele volta a misturar as duas coisas e critica o modernismo genericamente como a “religião estabelecida” subjetivista do ocidente (p. 97).

 

Interessantemente, a própria opinião de Johnson é claramente pós-modernista em vários de seus elementos centrais. Seus escritos estão eivados de linguagem pós-moderna sobre a “construção” do conhecimento por aqueles que estão no “establishment” e estão agindo para proteger seu “poder e riqueza” através da “doutrinação” das massas com uma “ideologia” opressiva. Não fiquei surpreso ao saber recentemente que o título original que Johnson tinha para “Darwin no banco dos réus” era “Darwinismo desconstruído”. Como os filósofos pós-modernos, Johnson parece pensar que o que é chamado de conhecimento nada mais é que narrativas culturais em voga sustentadas pela elite dominante. Um exemplo desta opinião em Como derrotar o evolucionismo é a ênfase que ele dá à peça teatral “O vento será tua herança” [ou “O Julgamento do Macaco”] – uma ficcionalização do julgamento de Scopes, que ele chama de uma “obra-prima da propaganda” (p. 25). Tecendo sua própria obra-prima da descontrução, Johnson tenta argumentar que a peça na verdade atinge seu efeito por empréstimo aos evangelhos e essencialmente por dar a Bert Cates (o personagem que representa o professor de biologia Scopes [condenado no Tennessee por ensinar evolução em 1925]) o papel moral de Jesus.

 

Bem, talvez, mas o que isso tem a ver com saber se a evidência científica nos diz ou não que a evolução é verdadeira? A resposta, é claro, é que, embora Johnson seja como os pós-modernistas em opor-se aos métodos científicos como tendo qualquer mérito especial para descobrir verdades sobre o mundo empírico, ele é na verdade um pré-modernista ao defender (embora nunca admitindo sem rodeios) que a única garantia de verdade é a Palavra de Deus. Johnson quer derrotar o evolucionismo “com mente aberta” para as possibilidades sobrenaturais dos modos que ele sugere e ignorar os critérios usuais de evidência. Como um antídoto para o chamado pós-modernista de Johnson para jogar fora desatentamente os métodos científicos, convém lembrar a recomendação sábia do filósofo Bertrand Russell – é bom manter a mente aberta, mas não tão aberta ao ponto do cérebro escapulir.

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*As páginas referenciadas no texto referem-se à edição original em inglês.

Resenha traduzida de Pennock, RT. Reports of the National Center for Science Education, 1997; 17(6): 36-38.

REFERÊNCIAS

Barbero Y. Interview With Phillip E Johnson. California Committees of Correspondence Newsletter 1993.

Berm T. Evolution and the Myth of Creationism. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1990.

Pennock RT. Naturalism, evidence and creationism: The Case of Phillip Johnson. Biology & Philosophy 1996; 11(4): 561.

LIVRO RESENHADO

Phillip E. Johnson . Como derrotar o evolucionismo com mentes abertas. Editora Cultura Cristã, 2000.

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N. do T.: Este livro lamentavelmente está sendo recomendado para o ensino médio nas escolas confessionais adventistas.

É a evolução genética previsível? Parte I

ResearchBlogging.orgAs ciências modernas são empreitadas intelectuais e sociais bastante complexas, dificilmente contidas pela camisa de força de um “método científico” único e estanque. Os desenvolvimentos históricos, o contexto tecnológico e a criatividade, são ingredientes importantíssimos que também fazem parte desta federação de formas de investigação (para usar a expressão de Susan Haack) a qual denominamos “ciência”.

Esta heterogeneidade não impede que reconheçamos as diversas disciplinas científicas e as diferenciemos de outras empreitadas e atividades intelectuais humanas. Os cientistas lançam mão de vários métodos específicos de investigação, que constituem-se em uma série de ferramentas heurísticas que vão desde estratégias de inferência variadas (indução, dedução, abdução), testes estatísticos, modelos matemáticos, simulações computacionais, protocolos para estudos observacionais e experimentais controlados, métodos analíticos e comparativos, esquemas causais de modelagem etc. Mas além disso, as ciências valem-se de ferramentas cognitivas de avaliação e escolha de teorias e hipóteses, que podem ser vistas como ‘virtudes cognitivas’ que se mostraram eficientes na condução da pesquisa científica. Entre estas é possível citar várias como: poder explanatório, precisão, reprodutibilidade, escopo e abrangência, coerência inter-teórica, fecundidade, etc além da principal virtude epistêmica, a acessibilidade empírica, especialmente via testes controlados que dependem da implementação dos métodos antes mencionados.

As teorias físicas mais tradicionais, estruturadas de forma mais rigorosa e baseadas em leis matemáticas e probabilísticas muito precisas (amplamente válidas e testáveis em condições muito controladas e idealizadas), obtém muito de seu status de seu poder preditivo, como nos casos da relatividade geral e da mecânica quântica, e mesmo como (foi) é o caso da mecânica newtoniana. Nestas áreas o modelo nomológico-dedutivo tem sua melhor representação de instanciamento. Porém a ciência é mais do que isso.

Diferentemente das teorias físicas tradicionais as teorias biológicas sobre evolução concentram-se em seu conteúdo explanatório e na possibilidade de ‘retrodizer’ fenômenos, ao invés de predizê-los, como as ciências físicas (e mesmo a biologia experimental) fazem, o que é óbvio pois a evolução é uma ciência histórica, como a arqueologia, a geologia, bem como parte da astronomia planetária e, até mesmo, da cosmologia, guardando as devidas diferenças em termos de precisão e nível de matematização (veja os artigos de Carol C. Cleland sobre os assunto nas referências).

As explicações de eventos passados integram os resultados experimentais e analíticos (de diversas outras áreas, tais como biologia molecular e bioquímica, fisiologia, anatomia e fisiologia comparativa funcional, biologia do desenvolvimento, sistemática, ecologia, biogeografia, paleobiologia etc) em um quadro mecanicístico mais geral que reúne narrativas históricas em um arcabouço estatístico elaborado em termos da genética de populações e da genética quantitativa. Estas diferentes áreas e evidências são amarradas em um contexto abdutivo, que permite testes empíricos, formulação de hipóteses adicionais e investigação analítica mais aprofundada, através do que se convencionou chamar de ‘Inferência pela melhor explicação‘.

Futurologia, ou seja extrapolação de ‘tendências’ históricas para o futuro, em ciências históricas ainda é algo, no mínimo, bastante controverso. As inúmeras cadeias causas que se encontram nos processos históricos, sejam eles a história social, política ou cultural humana, a geologia, a paleobiologia, a origem de sistemas planetários ou a evolução da vida, tornam estes processos tremendamente contingentes e, portanto, muito difíceis de prever. Para muitos estas considerações impõem limites severos a disciplinas como a biologia evolutiva.

Esta situação, entretanto, está longe de ser um consenso inabalável dentro da própria comunidade científica e filosófica, por isso talvez não seja algo que precisemos nos conformar. Estudos em evolução experimental tanto em campo como em laboratório (especialmente usando populações de microorganismo como os efetuados pelo grupo de Richard E. Lenski na Michigan State University) e as plataformas de AL (Artificial Life), como Avida e Polyword sugerem uma tendência diferente. Por isso, mesmo com a consciência de que a aleatoriedade, juntamente com outros processos estocásticos e contingentes, tem importância inegável durante a evolução biológica, alguns fenômenos indicam que a evolução biológica pode ter alguns aspectos replicáveis e até predizíveis.

A evolução convergente e paralela são os principais exemplos deste tipo de fenômeno e, desde muito tempo, levaram os cientistas a especularem sobre ‘leis gerais’ da evolução. Alguns padrões fósseis expressos na forma em que certas linhagens se ramificam e se extinguem também sugerem que características associadas as estratégias reprodutivas (K-selecionistas vs r-selecionistas) e de forrageio (generalistas vs especialistas) também possam indicar padrões gerais reprodutíveis, talvez mesmo definidos por processos de níveis hierárquicos mais elevados, como a ‘seleção de espécies’ ou de clados.

Ao mesmo tempo, exemplos de particularidades e singularidades históricas na evolução são também muito conhecidos, especialmente os padrões de sobrevivência relacionados às grandes extinções. Stephen Jay Gould batizou um de seus livros mais interessantes de ‘Wonderful Life‘ (‘Vida Maravilhosa‘), inspirado no filme It’s a Wonderful Life (em português “A felicidade não se compra”) de Frank Capra, estrelado por James Stewart. No filme George Bailey, o personagem de James Stewart, um frustrado e desesperado homem de negócios, recebe ajuda de um anjo que mostra a ele como seria a vida das pessoas, com que ele teve contato, caso ele jamais tivesse existido.


Gould aproveita esta idéia na forma de um experimento mental (sem a necessidade de um anjo) que consiste em “repassar o videotape (ou DVD ou Bluray, para os mais jovens) da vida novamente” e verificar como pequenas alterações afetariam o resto da evolução. Como as diversas possibilidades seriam afetadas caso certos eventos não tivessem ocorrido? Como grupos extintos poderiam alterar a atual configuração da vida caso algum (ou alguns deles) não tivessem sido extintos, por exemplo, por impactos de meteoros (ou grandes mudanças climáticas, vulcanismo, pandemias virais) ou, mesmo se, as mutações apropriadas tivesse ou não ocorrido no tempo e na ordem correta?

Neste livro, Gould nos conta a história da estranhamente bela fauna fóssil, datada do período cambriano, achada no folhelho de Burgess (Burgess Shale) na Colúmbia Britânica, que havia sido ‘redescoberta’ por um time de paleontólogos e que revelava uma riquíssima variedade de planos corporais (para muitos) extremamente mais díspares (disparidade é, neste contexto, um termo técnico) do que os encontramos hoje. Este fato poderia significar que o número de possíveis filos (no caso de animais, filos são distinguidos pelos diferentes planos de organização corporal básica) no cambriano seria, na realidade, muito maior do que o atual, mesmo que a diversidade (em termos de número de espécies e linhagens) atualmente seja maior.

Filos inteiros, de aparência bastante alienígena para nós, teriam sido extintos, com isso reduzindo drasticamente a bio-disparidade existente. Assim, ao invés de uma árvore com uma copa larga e florida, a representação mais adequada da história da vida animal (em relação a disparidade morfológica) seria uma conífera, como um pinheirinho de natal. Hoje esta perspectiva em relação a diminuição da disparidade é posta em dúvida por vários cientistas. Assim como, também é questionada a idéia de que muitos destes filos extintos não teriam parentesco mais próximo com filos atuais. O que se acredita atualmente é que a maioria daqueles seres, na realidade, fossem formas basais, ainda não completamente características moderna do grupo, mas ainda assim aparentados com os filos ‘descendentes’ modernos (crown groups). Embora, as idéias mais radicais de Gould, como a idéia de que a disparidade da própria fauna de Burgess superava em muito a disparidade atual. Mas mesmo assim, hoje, após muitas avanços em técnicas de quantificação da ‘disparidade’, estes estudos revelaram que a disparidade, i.e. variedade de planos corporais, alcançou seu máximo já neste período inicial da evolução animal e só mais tarde foi seguida pela diversidade taxonômica, portanto, preservando algumas das intuições de Gould. O Paleobiólogo, Douglas Erwin, coloca a questão da seguinte maneira:

“Com as avaliações quantitativas da morfologia substituindo a contagem de taxa ‘superiores’ como uma métrica de disparidade morfológica, numerosos estudos demonstraram a construção rápida do morfo-espaço no início das radiações evolutivas, e enfatizou a diferença entre as medidas taxonômicas da diversidade morfológica e avaliações quantitativas de disparidade.” (Erwin, 2007)

A questão principal, no entanto, é que um número enorme de animais bizarros foi extinta por algum processo contingente, e a vida animal atual é apenas uma fração bastante derivada deste momento da evolução dos seres multicelulares conhecida como ‘explosão’ cambriana. Imagine então, se estes fatores que causaram a extinção destas linhagens, em particular, não tivessem ocorrido. O quão diferente seria a vida atual? Será que uma cascata de eventos de especiação e extinção muito diferentes aconteceria? Será que ainda teríamos tido os dinossauros e mais tarde a explosão de diversificação de mamíferos, ambos grupos de vertebrados, membros do filo Chordata? Ou será que criaturas diferentes teriam surgido ocupando os mesmos habitats, porém de forma muito diferente e criando novos nichos? Ou ainda: Será que mesmo que criaturas diferentes evoluíssem (descendentes de linhagens extintas, diferentes das nossas linhagens parentais), estas teriam convergido em direção a formas semelhantes as das biotas modernas, talvez ocupando habitats muito parecidos, formando assim nichos equivalentes aos modernos? No momento, realmente não sabemos, apesar de suspeitarmos fortemente que (em um nível mais detalhado) muitas das criaturas e nichos atuais provavelmente não existiriam. Quem sabe, o nosso próprio nicho (generalistas de distribuição global com organização sociocultural extremante complexa, muito dependentes de tecnologia) não estaria entre os que, simplesmente, não teriam evoluído, sendo a evolução de criaturas inteligentes e capazes de nosso nível cultural e de tecnologia, um mero acidente, associado a vários eventos particulares e contingentes.

No entanto, observações recentes indicam que os genes não são todos iguais aos olhos da evolução. Mutações evolutivamente relevantes tendem a se acumular em genes conhecidos como hotspot e mesmo em posições específicas dentro destes genes. Assim a evolução genética é limitada pela função do gene, a estrutura das redes genéticas e pela biologia populacional.
A base genética da evolução pode ser previsível, pelo menos até certo ponto, e uma maior compreensão do presente exigiria a incorporação da previsibilidade das funções e características específicas de genes na teoria evolutiva (Stern e Orgogozo, 2009).

Desde o começo da moderna biologia evolutiva – quando Charles Darwin e Alfred Russell Wallace propuseram que a biodiversidade era basicamente resultado da seleção natural agindo sobre variações hereditárias nas populações – já havia o reconhecimento, tanto por Darwin quanto por Wallace, da importância da variação hereditária para a compreensão da evolução, mesmo que não fosse claro como a herança se daria. Apenas no início do século 20, com a ‘redescoberta’ dos estudos de Mendel, é que foi possível tratar matematicamente a dinâmica dos alelos nas populações, o que iniciou o campo da genética de populações.

Geneticistas de populações tratam genes e alelos (as variantes de um mesmo gene em um dado locus) como entidades genéricas, como ‘partículas’ herdadas e que de alguma forma causam variação na aparência, comportamento e fisiologia dos organismos, o que chamamos conjuntamente de fenótipo (Stern e Orgogozo, 2009).

Stern & Orgogozo chamam a atenção para um fato muito importante:

Esse nível de abstração era adequado, já que uma compreensão molecular da função do gene estraria muitas décadas no futuro. Mesmo com essa visão rudimentar da função do gene, no entanto, a genética da populações esclareceu muito a forma como as populações evoluem, e essa compreensão teórica estimulou a ‘nova síntese’, a combinação genética de populações com a ecologia, sistemática e biogeografia para explicar e explorar as muitas questões em evolução.” (Stern & Orgogozo, 2009)

Acontece que nos últimos 40 anos, a biologia molecular têm elucidado, de forma cada vez mais detalhada, qual a participação dos genes na regulação de processos biológicos. Infelizmente, apenas algumas observações mecanicísticas mais básicas foram integradas à biologia evolutiva, como a distinção entre substituições ‘sinônimas’ (substituições de nucleotídeos que não alteram o aminoácido codificado) e ‘não-sinônimas’ (substituições de nucleotídeos que alteram o aminoácido codificado) em regiões gênicas codificadoras de proteínas. Porém, outros aspectos da biologia molecular atual contribuem muito pouco para a teoria evolutiva, mas como Stern e Orgogozo (2009) afirmam:

O tempo chegou agora para integrar as especificidades da biologia molecular e desenvolvimento à biologia evolutiva. Nos últimos 15 anos, muitos exemplos de genes e mutações que causam mudanças evolutivas foram identificadas (1). Padrões nestes dados sugerem que uma síntese da biologia molecular do desenvolvimento com a teoria evolutiva irá revelar novos princípios gerais da evolução genética.” (Stern & Orgogozo, 2009)

Bem vindos a simpática ‘Evo Devo’!

Em artigo da revista Science, Stern e Orgogozo (2009) discutem várias evidências que apontam para que a evolução genética seja, pelo menos parcialmente, previsível já que a arquitetura genômica (fruto da evolução pregressa) dos seres vivos coage e limita alguns caminhos evolutivos.

1) Distribuição não-aleatória das mutações evolutivamente relevantes:

Estudos recentes sugerem que as mutações que contribuem para a variação fenotípica [mutações evolutivamente relevantes (2)] não são distribuídas aleatoriamente em todas as regiões genéticas. A evidência mais convincente vem de casos de evolução genética paralela: a evolução independente de alterações fenotípicas semelhantes em espécies diferentes devido às mudanças em genes homólogos ou às vezes na posição mesmo aminoácido de genes homólogos.” (Stern e Orgogozo, 2009)

Muitos casos de evolução paralela foram descobertos em todos os reinos. Seguem alguns exemplos:

1.a) Pelo menos 20 populações separadas da planta Arabidopsis thaliana têm evoluído mutações de codificação nulas (as mutações que eliminar completamente a função da proteína) no gene frigida que causa início do florescimento.

1.b) Resistência ao DDT e a piretróides evoluiu em 11 espécies de insetos a partir de mutações no gene que codifica, ou um ou outro, aminoácido, Leu1014 ou Thr929, que formam o canal de sódio dependentes da voltagem codificado pelo gene para.

1.c) Duas populações de vírus, submetidos, independentemente, à evolução experimental em um hospedeiro acumularam muitas das mesmas mutações de aminoácidos.

No total, são cerca de 350 mutações evolutivamente relevantes que têm sido encontradas em plantas e animais, e mais da metade desses casos representam casos de evolução genética paralela.

Stern & Orgogozo, então, afirmam:

Uma explicação para a evolução genética paralela é que a maioria dos genes desempenha um papel especializado durante o desenvolvimento, e apenas alguns genes podem evoluir para gerar variantes fenotípicas particulares. Por exemplo, mutações na rodopsina podem alterar a sensibilidade à luz de diferentes comprimentos de onda (6), e as mutações no lisozima podem aumentar a atividade enzimática no pH especial de fermentação intestinal (7). Mas o inverso não seria verdadeiro. Mutações na rodopsina não são susceptíveis de melhorar a fermentação e as mutações em uma enzima digestiva não ajudam a detecção de um determinado comprimento de onda de luz, mesmo que cada proteína fosse expressa no órgão de reciprocidade.” (Stern e Orgogozo, 2009)

Em parte, a função do gene explica e evolução paralela, mas isso não é sempre verdade já que em vários casos os padrões observados de evolução genética paralela, podem ser alcançados por mutações em um grande número de genes semelhantes, capazes de produzir as mesmas alterações fenotípicas:

Por exemplo, embora mais de 80 genes regulam o tempo de floração (8), alterações em apenas um subconjunto desses genes têm produzido mudanças evolutivas no tempo de floração (3). Centenas de genes regulam o padrão de muitas projeções epidérmicas, chamadas ‘tricomas’, em larvas de Drosophila melanogaster. Mas apenas um gene, chamado shavenbaby, evoluiu para alterar os padrões de tricomas das larvas entre as espécies Drosophila e este gene tem múltiplas mutações acumuladas evolutivamente relevantes (9).” (Stern e Orgogozo, 2009)

Então o que existe de especial sobre esses genes hotspots?

A resposta para esta questão encontram-se em grande parte na biologia do desenvolvimento. Inclusive, no caso particular de genes hotspots como shavenbaby, para ‘o porquê’ genes como eles existem. A estrutura dos genes eucarióticos e o controle espacial e temporal de sua expressão está na base deste processo. Abaixo pode se observar um esquema simplificado que ilustra a estrutura de um gene eucariótico.

Um conceito chave para compreendermos o desenvolvimento embriológico e, desta forma, a emergência e evolução dos planos corporais e das outras estruturas morfológicas, é o de ‘vias de sinalização‘. Para que um ser multicelular cresça e se desenvolva, como é mais freqüente, a partir de uma única célula, é que esta célula inicial deve se multiplicar de forma integrada e controlada, assim as diversas linhagens de células ‘filhas‘ diferencie-se em células particulares e formem tecidos específicos, órgãos e estruturas através de migração, movimentos coletivos e deformações conjuntas que geram a forma final do ser multicelular que está se desenvolvendo.

Estes processos dependem da habilidade das células ‘comunicarem-se‘ entre si e com seu meio adjacente, alterando seu comportamento de acordo com estas informações contextuais podendo assim contribuir para a formação de um todo auto-organizado. Esta comunicação se dá através da troca de sinais químicos entre as células (por exemplo, através de moléculas difusíveis de curta e longa distância, como secreções parácrinas e hormônios) ou do contato direto entre células através do entre moléculas de superfície, proteínas transmembrana cujos domínios extra-celulares funcionam como sistemas receptores-ligantes, como ocorre com as chamadas moléculas de adesão celular. Estas mensagens químicas, e outras ‘pistas’ de contexto, ao interagir (por exemplo, ao ligarem-se com um proteína receptora de membrana) com as células-alvo, produzem mudanças nos estados bioquímicos internos destas células, inclusive nos seus estados de ativação genômica. Isto é, genes são silenciados e expressos (‘ligados’ e ‘desligados‘) ou tem seus níveis de expressão aumentados ou diminuídos como conseqüência destes sinais. Estas mudanças, por sua vez, podem induzir estas células a multiplicar, migrar, diferenciar-se, aumentar de tamanho, mudar de forma, morrer (a chamada morte celular programada ou apoptose), liberar outras moléculas de sinalização ou expressar proteínas diferentes em suas membranas. Os eventos bioquímicos intracelulares que servem de intermediários para esta comunicação constituem-se nas ‘vias de sinalização‘ e nos mecanismos de ‘transdução de sinal’. São por estas vias bioquímicas que muitos biólogos evolutivos tem se interessado nas últimas décadas, como forma de explicar a evolução morfológica através de modificações nos sistemas de controle do desenvolvimento.

Os processos de transdução de sinal começam com a ligação de uma molécula, um ligante (difusível ou um
domínio extracelular de uma proteína de membrana de uma célula vizinha), a um receptor de membrana. Isto é, uma proteína transmembrana que é estimulada a mudar de conformação ao interagir com o seu ligante, no caso a molécula sinalizadora, induzindo uma cascata de eventos bioquímicos como a produção de segundos

mensageiros (como DAG e IP3), hidrolisação de ATP, ativação de proteínas fosforiladoras chamadas de proteínas quinases, abertura de canais iônicos, liberação de Ca++, indução ou inibição da transcrição de genes e conseqüente síntese (ou bloqueio) de novas proteínas.

Um dos elementos cruciais deste processo são os chamados elementos Cis-regulatórios e os fatores Trans-ativos, unidades essenciais no controle da transcrição gênica que tem ocupado muitas das pesquisas em genética do desenvolvimento e genética evolutiva. Os primeiros (elementos Cis-) são seqüencias de DNA que modulam a transcrição do genes a que estão associadas. Já os fatores Trans- são os elementos protéicos que ligam-se as estas seqüencias Cis- modulando-as.

Durante o desenvolvimento, várias vias de sinalização celular e fatores de transcrição agem conjuntamente para dividir progressivamente o embrião em um mapa virtual que especifica quando e onde irão se formar os órgãos (Stern e Orgogozo, 2009). As interações entre os genes que codificam estas moléculas de sinalização e os fatores de transcrição podem ser representadas como uma rede genética. Interações entre genes são moduladas em grande parte pelas regiões cis-regulatórias (veja esquema a direita e abaixo – Clique a figura para aumentá-la).

A estas regiões Cis-regulatórias ligam-se fatores de transcrição, e os efeitos somados de destes fatores em um gene-alvo determinam se o gene é expresso ou não. Genes controladores de padrões agem dentro de complexas redes genéticas e, normalmente, cada gene contribui para a formação de padrões de desenvolvimento em vários tipos de células. Por exemplo, os genes controladores de padrões que são mais ativos durante o desenvolvimento embrionário da epiderme contribuem também para o desenvolvimento dos sítios de inserção de músculos, órgãos sensoriais, poço traqueal, tricomas, ou outros tipos celulares. Nesta rede regulatória de desenvolvimento genes controladores de padrões primeiro colaboram para dividir a epiderme embrionária em domínios que expressam fatores de transcrição distintos. Estes genes controladores de padrões, então, regulam a expressão do gene shavenbaby, que funciona como um sistema de controle de ‘input-output‘ (‘entrada-saída‘). Estes genes de ‘entrada-saída’, funcionam como nós de uma rede causal, integrando as informações espaço-temporais complexas (a entrada) e ativando todo um ‘programa’ de diferenciação celular (a saída) (Stern & Orgogozo, 2009).

A proteína Shavenbaby ativa a expressão de uma bateria de genes-alvo que transformam uma célula epidérmica em uma célula de tricomas. Cada gene alvo desencadeia um aspecto específico de diferenciação celular e a produção de tricomas diferenciados requer uma expressão coordenada de todos os genes-alvo. O padrão de tricomas por todo o corpo é, assim, determinada pela distribuição da proteína Shavenbaby na epiderme, que é controlada pela região cis-reguladora do gene shavenbaby (Stern & Orgogozo, 2009):

“O gene shavenbaby serve como um elo para as informações de formação de padrões fluírem para dentro e para a informação dos destinos celulares fluírem para fora.” (Stern & Orgogozo, 2009)

O ponto que Stern & Orgogozo querem enfatizar é que, em toda a rede de regulação gênica do desenvolvimento dos embriões de drosófila, apenas um gene, no caso shavenbaby, por sua posição nodal na

rede de sinalização e função muito especializada de integrar ‘o módulo da morfogênese tricomas’, pode acumular mutações que alteram os padrões de tricomas sem perturbar outros processos de desenvolvimento. Assim, alterações em genes desta mesma via de desenvolvimento, porém a cima na hierarquia de sinalização, irá alterar a produção de tricomas, mas estas mutações também perturbarão outros órgãos. De forma complementar, alterações em qualquer um dos genes a baixo, na hierarquia da rede, não serão suficientes para criar ou eliminar um tricoma; alterações em concerto em vários genes ‘abaixo’ são necessárias para construir um tricoma (Clique nas figuras para aumentá-las).

Além disso, Stern & Orgogozo nos lembram, que todas as mutações evolutivamente relevantes em shavenbaby, que foram identificadas até o momento, alteram a região cis-regulatória e não a região codificadora da proteína. Mutações na região codificadora da proteína que alteram a função shavenbaby em todas as células em que a proteína shavenbaby se acumula, iriam alterar todos os tricomas produzidos em larvas e adultos (Stern & Orgogozo, 2009).

Assim, em uma perspectiva desenvolvimental, esclarece por que shavenbaby é um hotspot para mutações evolutivamente relevantes e por que essas mutações ocorrem na região cis-reguladora do gene. Nós prevemos
que as regiões cis-regulatórias de outros genes de ‘entrada-saída’ podem ser hotspots para outras características fenotípicas.”

O gene shavenbaby fornece um exemplo de um princípio mais geral: que as mutações que afetam várias características fenotípicas, as chamadas mutações pleiotrópicas, não são susceptíveis de contribuir para a evolução adaptativa. Como discutiremos a seguir, pleiotropia e outros parâmetros genéticos e da genética de
populações parecem influenciar a distribuição das mutações evolutivamente relevantes.”
(Stern & Orgogozo, 2009)

2. Os fatores que influenciam a distribuição de mutações evolutivamente relevantes:

2.1 Pleiotropia:

Mutações pleiotrópicas alteram várias características aparentemente não relacionados ao mesmo tempo. Duas mutações que causam aumento evolutivo do número de cerdas torácicas na drosófila ilustram a diferença entre mutações com efeitos específicos e pleiotrópicos (Fig. 2):

“Uma mudança em uma seqüencia cis-reguladora do gene scute afeta o número de órgãos sensoriais apenas sobre o tórax (12), enquanto que uma mutação na codificação dos gene poils au dos aumenta o número de órgãos sensoriais no tórax e nas asas (13). Mutações sobre poils au dos são mais pleiotrópicas que mutações sobre as regiões cis-regulatórias do gene scute. Scute, shavenbaby são genes do tipo ‘entrada-saída’, enquanto poils au dos é um gene de controle de padrões que, em conjunto com outro genes, regula a expressão scute (Fig. 2). Mutações, com efeitos pleiotrópicos, raramente mudam todas as características fenotípicas de uma forma favorável, e evidências experimentais indicam que os efeitos pleiotrópicos tendem a reduzir a aptidão (14). Seleção pode favorecer cerdas extras no tórax, mas não em órgãos como a asa. Mesmo se um efeito de uma mutação pleiotrópica induzisse uma grande melhoria na condição física, outros efeitos podem ser deletérios e reduzir a probabilidade de que a mutação se estabeleça na população (15).” (Stern & Orgogozo, 2009)

2.2 Epistasia:

A epistasia é um fenômeno também particularmente importante e é evidenciado por uma observação bastante simples. Quando examinamos os efeitos de uma mutação sobre um único fundo genético (os demais genes, e variantes alélicas, que compõem o genoma afetado em questão), esta mutação pode ter um efeito específico ou mesmo pleiotrópico, mas, em outro fundo genético, a mesma mutação pode produzir um efeito fenotípico diferente por causa das interações alélicas não aditivas, e é isso que chamamos ‘epistasia’. São os efeitos da interação entres os produtos de genes diferentes que não podem ser reduzidos a um soma simples de seus efeitos individuais (Stern & Orgogozo, 2009).

Por exemplo, um alelo de A. thaliana aumenta o crescimento em um fundo genético, mas reduz o crescimento em um fundo genético diferente (16). O segundo fundo genético não é simplesmente deletério, em geral, pois um alelo variante em um segundo locus provoca maior crescimento neste fundo. Assim, os efeitos de uma mutação podem depender da variação genética presente em outros loci.” (Stern & Orgogozo, 2009)

Epistasia é extremamente comum em populações naturais e, por vezes, podem reduzir a taxa de evolução, aumentando a variância associada a uma mutação em particular, causando efeitos flutuantes de aptidão nas
mutações tornando estes efeitos dependentes da herança genética de cada indivíduo:

Assim, em uma população de Arabidopsis contendo múltiplas origens genéticas, esperamos que a seleção para tamanho maior tenderá a favorecer alelos não-epistáticos que aumentem o crescimento em todas as fundos genéticos, em vez de alelos epistáticos que aumentem o crescimento em apenas um fundo genético.” (Stern & Orgogozo, 2009)

2.3 Plasticidade:

Populações expostas a repetidas alterações ambientais podem evoluir mecanismos genéticos que produzem diferentes fenótipos adaptados a diferentes condições ambientais: chamada de plasticidade fenotípica.

Por exemplo, os pulgões podem produzir múltiplas formas fenotípicas em resposta às condições ambientais, incluindo as formas assexuadas que se reproduzem rapidamente e formas sexuadas que depositam ovos hibernantes. As mutações que eliminam as formas sexuadas que reduzem a plasticidade podem dar, a uma linhagem, uma vantagem a curto prazo, uma taxa muito mais rápida de reprodução. Mas, a longo prazo, as linhagens de pulgões que não produzem formas sexuadas tendem a se extinguir, talvez porque eles não consigam se adaptar às novas condições ambientais.” (Stern & Orgogozo, 2009)

Algo semelhante ocorre em A. thaliana com o gene frigida que controla a plasticidade para o tempo de floração. Frigida responde a baixas temperaturas para induzir a floração. Em regiões com invernos quentes, mutações nulas em frigida podem fornecer um benefício de curto prazo de forma consistente, ao desencadear o florescimento, mesmo na ausência de um inverno frio. Mas estas mutações eliminam a plasticidade para época de floração, possivelmente prevenindo estas plantas de se adaptar a temperaturas mais frias ou de recolonizar áreas em climas mais frios. Assim, a abundância de mutações nulas em frigida em populações de Arabidopsis deve resultar de fatores que compensam as conseqüências negativas da plasticidade reduzida (Stern & Orgogozo, 2009).

2.4 Força de seleção:

Quando uma mudança de ambiente favorece o fenótipo que é muito diferente do fenótipo médio em uma população, mutações que causam grandes alterações fenotípicas para o novo ‘ideal’ serão favorecidas, pelos menos inicialmente (Stern & Orgogozo, 2009).

Por exemplo, raças domesticadas recentemente experimentaram provavelmente forte seleção por parte dos criadores, e muitos traços, típicos de domesticação recente, são resultantes de mutações que causam grandes efeitos fenotípicos, incluindo efeitos pleiotrópicos deletérios. Como exemplo, seis diferentes tipos de mutações nulas que interferem diretamente com a codificação do gene da miostatina causam hipertrofia muscular em diferentes raças de bovinos .

A Miostatina é um membro da superfamília de fatores de crescimento transformadores-β, atuando como regulador negativo do desenvolvimento muscular. Embora mutações nulas no gene da miostatina gerem animais com mais carne e menos gordura, estes animais têm dificuldades no parto e reduzida tolerância ao estresse. Isso indica que forte seleção artificial, durante a domesticação podem, obviamente, superar os efeitos negativos pleiotrópicos das mutações nulas no gene da miostatina (Stern & Orgogozo, 2009).

2.5 História da População:

O artigo de Stern & Orgogozo enfatiza um outro determinante importante da evolução genética, o tamanho das populações, passadas e atuais (Para maiores detalhes veja aqui). Estes influenciam em muito a evolução genética, sobretudo a eficiência da seleção natural, já que tamanhos pequenos de populações aumentam os efeitos da amostragem aleatória dos alelos, aquilo que os geneticistas chamam de deriva genética aleatória e já foi discutido, em outras ocasiões, aqui no evolucionismo:

Em pequenas populações, a deriva genética permitirá que alelos deletérios ocasionalmente aumentem em freqüência. Por exemplo, uma pequena população pura de beduínos em Israel desenvolveu uma alta freqüência de um alelo recessivo que provoca surdez (20). Com a forte deriva genética em pequenas populações, a seleção natural vai deixar de promover a disseminação de mutações adaptativas de pequeno efeito. Em vez disso, em comparação com grandes populações, mutações adaptativas de efeito relativamente grandes tendem a evoluir através da seleção natural em populações pequenas.” (Stern & Orgogozo, 2009)

Pequenas populações também têm um outro efeito crítico sobre a evolução. Elas limitam o número total de novas mutações introduzidas em uma população a cada geração. Logo, populações pequenas podem acabar ficando relegadas a mutações, longe das ‘ideais’ (com conseqüências pleiotrópicos e epistáticos) simplesmente porque as mutações potencialmente superiores ocorrem a uma taxa inferior e são perdidas pelos efeitos da deriva genética (Stern & Orgogozo, 2009).

A abundância de mutações nulas no gene frigida em populações de A. thaliana destaca a importância da história na evolução genética das populações:

Mutações nulas em frigida tem a conseqüência negativa de reduzir a plasticidade para o tempo de floração. Essas mutações também têm efeitos pleiotrópicos [reduzem a produção de frutos (21)] e mostrar epistasia em relação a outros genes que controlam o tempo de floração (22).” (Stern & Orgogozo, 2009)

Stern & Orgogozo (2008, 2009), afirmam, então que ‘estas observações sugerem que as mutações nulas em frigida não refletem os ‘alelos ideais’ para controle o tempo de floração‘. Para os pesquisadores, mutações nulas neste gene (frigida) apenas raramente, se é que alguma vez, devem estar envolvidas na divergência fenotípica entre as espécies, mas a seleção natural superou os efeitos deletérios das mutações nulas em frigida e promoveu a difusão dessas mutações em populações pequenas. As subpopulações de A. thaliana que migraram da Escandinávia, aparentemente, seguindo as pegadas da agricultura ao redor do mundo, se adaptaram às condições locais, incluindo os invernos relativamente quentes e mais curto de regiões temperadas, o que foi facilitado pelo fato destas plantas serem auto-fertilizadas, por isso mesmo uma única planta pode dar origem a uma nova população. Assim, estas subpopulações pequenas forneceriam poucas oportunidades para mutações benéficas com efeitos específicos, e não-pleiotrópicos, aparecerem, assim a seleção acabou por favorecer mutações de maior efeito, tais como mutações nulas como as que ocorrem em frigida. Desta forma Stern & Orgogozo (2009) concluem que ‘a abundância de mutações nulas em frigida provavelmente reflete o fato de que estas mutações ocorrem a uma taxa superior à mutações associadas sem conseqüências deletérias‘.

A base genética da evolução de curto e longo prazo:


O exemplo frigida não é o único. Em muitas plantas e animais, a evolução ao longo de períodos extensos de tempo (variação entre espécies) parece diferir de várias formas da evolução em períodos mais curtos de tempo(variação entre raças domesticadas e entre indivíduos dentro de uma espécie) . Aqui estão três maneiras
gerais em que a evolução genética a longo prazo e de curto prazo são diferentes (Stern & Orgogozo, 2009).

Primeiro, a epistasia é comumente encontrada em mutações que contribuem para a variação fenotípica dentro das espécies, que é raramente observada para as mutações que causam as diferenças entre as espécies. Dentro de D. melanogaster, a variação no número de cerdas é causada por múltiplos loci de efeito relativamente pequeno, e esses loci têm efeitos epistáticos da mesma ordem de grandeza que os efeitos aditivos. Em contrapartida, as diferenças morfológicas entre as espécies Drosophila são devidas a múltiplos loci de efeito pequeno para intermediário que raramente mostram epistasia. Estudos de variação do tamanho corporal em frangos mostram um padrão semelhante, com alelos segregantes dentro das espécies mostrando mais epistasia que os alelos envolvidos na diferenciação das espécies (Stern & Orgogozo, 2009).

Por outro lado, mutações nulas que surgem com freqüência, e muitas vezes causam efeitos pleiotrópicos e epistáticos, parecem contribuir mais para a variação fenotípica dentro das espécies do que as diferenças fenotípicas entre as espécies. Cerca de 55% das 99 mutações conhecidas por causar traços que tornam animais e plantas mas adequados a domesticação são mutações nulas que atingem as regiões de codificação dos genes, enquanto apenas 7% dos 75 mutações conhecidas para causar diferenças interespecíficas são mutações nulas envolvendo a codificação (Fig. 3). Por exemplo, embora os rebanhos domésticos de gado evoluíram múltiplas vezes mutações nulas do gene da miostatina, todas as espécies de mamíferos estudados até o momento possuem um gene da miostatina funcional (Stern & Orgogozo, 2009).

Em terceiro lugar, a proporção de mutações cis-regulatórias causando variação morfológica difere entre os níveis taxonômicos. As mudanças em características morfológicas podem se dar através de alterações em regiões codificadoras ou através de alterações nas seqüencias cis-regulatórias (Fig. 2). Como as mutações em regiões cis-regulatórias, muitas vezes, têm menos efeitos pleiotrópicos do que mutações em regiões codificantes, é esperado que as alterações morfológicas envolvam principalmente mutações nessas seqüencias. Dentro das espécies, a maioria das mutações que causam a variação morfológica encontradas ocorriam em regiões codificadoras de proteínas (Fig. 3). Em contraste, entre as espécies, mais mutações que causam diferenças morfológicas foram encontradas em regiões cis-regulatórias. Presumivelmente, muitas das mutações em regiões codificadoras encontradas dentro de uma espécie não se espalham através das populações, talvez por causa dos efeitos pleiotrópicos deletérios (Stern & Orgogozo, 2009). Então as pressões seletivas podem evitar ou dificultar a fixação deste tipo de mutação.

Estas diferenças notáveis e inesperadas entre a evolução genética, de curto e longo prazo, só recentemente acumularam-se em um número suficiente de estudos de casos para adquirirem relevância científica. Esses padrões são coerentes com as expectativas teóricas de como os cinco parâmetros discutidos anteriormente (pleiotropia, epistasia, plasticidade, resistência da seleção, e estrutura da população) devem influenciar a evolução da genética.

  1. Evolução durante longos períodos, refletida nas diferenças entre as espécies, deve resultar de mutações relativamente livres de efeitos pleiotrópicos e epistáticos.

  2. Em contraste a evolução, em períodos mais curtos, refletida nas diferenças entre as raças domesticadas e na variação dentro da espécie, pode muitas vezes resultar de mutações que perturbam plasticidade ou que tenham efeitos pleiotrópicos e epistáticos.

Em resumo, as diferenças entre as espécies são causadas por um subconjunto parcial das mutações que surge no seio das populações naturais (Stern & Orgogozo, 2009).

Conclusões:

Embora acreditemos, normalmente, que as mutações ocorram de forma aleatória (para maiores detalhes sobre a questão da aleatoriedade nas mutações veja aqui) no genoma, a distribuição das mutações que causam a diversidade biológica parece ser altamente não randômica. Os efeitos evolutivamente relevantes de uma mutação, que contribuem para a evolução fenotípica, dependem, portanto, de todo um conjunto de questões genéticas, mais especialmente:

  1. Função do gene;

  2. Estrutura do gene;

  3. Papéis dos genes e de seus produtos

Assim, para algumas mudanças fenotípicas (associadas às mutações evolutivamente relevantes), espera-se que estas se acumulem em alguns genes hotspot e até mesmo em determinadas regiões dentro destes genes individuais. Além disso, a biologia populacional e ecologia influenciam o espectro de mutações evolutivamente relevantes. Durante curtos períodos, as mutações adaptativas com efeitos pleiotrópicos deletérios poderão ser selecionadas por que as mutações ‘próximas ao ideal’ (i.e. sem efeitos deletérios) ainda não apareceram. Em contraste, durante longos períodos, mutações adaptativas sem efeitos pleiotrópicos deletérios têm mais oportunidades para surgir e serem assim selecionadas (Stern & Orgogozo, 2009).

Estas constatações levaram Stern & Orgogozo (2009) a sugerir que a base genética da evolução fenotípica, portanto, parece ser de certa forma previsível, mas estes fazem algumas ressalvas importantes que merecem atenção:

“Esses padrões que emergem na distribuição de mutações que causam modificações na diversidade fenotípica, são derivados a partir de um conjunto limitado de dados que foram extraídos da literatura, portanto, é possível que esses padrões reflitam tendenciosidades no modo como os cientistas têm procurado por mutações evolutivamente relevantes (1). Por exemplo, muitos pesquisadores focam em genes candidatos, o que impede a descoberta de genes previamente desconhecidos. No futuro, esperamos que a adoção generalizada de abordagens experimentais imparciais, como o mapeamento genético, por exemplo, irão fornecer dados para testes robustos da previsibilidade da evolução genética.” (Stern &Orgogozo, 2009)

O mapeamento genético pode ser realizado dentro de cada espécie e, em casos raros, entre espécies estreitamente relacionadas através de cruzamentos controlados e análise de QTL (Quantitative Trace Locus) das características de híbridos com diferentes fundos genéticos. Como alternativa, a substituição de todos os genes de uma espécie elos de uma segunda espécie, gene por gene, embora experimentalmente entediante, pode permitir inquéritos imparciais para as espécies que não podem ser cruzadas. Esta abordagem permitiria comparações entre táxons distantemente relacionados e forneceria um teste direto para revelar se os táxons distantemente relacionados acumulam diferentes tipos de mutações evolutivamente relevantes que as espécies estreitamente relacionadas (Stern & Orgogozo, 2009).

Espera-se que mais previsões quantitativas precisas, sobre as mutações responsáveis pela evolução fenotípica, venham desta síntese adicional da biologia molecular do desenvolvimento e da genética populacional. Novos modelos teóricos provavelmente abordarão vários parâmetros de genética de populações, em um quadro de referência que leve em conta a estrutura genômica e organização desenvolvimental no qual estes parâmetros estão inseridos. Estes modelos podem ajudar a explicar como a distribuição das mutações, surgidas espontaneamente, se traduz na distribuição de mutações e efeitos mutacionais em populações segregantes e como estes processo influenciam a evolução em curto e longo prazo (Stern & Orgogozo, 2009).

O fato de que a evolução genética possa, a longo prazo, representar apenas um subconjunto parcial das mutações tem várias conseqüências práticas. Entre elas podemos citar o desenvolvimento de algoritmos computacionais mais eficientes – que utilizem as estratégias de busca evolutiva, para a melhoria das colheitas agrícolas e criação de animais, já que a domesticação frequentemente seleciona mutações efeitos pleiotrópicos deletérios – juntamente com a ajuda aos engenheiros e criadores na exploração das classes de mutações que parecem estar em jogo na evolução de longo prazo (que envolve a seleção de mutações efeitos fenotípicos específicos e que minimizem efeitos pleiotrópicos e epistáticos), o que pode facilitar a escolha de raças que possuam características desejáveis sem propriedades associadas desfavoráveis.

No entanto, de um ponto de vista teórico mais abrangente, estes fatos nos permitem uma melhor apreciação da importância dos processos de desenvolvimento na evolução biológica. As seqüencias Cis- e fatores Trans- são apenas a ponta do iceberg dos sistemas epigenéticos de controle do desenvolvimento. Mas deixemos estas questões para um próximo artigo.

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Referências:

Stern, D., & Orgogozo, V. (2009). Is Genetic Evolution Predictable? Science, 323 (5915), 746-751 DOI: 10.1126/science.1158997
Stern, D., & Orgogozo, V. (2008). THE LOCI OF EVOLUTION: HOW PREDICTABLE IS GENETIC EVOLUTION? Evolution, 62 (9), 2155-2177 DOI: 10.1111/j.1558-5646.2008.00450.x

Referências adicionais:

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Cleland, Carol E. (2002). “Methodological and Epistemic Differences Between Historical Science and Experimental Science,” Philosophy of Science 69, pp. 474-496.

Gould, Stephen Jay (1990) VIDA MARAVILHOSA – O acaso na evolução e a natureza da história (Tradução: Paulo César de Oliveira) Companhia das Letras ISBN 9788571641419 – http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=10228

Erwin, D.H. 2007.
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Haack, Susan Inquiry and advocacy, fallibilism and finality: culture and inference in science and the law Law, Probability and Risk (2003) 2, 205–214

Lipton, Peter (2000)Inference to the Best Explanation, in W.H. Newton-Smith (ed.), A Companion to the Philosophy of Science, Blackwell 184-193.

Mosher
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PDB 1rm1 EBI.jpg http://commons.wikimedia.org/wiki/File:PDB_1rm1_EBI.jpg (auhor: Jawahar Swaminathan and MSD staff at the European Bioinformatics Institute).

Buracos negros, homo-sapiens e rock & roll.

Stephen Hawking está de volta à praça editorial com o seu ¨The Grand Design¨ Aguardo ansiosamente a edição brasileira sem erros de tradução como na primeira edição de ¨Uma Breve História do Tempo ¨.Em co-autoria com o matemático Ellis, Hawking produziu nos anos 70 um trabalho de grande importância para a física da gravitação ( Relatividade Generalizada, de Einstein ) ao demonstrar no seu ¨The Large Scale Struture of Space-Time¨ ( Cambridge, 1973 ) a inevitabilidade das chamadas ¨singularidades¨ no colapso de estrelas massivas no estágio final de seus ciclos de vida ( formação de buracos-negros ) onde até então especulava-se que essas singularidades seriam consequências teóricas sòmente das soluções com alto grau de simetria das equações de campo de Einstein. Hawking e Ellis mostraram, através de deduções puramente matemáticas, que essa condição não é necessária, assumindo uma série de outras hipóteses e demonstrando que conduziam aos mesmos resultados.Passaram-se mais de trinta anos e hoje podemos ver nas magníficas imagens do Hubble a atividade diferenciada de matéria-energia no centro das grandes galáxias e fenômenos que indiretamente indicam a atividade de um buraco-negro como, por exemplo, o jato de gás emitido pelo núcleo da incrível galáxia elíptica gigante M87, com 1 trilhão de estrelas ou mais. Nesse trabalho são estudados também aspectos relacionados à chamada ¨singularidade inicial ¨, popularmente mais conhecida como o ¨Big Bang¨, que teria dado origem ao espaço-tempo na forma como o conhecemos. As informações de que disponho até o momento é de que Hawking está vindo ao público em seu novo livro com uma versão moderma do ¨ Sir, je n´ai pas eu besoin de cette hypothèse-lá ¨, resposta de Laplace à Napoleão quando, ao presenteá-lo com sua obra máxima, este observou que Deus não fora mencionado em nenhum dos cinco volumes do seu monumental ¨Mecânica Celeste¨. Em The Large Scale… os ingleses fazem uso também de conceitos introduzidos pelo físico-matemático Roger Penrose, que chegou à especular que gravitação e auto-consciência estão intimamente relacionadas. À propósito do Big Bang, é instrutivo aqui destacar um episódio no mínimo surpreendente da vida do físico americano Richard Feynman. Certa vez, um rabino perguntou à este : ¨ Você realmente acredita na teoria do Big Bang ?¨. Feynman respondeu ao rabino : ¨Eu não acredito em nada !! ¨ ( possíveis interpretações aqui ficarão ao cargo do leitor…).Retornando ao Hawking, comento a seguir suas recomendações ou conselhos bem intencionados ( não, não é pleonasmo…) para que o homo-sapiens faça jus à sua designação técnica se quiser ter uma perspectiva à longo prazo de sua existência enquanto espécie. Estaria Hawking manipulando mentalmente suas equações envolvendo distribuições de probabilidades e chegando à estarrecedora conclusão de que já estaríamos não muito longe do fim, ou seja, à beira da extinção ?. Hawking menciona o terrível poder de destruição da tecnologia atual e daquelas que ainda possivelmente estarão ao nosso alcance nos próximos duzentos anos, o que aliás já era motivo de especulações e preocupações de Carl Sagan em seu devido tempo.Esse é o problema do crescimento exponencial : mal começamos e já estamos às voltas com nosso próprio destino ! Sonhos de ambos à parte, como por exemplo estabelecer descendência em outros lugares do universo, termino minha breve mensagem observando que Stephen Hawking, o da criação expontânea do mundo, Roger Penrose, o da origem gravitacional da consciência, Richard Feynman, o cético dos céticos, e Carl Sagan, o amante eterno da natureza e suas produções, assim como muitos outros, ( Dawkins e Jay Gould, por exemplo ) foram todos contemporâneos à época do rock progressista de minha juventude que produziu uma geração de intelectuais engajada e distante ainda do mundo virtual que nos é apresentado agora como uma nova classe de deuses de fato e que me parece definitivamente estabelecido.Contradição, eu sei. Nós sabemos.E espero sinceramente que as previsões de Hawking, como de tantos outros…, não se realizem.

Casais gays e formigas: a evolução pode explicar o altruísmo social?

Que semelhança notável há entre as formigas e a adoção de crianças por casais gays?

Não, não é que ambos causam urticária em muita gente. É que, ainda que haja controvérsia sobre quem pode adotar uma criança, não é surpresa que nós como seres sociais cuidemos dos filhos biológicos dos outros – assim como as formigas fazem.

A maioria das formigas que estão num formigueiro jamais terão descendentes. As operárias, todas filhas de uma mesma rainha, podem ter diferentes funções em diferentes castas, todas trabalhando de forma a manter ou expandir o formigueiro. Há inclusive as operárias que são babás, cuidam dos ovos e das jovens ninfas.

Um caso extremo está num tipo de formiga operária da espécie Myrmecocystus mexicanus, que regurgita o néctar guardado em seu abdômen expandido para alimentar suas irmãs em tempos de seca.

Já os casais humanos de orientação homossexual, incapazes de gerar descendentes biológicos por esta via, aparecem nas notícias todos os dias expressando o desejo de adotar crianças.

Pensando a seleção natural como a reprodução e sobrevivência diferenciais entre indivíduos, este mecanismo principal de mudança evolutiva proposto por Darwin parece ser insuficiente para explicar o comportamento social de “generosidade” das formigas e dos humanos. Se o que importa é ser mais apto (deixar mais descendentes), então parece que a evolução deveria gerar sempre comportamentos “egoístas”, não comportamentos “altruístas” como esses.

Se todos fossem egoístas, a sociedade ruiria, tanto a das formigas quanto a dos humanos. A característica em comum entre humanos e formigas, que pode ser chamada de “eussocialidade” (do grego “eu“, verdadeiro), representa então um problema a mais a ser resolvido pela teoria da evolução para explicar nossas origens.

A cooperação, então, é um elemento sine qua non do comportamento social. Como ela surgiu?

A teoria da seleção de parentesco era a mais badalada para explicar a origem deste comportamento até hoje. Esta teoria, desenvolvida por J. B. S. Haldane em 1955 e W. D. Hamilton em 1964, está fundada na noção de “aptidão inclusiva” e, como diz o nome, ela leva em conta o grau de parentesco. É um fato notável que a cooperação das formigas, por exemplo, é para com suas irmãs.

Atenção para o conceito: a aptidão inclusiva seria a soma entre o efeito da cooperação sobre a aptidão do agente (por exemplo a formiga doadora de néctar) e o efeito da cooperação sobre a aptidão do beneficiado (por exemplo as formigas nutridas pelo néctar) mutiplicada pelo parentesco entre o agente e o beneficiado.

Lembre: se estamos falando em mais apto e menos apto, estamos falando em seleção natural. O que este conceito veicula é que a seleção natural pode agir num tipo diferente de aptidão. E esta aptidão não é do indivíduo, é daquilo que o faz parente de outros indivíduos: os genes.

É por isso que o livro de divulgação “O Gene Egoísta”, de Richard Dawkins, dedica-se a explicar o altruísmo e também a defender a noção de que é o gene a unidade sobre a qual a seleção natural age, e também seu nível principal de atuação.

A teoria de Haldane e Hamilton prevê que a evolução dará origem à cooperação entre organismos quanto mais aparentados eles forem. Hamilton, como bom cientista tradicional, tratou de expressar esta ideia matematicamente.

A cooperação será favorecida pela seleção natural sempre que o grau de parentesco R, que é a fração de genes compartilhados, for maior que a razão entre o custo c e o benefício b:

R > c / b

Logo, para irmãos, com R = 1/2, o altruísmo é um resultado esperado da evolução sempre que o custo para o altruísta for mais de duas vezes inferior ao benefício para seus irmãos. No caso de primos em primeiro grau, com R =1/8, o benefício teria de ser mais de oito vezes superior ao custo.

Esta teoria fez bastante sucesso porque explica muito bem a eussocialidade de organismos haplodiploides como as formigas e as abelhas; em que os sexos são determinados pelo número de cromossomos dos organismos, sendo os machos originados de ovos não fecundados com “n” cromossomos (machos haploides) e as fêmeas de ovos fecundados “2n” (diploides). Este ciclo implica que o R para as fêmeas tem o valor exorbitante de 3/4 – e todas as operárias de um formigueiro, que trabalham de forma abnegada para o “bem comum”, são fêmeas!

Tudo bem fechadinho e plausível, não é? Mas, como dizia o filósofo Immanuel Kant, “a experiência sem teoria é cega, mas a teoria sem experiência é mera brincadeira intelectual”.

Seria a teoria da seleção de parentesco mera brincadeira intelectual? Segundo um artigo de Martin Nowak, Corina Tarnita e o famoso sociboiólogo Edward O. Wilson, publicado este mês na revista Nature, parece que sim.

Os autores lembram que existem espécies eussociais, como os cupins e os ratos-toupeiras, que não são haplodiploides, e que há famílias inteiras de himenópteros (ordem das formigas e abelhas), com até 70 mil espécies, que são haplodiploides mas não eussociais. Então, ao menos a hipótese de associação entre haplodiploidia e eussocialidade, decorrente da teoria da seleção de parentesco (TSP), parece não se sustentar.

Outro problema para a TSP é que foram detectadas circunstâncias em que a seleção age contra a homogeneidade genética. Por exemplo, se todos num formigueiro são ‘iguais’, uma mesma doença pode eliminar todos, então haveria vantagem na diferença genética, que é o contrário do parentesco, pois mais variedade significa mais chance de resistência a doenças.

Os autores também criticam os pressupostos da aptidão inclusiva como restritivos demais para a maioria dos casos em que se observa cooperação, e tentam demonstrar que usar a aptidão inclusiva é um desvio desnecessário que gera os mesmos resultados dos modelos que assumem seleção natural sobre aptidão simples. Ou seja, não é preciso complicar quando a teoria da seleção natural tradicional faz as mesmas previsões sem ser restritiva.

Mas nem tudo é crítica: Nowak, Tarnita e Wilson têm uma proposta alternativa para explicar a origem da eussocialidade:

  • Primeiro, a espécie deve formar grupos dentro de uma população, em casos como em localidades discretas atrativas para fazer ninhos ou procurar alimento, ou no caso de pais conviverem com filhotes, ou no caso de um rebanho seguir um líder; ou, ainda, grupos formados por acaso.
  • Depois, ocorre o acúmulo de características de predisposição à eussocialidade através da seleção natural comum. Por exemplo, certas abelhas solitárias dos gêneros Ceratina e Lasioglossum cooperam na busca de alimento, construção de túneis e armazenamento de recursos quando são forçadas experimentalmente à convivência. Outra predisposição seria a vigilância de ninhos como ocorre em várias vespas. Nesta etapa é invocada a “radiação adaptativa” – algumas espécies, uma minoria, serão propensas à eussocialidade (o que explica por que a eussocialidade é rara no número de espécies apesar dos organismos eussociais ocuparem uma fração enorme da biomassa do planeta).
  • Então, mutações e recombinação devem fixar genes ligados ao comportamento eussocial, servindo como gatilho para estabelecer as antigas predisposições em características estáveis de eussocialidade. Estes genes são desconhecidos, mas na formiga Solenopsis invicta, por exemplo, variantes do gene Gp-9 estão associadas à perda da capacidade de reconhecimento de operárias de outros formigueiros – o que explica as supercolônias dessa formiga no sul dos EUA.
  • Na quarta fase, a seleção natural favorece e estabiliza características emergentes de interação entre os organismos eussociais. Esta fase gera colônias que se comportam como superorganismos – as rainhas são como os gametas, e as operárias são como as células somáticas (as células de um organismo que executam funções variadas mas não passam seus genes adiante diretamente como fazem os gametas).
  • Finalmente, estes superorganismos podem sofrer seleção natural entre si (como acontece com os organismos comuns) – daí vem o refinamento das castas.

Mas por que, então, tanto parentesco entre organismos que cooperam, como nas formigas? O parentesco seria não a causa, mas a consequência da eussocialidade.

Se o modelo de Nowak, Tarnita e Wilson estiver correto, para que possamos compreender a evolução do comportamento social devemos adotar a noção de que há vários níveis para a seleção natural – dos genes aos superorganismos. Por isso, tratar apenas da fração de compartilhamento de genes, ou seja, parentesco, seria insuficiente.

E quanto aos humanos?

ResearchBlogging.org

Este modelo, como ficou claro, deve ser ajustado para falar de humanos. A primeira coisa a ser feita é perceber que não somos eussociais em sentido estrito – nossas sociedades não lembram superorganismos, e apesar da tentativa histórica da Índia, não nos dividimos em castas naturalmente.

Outra diferença é que, diferentemente dos insetos, nós temos cultura. Nossos hábitos culturais são há milênios fonte de pressões seletivas sobre nossos genes, e a cultura co-evolui com eles. Ter cultura pressupõe nosso aparato cerebral; e a complexidade das nossas culturas está diretamente relacionada a capacidades mentais como a “teoria da mente” e a empatia – e esta tem tudo a ver cooperação, principalmente quando se observa coisas como adoção de crianças por casais gays não aparentados a elas!

Não foi por acaso que escolhi o exemplo dos casais gays tentando adotar crianças. Já se tentou explicar a origem da homossexualidade pela teoria da seleção de parentesco – o comportamento homossexual seria selecionado positivamente em sua origem porque os gays cuidam de seus sobrinhos (aptidão inclusiva). Os psicólogos evolutivos Paul Vasey e Doug VanderLaan, da Universidade de Lethbridge, Canadá, observaram no povo da ilha de Samoa, no Pacífico, que os homens gays de lá cuidam mais de sobrinhos do que os homens heterossexuais e as mulheres. Em Samoa, a cultura local vê os homens gays como um terceiro sexo que chamam de fa’afafine. Os pesquisadores explicam o comportamento dedicado dos tios fa’afafine em termos da seleção positiva de genes ligados à atração sexual por pessoas do mesmo sexo, mas não sabem até que ponto isso também pode ser explicado pela baixa homofobia da cultura samoana.

Se as críticas do grupo de E. O. Wilson à teoria da seleção de parentesco procedem, as conclusões de Vasey e VanderLaan são mais fracas do que se pensava. Em caso contrário, a TSP poderá continuar sendo um recurso para estudar a origem de comportamentos humanos como a homossexualidade e o altruísmo. Só o tempo dirá.

Enquanto isso, outros modelos explicativos alternativos à TSP são aventados. Relatando em 2008 à revista científica PLoS ONE, os italianos Andrea Camperio Ciani e Giovanni Zanzotto, da Universidade de Padova, e Paolo Cermelli, da Universidade de Torino, explicam a origem da homossexualidade por um modelo baseado na ideia de seleção sexualmente antagônica, na qual fatores genéticos espalham-se na população ao conferir vantagem reprodutiva para um sexo enquanto causa desvantagens ao outro. Neste caso, vantagem ao sexo feminino – a homossexualidade masculina estaria associada a uma maior fecundidade feminina – mães com filhos gays teriam mais filhos que outras mães. São resultados que também necessitam de aprofundamento.

Voltando à adoção, que é o comportamento de altruísmo social que estamos tentando explicar, vale lembrar que, ainda que a cultura seja um complicador na análise das origens da socialidade humana, não se pode negar a participação dos genes – logo, da evolução biológica – em sua origem. Richard Ebstein e seus colaboradores lembram, na revista Neuron, que há uma clara associação entre o comportamento social humano e genes que codificam receptores de neurotransmissores como oxitocina, vasopressina, serotonina e dopamina. Mutações nesses genes foram ligadas a transtornos de comportamento como o autismo (em que a “teoria da mente” e a empatia mostram-se deficientes) e a esquizofrenia.

Qualquer que seja a explicação evolutiva para a origem da nossa sociabilidade, expressada em comportamentos altruístas como a adoção de crianças por casais gays, uma coisa já sabemos: não é recente nem exclusiva.

Christophe Boesch e colegas, na revista PLoS One, relataram 18 casos de chimpanzés adotando jovens órfãos. Sendo os chimpanzés nossos parentes vivos mais próximos, parece que o altruísmo para com indivíduos não aparentados em nossos grupos é algo com mais de 7 milhões de anos, tempo em que nossas linhagens se separaram.

Fazer o bem sem olhar a quem é coisa nossa, dos primatas. Já as formigas, continuam sendo exemplo de eficiência, mas não de individualidade.

Imagens:

Formiga: JEAN-PHILIPPE VARIN / JACANA / SCIENCE PHOTO LIBRARY

Esquema sobre aptidão: modificado de Nowak et al. 2010.

E. O. Wilson: Public Library of Science.


Referências:



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Vasey PL, & VanderLaan DP (2010). An adaptive cognitive dissociation between willingness to help kin and nonkin in Samoan Fa’afafine. Psychological science : a journal of the American Psychological Society / APS, 21 (2), 292-7 PMID: 20424059

Camperio Ciani A, Cermelli P, & Zanzotto G (2008). Sexually antagonistic selection in human male homosexuality. PloS one, 3 (6) PMID: 18560521


Ebstein, R., Israel, S., Chew, S., Zhong, S., & Knafo, A. (2010). Genetics of Human Social Behavior Neuron, 65 (6), 831-844 DOI: 10.1016/j.neuron.2010.02.020

Como varrer uma calçada no meio de uma multidão.

Não é nada fácil retirar um objeto de um lugar e colocá-lo em outro lugar. Se estiver em repouso em um referencial inercial é necessário, antes de mais nada, imprimir uma aceleração através da ação de uma força, o que implica um rearranjo na distribuiçao de energia em suas diversas formas e as consequentes modificações nas variáveis termodinâmicas do sistema físico em questão. Como é bem sabido, na estação do Inverno as calçadas e praças das cidades bem arborizadas ficam forradas de folhas sêcas com uma frequência além da esperada por donas-de-casa, prefeituras, etc.., e um breve contacto com esse problema basta para concluir que se trata de uma dor-de-cabeça para ambos na situação em que há uma grande movimentação de pessoas todos os dias e durante todo o dia. Há entretanto, como veremos logo a seguir, além de vassouras e jatos de água, uma outra maneira de resolver o problema que, reconheço, embora demande um tempo maior, pode ser realizado com um grau de eficiência aceitável : random walk !! . Inspirado em dois resultados relativos ao cálculo de probabilidades associadas a um grande número de perguntas que podemos fazer no estudo do ¨passeio ao acaso¨ unidimensional de uma partícula, passo, a seguir, ao assunto que nos interessa. As duas proposições seguintes, que chocam o senso-comum, referem-se ao passeio aleatório simétrico ( i.é., equiprobabilidade para a esquerda e para a direita ), e podem ser rigorosamente demonstradas.

Prop. I ) Em um passeio ao acaso simétrico, a probabilidade da partícula permanecer em um dos lados da origem é maior do que a probabilidade de ficar alternando entre os dois lados ( esquerdo e direito ).

Prop. II ) O valor esperado no tempo do primeiro retorno à origem é infinito.

A mensagem desses dois teoremas é muito clara e colide frontalmente com aquilo que julgaríamos esperar baseados em nossa ¨intuição primeira¨ após supor equiprobabilidades.Para nossos propósitos, a proposição II é ainda mais relevante e significa o seguinte : Sem tecer considerações a respeito da origem de moléculas pré-bióticas ou até mesmo já um pouco mais complexas, a hipótese de distribuição uniforme dessas moléculas por toda a superfície da Terra durante a maior parte do tempo antes do surgimento efetivo dos primeiros replicadores e subsequente aumento quase exponencial da biomassa terrestre é incompatível com a Prop. II , que pode ser interpretada como uma ¨tendência à dispersão¨ : por movimento browniano ou outros processos, a partícula se afasta cada vez mais de seu ponto de partida, a menos que…, e é aqui que entramos com a chave da questão : a menos que encontre uma barreira que a impeça de prosseguir o caminho. Das águas dos oceanos, córregos e lagos quentes da Terra primitiva, a tendência dessas partículas, diferenciadas das moléculas de água por suas massas e propriedades químicas,de permanecerem mais perto umas das outras através de aglomerações próximas à superfícies sólidas ou quase-sólidas implica evidentemente em um aumento significativo na frequência de colisões e no consequente aumento das probabilidades de reações químicas por pura colisão e/ou sob o estímulo de um grande número de outros fenômenos naturais .Se já foram formadas no lugar certo, então muito bem. Se não foram, um dia estarão lá.É flagrante aqui a analogia com a formação do petróleo: acumulando-se nas penínsulas, baias, fissuras de rochas ou qualquer configuração topográfica que implique em restrições na circulação de água e outros fluídos, essas moléculas estão destinadas a se encontrarem involuntariamente umas com as outras dando origem a um mundo de possibilidades muito interessante. É digno de nota também enfatizar o contraste entre visões de mundo adquiridas por modos de pensamento mutuamente excludentes onde alguns deles podem nos colocar, sem que o percebamos conscientemente, restrições à nossa capacidade de imaginação e consequente imagem do mundo.

Retornemos agora à nossa calçada forrada de folhas sêcas e nossa sugestão à dona-de-casa : a rigor, não é necessário intervenção alguma. Basta um pouco mais de paciência e aguardar que colisões involuntárias dos transeuntes em circulação e a ação dos ventos se encarreguem de deslocar a maior parte dessas folhas para os cantos dos muros ou próxima às guias. Aglomeradas, ficará então bem mais fácil recolhê-las e completar o serviço.

Conceitos problemáticos em evolução parte II: Causa e Acaso

ResearchBlogging.org“Ajudar as pessoas a compreender a evolução não é uma questão de acrescentar aos seus conhecimentos já existentes, mas ajudá-los a rever seus modelos anteriores do mundo para criar uma maneira inteiramente nova de ver” (Sinatra et al., 2008).

A epigrafe deste artigo nos remete a questão de como a mudança conceitual é importante durante o ensino e aprendizagem, sobretudo em relação ao ensino de ciências que, muitas vezes, necessita que adotemos formas de pensar e encarar o mundo que podem chocar-se com o senso comum e com algumas doutrinas muita arraigadas em nossa sociedade. Talvez o primeiro passo para lidar com esta questão seja reconhecer que os alunos já chegam com uma série de informações e conceitos, para não dizer preconceitos, que precisam ser reconhecidos e tratados de alguma maneira que seja condutiva ao aprendizado, mas, ao mesmo tempo, não seja hostil. Dando continuidade a este tema (iniciado em artigo anterior, Problem Concepts in Evolution Part I: Purpose and Design, e aqui comentado), Louise S. Mead e Eugene C. Scott, ambas no National Center for Science Education, estendem sua análise a dois outros conceitos que podem gerar grandes problemas para muitos alunos, no artigo Problem Concepts in Evolution Part II: Cause and Chance.

Neste artigo as autoras concentram sua atenção nos conceitos “chance” – ou mais especificamente “acaso” (em português) – e “causa”. Ambos conceitos têm usos bastante técnicos dentro das ciências que são relativamente não problemáticos, mas, como no caso de “propósito e design”, necessitam do esclarecimento de seu significado científico, em contraste a sua utilização na linguagem comum e religiosa. Tarefa fundamental para vencer a resistência de alunos mais religiosos e acostumados com o linguajar mais ortodoxo. Esta compreensão é importante porque os alunos precisam dominar os conceitos científicos de causalidade e acaso e usá-los de modo apropriado no contexto das explicações evolutivas. Veja a seguir, por exemplo:

“No Inventário do conceito de seleção natural (Anderson et al. 2002) pede-se aos alunos para realizar o seguinte exercício: determinar a “o que causou as populações de aves, com formas e tamanhos de bicos diferentes, tornarem-se espécies distintas distribuídas em várias ilhas” como “diferentes tipos de bico surgiram pela primeira vez nos tentilhões de Galápagos”, porque “as mudanças em bicos dos tentilhões ocorreram por acaso “, no sentido de que as mudanças ocorreram independente da intenção ou necessidade (grifo nosso). Os alunos precisam ter uma compreensão clara de como esses conceitos são utilizados no contexto da evolução.” (Mead e Scott, 2010)

Aristóteles, costumava separar as causas em quatro categorias:

1)Causas materiais;
2)Causas formais;
3)Causas efetivas;
4)Causas finais.

O primeiro tipo de causa, “causa material”, seria relacionada, hoje, a composição de uma entidade ou sistema em investigação. A segunda, entretanto, “a causa formal”, estaria mais próxima das relações entre as partes e suas interações, portanto, mais relacionada a organização de um sistema. Originalmente, este tipo de causação também poderia envolver a idéia de projeto, mas em um sentido mais abstrato, como a relação entre uma planta de engenharia e um edifício. O terceiro tipo de causa estaria ligado a causação compreendida em seu sentido mais direto, em que a causa provocaria um (ou mais) efeito(s). Este sentido é bem mais próximo a noção física de causação. E por fim, a quarta causa, a “causa final”, entendida tanto como o propósito/função de uma dada entidade ou sistema como a intenção por trás desta função.

Em ciências naturais, atualmente, o que se entende por causa é muito mais semelhante ao conceito de ‘causa eficiente’, para muitos, pelo menos desde Hobbes, o único tipo de causa realmente importante. Interações diretas entre partículas e átomos, que pode ser pensadas em termos de trocas de energia, estão no cerne do pensamento causal moderno. No último século, entretanto, algumas alterações nesta visão levaram a considerar a causação básica em seu sentido mais estatístico, principalmente, devido ao advento da mecânica quântica, já que muitos fenômenos fundamentais parecem simplesmente não ter uma causa individual discernível. No entanto, como já aludido, outros determinantes associados a origem, função e organização dos sistemas físicos e biológicos continuam sendo estudados pelos cientistas, mantendo uma certa proximidade a algumas das causas aristotélicas.

Porém, os problemas aparecem de verdade quando o termo “causa” é equiparado a uma finalidade por trás de algum fenômeno. No sentido de uma suposta motivação de um agente racional baseada em uma associação entre meios e fins estabelecida de modo intencional. Algo que só faz sentido para agentes cognitivos, como nós humanos, capazes de prever as conseqüências de determinadas relações e propriedades e, através delas, projetar um artefato para alguma função específica. Esta é uma das principais confusões que podem acontecer quando lidamos com causação em ciências.
Entretanto, mesmo deixando a ação de agentes cognitivos de lado, em um sentido mais restrito – o de “adequação funcional” (no sentido que buscamos elucidar com perguntas como “para que serve?”)- a função de um sistema tem um papel explicativo importante na biologia. Este é mais um motivo para estabelecer com cuidado as diferenças entre estes dois sentidos de “causa” que são associados a características funcionais de um sistema. Esta constatação nos remete a algumas distinções muito importantes discutidas na literatura de biologia teórica e filosofia da biologia moderna.

Causas: Últimas e próximas

Em biologia, a investigação da estrutura e função de sistemas biológicos pode envolver múltiplas instâncias de causação, já que existem muitos níveis de interações. A presença de sistemas homeostáticos e o homeodinâmicos de regulação – envolvendo laços de retro-alimentação positiva e negativa, limiares de ativação e muitos outros tipos de relações não-lineares – tornam mais complicada a compreensão destas relações causais.
Algumas destas interações aproximam-se do sentido de ‘causa material’, em que a composição ou estrutura de um sistema ou subsistema biológico é fundamental para a compreensão de seu funcionamento. Outras, no entanto, podem ser melhor compreendidas como semelhantes a idéia de ‘causa formal’, na qual as relações entre as partes e seu arranjo no todo (e, em particular, sua dinâmica coletiva) são mais salientes do que seus componentes ou as propriedades individuais deles.
Este ponto pode ser melhor compreendido ao analisarmos os sistemas de herança genética, as redes de controle de expressão gênica ou dinâmica tecidual e embrionária, que podem ser melhor compreendidas como sistemas dinâmicos não-lineares, como aqueles modelados pelas ciências da complexidade, análogos a uma série de outros fenômenos naturais auto-organizados da física e química. A utilização da teoria de redes é uma destas abordagens possíveis para explicar estes processos e compreender como eles possibilitam e causam vários fenômenos biológicos.

Por outro lado, as ‘causas finais’, em seu sentido clássico, foram consideradas becos sem saída teóricos e empíricos em biologia. O mesmo acontece em em outras ciências como a física e química. As exceções óbvias acontecem em domínios bem específicos de estudo, como a sociologia, psicologia, etologia e antropologia. Nestes campos de estudo a organização social e o comportamento dirigido são bem conhecidos, sendo vistos como oriundos de processos naturais. Porém, a agência sobrenatural – sobretudo quando pensamos em divindades super-poderosas e ultra-inteligentes – é deixada de lado, simplesmente, por não ser condutiva a investigação científica, não se enquadrando bem a análise experimental e investigação empírica de modo geral, a não ser de modo muito limitado e que, certamente, não seria aceito pela imensa maioria dos seguidores, e teólogos, das mais diversas religiões.

Para a biologia, a idéia que mais se aproxima da idéia de ‘causas finais’ é o que Ernst Mayr chamou de “causas últimas” que são propostas em contrapartida a idéia de “causas próximas”:

“Na maioria dos casos, os biólogos modernos reconhecem duas categorias de causas: próximas e últimas. Em biologia causas próximas demandam explicações que respondam a perguntas sobre um organismo durante a sua vida (Ariew, 2003), por exemplo, a dispersão do gorila macho pode ser causada por influências demográficas e comportamentais (al Stoinski et al. 2009) e, muitas vezes, têm relação com causas desenvolvimentais ou mecanicista. Por outro lado, causas últimas estão associados com as explicações evolutivas, a ” formação e mudança de programas genéticos” (Mayr, 1993), por exemplo, dados sugerem que a seleção divergente para a utilização de recursos alternativos é a causa última da radiação adaptativa “cruza-bicos” (Benkman 2003) .” (Mead and Scott, 2010)

O primeiro tipo de questão pede uma resposta que envolve a compreensão da fisiologia, ecologia ou demografia do ser vivo, ou da espécie, em questão. A segunda, entretanto, demanda uma explicação em termos de cenários evolutivos, e vai depender de evidências advindas da biologia comparativa, paleontologia, além das áreas de genética e ecologia evolutiva. Então, quando biólogos falam em “causas próximas” costumam estar a se referir às ‘causas eficientes’ (e, em certa medida, às ‘causas materiais’ e ‘formais, como discutido anteriormente em um contexto moderno). Estes tipos causais não estão em contradição entre si, constituindo apenas níveis diferentes de análise e explicação. Como se pode perceber, ambas questões estão ligadas historicamente, pelo simples fato de que as características funcionais de um organismos são resultantes de um processo de evolução, um processo histórico transgeracional de mudança hereditária, diversificação de linhagens e adequação destas populações aos seus diferentes contextos ecológicos. Muitas vezes as respostas, a determinadas perguntas em biologia, envolvem ambos tipos causais em investigados instanciados em diversos níveis diferentes:

“Por exemplo, porque é frequentemente o caso que os machos são vistosos pássaros e fêmeas são monótonas? Respondendo a questão em termos de causas próximas, um biólogo que discute as diferenças hormonais entre machos e fêmeas relacionadas às diferenças na expressão de alelos, limitados a um único sexo ou reprimidos ou promovidos em apenas um determinado sexo por elementos de regulação (Coyne et al. 2007). Respondendo a questão em termos de causas finais, um biólogo que refletisse sobre a história evolutiva da diferença de plumagem (Mayr, 1993): dada a existência de tais diferenças de base genética que produzem variações de cor em machos e fêmeas, a seleção natural e sexual, deriva e migração, operando através de muitas gerações, porque a população a mudar no que diz respeito a estes personagens.” (Mead e Scott, 2010)

Embora a maioria das pessoas não use termos como ‘causas próximas’ ou ‘causas finais’, o público leigo aceita bem a idéia de múltiplos níveis de causação:

“Digamos, uma arritmia, uma anormalidade no ritmo cardíaco, certamente [um leigo] não teria qualquer dificuldade em distinguir entre a afirmação de que uma parada cardíaca repentina foi devida (proximalmente) a um anomalia específica no sistema elétrico do coração, da afirmação de que a parada cardíaca foi devida (mais, em última instância) a um desequilíbrio de nutrientes, um choque elétrico, consumo de drogas ilegais, ou de uma doença cardíaca preexistente, como a doença de artéria coronária. Também não teriam qualquer dificuldade em compreender que as causas mais imediatas são compatíveis com mais causas profundas: […] poderia ser razoável dizer que a parada cardíaca foi causada por um problema específico e que também foi causada por uma doença cardíaca preexistente.” (Mead e Scott, 2010)

Entretanto, ainda assim existe uma diferença na compreensão que os leigos têm de cada um destes tipos causais. Por terem de ser inferidas, aquilo que se afirma sobre “causas profundas” torna-se mais incerto. Lidar com tais alegações e fenômenos, em nível mais geral, mais abstrato e teórico, pode ser bastante difícil. Por isso, pode tornar-se tentador para parte do público invocar causas finais de natureza divina nos casos em que causas naturais últimas são difíceis de compreender ou acessar, sobretudo quando existe a aparência de um suposto choque entre com pontos de vista religioso ou morais. Esta facilidade, em apelar para explicações intencionais, também pode ser explicada pela familiaridade que nós seres humanos tempos com explicações personalistas, baseadas em agentes intelectuais e suas intenções. Mead e Scott dão o seguinte exemplo:

“Por exemplo, as causas imediatas dos terremotos de 2010 no Haiti e Chile foram o movimento das placas tectônicas em que cada nação se assenta. A maioria dos americanos entendem que os continentes se moveram ao longo do tempo (National Science Board 2010) e entendem que a causa imediata para a devastação foi natural. Da mesma forma, as causas naturais podem ser facilmente encontradas para explicar a diferença entre o maior grau de devastação sofrido no Haiti do que no Chile: a proximidade do epicentro do terremoto da capital do Haiti, a densamente povoada Port-au-Prince, em comparação com o epicentro mais rural, no Chile; códigos de construção civil mais fracos no Haiti do que no Chile, e assim por diante. O evangelista Pat Robertson, no entanto, apesar de não negar as causas naturais do terremoto, explicou que a causa principal da devastação no Haiti era que seu povo “firmara um pacto com o diabo”, no século XVIII (Anônimo 2010), igualando a causa máxima do terremoto com algum nexo de causalidade do tipo de sobrenatural, aqui diabólico.” (Mead e Scott, 2010)

As autoras, nesta parte, tecem algumas considerações sobre o naturalismo metodológico (NM) e como os cientistas não conjecturam a atividade de uma entidade sobrenatural, divina ou diabólica, em suas explicações de fenômenos naturais. Este ponto precisa ser enfatizado de forma explicita. Isto é, explicações em termos de causas finais sobrenaturais em biologia não são empregadas, apenas explicações naturais, em particular, evolutivas, racionalmente acessíveis e passíveis de teste e acordo intersubjetivo.

Mead e Scott, lembram de que a maioria dos alunos são religiosos, por isso professores devem explicar, de forma clara, os vários tipos de explicações causais, enfatizando a distinção entre causas próximas e últimas, salientando que as hipóteses científicas devem ser testáveis e cognitivamente acessíveis. Apesar deste ser um conselho particularmente importante para o ambiente religiosamente polarizado dos EUA, creio que também se aplica aos nossos alunos. O fato das causas próximas em biologia serem freqüentemente observáveis, torna mais fácil para os alunos compreendê-las. O problema maior é mesmo com as causas últimas, tipicamente inferidas indiretamente. Portanto, é muito importante enfatizar que as hipóteses evolutivas são também testáveis, diferentemente de hipóteses sobrenaturais, baseadas em uma agente cujas motivações, habilidades e intenções não são cognoscíveis ou pelo menos não se espera obter acordo sobre elas:

“Hipóteses sobrenaturais podem incluir elementos empíricos que são testáveis, naturalmente: a hipótese de que Deus criou o Universo cerca de 6.000 anos atrás, por exemplo, é testável, tem sido testada, e acabou por ser falseada. Mas a hipótese mais ampla, que não só no que diz respeito a idade do universo, a de que Deus criou o universo não é afetada pela falha da hipótese específica que foi falseada. Portanto, apesar da tentação de pensar de outra forma, as explicações finais em ciência não pode invocar causas sobrenaturais.” (Mead e Scott, 2010)

A questão tocada pelas autoras é tremendamente importante e tem sido alvo de debate dentro das comunidades científicas e filosóficas. Muitos artigos recentes tem defendido que hipóteses sobrenaturalistas podem sim ser alvo de investigação científica em contextos mais amplos, podendo ser elas mesmas adequadamente tratadas pelo NM. A maioria destes autores defende inclusive que isso tem sido feito e culminou com o sucesso da visão de mundo naturalista. Um dos argumentos é de que as ciências postulam constantemente entidades não observáveis, mas que implicam em condições observáveis e mesmo acessíveis experimentalmente. Como a investigação científica tem sempre uma natureza conjectural e falível, muitos filósofos e cientistas não vem problema em testar, de forma indireta e provisória, determinados postulados sobrenaturalistas com implicações não-ambíguas detectáveis na natureza.

Dois artigos recentes escritos por Yonatan Fishman (2008) e por Maarten Boudry, Stefaan Blancke & Johan Braeckman (2010) defendem exatamente este ponto. Estas considerações são importantes porque alguns criacionistas acusam as ciências modernas, ao assumir o NM, de rejeitar a priori o sobrenatural. Ambos autores, rejeitam estas alegações e concluem que as explicações sobrenaturalistas deram lugar as explicações naturalistas por causa do fracasso das primeiras e o sucesso das últimas em permitir o avanço científico e o desenvolvimento de programas de pesquisa empiricamente orientados centrados no teste de hipóteses naturais e acessíveis intelectualmente ao acordo intersubjetivo. Outros autores, como Robert Pennock (2009) e Barbara Forrest (2000), discordam desta avaliação, mas também não aceitam a acusação de que o sobrenaturalismo é rejeitado a priori pelos cientistas, insistindo na distinção entre o NM e a versão metafísica ou filosófica do naturalismo (que não deixa espaço para o sobrenaturalismo), NF. Sendo, apenas o primeiro tipo de naturalismo, o metodológico, o único compromisso que precisa ser adotado, de fato, na investigação científica.

Em artigo recente, Pennock (2009) deixa claro o que está em jogo, se aproximando, em muitos sentidos, da posição de outros filósofos anteriormente citados reconhecendo a orientação pragmática do NM, mas divergindo em pontos importantes. Pennock reforça a idéia da importância e exeqüibilidade da demarcação entre ciência, não-ciência e pseudo-ciência, muito criticada nos últimos 30 anos. Muitas destas críticas advém de certos argumentos do filósofo Larry Laudan que Pennock esclarece e rebate (Para uma ótima introdução ao atual estado do debate sobre o problema da demarcação veja Science and Pseudo-Science). Ao analisarmos esta questão, entretanto, o que mais fica patente é que o acordo entre filósofos e cientistas, em relação as diferenças entre os programas científicos e as pseudociência, é muito maior do que muitos imaginam, com a imensa maioria deles concordando naquilo que consideram ciências e naquilo que consideram pseudociências. Este acordo se estende ao Design Inteligente cuja natureza pseudocientífica é difícil de disfarçar.

As diferenças ocorrem em um terreno mais abstrato. Certos filósofos e cientistas julgam que é possível separar as idéias de seus proponentes e estruturá-las de tal forma que possam ser operacionalizadas e testadas empiricamente. Porém, como afirma Pennock, esta concepção esbarra no fato de que a natureza conjectural, provisória e pragmática das ciências não é aceita pela imensa maioria dos proponentes do criacionismo e Design Inteligente. Eles não pretendem transformar suas crenças em hipóteses testáveis de forma independente, preferindo insistir em desafiar as ciências tradicionais, especialmente a biologia evolutiva. Existe, portanto, uma unilateralidade clara em relação as atitude criticas destes grupos, diferentemente da comunidade científica que depende da crítica metódica e constante de suas próprias idéias que esta seja constantemente feita em bases consensuais e sistemáticas. Algo semelhante ocorre em relação com as pessoas que, mesmo aceitando a evolução biológica, mantém uma fé sobrenaturalista pessoal. Estas pessoas, que incluem muitos cientistas, no caso específico de suas crenças religiosas pessoais, utilizam-se de outros tipos de estratégias de “conhecimento” para acessar e manter sua fé, separando os domínios do transcendental e do empiricamente testável.

Religiosos moderados e liberais, assim como os cientistas praticantes que mantém sua fé teísta, separam suas crenças pessoais do domínio de investigação científica, mantendo aqueles aspectos emocionais e contemplativos de suas crença (juntamente com aqueles aspectos metafísicos logicamente compatíveis com a visão de mundo científica) em um domínio à parte, sem submetê-los aos rigores da investigação científica, mas sem prejuízo para ambos. Esta possibilidade deve ficar clara para os alunos, sobretudo os de formação mais religiosa, de modo que eles não tenham medo de encarar a visão de mundo científica e suas estratégias de pesquisa e aquisição de conhecimento.

Esta questão torna-se ainda mais evidente quando percebemos a enfase que muitos sistemas teológicos dão a inacessibilidade e inefabilidade dos desígnios, métodos e procedimentos divinos. Este postura torna os fenômenos sobrenaturais, claramente, inadequados ao teste empírico. Seus proponentes não esperam operacionalizar conceitos, vendo esta atitude como uma “naturalização” de seus “objetos” de fé e contemplação que os privam de aspectos essenciais de sua fé. Então, sem um consenso metodológico e operacional mínimo que é requerido pelas ciências – mesmo que em principio seja possível delimitar certas idéias sobrenaturalistas e a partir de suas conseqüência contrastando-as com observações e experimentos – não é possível investigar cientificamente tal (suposto) domínio. Por isso, a atitude naturalista dos cientistas não é um preconceito a priori, mas uma posição pragmática. A melhor solução de compromisso em relação as demandas epistemológicas e metodológicas da investigação racional, compatível com vários posicionamentos metafísicos e ideológicos diferentes, como várias formas de teísmo, deísmo, agnosticismo, panteísmo e o ateísmo.

Na prática, então, o que acaba ocorrendo é uma separação entre os resultados científicos (e toda abordagem metódica, crítica e sistemática que está por trás destes das ciências), em si, da discussão sobre as implicações destes resultados nas nossas visões de mundo e nas nossas crenças metafísicas mais profundas. Este fato pode ser atestado ao nos darmos conta que a equiparação de ambos domínios envolveria a aceitação de compromissos epistêmicos e cognitivos que nem todos estão dispostos a seguir, estando na base de um debate teológico-filosófico mais amplo que não deve ser uma questão discutidas nas aulas de ciências. Em contrapartida, a tentativa de forçar a inclusão de crenças sobrenaturalistas no hall das explicações cientificamente aceitáveis, abre este tipo de abordagem ao escrutínio crítico e sistemático característico do NM. Os criacionistas e adeptos do Design Inteligente, entretanto, não respeitam estes compromissos e não estendem sua crítica a seus próprios pressupostos. E é exatamente, neste ponto, que Pennock (2009) insiste, e com toda razão, separando questões de princípio e lógicas das atitudes das comunidades que acreditam em determinadas questões metafísicas. Isto é, precisamos separar o NM das discussões metafísicas filosófico-teológicas mais amplas já que, do contrário, estaríamos assumindo a aceitação, por parte dos defensores do DI, do NM, o que exigiria dos mesmos a extensão desta abordagem ao próprio Designer, o que os criacionistas e teórico do DI evitam acima de tudo. Portanto, mesmo que seja possível testar postulados supostamente sobrenaturais em contextos restritos, em teoria, isso não acontece na
prática, como pode ser atestado pelas estratégias de ataque e distorção em que incidem, constantemente, os adeptos destas visões de mundo anti-científicas.

Barbara Forrest, em um artigo intitulado “The non-epistemology of intelligent design: its implications for public policy”, explora o descompromisso, dos advogados do Design Inteligente, em fornecer, ou mesmo desenvolver, uma epistemologia e, principalmente, uma metodologia alternativa às atitudes epistemológicas e ao NM característicos das ciências modernas. Esta incapacidade, ou indisposição – que não pode ser cobrada das crenças religiosas e metafísicas das pessoas comuns – torna-se inaceitável em uma suposta teoria ou programa de pesquisa que se propõe científico. Então, como os criacionistas tradicionais e adeptos do DI não aceitam o NM, muito menos propõem um programa meta-metodológico rival, e não possuem uma epistemologia alternativa à científica, portanto, não podem ser levados a sério enquanto ciência e este fato não depende de nenhum preconceito a priori.

O ponto importante, que vale ser repetido e enfatizado, é que o NM é uma orientação meta-metodológica a posteriori,
resultado do desenvolvimento histórico e pragmático das ciências. Ao longo do tempo as que explicações e estratégias investigativas, e de decisão e escolha de teorias e hipóteses, naturalistas foram as que conduziram aos melhores resultados, mesmo que continuem sendo constantemente reavaliadas. Por outro lado, as explicações baseadas em agentes super-poderosos, sobretudo aqueles com poderes e informações
ilimitadas, não foram suficientemente restritivas e rigorosas para que uma metodologia crítica pudesse ser desenvolvida a partir delas. Com o tempo este processo resultou na separação entre religião e filosofia/ciências e, mais tarde, entre a filosofia e as ciências, estas últimas tremendamente comprometidas com uma atitude epistemológica empirista e muito mais pragmática.

Mead e Scott finalizam seu artigo com a seguinte proposta:

“Convidamos os professores que ensinam evolução, ou qualquer outra área da ciência, para pensar cuidadosamente sobre como ensinar esses conceitos de “problema” da evolução: reconhecer que se trata de termos de arte na ciência que tem diversos significados fora da ciência e para definir e usá-los com cuidado e explicitamente, distinguindo os significados no contexto científico, sem denegrir significados extracientíficos. É possível preservar a integridade da ciência como uma forma naturalista de saber sobre a natureza de fato, a melhor epistemologia para este fim, enquanto ainda deixa-se aberta a porta para os estudantes religiosos para acomodar uma variedade de opiniões com a compreensão científica do mundo natural. Inadvertidamente, fecha-se a porta por não reconhecer os alunos significados extracientíficos associados aos os conceitos “problema”, derrotando o propósito da educação.” (Mead e Scott, 2010)

Muito tem sido publicado sobre mudança conceitual, sobre os viéses cognitivos humanos e sobre como estes relacionam-se entre si. Um exame conceitual mais apurado por parte dos educadores, provenientes do reconhecimento do aprendizado prévio e dos tipo de aparato conceitual com que os alunos chegam em sala de aula é fundamental.

Sinatra e colaboradores (2008) escreveram alguns destas fontes de coerção em nossos processos cognitivos, particularmente ativos no desenvolvimento infantil:

“Muita pesquisa tem sido feita desde Piaget, e as especificidades de sua teoria subjacente – o que uma criança pode aprender e quando – têm sido substancialmente revistas. Um legado, no entanto, é a sua intuição fundamental que as crianças são complexas, ativas e alunos extremamente sofisticados. Através de estudos elegantes e inteligentemente projetados, os psicólogos do desenvolvimento têm mostrado que, desde a infância, ainda possuímos várias extremamente poderosas “regras de ouro” que modelam o nosso pensamento (Wellman e Gelman 1998), e tornam o aprendizado sobre a evolução muito desafiador, pois a evolução não funciona de acordo com essas regras (Evans 2000, 2001). Estas ‘regras’, muitas vezes chamadas de “restrições cognitivas” ou “viéses cognitivos” são o que estamos chamando de ‘restrição essencialista, ‘restrição teleológica’ e ‘restrição de intencionalidade’.”[Sinatra et al. 2008]

1) Restrição essencialista: Essencialismo, neste contexto, é ilustrado pela tendência das crianças acreditarem que as coisas pertencem a categorias precisas, porque possuem uma natureza subjacente que não pode ser vista, mas que, no entanto, dá, as coisas desse tipo particular, a sua identidade básica. Além disso, para elas esta essência é imutável. Assim, um pássaro não pode se tornar um cão, e um rapaz não pode se tornar uma garota (Sinatra et al. 2008).

2) Restrição teleológica: Crianças também assumem intuitivamente (ou pelo menos são mais inclinadas a assumir) a posição de que as coisas são feitas para um propósito. Teleologia, um termo atribuído a Aristóteles, é a atribuição de design e propósito à natureza e à criações humanas, e pode ser contrastado com o naturalismo, a postura metodológica mais ampla em que a ciência está hoje calcada (Sinatra et al. 2008).

“As crianças são como jovem Aristóteles, elas tendem a acreditar que os animais têm olhos, porque eles precisam ver, e os pássaros têm asas, porque eles precisam voar. Tal pensamento persiste nos adultos, embora os adultos tendem a aplicar tais explicações, principalmente, aos seres vivos ou objetos complexos (como os computadores), enquanto as crianças, em idade escolar primária, podem ser ouvidas reivindicando que pedras são pontiagudas para se proteger de serem esmagadas por animais (Kelemen, 1999).” (Sinatra et al, 2008)

Este viés induz as crianças, e mesmo adultos, a crer que explicações baseadas em um projeto prévio sejam muito mais plausíveis, já que estão de acordo com sua visão de mundo, do que uma explicação evolucionista.

3) Restrição de intencionalidade: O raciocínio teleológico está intimamente relacionado com a restrição de intencionalidade. Envolvendo a suposição que os eventos não são somente propositais, mas que podem ser causados por um agente intencional, um agente com uma “mente própria” (Sinatra et al, 2008).

Esta tendenciosidade, em particular, associada a experiência prévia com ações deliberadas por seres humanos, torna o criacionismo tradicional ou Design inteligente muito atraentes às crianças, sendo visões de mundo facilmente adquiridas. Elas, não só se encaixam perfeitamente com as tendências desenvolvimentais das restrições de essencialismo e da teleologia, mas também reforçam estas tendências intuitivas cognitivas (Sinatra et al, 2008).

Portanto, uma definição cuidadosa dos termos em uso, associada a explicitação das diferenças entre os termos em seu uso técnico e leigo, torna-se o primeiro passo para introduzir as teorias científicas e campos de pesquisa que tendem a chocar-se com nossas concepções do senso comum.

Esta série de artigos, de autoria de Louise S. Mead e Eugene C. Scott, esboçam alguns desses problemas e apresentam algumas possibilidade de lidar com eles em sala de aula, buscando minimizar mal entendidos e evitar choques desnecessários. O trabalho de Sinatra e colaboradores (2008), também publicado na revista Evolution: Education Outreach, é outra ótima fonte de informação sobre o que as ciências cognitivas e a psicologia do desenvolvimentos têm nos mostrado sobre a natureza do aprendizado humano e como algumas tendências nos fazem cristalizar, com maior facilidade, determinados “aparatos interpretativos mentais”, permitindo reconhecê-los e lidar com eles de forma apropriada.

Conhecer estas restrições e tendenciosidades, além de estar ciente do conhecimento prévio dos aluno (principalmente de como eles interpretam determinados termos), são pré-requisitos indispensáveis aos educadores que se dispõem a, não só “passar conteúdo”, mas realmente ensinar. Produzindo, assim, mudanças conceituais que permitam aos alunos lidarem com conceitos científicos, fornecendo-lhes um ferramental cognitivo extremamente valioso, porém, sem desencorajá-los e aliená-los.


Referência:
Mead, L., & Scott, E. (2010). Problem Concepts in Evolution Part II: Cause and Chance Evolution: Education and Outreach, 3 (2), 261-264 DOI: 10.1007/s12052-010-0231-3

Referências Adicionais:
Sinatra, G., Brem, S., & Evans, E. (2008). Changing Minds? Implications of Conceptual Change for Teaching and Learning about Biological Evolution Evolution: Education and Outreach, 1 (2), 189-195 DOI: 10.1007/s12052-008-0037-8

Pennock, R. (2009). Can’t philosophers tell the difference between science and religion?: Demarcation revisited Synthese DOI: 10.1007/s11229-009-9547-3

Forrest, B. (2009). The non-epistemology of intelligent design: its implications for public policy Synthese DOI: 10.1007/s11229-009-9539-3

Boudry, M, and Braeckman, J. (2010). Immunizing strategies & epistemic defense mechanisms. Philosophia, 10.1007/s11406-010-9254-9.

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Fishman, Yonatan I. (2010) Can Science Test Supernatural Worldviews? Science & Education, Volume 18, Issue 6-7, pp. 813-837 DOI:10.1007/s11191-007-9108-4

Forrest, B Methodological Naturalism and Philosophical Naturalism: Clarifying the Connection, Philo 3 (Fall-Winter 2000): 7-29.

Pennock, Robert T (1997) Supernaturalist Explanations and the Prospects for a Theistic Science or “How do you know it was the lettuce?” Naturalism, Theism and the Scientific Enterprise” Conference – March 20-23, 1997.

Hansson, Sven Ove Science and Pseudo-Science (2008) Stanford Encyclopedia of Philosophy, SEP

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