A afirmação de que e Teoria Evolucionista transgride a Segunda Lei da Termodinâmica é falsa em todos os níveis (Brooks e Wiley, 1986), a própria vida pode ser considerada como uma manifestação da Segunda Lei (Schneider e Kay, 1994). Este texto vem como uma espécie de continuação do texto “Boltzmann e Darwin: a ligação entre átomos e seres vivos”. As teorias emergentes da termodinâmica que dizem respeito ao surgimento da vida e evolução prebiótica (Morowitz, 1968; Prigogine et al., 1972; Black, 1978; Wicken, 1980) são exemplos de conciliação entre a evolução biológica e princípios de dirigibilidade termodinâmica. A analogia entre a Segunda Lei e processos evolutivos que são dirigidos por falta de recursos disponíveis (pressões alimentares, por exemplo) e sua modelagem matemática foram propostas em 1992 por Lloyd Demetrius.
A Segunda Lei aplica-se a sistemas submetidos a condições adiabáticas e descreve um aumento na complexidade geométrica do sistema conforme um sistema caminha de um estado estacionário de equilíbrio para outro. O Teorema da Direcionalidade em dinâmica evolutiva refere-se a populações sujeitas a limitações de recursos naturais e descreve um aumento na complexidade dinâmica que caminha de um estado de não-equilíbrio estacionário para outro. Erwin Schrödinger escreveu em seu livro “O que é Vida?” (1944) que a vida podia ser compreendida como dois processos fundamentais: um, “ordem para ordem”, outro, “ordem para desordem”. Ele notou que no caso de “ordem para ordem” as qualidades genes dos pais eram passados para a cria, determinando assim as características da prole. As respostas sobre as características deste processo viriam com a descoberta da estrutura do DNA (Watson e Crick, 1953).
A premissa de “ordem para desordem” foi a tentativa de Schrödinger de ligar Termodinâmica e Biologia, observando o princípio da máxima entropia e notando a aparente contradição com sistemas altamente organizados, os seres vivos. Ele resolveu este dilema olhando para a Termodinâmica de Não-equilíbrio.
Os ecossistemas, de ponto de vista termodinâmico, são vistos como estruturas e processos em não-equilíbrio abertos ao fluxo de matéria e energia. Isto sugere que conforme ecossistemas crescem e se desenvolvem, a dissipação energética total deve crescer e tal é feito pelo desenvolvimento de estruturas e processos para que esta degradação energética ocorra (Schneider e Kay, 1994). Espécies que sobrevivem em ecossistemas servem como funis energéticos que em sua própria produção e reprodução contribuem para processos autocatalíticos que aumentam a dissipação total do ecossistema.
A macroevolução é um processo dinâmico de não-equilíbrio. O padrão geral de como se processa sugere que é resultado de um processo crítico auto-organizado (Bak et al., 1987) e esta conjectura é consistente com o registro fóssil (Solé e Bascompte, 1996). Um ambiente no qual espécies (ou outras unidades taxonômicas) interagem em um ecossistema complexo foi classicamente baseado na teoria ecológica clássica das Equações de Lotka-Volterra (May, 1974).
Até aqui dois assuntos foram abordados: a Termodinâmica da Evolução e Complexidade (sob o ponto de vista da Termodinâmica), este último ligado à biodiversidade e ecossistemas, cujo pesquisador mais destacado é Ilya Prigogine. Como estes assuntos desenvolvem-se de maneira intensa (Wicken, 1983) é mais adequado que sejam tratados um de cada vez. Neste texto o foco é a Complexidade, então tratemos dela.
A análise da complexidade começa com a análise da natureza caótica de biossistemas. É necessário então começarmos com uma descrição dos requerimentos necessários para um sistema ser considerado caótico. Tendo estas informações, a pergunta que naturalmente surge é como a aparente ordem percebida na natureza pode vir de um comportamento caótico. De forma mais simples: a ordem pode vir do caos? Os próprios conceitos que suportam a teoria da complexidade estariam errados se (i) violassem as Leis da Termodinâmica (o que não é o caso); (ii) fossem baseados em uma natureza equivocada dos sistemas estudados. É recorrente no desenvolvimento da Termodinâmica do Evolucionismo que aparentes contradições sejam respondidas, fazendo assim com que a robustez dela seja evidenciada de forma incisiva (Demetrius e Manke, 1995).
Não existe definição matemática universalmente aceita para o caos (Hasselblatt, 2003). Apesar disso, Hasselblatt define as condições para que um sistema seja considerado caótico, que são: (i) deve ser sensível às condições iniciais; (ii) deve ser topologicamente misturado; (iii) suas órbitas periódicas devem ser densas. Antes de avançar neste assunto é necessário que a definição precisa do que é um atrator seja feita. Para tanto é necessário que seja introduzido o conceito de estado fásico, introduzido em 1901 por Willard Gibbs (1839-1903). Compreende-se por tal conceito um espaço no qual todos os estados possíveis do sistema estão representados, com cada estado possível do sistema correspondendo a um único ponto no espaço fásico.
Quando um espaço fásico tem em sua plotagem as variáveis de momentum e posição como função do tempo este é geralmente denominado diagrama de fase, que é utilizado em ciências físicas. Modelos de equilíbrios dinâmicos são normalmente representados usando espaços fásicos nos quais o tamanho de uma população é plotado em função do tamanho de uma segunda e uma terceira populações, sem que o eixo do tempo seja explicitamente representado. Desta forma, neste espaço o equilíbrio consiste em um só ponto.
Um atrator é um conjunto de pontos no espaço fásico que representa a dinâmica de uma população. Atratores de sistemas caóticos determinísticos são geralmente atratores estranhos. Este nome vem porque estes atratores são torcidos e “estranhos”, significando que eles têm dimensão fractal. Um é caótico se, e apenas se, tiver pelo menos um dos expoentes de Lyapunov é positivo (Ruelle, 1989). Estes expoentes são a medida da divergência exponencial de um sistema. A definição dos expoentes de Lyapunov, e de caos podem ser entendidas para definir sistemas barulhentos (Crutchfield, et al., 1982) de vital importância da descrição de populações. Sob a definição dos expoentes de Lyapunov, conseguimos saber se uma parte endógena de um sistema estocástico/determinístico amplifica ou suprime ao longo do tempo os efeitos de perturbações exógenas. De fato a estocasticidade (caráter aleatório) pode mudar um sistema de um regime não-caótico para um regime caótico e vice-versa, fato demonstrado por alguns sistemas epidemiológicos (Rand e Wilson, 1991).
Esta última sentença traz consigo o pensamento da pergunta feita anteriormente: a ordem pode vir do caos? Este é um pensamento válido neste ponto da discussão. A contestação da própria existência da casualidade tem como objetivo invalidar o Evolucionismo. Esta contestação é baseada apenas em erros conceituais ou de entendimento das Leis da Evolução e da Termodinâmica (Collier, 1986). Em sistemas celulares e baseados na lógica Booleana, a demonstração da casualidade que molda sistemas de vários componentes acoplados foi dada por Stuart Kauffman (Kauffman, 1993). Em grandes ecossistemas, tal possibilidade fica evidenciada por Claudia Pahl-Wostl (Pahl-Wostl, 1995). Estes dois livros explicam a relação entre caos e ordem, e o entrelaçamento entre os dois. Ambos são baseados no desenvolvimento da Teoria da Evolução pela óptica da Termodinâmica, dois trabalhos que também demonstram de maneira explícita a não-discrepância entre Termodinâmica e Evolucionismo. Uma citação de Wheeler é conveniente para demonstrar como é válida a idéia de ordem emergindo do caos:
“Na minha visão, tudo na física algum dia seguirá os padrões da termodinâmica e da mecânica estatística, da regularidade baseada no caos, lei sem lei. Especificamente, eu acredito que tudo é construído confusamente nos resultados de bilhões e bilhões de fenômenos quânticos elementares, e que as leis e condições iniciais da física surgem deste caos pela ação de um princípio regulador, a descoberta e a formulação adequada deste é uma tarefa primária.”
J. A. Wheeler em: “Am. J. Phys. 51(5) (1983) 398”.
Confirmando as Teorias de Boltzmann, sobre o princípio da Irreversibilidade Mecânica e suportando o trabalho de Prigogine, a observação de que leis rígidas do universo somente são válidas no limite de um número de partículas (neste caso o estudo foi feito por um astrofísico) tendendo ao infinito, ou seja, em um número macroscópico de partículas (por exemplo, uma colher cheia de água). Isto equivale a dizer que as leis rígidas que descrevem o universo têm uma base de construção estocástica (Sidhart, 1998).
Abrindo um parêntese nesta discussão, o conceito de casualidade está presente no desenvolvimento computacional também. O exemplo mais destacado desta afirmação é o Método Computacional Monte Carlo, que é utilizado extensamente para calcular propriedades termodinâmicas não-dependentes do tempo, em sistemas com um número muito grande de partículas, este método produz resultados equivalentes aos da dinâmica molecular, cujos dados de cada partícula do sistema são calculados em uma seqüência definida (Jorgensen e Tirado-Rives, 1996). O método Monte Carlo também é utilizado para simular fenômenos não-lineares em populações de ecossistemas (Solé e Valls, 1992) (fechando parêntese).
Existem evidências de que sistemas naturais se comportem de maneira caótica?
A resposta é sim. E alguns casos são mostrados a seguir: uma destas evidências é observada na dinâmica populacional de roedores, que vem da análise de séries temporais não-lineares (Turchin, 1993). Outra evidência deste comportamento é a observada na ecologia de plantas, que se processa em ciclos e de maneira caótica (Stone e Ezrati, 1996). Assuntos como o declínio da vegetação do Saara, e o colapso desta região em um deserto e pico recifes de corais caribenhos estudados em 1999 e 2000 (McCook, 1999; Nystrom, et al., 2000) são explicados por modelos caóticos (Scheffer e Carpenter, 2003).
Existem duas hipóteses de como encarar um ecossistema termodinamicamente e sua ligação com o evolucionismo (Schenider e Kay, 1994): (i) ecossistemas vão organizar-se de acordo com a Segunda Lei, aumentando a degradação da exergia (máximo trabalho útil durante um processo termodinâmico, que leva o sistema ao equilíbrio com um reservatório de calor (Pierre, 1998)) em energia que vem para o sistema. O corolário disso é que os ciclos de fluxo de material tendem a ser fechados. Isto é necessário para que um suprimento contínuo de material seja assegurado para processos de degradação de energia; (ii) esta surge como uma conseqüência da primeira: os ecossistemas vão evoluir para adaptar-se de forma a aumentar o potencial de sobrevivência do ecossistema e seus componentes, o que garante a degradação contínua da energia que vem para o sistema. Este processo está sujeito à quaisquer condições evolutivas ou de adaptação que melhorem as chances de sobrevivência, mas só é (em termos energéticos) viável se o seu efeito em rede aumentar a capacidade de degradação energética do ecossistema.
Observando ecossistemas, ambas as hipóteses (ou a hipótese e sua conseqüência) mostram ser consistentes, o que suporta mais uma vez a Teoria Evolucionista, o que aparece de novo é a lista de atributos ecológicos, para que um ecossistema amadureça, que fica expandida em relação à proposta por Odum em 1969. Os modelos baseados em atratores para ecossistemas são mais um avanço científico da Biologia Teórica e confirmam a Teoria Evolutiva, pois mais que modelos e hipóteses existem evidências acerca da natureza caótica de populações diversas que interagem entre si e com fatores abióticos, alguns pouquíssimos exemplos foram citados neste texto.
Brooks, Daniel R., Wiley, e. O., Evolution as Entropy: Toward a Unified Theory of Biology, 1986, The University of Chicago Press.
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May, R. (1974). Biological Populations with Nonoverlapping Generations: Stable Points, Stable Cycles, and Chaos Science, 186 (4164), 645-647 DOI: 10.1126/science.186.4164.645
“Imagine um planeta com uma atmosfera de oxigênio em falta, a sua paisagem salpicada de crateras vulcânicas, oceanos cáustica, e bacias de água salgada. Noentanto, surpreendentemente, os oceanos e salmouras fervilham com a vida, embora muito diferente de nossos próprios microrganismos que respiram arsênio. Essa descrição pode descrever a Terra durante o começo do éon Arqueano”
Microorganismos diversos metabolizam ambas as formas orgânicas e inorgânicas de arsênio, e suas atividades são parte de um ciclo biogeoquímico bastante robusto. As pesquisas sobre a metabolização de arsênio, principalmente, como as bactérias usam arsenato como aceptor final de elétrons, acabaram por revelar todo uma nova ecologia bioquímica nas quais forma descobertas novas vias respiratórias e fotossintéticas.
O arsênio é um composto metalóides dos mais conhecidos, principalmente, como um veneno tanto na vida como na ficção. Entretanto, apesar de bastante venenoso para a maioria dos seres vivos – especialmente as formas trivalentes [As(III)] – faz parte do metabolismo de muitos organismos. Sua toxicidade depende tanto da sua forma química, quer seja ela orgânica ou inorgânica, quanto de seu estado de oxidação. O arsênio ocorre em quatro estados de oxidação, arsenato [As (V)], arsenito [As (III)], elementar [As(0)], e arsenieto [As (-III)], sendo que o As(V) e As(III) são as mais formas abundantes na natureza, exibindo alta solubilidade em água, com H2AsO4e HAsO4,tipicamente encontradas em ambientes oxidados, enquanto H3AsO3e H2AsO3são mais típicas de ambientes anóxicos.
Em post anterior comentei sobre às aplicações da teoria da informação de Shannon na biologia molecular e aludi algumas de suas implicações na biologia evolutiva. Thomas D. Schneider um biólogo teórico especializado na teoria de Shannon e na sua extensão para a biologia desenvolveu uma plataforma capaz de simular os processos de replicação, mutação e seleção, às bases da evolução adaptativa, e quantificar como a informação, rigorosamente definida e quantificada por uma métrica teoricamente sólida e adequada aos sistemas biomoleculares, varia durante o processo de evolução, mostrando, de forma simples e elegante, como esta quantidade cresce através da seleção natural de mutações aleatórias.
O programa Ev e sua versão em java Evj é a plataforma desenvolvida e utilizada por Schneider e seu grupo no NCI. No abstract do artigo sobre o Ev, Schneider resume a situação:
Como os sistemas genéticos adquirem informação por processos evolutivos? Responder a esta pergunta exige precisamente uma medida quantitativa robusta da informação. Felizmente, há 50 anos, Claude Shannon definiu a informação como uma diminuição na incerteza de um receptor. Para sistemas moleculares, a incerteza está intimamente relacionada à entropia e, portanto, tem ligações claras com a Segunda Lei da Termodinâmica. Estes aspectos da teoria da informação têm permitido o desenvolvimento de um método simples e prático de medir a informação em sistemas de controle genético. Aqui, este método é usado para observar o ganho de informação nos sítios de ligação para “proteína” artificial em uma simulação de computador da evolução. A simulação começa com zero de informação e, como nos sistemas genético naturais, a informação medida nos sítios de ligação totalmente evoluído é próxima ao necessário para localizar os locais no genoma. A transição é rápida, demonstrando que o ganho de informações pode ocorrer por equilíbrio pontuado.(Schneider, 2000)
A captura acima ilustra o applet em Java escrito por Paul C. Anagnostopoulos do programa Ev.
Neste artigo, Schneider utiliza a abordagem matemática já bem estabelecida da teoria da informação para medir o conteúdo de informação de sítios de ligação de nucleotídeos e para rastrear as mudanças nesta quantidade como forma de avaliar o grau de evolução destes sítios de ligação.
Como já explicado em post anterior, as medidas de Schneider envolvem a comparação entre duas quantidades a Rsequência e Rfrequência que mostram que existe uma conexão sutil entre o padrão dos sítios de ligação, o tamanho do genoma e o número de sítios. Em relação ao potencial de mudanças nos locais de ligação, o tamanho do genoma completo é aproximadamente fixo durante longos períodos de tempo, já que mesmo que dobre de tamanho (mantendo o número de sítios constantes), a Rfrequência só iria mudar um pouco, por isso a medida é completamente insensível. Da mesma forma, o número de sítios é aproximadamente fixo por causa das funções fisiológicas que precisam ser controlados pelo reconhecedor. Então a Rfrequência é essencialmente fixa durante longos períodos de evolução. Por outro lado, Rseqüencia pode mudar rapidamente e poderá ter qualquer valor, uma vez que depende dos detalhes de como o reconhecedor interage com os sítios de ligação nas cadeias de ácidos nucleicos e, estes contatos pequenos numerosos, podem sofrer rapidamente mutações. Então a pergunta passa a ser como é que Rseqüencia vem a ser igual a Rfrequência? É preciso que Rsequência possa começar do zero e evoluir até Rfreqüência, ou seja, a informação necessária para o reconhecimento dos sítios deve ser, portanto, capaz de evoluir a partir do zero.
Certas pessoas parecem ser o centro em que orbitam muitos outros indivíduos, funcionando como hubs de uma vasta rede de conexões e contatos sociais (Não! Decidamente, não sou uma delas). Quem sabe, por sua abertura ao diálogo, gostos variados e uma incrível paciência como os outros, estas pessoas conseguem interagir com uma gama muito variada de personalidades. Alguns desses indivíduos talvez mesmo nem freqüentassem os mesmos locais, mas graças aos “hubs sociais” acabam por estarem indiretamente conectados. Um indivíduo assim, certamente, tem uma relevância grande para a compreensão das redes sociais e da própria dinâmica colaborativa humana. Nos ajudando mesmo a compreendermos a evolução cultural de nossa própria espécie.
Porém, não é sobre isso o assunto deste post. Aqui o interesse são os bons e velhos genes e seus produtos primários principais, as proteínas. A semelhança de pessoas, genes e proteínas também formam complicadas redes de interação que têm sido alvo de cada vez maior atenção dos cientistas.
Na cola dos projetos genoma, genoma funcional e transcriptoma (que buscavam já entender as funções do amplo repertório de genes ao estudar sua expressão diferencial em várias situações e a companhia em que seus produtos, como mRNAs, se encontravam) surgiram vários projetos que procuram elucidar a dinâmica de interação direta ou indireta dos produtos gênicos. Essas redes podem ter propriedades muito semelhantes as de redes sociais e é aí que está a analogia. Entender como estes complexos sistemas e subsistemas imbricados de organização modular funcionam, inclusive ao analisar as similaridades e diferenças que aproximam e diferenciam os vários tipos de redes, são muito importantes para o entendimento da evolução biológica em seu nível intra-celular*.
Por um lado complicando, mas por outro ajudando a elucidar a questão, além da origem in locu dos genes que compõem as redes e módulos de interação (por exemplo surgindo de duplicação gênica e por mutações em regiões cis-regulatórias), novos genes podem ser adquiridos completos através de um processo chamado de transferência lateral de genes (TLG), fenômeno particularmente importante em microorganismos unicelulares, principalmente, bactérias.
A aquisição lateral de genes é um fator importante na evolução dos genomas microbianos. Questões de amplo interesse escondem-se por trás deste processo, como a aquisição e transferência de resistência à antimicrobianos, o que serve como um lembrete sobre a importância da biologia evolutiva que nos força a reconhecer que a evolução biológica é algo que nos impacta diretamente e, portanto, deve ser sempre levada a sério. A evolução, portanto, não é apenas algo de (remoto) interesse acadêmico ou uma constatação da miríade de mecanismos e processos naturais que nos fascinam, mas é a base de toda a biologia moderna e precisa ser reconhecida como tal.
Porém como em qualquer campo científico saudável e em pleno desenvolvimento, existem muitas questões que ainda não compreendemos e até algumas que podemos ter compreendido da forma errada. Por exemplo, no caso de genes adquiridos por transferência lateral, para que possam ser fixados (e co-evoluir com resto do genes e do organismo como um todo), estes genes exógenos precisam ser integrados aos genomas dos organismos receptores. Os fragmentos de DNA que correspondem a estes genes e seus produtos precisam funcionar em concordância com os diferentes componentes que formam os módulos genéticos do organismo que passou a hospedá-los. Isso, a principio, representa um grande desafio evolutivo, principalmente, por que estes genes novos evoluíram sob restrições funcionais típicas de outras espécies, às vezes muito diferentes da atual espécie, ou seja, é como se eles tivessem caído de paraquedas neles.
Voltando à analogia com os indivíduos que funcionam como hubs sociais e comparando-os com pessoas mais “comuns”, o que poderíamos esperar de cada tipo de indivíduo caso este tivesse que se mudar para um ambiente completamente diferente sem aviso prévio. Claro, por causa das faculdades intelectuais humanas a analogia aqui parece um tanto forçada, já que esperaríamos tipos de obstáculos (e possibilidades de soluções) bem diferentes em cada caso. Porém, em um nível mais abstrato, podemos imaginar que essas mais pessoas populares teriam certas características e habilidade que as tornassem (em média) mais propensas a formar contatos e estabelecer relações. É aqui que a analogia parece se quebrar. O consenso em relação a situação análoga em evolução de redes genéticas e protéicas parece levar à conclusões diferentes. Genes que na espécie pré-transferência faziam parte de módulos complexos não deveriam ser capazes de manter a sua funcionalidade quando transferidos isoladamente para novas espécies. Desta maneira, é amplamente aceito que a transferência lateral de genes deve favorecer proteínas com apenas algumas interações proteína-proteína, o que parece (pelo menos na minha opinião) destoar da situação envolvendo seres humanos. Porém, talvez a analogia não seja tão inapropriada assim, ainda que deva sempre inspirar certos cuidados.
A propensão de proteínas para participar de interações protéicas pode ser avaliada através de métodos computacionais que identificam sítios de interação da proteína putativa. Os chamados interatomas são as grandes redes através das quais os produtos protéicos dos genes, as proteínas, se co-modulam ao interagir de forma direta através de seus domínios de contato. Interações fracas, como as forças de van der Waals, interações eletrostáticas, ligações de hidrogênio, interações hidrofóbicas e a complementaridade geométrica permitem que proteínas formem complexos temporários essenciais na sinalização e comunicação intra-celular e célula-célula. Além do interatoma, o metaboloma – a rede de interação em que estão envolvidas pequenas moléculas (como metabólitos e segundos mensageiros, portanto que intermedeiam a interação indireta entre os produtos gênicos) – é a outra parte da rede de conexões responsável da miríade de processos biológicos por trás do funcionamento de uma célula.
Gophna e Ofran (2011) relatam que as proteínas adquiridas putativamente (i.e. consideradas como) por transferência lateral contém muito mais sítios de interação do que as proteínas nativas, o que indicaria que genes que codificam proteínas com múltiplas interações proteína-proteína poderiam, de fato, ser mais propensos a serem bem sucedidamente transferidos do que genes com poucas interações:
A sugestão por parte dos autores do artigo, portanto é que “… essas proteínas [as que interagiam com múltiplas proteínas na espécie nas quais se originou e que possuem muitos domínios de interação] têm uma maior chance de formar novas interações em novas espécies, assim, integrando-se aos módulos existentes”. Como os próprios autores afirma em seu resumo, “Estes resultados revelam princípios básicos para a incorporação de novos genes em sistemas existentes.“
“Lateral acquisition of genes is affected by the friendliness of their products” foi publicado no final de 2010 na conhecida e respeitada PNAS e, como o título deixa claro, reúne argumentos e apresenta resultados que sugerem que um excesso de conectividade, ao contrário do que se costuma imaginar, parece favorecer os genes lateralmente transferidos em seus novos lares aumentando a chance que se integrem em alguma das diversas redes de interação ali existentes, tornando-os mais bem sucedidos em integrar-se ao novo genoma.
Como vimos, a transferência de um único gene apresenta um enigma evolutivo. Desta forma, imagina-se que os genes com menos interações são mais susceptíveis de serem transferidos para (e mantidos) em uma espécie nova. Esse postulado é conhecido como a hipótese de complexidade. O que ocorre é que genes que pertencem a um módulo complexo podem não ser funcionais quando transferidos isoladamente para uma nova espécie.
Estudos sobre a importância da interação proteína-proteína (PPI – protein-protein interaction) oferecem realmente algum apoio para o racional usado como base da hipótese de complexidade . Os autores do artigo ressaltam que tem sido demonstrado que as proteínas codificadas por genes que têm sido mais freqüentemente transferidas durante a evolução tendem a fazer menos interações do que outras proteínas (5).
Contudo, como chamam a atenção Gophna e Ofran, as evidências utilizadas em suporte a hipótese da complexidade baseia-se na análise das PPIs dos genes transferidos dentro de suas espécies atuais, ou seja, pós-transferência, mas não a partir do número de PPI no organismo doador, pré-transferência. Poucas PPIs atualmente pode implicar, realmente, um número pequeno de PPI no hospedeiro original (o que corroboraria a hipótese de que proteínas com muitas interações são menos propensos a ser transferidos e acumuladas), mas, alternativamente, este mesmo resultado pode apenas sugerir que genes adquiridos por TLG tiveram menos tempo para desenvolver as interações com as proteínas em seu novo hospedeiro em comparação com aqueles verticalmente adquiridos, via descendência direta. Assim, essa análise pós-transferência não fornecem evidências conclusivas quanto à relação entre o PPI e TLG.
Avaliar sistematicamente as rede PPI pré-transferência não parece ser uma possibilidade factível, pelo menos, na imensa maioria dos casos, já que, em geral, não há registros claros de que espécie seria a hospedeira original, e muito menos dados realmente abrangentes para as redes PPI.
Porém é possível driblar esta situação, através do número de supostos sítios de ligação protéicos existentes na superfície de uma proteína. Proteínas com mais sítios de ligação tendem a interagir com mais proteínas (ou seja, têm um grau maior de nós nas redes PPI). Esta idéia baseia-se no fato que tem sido evidenciado de que os resíduos que fazem parte de supostas regiões de ligação às proteínas podem ser identificados a priori através da estrutura e até mesmo da seqüência. [Aqui a bioinformática, através da análise e alinhamento múltiplo e comparação de seqüencias e a bioinformática estrutural ocupam um papel central.] Desta forma, é possível avaliar o potencial de interação de uma proteína, ou melhor dizendo de “grudabilidade”, diretamente, através de sua seqüência de aminoácidos.
É exatamente isso que os autores deste trabalho fazem ao se utilizarem dos “potenciais de interação”, na tentativa de descobrir a capacidade de interação real, ou “amistosidade” ou “carisma”, de genes lateralmente adquiridos:
Estes resultados indicam que o ISIS-RIP previsto de uma proteína pode ser visto como uma medida de rigidez da proteína, ou simpatia. Esta medida é mais elevado para proteínas com um número maior de parceiros de interação.
A relação entre as previsões para o potencial de interação relativa (RIP) de uma proteína e do número de proteínas com o qual a proteína que interage podem ser vistos na figura acima e a direita. O RIP de uma proteína representa a porcentagem de seus resíduos que são previstas para ser sítios de interação, e é definida pela equação:ondeNPPé o número de resíduos previstos para ser parte de um sítio PPI e L é o comprimento da proteína.
O estudo das superfícies de interação das proteínas e de suas seqüencias através de uma série de ferramentas que analisam as propriedades comuns de complexos protéicos conhecidos e disponibilizados em grandes bancos de dados tem permitido prever generalizar os principais resíduos envolvidos nas PPIs. Muitos programas utilizando-se de redes neurais e sistemas de aprendizado de máquina, como o ISIS usado neste artigo permitem este tipo de estudo.
O ISIS é uma ferramenta que anota os resíduos que supostamente ligam outras proteínas para cada seqüência da proteína. O método foi desenvolvido usando-se interfaces de complexos temporários proteína-proteína conhecidas experimentalmente cujas estruturas 3D já haviam sido resolvidas pro métodos como difração de raio-X e NMR, mas, apesar disso, as informações 3D não são explicitamente utilizadas. As características estruturais previstas são combinadas com informações evolutivas.
Este programa compara para cada resíduo de aminoácido as características físico-químicas em seu ambiente, suas características estruturais preditas (acessibilidade ao solvente, estrutura secundária da proteína etc) e seu perfil evolutivo, com os de resíduos localizados em sítios PPI já bem conhecidos. Assim, o ISIS determina se um determinado resíduo é um sítio PPI em potencial. As melhores previsões utilizando-se deste método atingiu mais 90% de precisão em um experimento de validação cruzada. A partir desses resultados, os autores da suíte computacional concluem que apesar da grande diversidade na natureza das interações proteína-proteína, todos eles compartilham princípios básicos comuns e que esses princípios são identificáveis a partir da seqüência sozinho.
Em artigos publicados nos periódicos Bioinfomatics e Plos Computational biology o sistema foi testado e validado. A robustez estatística e a falta de viés (em relação as proteínas de uma determinada espécie, reino ou localização subcelular) do ISIS foi validada através de análise em grande escala. As figuras ao lado a direita e acima esquerda retiradas ilustram as superfícies de interação putativas e o funcionamento e eficácia do ISIS em resgatar os resíduos que são parte delas.
Após estabelecer que os RPIs são bons indicadores para os PPIs, Gophna e Ofran, passaram a investigar a correlação entre o genes mais comumente lateralmente transferidos e a RPI. Para tanto, os autores utilizaram-se do chamado PDS (philogenetic discordance sequence) um índice que a grosso modo mede o quão discordante é a proteína em relação ao resto das proteínas presentes no genoma. Esta métrica parte do princípio que quanto menor o número de proteínas homólogas, em uma dada proteína em um dado genoma, maior a chance dela ter se originado por transferência lateral de um outro genoma de um outro organismo. Os resultados são dispostos na figura logo abaixo.
A interpretação mais direta dos resultado parece, contudo, corroborar a hipótese da complexidade pois os genes que alcança m escores PDS mais altos parecem ser aqueles menos frequentemente transferidos. Isto é, proteínas que são menos afetadas por TLG possuem seqüencias com RPIs maiores, portanto, tem maior “amistosidade” ou “adesividade”. Maior do que as das seqüencias mais afetadas pela transferência lateral.
Contudo, devemos lembrar que estes resultados ainda dizem respeito às proteínas que possivelmente sofreram TLG e já estão em seus novos hospedeiros (pós-transferência). Ainda é preciso acessar este “potencial de amistosidade” em seqüencias antes delas serem transferidas. É importante termos este tipo de cuidado por que uma das possibilidades é que após a transferência, como nem todas as superfícies putativas de interação se ajustam ao novo interatoma, muitas delas acabam sucumbindo a “erosão mutacional”. Sem as restrições evolutivas associadas Porém, como avaliar o RPI em proteínas antes que elas tenham sido transferidas?
Aqui entra a inventividade dos autores. Em ciência é importante saber o que comparar e quando essa comparação não for possível, descobrir algo que possa servir de substituto e possa ser alvo de contraste.
Duas foram as estratégias que os autores lançaram mão para resolver esse problema. A primeira envolveu organizar os dados e efetuar as comparações levando-se em conta o tempo que os eventos de transferência deveriam ter ocorrido. Ao dividir as seqüencias em adquiridas recentemente, mais antigamente e não adquiridas via TLG foi possível verificar que as seqüencias recentemente transferidas -àquelas que não teriam tido tempo de acumular mutações que erodiriam as superfícies putativas de interação proteína-proteína – apresentavam maiores valores de RPI.
As comparações obviamente tiveram que ser controladas para o tamanho das seqüencias já que, de um lado, a maioria dos genes que acreditamos terem sofrido TLG têm tamanho menor e, por outro lado, seqüencias muito curtas sucumbiriam rapidamente a erosão mutacional.
A outra estratégia foi procurar genes homólogos aos transferidos em outras bactérias distantemente aparentadas a Escherichia coli, a espécie utilizada no estudo, e comparar os RPIs destes outros microorganismos (do grupo de ortólogos) com os das proteínas equivalentes em E. coli.
O resultado mais interessante é que 9 entre 10 das proteínas testadas possuem superfícies PPIs significativamente menores em E. coli do que o esperado para aquela família de genes, como fica claro pela comparação com outras bactérias (veja a figura abaixo). Além disso, ao se alinharem as seqüencias, as regiões e o número de resíduos potencialmente associados as PPIs, ou seja que participam em interações entre proteínas, são menores (e contam com menos resíduos) em E. coli, o que fica evidente quando as mesmas porções em outras bactérias (veja a figura abaixo e a direita com as seqüencias de E. coli grafadas em vermelho).
Este tipo de análise nos permite, através de um substituto muito plausível, avaliar o estado dos genes que sofreram a TGL em sua condição pré-transferência.
As evidências apresentadas no estudo, portanto, sugerem que – quando controlamos para o tamanho das seqüencias, a idade dos supostos eventos de TGL e seu estado putativo pré-transferência- genes com RPIs altos são os mais propensos a integrarem-se em outros genomas por TGL, mesmo que ao longo do tempo percam muito de seu potencial de conectividade. Embora, genes possam ser transferidos em clusters (o que levaria vários dos parceiros de interação para o próximo genoma junto com eles, e que também existam genes que funcionam de forma autônoma, sem a necessidade de PPIs) uma grande parte deve ter que passar mesmo pelo “gargalo” da evolução da interação com outros parceiros protéicos, o que evindecia a grande importância de um parâmetro como a “amistosidade” de uma gene como fator de sucesso para sua transferência para outros microorganismos.
Análises revelaram, no entanto, que apesar de interações entre proteínas codificadas por genes distanciados entre 1 e 5 genes no genoma que ocorrerem cerca de 6 x com maior freqüência do que o esperado, apenas 2% das interações foram entre as proteínas codificadas por genes que exibem tal proximidade. A maioria das interações (96,9% ) ocorreram entre as proteínas separadas por mais de 21 genes, o que torna a co-transferência altamente improvável, exceto através de plasmídeos muito grandes. A alternativa seria que o sucesso da transferência lateral de uma proteína em um novo hospedeiro seja devida não a sua conectividade, mas a receptividade do novo genoma que ao abrigar uma maior nível de proteínas homólogas, constituiria-se em uma ambiente mais “familiar”. Porém, estudos mostram que apenas 10% de divergência nas seqüências já pode modificar bastante as redes PPI, tornando esta hipóteses menor plausível.
Estes resultados acentuam a relevância dos potenciais de interação e da “amistosidade” dos genes em seu ambiente pré-transferência.
Estudos futuros deverão se seguir, inclusive, efetuados por outros grupos de pesquisadores que apontarão as deficiências, erros e os pontos positivos dessa abordagem e colaborarão com o esclarecimento de como ocorre aquisição de genes por transferência lateral e quais os tipos de genes e proteínas mais propensas a sofrerem este tipo de processo.
Bem, pelo jeito, não são só certas pessoas que fazem amizade fácil, mas também os produtos de certos genes parecem ter as mesmas características, o que permitem a eles servirem-se dos benefícios de grandes “redes sociais” e dos “contatos” que permitem arranjar sempre uma boquinha em algum lugar e trazer novas vantagens as redes que passam a criar ou a integrar, e se essas pessoas ou genes são competentes então, aí, temos um combo invencível.
Aos poucos, conciliando o rigor e sistematicidade característicos do processo de indagação científica e a criatividade e inventividade humanas (que também são parte inseparável daquilo que chamamos “ciência”), vamos compreendendo melhor nossa própria história e a evolução da vida na terra, aprendendo a sondar os processos e mecanismos responsáveis por tais dinâmicas e a testar as diversas explicações para elas.
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Referrências:
Gophna, U., & Ofran, Y. (2010). Lateral acquisition of genes is affected by the friendliness of their products Proceedings of the National Academy of Sciences, 108 (1), 343-348 DOI: 10.1073/pnas.1009775108
Ofran, Y., & Rost, B. (2007). ISIS: interaction sites identified from sequence Bioinformatics, 23 (2) DOI: 10.1093/bioinformatics/btl303
Ofran Y, & Rost B (2007). Protein-protein interaction hotspots carved into sequences. PLoS computational biology, 3 (7) PMID: 17630824
* Aqui desconsidero propositalmente outras redes moleculares que devem ter papéis muito importantes, como aquelas formadas por microRNAs e as interações entre elas, o DNA genômico e as redes protéicas e metabólicas que são mais discutidas na literatura científica.
Há mais de cem anos a teoria de que aves surgiram de dinossauros é amplamente aceita pela comunidade científica. Antes mesmo de Darwin, muitos naturalistas já reconheciam que pássaros e répteis que vivem atualmente compartilham várias semelhanças anatômicas com os dinossauros, tais como braços alongados e grandes órbitas oculares (uma lista mais completa pode ser vista aqui).
Após a publicação do livro A Origem das Espécies, seguiram-se trabalhos dos quais podem ser destacados os de Gegenbaur (1863) e Parker (1864), que comentam as afinidades entre pássaros e répteis. O primeiro trabalho que aparentemente sugere relação evolutiva direta é o de Haeckel (1866). Com Thomas H. Huxley (1867), em seu artigo sobre classificação aviária, esta relação evolutiva foi firmemente defendida.
Desde então esta teoria adquiriu cada vez mais evidências para apoiá-la. Há forte evidência de que os pássaros são descendentes dos terópodas (dinossauros pertencentes à ordem Saurischia). Um exemplo de dinossauro desta ordem é o Oviraptor philoceratops (cujo nome vem do latim “ladrão de ovos”), descoberto pelo paleontólogo Roy Chapman Andrews, e descrito em1924 por Henry Fairfeld Osborne. O oviraptor viveu no período Cretáceo tardio, durante o Campaniano, há cerca de 75 milhões de anos. Figura 1: representação artística de um Oviraptor philoceratops.
Em um artigo publicado, um fóssil espetacular de um Oviraptor foi encontrado em uma posição aviária típica: chocando os ovos (Norell, Clark, Chiappe & Dashzeveg, 1995). O espécime (IGM 100/979) foi encontrado em Ukhaa Tolgod, uma localidade do centro-sul da Mongólia em 1993, durante o projeto de cooperação entre a Academia Mongol de Ciências e o Museu Americano de História Natural.
Figura 2: fóssil encontrado.
O fóssil não apresenta sinais de transporte após sua morte. A análise do esqueleto mostra afinidade maniraptoriana é observada pelo carpo semilunar, que é firmemente segurado pelos metacarpos I e II. As clavículas são fundidas, formando um fúrcula em forma de “v”, característica típica de ovirapitoróides.
Figura 3: à esquerda, representação esquemática do fóssil, à direita, um detalhe do mesmo.
Figura 4: representação do dinossauro pouco antes de sua morte.
A IGM 100/979 é a amostra melhor preservada e provê a exata posição do esqueleto no ninho. A púbis está no centro do ninho. Os ovos estão arranjados em um padrão circular, com a extremidade mais bojuda apontando para o centro do ninho, e o ninho tem 22 ovos, cada um medindo 18.0 cm de comprimento e 6.5 cm de largura. Segundo o artigo, mais fósseis desta espécie foram encontrados em posição semelhante, o que evidencia de forma muito forte o comportamento que existia antes do surgimento dos pássaros modernos e comum aos terópodas maniraptorianos não-aviários.
Referências
Norell, M. A., Clark, J. M., Chiappe, L. M., Dashzeveg, D., Nature, 1995 Artigo
Duas semanas atrás, passeando por uma livraria em um shopping de Florianópolis, notei em uma das estantes uma nova obra de filosofia (creio que era sobre filósofos modernos) publicada pela Artmed, o selo de livros técnicos e acadêmicos do Rio Grande do Sul. Entreguei o volume para o meu irmão (professor de direito e como eu muito interessado em filosofia) que me acompanhava que, prontamente, o abriu e procurou por mais informações em sua orelha (a do livro, claro). Ao invés de um resumo, típico das orelhas de outros livros, havia a lista de livros publicados e a publicar, estes últimos marcados com um asterisco. Entre estes vi de relance um título que me chamou a atenção, “Filosofia da Biologia”, organizado pelo professor da UnB, Paulo César Abrantes. Como o livro estava marcado com um asterisco, apesar de bastante empolgado, deixei de lado o acontecido, esperando encontrá-lo nas livrarias nos meses seguintes. Saímos da livraria e fomos para a casa de nossos pais.
No dia seguinte, desta vez perambulando pelo centro de Floripa, folheando os livros da estante de uma outra livraria (De um jeito ou de outro, acabo voltando a elas, principalmente àquelas que têm um bom expresso), para minha grande surpresa, encontro o livro anunciado na orelha do livro examinado no dia anterior. Estava lá ele, esperando que eu o examinasse. Apenas o plástico impedindo-me de folheá-lo e lê-lo.
Passei o livro pelo leitor de código de barras e vi que o preço era compatível com o meu apertado orçamento, o abri, li alguns trechos e verifiquei a lista de autores que contribuíram para o volume, muitos já bem conhecidos de leituras anteriores e que já vêm fazendo um grande trabalho ao discutir diversos aspectos da filosofia da biologia e biologia teórica em língua portuguesa, produzindo artigos e livros muito interessantes.
Nomes como o de Gustavo Caponi (UFSC), Diogo Meyer (USP), Karla Chediak (UERJ) e Ricardo Waizbort (Fiocruz) e Charbel El-Hani (UFBA/UEFS) – além do próprio organizador, P.C. Abrantes – já me indicaram que ali encontraria o trabalho de diversos intelectuais (biólogos e filósofos) de primeira linha. Além desses autores mais conhecidos, os demais pesquisadores, a maioria de universidades e institutos de pesquisa de países vizinhos da América do Sul (Sergio F. Martinez, Pablo Lorenzano, Favio Gonzáles, Natalia Pabón-Mora, Maximiliano Martinez Bohórquez, Eugenio Andrade, Estela Santili, Jorge Martínez-Contreras, Alejandro Rosas, juntamente com os brasileiros Cláudia Sepúlveda, Filipe Cavalcanti e Fábio Portela) tornam este volume ainda mais interessante e, portanto,uma leitura imperdível e que revela o panorama da filosofia da biologia na América Latina. O grupo Bogotá de Pensamento Evolucionista formado em um colóquio na Colômbia realizado em 2006 é o germe inciador deste projeto que acabou por agregar outros pesquisadores (Veja também o volume editado em 2007 Filosofía, darwinismo y evolución).
Este lançamento nos faz parabenizar a Artmed e o grupo A pela iniciativa e esperar por mais publicações desse gênero.
Paulo C. Abrantes é professor da UnB ligado ao depto. de filosofia e instituto de ciências biológicas e ex-professor e um dos mentores intelectuais do Eli (que inclusive está nos agradecimentos). Não podia deixar de mencionar. Ao começar a ler o livro chamou-me a atenção a muito bem escrita, acessível e densa introdução do professor Abrantes que resume as contribuições do volume ao mesmo tempo que faz um apanhado, indispensável aos novatos, das principais questões da filosofia da biologia. Dado o amplo escopo e apresentação sucinta e elegante dos tópicos e das principais discussões sobre os temas filosoficamente e conceitualmente mais discutidos em ciências biológicas, a introdução do professor Abrantes é uma excelente iniciação ao tema, inclusive contextualizando a filosofia da biologia em relação a filosofia geral da ciência e do desenvolvimento histórico de sua problemática nas últimas décadas.
Em “Filosofia da biologia” fica clara a importância da evolução para as ciências biológicas e como esta funciona como elemento norteador de muitas das discussões metodológicas, epistemológicas, conceituais e metafísicas que permeiam as ciências da vida.
Este volume denota a maturidade das ciências biológicas, especialmente da biologia evolutiva como disciplina científica. Mais do que isso, demonstra que os brasileiros e sul-americanos, de modo mais geral, também têm contribuições importantes à área, algo imprescindível, já que as ciências necessitam, ao se desenvolverem, de cada vez mais reflexão conceitual e aprofundamento teórico. As reflexões sobre suas pressuposições, comprometimentos e implicações axiológicas, metodológicas, epistemológicas, éticas e metafísicas acabam se tornando inevitáveis. Esse olhar crítico é o que oferece de mais importante, a filosofia da Biologia.
Os temas tratados no livro são bastante variados, indo desde a existência (ou não) de leis em ciências biológicas, passando por discussões sobre a adequação dos modelos filosóficos de explicação em biologia evolutiva (nomológico-dedutivo, causal-funcional centrado em narrativas históricas etc), as diferenças entre causas próximas e últimas, os debates sobre o conceito de espécie, as mudanças entre o pensamento tipológico/essencialista e o populacional, as relações entre funcionalismo e estruturalismo em biologia e como encaixar a nova evo-devo nesta discussão, chegando até os modelos em etologia e evolução cultural humana. Portanto, os tópicos discutidos têm relevância à áreas como a antropologia e psicologia.
Um tema que parece permear todo o livro é a questão do pluralismo epistemológico e metodológico nas ciências biológicas. O tema do reducionismo vs pluralismo (e dos diversos tipos de redução e sua apropriação ou não) aparece em vários dos capítulos. Na introdução, o professor Abrantes, aponta para fato do reducionismo hoje ser visto mais como uma estratégia investigativa do que como um fim em si mesmo, uma obrigação de todo esquema teórico e campo científico que deveria ser invariavelmente buscado. Contudo, apesar do poder do reducionismo, concebido como uma estratégia heurística, não poder ser subestimado, visões mais sistêmicas e pluralistas, sobretudo em temas como os níveis e os alvos da seleção natural e nas discussões sobre adaptacionismo, acabam por exigir que avancemos, pelo menos em certas situações, para além dele. Um exemplo é o próprio conceito de função biológica empregado em estudos evolutivos, como abordado no artigo de Chediak que já aparece em seu livro homônimo da coleção “Filosofia Passo-a-passo”(CHEDIAK, K. Filosofia da biologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.).
O livro toca em diversas outras questões bastante atuais, como a importância da idéia de dupla herança (genes e cultura) na investigação da evolução da mente humana, a existência de sistemas multiplos de herança e o confronto entre as visões centradas nos genes (“genistas”) e a teoria dos sistemas em desenvolvimento (TSD, voltando ao tópico do reducionismo vs pluralismo).
A gama de questões tratadas nesta obra pode ser melhor apreciada simplesmente lendo os 14 capítulos que o constituem:
Capítulo 1. Introdução: o que é filosofia da biologia? (P.C. Abrantes)
Capítulo 2. Reducionismo em biologia: uma tomografia da relação biologia sociedade (Sergio F. Martinez)
Capítulo 3. Leis e teorias em biologia (Pablo Lorenzano)
Capítulo 4. Função e explicações funcionais em biologia (Karla Chediak)
Capítulo 5. O problema da espécie 150 anos depois de A origem (Favio Gonzáles)
Capítulo 6. A classificação biológica: de espécies a genes (Natalia Pabón-Mora e Favio Gonzáles)
Capítulo 7. A contingência dos padrões de organização biológica: superando a dicotomia entre pensamento tipológico e populacional (Maximiliano Martinez Bohórquez e Eugenio Andrade)
Capítulo 9. Níveis e unidades de seleção: o pluralismo e seus desafios filosóficos (Estela Santili)
Capítulo 10. Aproximação epistemológica à biologia evolutiva do desenvolvimento (Gustavo Caponi)
Capítulo 11. O modelo primatológico de cultura (Jorge Martínez-Contreras)
Capítulo 12.Genes, seleção natural e comportamento humano:a mente adaptada da psicologia evolucionista (Ricardo Waizbort e Filipe C. da Silva Porto)
Capítulo 13. Evolução humana: a teoria da dupla herança (P.C. Abrantes e Fábio Portela L. Almeida)
Capítulo 14. Ética evolucionista: o enfoque adaptacionista da cooperação humana (Alejandro Rosas)
O tempo ainda não me permitiu ler os demais capítulos e apreciá-los da forma que merecem, mas não posso deixar de recomendar enfaticamente este livro a todos aqueles realmente interessados em ciências biológicas, especialmente, em suas bases e implicações filosóficas. Biólogos, estudantes de biologia, deveriam ser obrigados a ler este livro em seus cursos de filosofia da ciência, assim como os filósofos e estudantes de filosofia que se interessam pelo tema.
Em posts futuros, pretendo continuar a discutir os tópicos expostos neste volume (e a visão de cada autor) que tenham relevância direta ou indireta ao estudo da biologia evolutiva, usando seus capítulos como guias, tentando, desta forma, fazer jus a essa iniciativa e ao importante trabalho de seus autores.
Por enquanto fica a recomendação desta mais do que necessária obra e a certeza que ela deverá estimular mais pessoas a interessar-se por esta área tão importante da fronteira entre as ciências biológicas e a investigação filosófica.
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Referências:
Abrantes, Paulo C. & Cols. Filosofia da Biologia (2011) Porto Alegre Editora Artmed 1º Edição ISBN : 8536324511 ISBN13 :9788536324517
Chediak, K. (2008) Filosofia da biologia. Rio de Janeiro: Zahar, EAN:9788537800546 ISBN: 978-85-378-0054-6
Rosas, Alejandro (ed.). Filosofía, Darwinismo y Evolución. Bogotá: Unibiblos, Universidad Nacional de Colombia, 2007. 346 p. Ideas y Valores, Sep./Dec. 2007, vol.56, no.135, p.115-119. ISSN 0120-0062.
A primatologia é uma disciplina desenvolvida, voltada para o estudo de uma só ordem zoológica. O grupo estudado faz jus ao nome Primata, “principal”, em deferência ao humano. Exatamente por seu membro ilustre, no entanto, os primatas não-humanos perdem como objetos de inquirição na razão direta de sua valorização como modelos de nossa espécie. Os grandes símios (gorilas, chimpanzés, bonobos e orangotangos) são um caso limite da atenção ao humano pelo caminho da primatologia. Nossos parentes mais próximos tornam-se o outro natural na definição de uma natureza humana, ou operadores antropológicos de identidade (Despret, 2006). No discurso e na prática científica, grandes símios podem ser, a um só tempo, símiles fisiológicos do humano e, cognitivamente, uma versão imperfeita de nós mesmos. Essa dupla condição traz implicações distintas segundo o quadro conceitual, as condições experimentais, o contexto sócio-histórico e as relações particulares estabelecidas entre o símio o observador humano em cada investigação.Neste trabalho, analisamos contextos experimentais e teóricos que oferecem distintas versões dos grandes símios, implicando versões correspondentes do humano. Uma maneira de repensarmos a agência dos seres vivos envolvidos e as relações co-constituintes entre grande simios e humanos, a partir do conceito de antropozoogênese (Despret, 2004b).
*Comunicação apresentada na27ªReuniãoBrasileiradeAntropologia,evento da AssociaçãoBrasileiradeAntropologia, Belém, 2010.
Em 1996, um professor de bioquímica de uma universidade dos EUA (veja o “aviso legal“, em sua página pessoal, na Universidade de Lehigh que, aliás, não endossa suas ideias), chamado Michael Behe, publicou um livro em que desenvolvia uma crítica à biologia evolutiva, especialmente à visão Darwiniana da evolução, a partir de uma perspectiva supostamente nova. Essa crítica, segundo Behe, só era possível graças aos conhecimentos da impressionante complexidade e intrincamento dos sistemas biomoleculares revelados pelas modernas bioquímica e biologia molecular. Essa complexidade, entretanto, por não ser conhecida por Darwin, e seus contemporâneos, teria impedido o grande naturalista de perceber as limitações de sua teoria.O livro chamava-se (oportunamente), “A Caixa preta de Darwin”, publicado em 1996 e, no Brasil, em 1997 pela editora Jorge Zahar.Behe intencionava, com esta obra, oferecer um novo argumento que tomaria a forma de um desafio à moderna biologia evolutiva, o que ele chamou de “complexidade irredutível”.
O livro de Behe recebeu grande atenção, não só dostradicionaisbajuladores criacionistas e dos defensores do então jovem Criacionismo do Design Inteligente (CDI), mas também de acadêmicos sérios das áreas de biologia evolutiva e filosofia que levantaram várias objeções. O geneticista evolutivo H. Allen Orr em sua resenha do livro para o Boston Review escreveu:
“O último ataque à evolução é inteligentemente argumentado, biologicamente informado e errado”(Allen Orr, 1997)
O conceito de Complexidade Irredutível (CI), desde então, tem desempenhado um papel fundamental no ressurgimento do movimento criacionista nas últimas duas décadas e Behe teve participações importantes (ainda que vexatórias) em muitos episódios importantes destes embates, como no julgamento Kitzmiller vs. Dover , em 2005 ( Boudry, Blancke, Braeckman, 2010).
O argumento de Behe se propunha, ao revelar irredutibilidade de certos sistemas bioquímicos, a demostrar que estes não poderiam ter evoluído de forma natural, a menos que eventos muito improváveis acontecessem como mutações simultâneas em diversos dos componentes destes sistemas biomoleculares, o que segundo Behe apontaria para a necessidade de um Designer. Obviamente, a suposta demonstração do “design inteligente” por Behe foi amplamente rejeitada por biólogos evolutivos e filósofos da natureza. Porém, as diversas linhas de crítica pareciam em muitos casos contraditórias. No entanto, estas supostas contradições seriam fruto da própria incoerência presentes nas definições de Behe de CI. É exatamente isso que três filósofos defendem em um artigo publicado no The Quarterly Review of Biologydeste mês.
Neste trabalho é apresentada uma análise de vários equívocos inerentes ao conceito de CI, além de discutir a maneira pela qual os defensores do Criacionismo do Design Inteligente (CDI) têm convenientemente transformado a CI em um alvo em constante movimento. Como os próprios autores deixam bem claro em seu abstract:
Uma análise dessas estratégias retóricas nos ajuda a entender por que a CI tem ganho destaque em movimentos como o CDI, e por que, apesar da sua completa falta de méritos científicos, chegou mesmo a convencer algumas pessoas cultas da morte iminente da teoria evolutiva (Boudry, Blancke, Braeckman, 2010).
Os críticos de Behe de forma unânime concordaram que ele não havia conseguido demonstrar a evidência de “design inteligente” na natureza. Porém, as críticas são bastante diversas, com alguns biólogos afirmando que os sistemas biológicos, por vezes, realmente apresentam a CI, como Behe a define, mas negando que isso representasse um problema para a teoria da evolução (por exemplo, Orr, 1997; Shanks e Joplin 1999, Miller 2000 apud Boudry, Blancke, Braeckman, 2010). Por outro lado, outros afirmam que Behe nunca demonstrou a existência de casos que realmente pudessem ser considerados exemplos genuínos de CI na natureza (veja por exemplo, Pigliucci 2002; Forrest e Gross, 2007 apud Boudry, Blancke, Braeckman, 2010); outros, como Robert Pennock (1999, p. 64-272), concordam que Behe não demonstrou a existência de sistemas com CI, mas, ao mesmo tempo, concede a possível existência deste tipo de sistemas biológicos com CI, argumentando que, de qualquer maneira, a existência destes não ameaçaria a teoria evolutiva.
Esta aparente contradição, como bem explicam Boudry, Blancke e Braeckman (2010), é originária da esquiva definição de Behe que permite a ele pular de uma proposição coerente , porém trivial, para uma bem mais audaciosa, mas que ele (nem ninguém) não foi capaz de demonstrar e que se limita a um argumento de ignorância e, após inúmera críticas, acaba por se tornar um mero argumento de incredulidade pessoal.
Boudry, Blancke e Braeckman (2010) argumentam que são, na realidade, estes tipos de equívocos, em sua definição, que permitem a Behe e seus companheiros do CDI, transformar a CI em um alvo móvel, protegendo-a contra críticas, mas, aomesmo tempo,os impossibilitando de transformarem-na em uma teoria ou programa de pesquisa coerente devido às suas próprias inconsistências, tão úteis do ponto de vista retórico.
Um dos pontos mais interessantes apontados no artigo de Boudry, Blancke e Braeckman (2010), mas já denunciado por outros antes deles (veja Forrest e Gross, 2007, p. 302), é que o conceito de CI tem um longo pedigree que pode ser traçado até outra geração de criacionistas. Nas décadas de 1970 e 1980, os criacionistas da Terra jovem usaram termos semelhantes para descrever sistemas biológicos, que eram alegadamente obstáculos à teoria da evolução. Em 1974, Henry Morris, fundador doInstitute for Creation Researche pai do movimento da “ciência” da criação, argumentou em seu influente livroCriacionismo Científicoque:
“O problema é simplesmente que em um sistema complexo, em que muitos componentes funcionam conjuntamente, e em que cada componente é exclusivamente necessário para o bom funcionamento do todo, este jamais poderia surgir por processos aleatórios “(Morris, 1974, p. 59apudBoudry, Blancke, Braeckman, 2010).
Ariel Roth, outro criacionista, afirmou em 1980 que:
“Criação e vários outros pontos de vista podem ser apoiados por dados científicos que revelam que a origem espontânea dos complexos sistemas bioquímicos integrados, mesmo dos organismos mais simples são, na melhor das hipóteses, um evento dos mais improváveis “(Roth 1980, p. 83apudBoudry, Blancke, Braeckman, 2010).
Fica claro, ao ler estas citações,que Behe,simplesmente, adaptou essas noções, já bem disseminadas entre os criacionistas, para seus próprios fins e as transformou em um “novo” cavalo de batalha para o então emergente criacionismo do Design Inteligente. A definição de CI presente no livro “a Caixa Preta de Darwin” é a seguinte:
“Por irredutivelmente complexo, quero dizer um sistema único composto de várias peças bem-ajustadas interagentes que contribuem para a função básica, onde a remoção de qualquer uma das partes faz com que o sistema deixe de funcionar efetivamente. Um sistema irredutivelmente complexo não pode ser produzido diretamente (isto é, melhorar continuamente a função inicial, continuando a funcionar pelo mesmo mecanismo) por modificações suaves e sucessivas de um sistema precursor, porque qualquer precursor de um sistema irredutivelmente complexo, no qual está faltando uma parte, é, por definição, não funcional. Um sistema biológico irredutivelmente complexo, se há uma coisa dessas, seria um poderoso desafio à evolução darwiniana” (Behe, 2006, p. 39 apudBoudry, Blancke, Braeckman, 2010).
Boudry, Blancke e Braeckman (2010) mostram que neste trecho escondem-se, na realidade, duas definições que podem ser disjuntas. A primeira delas envolve sistemas que presentemente estão estruturados de uma tal forma que a perda de alguma de suas “bem-ajustadas peças” provoca a desintegração funcional do sistema. Muitos críticos lembraram que este tipo de sistema, de fato, é uma clara mostra de péssimo design, pelo menos para os padrões humanos, já que não deixam espaço para sistemasback-upe outras salva-guardas, algo que poderia depor contra a competência ou mesmo as habilidades do suposto designer; ou, pelo menos, implicaria em um bizarro senso de humor por parte do mesmo. No entanto, esta organização contingente de muitos sistemas biomoleculares parece perfeitamente plausível em um sistema que evoluiu de uma forma muito mais semelhante ao um processo de bricolagem (veja, por exemplo, Jacob, 1977).
Contudo, a questão chave aqui é que esta primeira parte da definição não é entrave algum para os mecanismos conhecidos da biologia evolutiva. A função atual do sistema, bem como a atual interdependência entre as partes, não reflete necessariamente seu processo de origem evolutiva. O estudo comparativo e a análise de vários cenários teóricos é que podem nos ajudar a compreender como isso é possível. Aliás, o já citado biólogo Allen Orr lembra – no mesmo artigo noBoston Review, ao comentar o livro de Behe – que H.J. Muller, em 1918, já havia reconhecido a questão e proposto uma solução:
“Gostaria de poder reivindicar o crédito para este modelo darwiniano de complexidade irredutível, mas eu estou receoso que eu tenha perdido a primazia por pelos oitenta anos. Este cenário foi sugerido pelo geneticista H.J. Muller em 1918 e apresentado em maiores detalhes em 1939. De fato, Muller dá razões para pensar que os genes que primeiramente melhoram a função, rotineiramente, tornam-se partes essenciais de uma via. Assim, a evolução gradual dos sistemas irredutivelmente complexos não é só possível, como é esperada. Para aqueles que não são biólogos, deixe-me garantir a vocês que eu não ter desenterrei as elocubrações meia-boca de algum amador obscuro. Muller, Prêmio Nobel em 1946, foi um gigante na evolução e na genética” (Allen Orr, 1997).
Mais recentemente Douglas Theobald (2007) ofereceu um modelo, baseado na idéia de Müller,que mostra em grande detalhe como isso pode se dar. Em resumo:
“Com o erro de Behe agora em mãos, temos imediatamente a seguinte solução embaraçosamente fácil para o enigma “irredutível” de Behe. Apenas dois passos básicos são necessários para evoluir gradualmente um sistema irredutivelmente complexo a partir de um precursor em funcionamento:
1. Adicione uma parte.
2. Torne-a necessária.
É muito simples. Após estas duas etapas, a remoção da parte vai destruir a função, mas o sistema foi produzido diretamente e, gradualmente, a partir de um simples precursor funcional. E isso é exatamente o que Behe alega ser impossível. “[Theobald, 2007]
Outra possibilidade havia sido discutida por Cains-Smith e envolvia a evolução de sistemas CI (sentido fraco)a partir de sistemas com um arcabouço prévio, subsequentemente removido/perdido ao longo da evolução do sistema biológico em questão. Como explicam os autores do artigo:
“Assim, a complexidade redundante pode, eventualmente, gerar CI (sob a interpretação fraca). Mais recentemente, o bioquímico e biólogo molecular AG Cairns-Smith propôs a analogia do “andaime” na construção de um arco para explicar a evolução dos sistemas de CI que estão de acordo com Behe (Cairns-Smith, 1986; ver também Orr, 1997; Pennock 2000) . Um arco de pedra clássico tem CI no sentido fraco, porque a estrutura entrará em colapso assim que se remova a pedra fundamental ou uma das outras pedras. O apoio do andaime é necessário na construção de um arco de pedra, mas uma vez que o arco é concluído, o andaime pode ser removido com segurança. Em uma sentido similar, uma estrutura bioquímica pode ter funcionado como um andaime na evolução de um sistema com CI antes de se tornar dispensável e desaparecer. Isto é, “antes damultitude de componentes dabioquímica atual pudessem apoiar-se, uns nos outros, tiveram que se apoiar em algo mais” (Cairns-Smith 1986, p. 61 apudBoudry, Blancke, Braeckman, 2010).
Thomas D. Schneider, em uma simulação do processo de evolução de seqüencias de ligação ao DNA, utilizando a plataforma Ev e uma métrica de aquisição de informação baseada na teoria de Shannon, conseguiu mostrar que este processo é completamente factível ao se utilizar mutações e seleção natural (Schneider, 2000).
Na realidade, no ano de 2000, dois cientistas publicaram no Journal of Theoretical Biology um artigo em que analisavam caminhos diretos e indiretos para evolução Darwiniana de sistemas com CI, “interpretação fraca”, e apresentaram quatro vias principais (Thornhill and Ussery, 2000):
Evolução direta serial Darwiniana.
Evolução direta paralela Darwiniana.
Eliminação da redundância funcional.
Adoção de uma função diferente.
Portanto, a alegação de que estruturas biológicas possuam CI, em seu sentido fraco, é algo absolutamente trivial e que não oferece desafio algum à biologia evolutiva moderna (nem à antiga, diga-se de passagem), refletindo apenas uma brutal falta de imaginação de Behe e companhia.
Porém, a segunda parte da definição oferece uma possibilidade que, se demostrada como verdadeira, seria bastante mais complicada para a evolução biológica:
“Um sistema irredutivelmente complexo não pode ser produzido diretamente (isto é, melhorar continuamente a função inicial, continuando a funcionar pelo mesmo mecanismo) por modificações suaves e sucessivas de um sistema precursor, porque qualquer precursor de um sistema irredutivelmente complexo no qual está faltando uma parte é, por definição, não funcional. Um sistema biológico irredutivelmente complexo, se há uma coisa dessas, seria um poderoso desafio à evolução darwiniana” (Behe, 2006, p. 39 apudBoudry, Blancke, Braeckman, 2010).
Um sistema como este seria, por princípio, “não-evoluível”. Desta forma, caso algo assim se confirmasse, sua existência constituiria, de fato, um desafio e tanto à biologia evolutiva. Claro, isso aconteceria apenas caso todas as alternativas e possibilidades naturalistas pudessem ser descartadas. Neste caso, estabelecer a quem caberia este ônus de investigação é crucial , mas isso é algo que os adeptos do CDI sempre procuram se evadir, agindo como se fossem os biólogos evolutivos que devessem provar a não-existência desses sistemas com CI, senso forte.
Contudo, sistemas que possuem a CI, em seu sentido fraco, são completamente ‘evoluíveis‘ – se não mantendo exatamente a mesma função, podem sê-lo através de mudanças e co-optações de estruturas para outras funções. Segundo Boudry, Blancke e Braeckman (2010) é esta ambiguidade que permite a Behe rejeitar as refutações e críticas dos cientistas e filósofos e fingir que seu argumento tem algum fundamento, além do trivialmente verdadeiro e desinteressante:
” Behe tem dado um golpe conceitual semelhante ao lidar com as objeções do biólogo molecular Kenneth Miller (2000). Miller admite que alguns sistemas biológicos são CI como Behe os define (versão fraca), mas objeta às conclusões anti-evolucionistas que Behe deriva da CI. Como contra-exemplo da afirmação de Behe, Miller oferece uma reconstrução plausível da história evolutiva do aparelho auditivo, em cinco partes, em mamíferos, que ele alega preencher a definição de CI. Miller demonstra que as partes individuais do aparelho auditivo-martelo, bigorna e estribo, evoluíram a partir da porção posterior da mandíbula dos répteis. É importante notar que, antes de migrarem para o ouvido médio e serem adaptadas para as suas novas finalidades, essas estruturas eram de fato perfeitamente funcionais. Portanto, Miller conclui que a afirmação de Behe (2006, p. 39) de que “qualquer precursor de um sistema irredutivelmente complexo em que está faltando alguma parte é, por definição, não-funcional” é completamente errada. Miller desafia a CI forte e demonstra o ponto crucial de que a “necessidadeinterconectada[da parte final do sistema funcional] não significa que o sistema não poderia ter evoluído a partir de uma versão mais simples” (2000, p. 139) [Boudry, Blancke, Braeckman, 2010].
Behe quando confrontado com estas críticas, volta para a definição trivial (fraca) e acusa Miller de criar suas próprias definições e, portanto, argumentar contra um espantalho. Porém, a menos que Behe demonstre uma ligação obrigatória entre CI fraca e a CI forte, ou seja, de que a CI implica em não existirem intermediários evolutivos funcionais, os argumentos de Behe são apenas demonstrações de sua incredulidade pessoal, tornando a CI conceitualmente muda.
“Aqui, novamente, o equívoco está na definição de Behe e não na crítica de [Kenneth] Miller. Tendo em conta que Behe trata a CI como se fosse um obstáculo intransponível para a evolução, o que já fica claro a partir do próprio palavreado esclhido para o termo “irredutível”, o crítico naturalmente confronta afirmação de Behe de “não-funcionalidade”, apontando para as diferentes funções executadas pelos precursores evolutivos dos sistemas com CI, que podem ou não ter contido certas partes presentes no sistema atual (Boudry, Blancke, Braeckman, 2010).
Afinal, se levarmos em conta que os sistemas biológicos podem adaptar-se, ao longo do curso da evolução, para outra função que não aquela para a qual foram inicialmente selecionados – por exemplo, ao serem integrados como parte de um novo sistema na execução de uma função diferente [processo conhecido como exaptação] – então a alegação de Behe de não-funcionalidade torna-se ou trivial (versão fraca) ou claramente errada (versão forte)” (Boudry, Blancke, Braeckman, 2010).
As ambiguidades presentes na proposta inicial de Behe levaram outra figura do movimento dos CDI, William Dembski, a propor uma “correção” para a definição de CI. Em seu livro “No Free Lunch (de 2002), Dembski afirma acreditar que o conceito de CI é “recuperável” (2002:280apudBoudry, Blancke, Braeckman, 2010)e propõe a seguinte definição:
“Definição CIfinal– Um sistema executando uma determinada função básica é irredutivelmente complexo se inclui um conjunto bem-ajustado de peças, mutuamente interagindo, de tal forma que cada parte do conjunto é indispensável para a manutenção básica do sistema e, portanto, da função original. O conjunto dessas peças indispensáveis é conhecido como o núcleo irredutível do sistema (Dembski 2002, p. 285, grifo no original apudBoudry, Blancke, Braeckman, 2010).
Assim, Dembski argumenta, a CI de um sistema é uma simples questão empírica:
Individualmente, nocauteando cada proteína que constitui um sistema bioquímico, determinar-se-á se a função é perdida. Se for, estamos lidando com um sistema irredutivelmente complexo” (Dembski 1999, p. 148 apudBoudry, Blancke, Braeckman, 2010).
O “ajuste” do conceito de CI, oferecido por Dembski, não é mais do que uma reiteração da interpretação fraca, restringindo a definição para a função básica do sistema original. Porém, ao reparar a ambigüidade conceitual presente na versão de Behe, Dembski acaba por tirar toda a possível força do argumento. A CI, concebida desta maneira, é “perfeitamente coerente com vias indiretas e tortuosas, andaimes, e exaptações típicas das explicações biológicas tradicionais” (Boudry, Blancke, Braeckman, 2010). Boudry, Blancke e Braeckman (2010) sabiamente comentam:
“Assim por que todo o barulho? O colapso da CI nas mãos de Dembski demonstra que a ambiguidade conceitual que ele estava tentando salvar realmente foi muito conveniente para Behe” (Boudry, Blancke, Braeckman , 2010).
As respostas dos defensores do CDI às criticas e demonstrações conceituais de que a CI pode ser alcançada por processos evolutivos (veja Dunkelberg, 2003; Pallen & Matzke, 2006), envolvem simplesmente “reinterpretar” a CI e descartar os exemplos oferecidos.
“A primeira estratégia para este fim consiste em inverter o ônus da prova, da plausibilidade evolutiva para a verdadeira história evolutiva e, assim, protestar que as linhas gerais de uma explicação evolutiva plausível não são nada mais do que um wishful thinking Darwiniano e especulações” (Boudry, Blancke, Braeckman, 2010).
A questão, entretanto, é que a CI é constantemente alardeada como um argumento de princípio que excluiria a possibilidade de explicações evolutivas para a origem de um dado sistema, mas tão logo ela é desafiada e um cenário é oferecido, absolutamente consistente com a boa e velha biologia evolutiva, o CDI passa a exigir não só um cenário plausível e evidências mais gerais, mas detalhes cada vez mais extremos, às vezes, afirmando que estava falando de caminhos evolutivos reais desde o tempo todo.
O pior é que quando os teóricos do CDI são confrontados com uma evidência tangível da história evolutiva real (Schneider, 2000, Lenski, Ofriaet al., 2003, Adami, 2006, Bridgham, Carroll, Thornton, 2006) estes recorrem a uma segunda estratégia, mudando as alegações de design para as peças restantes do quebra-cabeça evolutivo, como se o problema “real” sempre estivesse por lá.
Por exemplo, Kenneth Miller (2004 apudBoudry, Blancke, Braeckman, 2010) demonstrou muito bem a semelhança estrutural entre um dos componentes do flagelo e um sistema-secretor tipo III de toxinas bacterianas:
” Ele foi convincente ao argumentar que o primeiro é um precursor evolutivo muito plausível deste último, que foi cooptado pela evolução para realizar uma nova função (ver também Pallen e Matzke 2006). Em resposta a esta demonstração embaraçosa, Behe (2001, pp 689-690) simplesmente voltou sua atenção para a complexidade do sistema recém-descoberto, enquanto ao mesmo tempo, insistindo teimosamente que o conjunto destes precursores no sistema flagelo ainda é impossível sem a ajuda de um Designer”(Behe, 2004, p. 359 apudBoudry, Blancke, Braeckman, 2010).
“À luz destes subterfúgios, pode-se perguntar se há alguma quantidade de evidências genéticas comparativas, ou de qualquer nível da reconstrução evolutiva, que faria Behe e seus aliados abandonar suas reivindicações de design. Por causa do desleixo do crédito da CI probabilística, o que não é baseado em uma quantificação séria de probabilidades, os teóricos do CDI podem continuar a elevar o nível de prova, até um ponto onde o conceito de CI é levantado fora do domínio empírico completamente (Boudry, Blancke, Braeckman, 2010)”.
Quando pressionado é, exatamente, esta a estratégia de Behe, pois para ele apenas uma descrição completa, quantitativa e totalmente detalhada do que realmente aconteceu, ao longo das eras , seria capaz de convencê-lo de que os sistemas com CI teriam sua origem através da evolução biológica por mecanismos naturais (veja Behe, 2007 apudBoudry, Blancke, Braeckman, 2010). Em seu depoimento no julgamento de Dover, Behe admitiu:
“Não só eu precisaria de uma análise mutação por mutação,passo-a-passo,como eu também gostaria de ver as informações pertinentes, tais como qual é o tamanho da população do organismo, em quem estas mutações estão ocorrendo, qual é o valor seletivo para a mutação , se existem efeitos deletérios da mutação, e muitas outras questões desse tipo.” (2005, p. 19 apudBoudry, Blancke, Braeckman, 2010)
Todo o ônus é atirado nos biólogos evolutivos e nada precisa ser oferecido como contrapartida para evidenciar o suposto Designer por parte dos defensores do CDI. Como deixam bem claro Boudry, Blancke & Braeckman (2010), tal exigência é simplesmente absurda, e nunca poderia ser cumprida em qualquer outro domínio científico.
John Calano (2004) faz o seguinte comentário em relação a esta atitude de Behe:
“Para ser honesto, eu suspeito que o grau de pormenor que Behe demanda exigiria uma combinação de laboratório de bioquímica de ponta e uma máquina do tempo. De que outra maneira a ciência poderia recuperar totalmente, por exemplo, cada passo na evolução do flagelo bacteriano, que teve lugar bilhões de anos atrás?”
A despeito das incríveis demandas de Behe – que exigem um nível tão elevado de evidências para a evolução biológica de sistemas, que ele afirma serem possuidores de CI – o próprio Behe parece completamente indisposto a trazer para o concreto sua hipótese sobre o Designer, em qualquer nível que seja. De fato, Behe insiste que os motivos e caráter do designer são, simplesmente, inescrutáveis, portanto, não nos dando nenhuma pista quanto ao seumodus operandi e nem nos oferecendo pistas de como detectá-lo de forma independente (Boudry, Blancke, Braeckman, 2010):
“Quanto ao pedido de Behe para o conhecimento completo e detalhado sobre a história evolutiva, Pigliucci (2002, p. 240) alertou os biólogos para não serem superconfiantes ao aceitarosdesafios criacionistas, e não confundir reconstruções parciais e cenários plausíveis com uma compreensão completa do desenvolvimento evolutivo. De fato, os teóricos evolucionistas são aconselhados a explicar por que o ônus da prova no qual insistem os criacionistas é um absurdo, e apontar que o conhecimento científico nunca será completo a este respeito” (Boudry, Blancke, Braeckman, 2010).
Em franco contraste com a atitude de Behe, os cientistas podem citar, como exemplos de linhas investigativas, experimentos como os conduzidos pelo o grupo de Joseph W. Thornton – com a reconstrução filogenética e expressão in vitro, através da tecnologia do DNA recombinante, de estados ancestrais de receptores de glicocórticoides – que mostram um nível de detalhamento que Behe e os defensores do CDI jamais conseguiriam alcançar (Bridgham, Carroll, Thornton, 2006; Adami, 2006). Na falta de uma máquina do tempo, esta combinação de estratégias experimentais e de métodos de análise filogenética cumpre muitíssimo bem seu papel. Esta é a chamada “síntese funcional“, como é bem explicado no resumo de um artigo de Thornton (Dean and Thornton, 2007):
Uma síntese emergente da biologia evolutiva com a biologia molecular experimental está fornecendo inferências muito mais forte e profundas, sobre a dinâmica e os mecanismos da evolução do que era possível no passado. A nova abordagem combina análise estatística das sequências de genes com experimentos de manipulação molecular para revelar como as mutações antigas alteraram os processos bioquímicos e produziram novos fenótipos. Esta síntese funcional montou o palco para grandes avanços em nossa compreensão de questões fundamentais da biologia evolutiva. Aqui nós descrevemos esta abordagem emergente, evidenciando importantes novos insights tornados possíveis e sugerindo caminhos futuros para o campo.
Para Boudry, Blancke e Braeckman (2010), contudo, o que é realmente desonesto na postura de Behe é que este desafio absurdo, em que o ônus é desviado para os cientistas e não aceito pela teoria alternativa rival, é que a demanda de um relato evolutivo completo e passo-a-passo dos sistemas de CI não está escrita desde o início, mas é uma revisão tardia de sua pretensão inicial, com base em ambiguidades na sua definição de CI.
“Em A Caixa Preta de Darwin, Behe nos deixa com a impressão de que o alegação da não-evolutividade da CI é, em princípio, fácilde contestar, mas quando seus críticos assumem o desafio, como vimos na discussão com Pennock e Miller, Behe simplesmente desvia e foge como um coelho acuado. Assim, o que resta do argumento de Behe resume-se ao mesmo velho “argumento da incredulidade pessoal” (Dawkins 1991, p. 38), que está muito longe do “critério objetivo” para o Design que os teóricos do CDI haviam prometido” (Boudry, Blancke, Braeckman, 2010).
A análise proposta por Boudry, Blancke e Braeckman (2010) é bastante rica e de fácil assimilação. Este artigo fornece uma perspectiva muito valiosa que nos permite lidar melhor com os ataques criacionistas e sua caixa de ferramentas retóricas. Os tópicos levantados evidenciam alguns exemplos de como o discurso anticientífico se utiliza das equivocações e ambuiguidades e desvia o foco das questões pertinentes sempre que necesssário, invertendo o ônus e se mantendo constantemente em movimento. Além disso, complementam outro trabalho de dois destes mesmos autores sobre estratégias de impermeabilização epistêmica utilizadas por movimentos pseudocientíficos (Boudry and Braeckman, 2010). Portanto, leiam e aproveitem o artigo.
Behe, Michael (1997) A caixa preta de Darwin: O desafio da bioquímica à teoria da evolução Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor ISBN: 978-85-7110-412-9.
Bridgham JT, Carroll SM, Thornton JW. Evolution of hormone-receptor complexity by molecular exploitation. Science. 2006 Apr 7;312(5770):97-101. PubMed PMID: 16601189.
Boudry, M, and Braeckman, J. (2010). Immunizing strategies & epistemic defense mechanisms. Philosophia, 10.1007/s11406-010-9254-9.
Catalano, John [editado] [Text updated: October 16, 2001; Links updated: January 25, 2004] Publish or Perish: Some Published works on Biochemical Evolution The talkorigin Archives.
Dean AM, Thornton JW. Mechanistic approaches to the study of evolution: the functional synthesis. Nature Reviews Genetics 8:675-688, 2007.
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Lenski RE, Ofria C, et al. (2003) The evolutionary origin of complex features. [Article]. Nature 423(6936):139-144
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Theobald, Douglas (Last Update: July 18, 2007)The Mullerian Two-Step: Add a part, make it necessary or, Why Behe’s “Irreducible Complexity” is silly Version 1.1
Cada dia me convenço mais que o universo da biologia não se constitui meramente de ciência. Se prestarmos um pouco de atenção vamos comprovar que há muita poesia escondida nos relatos científicos. Isso é o que vamos constatar agora lendo um trecho do livro “Diversidade da Vida”, de Edward O. Wilson, professor de biologia evolucionista e curador de entomologia do Museu de Zoologia Comparada da Universidade de Havard (E.U.A).
No capítulo dois, Wilson menciona o plâncton eólico como um elemento fundamental para a colonização da ilha de Krakatau, localizada no mar de Java. Krakatau, antes chamada equivocadamente de Krakatoa, desapareceu em 27 de agosto de 1883 em virtude de uma série de erupções vulcânicas. Rakata, uma montanha coberta de cinzas da antiga Krakatau, sobreviveu como uma ilha estéril. Mas a vida logo começou a surgir novamente, oferecendo aos biólogos a oportunidade única de observar a formação de um ecossistema tropical desde o princípio. Seriam os organismos diferentes daqueles que existiam antes? Uma floresta tropical voltaria um dia cobrir a ilha?
A primeira busca de vida em Rakata foi realizada por uma expedição francesa em maio de 1884, nove meses após as explosões que despedeçaram a ilha. Tendo saído especificamente à cata de organismos, o naturalista do navio escreveu que, “apesar de todas as minhas buscas, não fui capazde observar qualquer indício de vida animal. Descobri apenas uma aranha microscópica- uma apenas; esta estranha pioneira da renovação estava ocupada tecendo sua teia.
Um filhote de aranha? Como uma pequenina criatura sem asas poderia chegar tão rapidamente à ilha deserta? Os aracnólogos sabem que a maioria das espécies empreende “viagens de balão” em algum ponto do seu ciclo de vida. A aranha se coloca na borda de uma folha ou em algum outro local exposto e lança um fio de seda das fiandeiras na extremidade posterior do abdômen. O fio acaba sendo colhido por uma corrrente de ar e vai se esticando, puxado pelo vento, como a linha de uma pipa. A aranha vai tecendo mais e mais seda até que o fio exerce um forte puxão sobre ose u corpo. Ela então se solta da folha ou da relva e sai voando. Não apenas os filhotes minúsculos, mas também aranhas grandes, que por vezes atingem milhares de metros de altitude e viajam centenas de quilômetros antes de voltar ao chão para acomeçar uma vida nova. Ou então caem na água e morrem. As viajantes não têm controle algum sobre a sua descida.
As aranhas que empreendem essas viagens de balão são membros do que os ecologistas, numa dessas raras expressões felizes derivadas do grego e do latim, chamaram deliciosamente de plâncton eólico. Em linguagem comum, plâncton é a vasta multidão de algas e pequenos animais arrastada passivamente pelas correntes de água; eólico refere-se ao vento. As criaturas que compõem o plãncton eólico são dedicadas quase interiramente à dispersão em longa distância. Podemos ver o plâncton eólico se formando em nossos jardins e arbustos numa tarde tranqüila de verão, quando os pulgões abrem suas asas delicadas e se erguem apenas o suficiente para serem levados pelo vento. Uma chuva de bactérias plânctônicas, esporos fúngicos, pequenas sementes, insetos, aranhas e outras minúsculas criaturas cai incessantemente sobre amaior parte da superfície terrestre. É uma chuva rala e difícil de detectar momento a momento, mas vai se acumulando perceptivelmente ao longo de semanas ou meses. Foi assim que amaioria das espécies colonizou o resquício carbonizado e cauterizado de Krakatau.
Muito raramente, uma tempestade violenta transforma animais maiores ( como lagartos ou rãs) em passageiros eólicos, arrastando-os para praias distantes. Trombas-d’águas podem pegar peixes e transportá-los vivos para lagos e rios das proximidades.
Um cenário quase surrealista apresentou-se a mim nestes dias que antecedem o natal. Peço desculpas aos membros desta rede social empenhados em divulgaçao de assuntos de interesse científico pelo que escreverei a seguir mas logo compreenderão porque não pude me conter.O fato que deu origem a estas reflexões foi o seguinte : Todos os dias, quando retorno do meu trabalho para minha casa tenho de passar necessariamente pelas dependências de um shopping para ter acesso ao metrô. Na entrada de um deles ( existem dois, um em cada lado da linha do metrô) já está montada a árvore multicolorida, um Papai Noel postado em sua base, um barraco de madeira ao lado com dispositivos que lembram um estúdio de gravação e fotos e uma mesinha de som em frente onde um ¨punk¨manipula seus botões cibernéticos e seleciona o som ambiente. Ao passar pela entrada para tomar um café, a primeira surpresa : a tradicional Jingle Bell tocando em ritmo de samba e carnaval !! Olhei, escutei, passei e subi para o café. Nos céus, nuvens escuras prenunciavam chuva torrencial e não demorou muito para as primeiras gotas começarem a cair. Terminei e desci. Enquanto me aproximava novamente da entrada comecei a ouvir o bloco seguinte : uma seleção de músicas típicas de discotecas-boites, tipo bate-estaca e bastante adequada para ¨ turbinar¨shows eróticos e ramificações !! Fiquei pasmo ! Postei-me em frente à vidraça que separa as dependências internas da parte externa e olhei para os jardins e a rua. Lá fora um temporal dos diabos. Mudei o foco e pelo vidro conseguia observar o que estava se passando um pouco ao lado e a alguns metros atrás de mim ( o ângulo de reflexão da luz é igual ao ângulo de incidência ) : As mamâes-noeis dançavam em ritmo de discoteca. O Papai Noel ( de óculos ) também dançava e abraçava uma jovem e bonita colegial adolescente de uniforme com um sorriso cínico típico. Identifiquei imediatamente uma guerra de informação bioquímica e neurotransmissores oscilando loucamente para manter seu comportamento em níveis adequados à situação criada e lutando heròicamente contra as intruções codificadas naquilo que alguns sociobiologistas denominaram de Imperativo Reprodutivo. Prestei mais atençao, olhei para os lados e vi o cartaz : Natal divertido no Shopping , com personagens de desenhos e história em quadrinhos, etc..,etc…Pensei comigo mesmo : os criacionistas opositores da teoria da evolução estão identificando o inimigo errado ! Eis aqui um magnífico exemplo de como mudanças graduais e cumulativas têm o poder de produzirem grandes transformações ao longo do tempo : desconstruindo padrôes, a civilização ocidental moderna da hiper-mídia e do mega-consumo com seus shoppings caracterizados como ¨templos de adoração do mundo material¨ são agora donos de um poder sem precedentes no que diz respeito à corrupção de valores éticos , morais e religiosos. Não, evidentemente não estavam rezando. Estavam se divertindo, como desejam os administradores do shopping e os patrocinadores do evento.È claro que posicionei-os todos próximos ao pico da densidade normal no que diz respeito à média de váriáveis de comportamento que estavam exibindo, o que os caracterizavam como ¨normais¨ou ¨saudáveis¨, mas esperem, com relação à o quê ? Evidentemente não do ponto de vista de um camundongo. Do ponto de vista da própria curva do sino ? Afinal o que somos ? Somos o tempo e o lugar onde nascemos? Plastic Ono Band , de John e Yoko Ono, não tocavam jazz. Mas poderiam fazê-lo, se assim o permitisse as contingências de suas vidas . Passados trinta anos da morte de Lennon, que compôs God e Imagine ( citada por Dawkins ) , onde letra e música dizem muito à respeito de suas idéias. termino esta minha breve mensagem, porque não, lembrando o título de uma de suas últimas composições : Feliz natal para todos !!.