Sem categoria

Evolução – A História da Vida (editora Larousse)

Publicado no Brasil em 2009, “Evolução: A história da vida” (“Evolution: a Story of Life”), é um livro para toda a família e foi feito em uma parceria entre o Museu de História Natural de Londres e a editora Larousse, tendo sido escrito por Douglas Palmer e belamente ilustrado por Peter Barret.

A edição brasileira foi traduzida por Ana Catarina Nogueira e revisada pelo professor do departamento de zoologia, do Instituto de Biociências da USP, Dr. João Nogueira. O livro em formato de atlas, além de uma concisa e atualizada introdução à evolução biológica e ao seu estudo, nos leva a uma viagem, ricamente lustrada, pela história da vida em nosso planeta, mas com especial ênfase nos últimos 570-600 milhões de anos da história da vida animal, e que portanto merece um lugar nas estantes de toda biblioteca familiar e escolar de nosso país.

Segue a tradução do resumo da edição norte-americana editada pela University of California press:

Evolução recria a história 3,5 bilhões de anos de vida sobre a Terra em detalhes impressionantes através de vívidas ilustrações coloridas e gráficos, a mais recente informação científica, e centenas de fotografias. No coração do livro está um panorama, surpreendente belamente detalhado pelo renomado ilustrador Peter Barrett, que, em 100 reconstruções dos sítios em página dupla, oferece uma vista congelada das comunidades – de micróbios à humanidade, que viveram nos continentes do nosso planeta e em seus oceanos. Estas obras de arte inovadoras, com base nas mais recentes descobertas em alguns dos mais famosos sítios fósseis de todo o mundo, estão emparelhadas com um texto avalizado e altamente informativo escrito para um público amplo de leitores. Um projeto marcante, publicado para comemorar o 200º aniversário do nascimento de Charles Darwin e os 150 anos de seu livro ‘A Origem das Espécies’, ‘Evolução’ foi produzido em associação com o Museu de História Natural de Londres, um dos mais importantes centros de pesquisa em evolução do mundo. O volume inclui um índice de centenas de espécies indicadas nas ilustrações, artigos introdutórios sobre a evolução, e muitos outros recursos, tornando-se um livro essencial de referência para todas os lares, escolas e bibliotecas.”

E segue um vídeo com uma mostra das páginas do livro em sua versão britânica:

 


Não percam!!

___________________________________________

*”Evolution recreates the 3.5-billion-year story of life on Earth in stunning detail through vivid full-color illustrations and graphics, the latest scientific information, and hundreds of photographs. At the heart of the book is an astonishing, beautifully detailed panorama by renowned illustrator Peter Barrett that, in 100 double-page site reconstructions, offers a freeze-frame view of the communities—from microbes to humankind—that have lived on our planet’s continents and in its oceans. These groundbreaking artworks, based on the most recent findings at some of the most famous fossil sites around the world, are paired with an authoritative and highly informative text written for a wide audience of readers. A landmark project, published to commemorate the 200th anniversary of Charles Darwin’s birth and the 150th anniversary of his book On the Origin of Species, Evolution has been produced in association with the Natural History Museum in London, one of the most important centers of evolution research in the world.The volume includes an index of the hundreds of species shown in the illustrations, introductory articles on evolution, and many other features, making it a must-have reference for all homes, schools, and libraries.”

___________________________________________

Efeito Fundador: Histórias Pessoais da Genética no Brasil

Efeito Fundador, da VERTE Filmes, conta a história do Departamento de Genética da UFRGS, grupo pioneiro no estudo desta ciência no Rio Grande do Sul. Através de depoimentos de cientistas como Francisco Mauro Salzano, Antônio Rodrigues Cordeiro e Irajá Damiani Pinto, o documentário de média-metragem percorre a história da genética no Rio Grande do Sul e no Brasil.

Mais vislumbres de miscigenações ancestrais no DNA humano

Evidências genéticas obtidas de populações africanas modernas de caçadores-coletores revelam indícios de miscigenação com outra linhagem humana desconhecida.

Em estudo, cujos resultados foram publicados pela revista Cell, um grupo de cientistas liderado por Sarah A. Tishkoff (e cujo primeiro autor do artigo é Joseph Lachance) revelou – após  terem analisado amostras de DNA doadas por 15 africanos de populações caçadores-coletoras de Camarões e da Tanzânia, por meio de avançadas técnicas estatísticas – padrões que até o momento parecem ser muito melhor explicados por algum nível de miscigenação ancestral com alguma linhagem de hominines ainda desconhecida pelo registro fóssil, que deve ter divergido da nossa, mais ou menos, na mesma época que a dos Neandertais o fez, permanecendo isolada por bastante tempo, até voltar a se misturar com a nossa por meio de cruzamentos com as populações ancestrais das populações modernas investigadas.

Com o objetivo de reconstruir a história evolutiva humana moderna, identificando genes relacionados com a adaptação das populações desses grupos de caçadores-coletores, a equipe de pesquisadores (re)sequenciou os genomas completos desses 15 indivíduos (cinco indivíduos de cada subgrupo descrito abaixo) com uma cobertura muito grande, de mais 60 vezes o tamanho dos genomas:

  1. Pigmeus de Camarões

  2. Khoesans de língua Hadza, da Tanzânia.

  3. Sandawes, também da Tanzânia.

O time de cientistas que também é formado por Joshua Akey, da Universidade de Washington, um dos responsáveis pelas análises, juntamente com outros colegas que ajudaram no processo, determinou que cerca de 2 % do DNA desses caçadores-coletores parece ter vindo desta espécie de hominínes desconhecida  que divergiu de um ancestral comum – que também deu origem a linhagem que deu origem a nossa, de humanos modernos – cerca de 1,1 milhões de anos atrás. De acordo com o estudo da revista Cell, estes primos humanos ‘perdidos’ devem ter,  após a divergência ancestral e um certo tempo de separação, cruzado com os ancestrais humanos modernos dessas populações de caçadores-coletores, em algum momento antes da linhagem ancestral formadas pelos três grupos de caçadores-coletores da Tanzânia e de Camarões ter se separado, algo em torno de 30.000 a 70.000 anos atrás.

No trabalho foram identificadas 13,4 milhões de variantes, o que aumenta substancialmente o número de variantes humanas conhecidas. Além disso, os resultados permitiram a identificação de várias regiões genômicas que mostram assinaturas moleculares da seleção natural, sugerindo adaptação local. Entre esses loci estão incluídos genes associados à imunidade, a cicatrização de ferimentos e ao metabolismo, mas também a percepção olfativa e ao paladar, além de outros diretamente relevantes à reprodução. Os pesquisadores também relataram terem encontrado dentro da população de pigmeus, múltiplos loci altamente diferenciados, que desempenham um papel no crescimento e na função da hipófise anterior e que estão associados com a estatura.

O artigo da revista de The Scientist sobre a descoberta, escrito por Tina Hesman Saey, relata um outro estudo separado, que foi depositado online no dia 23 de julho nos arXiv.org, com resultados e conclusões consistentes com os publicados na revista Cell. Neste estudo, Joseph K. Pickrell, da Harvard Medical School, e vários colaboradores, examinando os padrões de variação dos SNPs – abreviatura em inglês de ‘Single Nucleotide Polimorfism‘, ou seja, variações em que um único nucleotídeo é substituído por outro – em 22 grupos de africanos, constataram evidências adicionais de que algumas populações africanas, incluindo os Hadza investigados no estudo da Cell, também possuiriam variantes genéticas provenientes de espécies desconhecidas de hominines extintos.

É preciso ter em mente, contudo, que diferentemente dos estudos anteriores que revelaram a miscigenação introgressiva de Neandertais e Denisovanos nos genomas de populações modernas de Eurasiáticos e Melanésio, respectivamente, estes novos estudos não contam com amostras de DNA obtidas de restos fósseis dos esqueletos do suposto hominine, portanto, o cruzamento ancestral tendo sido inferido de forma bem mais indiretamente.

O mesmo artigo da revista The Scientist, inclusive, traz a ressalva que outros pesquisadores ainda não estão convencidos de que as variantes de DNA identificadas nestes estudos sejam realmente atribuíveis a resquícios genéticos de miscigenação ancestral com uma ‘nova’ espécie humana, ainda desconhecida através do registro fóssil.

Os críticos argumentam que estas variantes de DNA poderiam ter vindo de um grupo geneticamente distinto de seres humanos modernos, mas que deve ter sido extinto devido a mudanças em seu ambiente, doenças ou confrontos com grupos rivais de humanos, como afirma Jean-Jacques Hublin, paleoantropólogo do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, na Alemanha.

Algo semelhante é afirmado por Paul Verdu, especialista em genética antropológica da Universidade de Stanford, nos EUA, que explica que cruzamentos relativamente recentes não são a única explicação para a presença destas variantes de DNA recém-descobertas. Verdu acredita que o DNA pode ser simplesmente remanescente de um estoque genético, possuído por um ancestral comum de humanos modernos e de outras espécies, mas que se transformou tanto em grupos não-africanos, por simples efeito do acaso, que atualmente não é mais reconhecível nos demais grupos humanos.

Ainda assim, a descoberta ilustra o poder das metodologias de produção em larga escala e análise de dados genômicos de alta definição, também mostrando as nuances da história evolutiva de nossa linhagem. Esperamos que estudos adicionais resolvam as questões pendentes e lancem mais luz nos estudos das origens de nossa espécie.

Para saber mais sobre o que temos descoberto sobre o passado de nossa linhagem, veja a série de posts aqui do evolucionismo.org sobre o tema Quem somos nós e como sabemos quem somos? Parte I, II e III” em que mais detalhes sobre as descobertas das últimas.

__________________________________________

Referências:

  • Lachance, J. et al. Evolutionary history and adaptation from high-coverage whole-genome sequences of diverse African hunter-gatherers. Cell, Vol 150, August 3, 2012, p. 1. [LINK]. [LINK]

  • Pickrell, J.K. et al. The genetic prehistory of southern Africa. arXiv:1207.5552v1. [LINK]

  • Saey, T. Hesman DNA hints at African cousin to humans. Science News Web edition: Tuesday, July 31st, 2012. [LINK]

Créditos das Figuras:

MATTHEW OLDFIELD/SCIENCE PHOTO LIBRARY

GUSTOIMAGES/SCIENCE PHOTO LIBRARY

“DNA SNP”: Fonte: Wikicommons; Autor David Hall (Gringer)

O alvorecer da filomedicina

A biologia evolutiva é essencialmente um campo de pesquisa básica cujos principais objetivos são compreender os padrões e processos por trás da evolução dos organismos vivos desde o nível genético-molecular, passando pela evolução das células procariontes e eucarionte, investigando origem e evolução dos seres multicelulares, pela origem da biodiversidade no contexto da história da vida em nosso planeta, inclusive buscando a compreensão de como se formaram, e mudam ao longo das eras, os ecossistemas e biomas que formam nossa biosfera. Porém, é inegável que o tipo de conhecimento produzido pela biologia evolutiva compreendida de forma ampla, que se sobrepõem a áreas como a genética, bioquímica, bioinformática, sistemática, ecologia, fisiologia, anatomia e embriologia, microbiologia, biogeografia e paleontologia, têm implicações diretas na forma como vivemos nossas vidas em sociedade e desta maneira torna-se aplicável de maneira mais direta a melhoria desta mesama sociedade. Neste contexto, uma nova técnica promete melhorar nossa capacidade de identificar genes associados a várias doenças comuns e assim aumentar a reproducibilidade de estudos de associação genômica [1].

O impacto das pragas, pestes e patógenos sobre os seres vivos, e especialmente a forma como mudam e se adaptam frente a utilização de defensivos agrícolas e antimicrobianos, são um exemplo claro da relevância do estudo da evolução. Também o são, os estudos sobre interações entre espécies e sua coevolução, fundamentais como base para compreendermos o efeito da introdução de novas espécies em novos ambientes e para nortearmos os esforços de conservação de espécies ameaçadas, assim como são os estudos sobre macroevolução e sobre as extinções e como elas afetam as biotas e como estas se recuperam, conhecimento que podem nos dar insights importantes sobre como diagnosticar eventuais extinções que estejam se avizinhando, como a possível sexta extinção em massa que podemos estar provocando, e também como, em princípio, evitá-las ou, pelo menos, lidar com seus efeitos de modo que minimizemos seu impacto negativos em nossas espécie e nas várias outras com as quais partilhamos estas fração do tempo e do espaço.

Na realidade, toda a ideia de testes com organismos-modelos – base da farmacologia, fisiologia, cirurgia experimental, toxicologia e biomedicina de modo mais geral -, mesmo precedendo a consolidação dos estudos evolutivos, é informada e cosubstanciada pela biologia evolutiva e as similaridades filogenéticas entre os organismos (associadas a considerações mais pragmáticas relativas a obtenção, manutenção e facilidade de uso) é que dão substância a uma série de práticas nestas disciplinas, desde a escolha dos organismos até como usar as informações obtidas a partir da análise bioquímica, fisiológica e genômica de animais e outros organismos vivos para identificar moléculas, sistemas e processos fisiopatológicos relevantes para nossa espécie.

Boa parte desta interação e intercâmbio entre as formas mais aplicadas de biomedicina e biologia humana, infelizmente, é feito de maneira pouco clara e às vezes até não refletida. Contudo, mais recentemente têm se aumentado os esforços de desenvolver uma medicina informada pela biologia evolutiva, por exemplo, tentando compreender várias condições, transtornos e doenças humanas crônicas, por exemplo, como sendo frutos de nosso passado evolutivo e resultado de eventos ancestrais, como as diminuições drásticas das nossas populações há dezenas de milhares de anos atrás, conhecidos como efeitos gargalos de garrafa, que, ao reduzirem a população efetiva, aumentaram o poder da deriva e contribuíram assim para fixação, ou pelos menos aumentar a frequência em nossa população, de uma série de genes e alelos ligeiramente desvantajosos que podem estar por trás vários dos nossos problemas de saúde crônicas e propensões a certas doenças que dependem da exposição a certos ambientes e modos de vida, dando mais peso àquilo que se convencionou chamar de “medicina evolutiva“.

Entre os cientistas que preocuparam-se com estas possibilidades estão o famoso geneticista de populações James F. Crow (1916-2012,) que aparece acima a esquerda tocando seu

violino e que infelizmente faleceu aos 96 anos de idade, neste mesmo ano, e o geneticista evolutivo da Universidade de Indiana cujos artigos foram resenhados várias vezes aqui no evolucionismo, Michael Lynch. (Veja por exemplo sobre este tema em especial o artigo “Qual será o futuro genético da humanidade?“]

Além de usar a história demográfica pregressa de nossa espécie em combinação com os modelos matemáticos da genética de populações evolutivas para compreender a saúde humana, outras abordagens objetivam compreender algumas de nossas fragilidades como sendo derivadas de ‘trade offs‘ evolutivos em que certos alelos e loci aumentaram suas frequências nas populações humanas mesmo causando uma série de problemas simplesmente por que estavam associados a vantagens reprodutivas precoces, sendo dificilmente purgados pela seleção negativa por que seus efeitos mais drásticos e negativos ocorriam bem depois do auge reprodutivo, especialmente em épocas em que as tecnologias e as práticas socioculturais não haviam ainda aumentado tanto a nossa expectativa devida média ao nascer e atrasado tanto o início da reprodução de várias populações, como podemos obsevar hoje em dia, particularmente, em países e regiões mais industrializadas e abastadas.

Esta segunda abordagem sofreu grande influência do biólogo evolutivo George C. Williams, um dos principais teórico da moderna biologia evolutiva da segunda metade do século XX, após o período da síntese moderna nos anos 30 e 40, e o médico Randolph M. Nesse que, junto a Willians nos anos 90, começou a divulgar a ideia de “Medicina Darwiniana” que tem crescido a passos lentos, mas contínuos, e que dão especial ênfase, como já comentado, ao conceito de trade-offs e ideias a ele relacionadas como ‘pleiotropia antagônica‘.

Porém, até recentemente, estas abordagens eram mais explicativas do que propriamente possibilitadoras de intervenções ou mesmo de identificação de mecanismos fisiopatológicos relevantes, ainda que já pudessem reforçar certas formas de tratamento e corroborar  indicações de mudanças de hábitos dietários e comportamentais, com atividade física.

Com a aurora dos estudos genômicos (e das outras ‘ômicas‘) e da bioinformática – disciplinas que surgiram da necessidade de lidar a montanha de dados gerados por métodos de sequenciamento e perfis de expressão de RNAs e proteínas e suas interações em larga escala – novas formas de empregar as informações evolutivas tem sugerido formas de identificar de maneira mais direta genes e regiões genômicas mais passíveis de serem relevantes às doenças complexas crônicas que desfiam a medicina moderna.

Como explica Richard Harth [2], os genomas humanos são enormes estruturas constituídas por cerca de impressionantes de 3 bilhões de pares de bases de nucleotídeos, sendo que a maioria deles está repleta de variações nas posições de nucleotídeos, desafiando os pesquisadores a identificarem àquelas que ficariam lá à toa, sem fazer nada de mais, como os polimorfismos neutros, das que realmente podem traduzir-se em doenças.

A ideia geral de que haveriam componentes genéticos em várias doenças crônicas veio inicialmente do fato que algumas doenças bem conhecidas apresentam uma correspondência de um para um entre uma dada substituição em um determinado gene e uma dada doença bem caracterizada. Estas chamadas doenças monogênicas como os diversos erros inatos de metabolismo, têm características bem particulares, sendo como já foi dito resultadso de geralmente uma única mutação em apenas um locus, além de geralmente terem um início precoce,  cobrando seu preço pago pelo paciente ainda na juventude. Entre as doenças monogênicas mendelianas mais conhecidas podemos citar a fibrose cística, a doença de Tay Sachs, a anemia falciforme e a doença de Huntington, está última destoando das demais por que seus efeitos tendem aparecer na idade adulta dos pacientes. Contudo, estas são apenas uma minoria das doenças em que acredita-se que haja um componente hereditário ainda que não tão direto e tristemente confiável, mas que tendem a mostrarem-se parcialmente herdáveis  aparecendo em estudos de herdabilidade e nos levantamentos de históricos de ‘pedigrees’ familiares.

As doenças complexas, como outras características complexas fisiológicas, anatômicas, cognitivas e comportamentais, são causadas por múltiplos fatores que interagem muitas vezes de maneira complicada, o que torna às vezes bem difícil a separação dos componentes ambientais e psicossociais daqueles hereditários que, mesmo assim, normalmente envolvem vários loci, possivelmente com vários alelos cada. Esta labilidade torna necessário que sejam usados métodos estatísticos e grandes estudos populacionais casos-controle ou de coorte em que pacientes saudáveis e acometidos são investigados à procura de eventuais diferenças genéticas. Entre essas doenças estariam algumas condições que têm preocupado cada vez mais as autoridades de saúde e os governos, além da sociedade como um todo, de forma mais geral, como a hipertensão, a artrite reumatoide, a doença de Alzheimer, a diabetes tipo II etc.

Uma das principais maneiras de investigar as contribuições genéticas a estas chamadas doenças complexas envolve o uso de estudos genômicos associativos ou GWAS (Genome-Wide Association Studies) em que são contrastados grupos de pessoas com certas doenças, os casos, com grupos de pessoas da mesma população com características equivalentes (como idade, sexo, peso, ocupação etc) exceto que não possuem a doença em questão, os controles, e, a partir daí, são comparadas diversas regiões genômicas em busca de variações que sejam muito mais frequentes nas porções doentes das amostras do que nas sãs. As formas mais investigadas de variações genéticas são os chamados SNPs, que são ‘polimorfismos de nucleotídeo único’, ou seja, sequências em que um dos nucleotídeos (as ‘letras’ do alfabeto genético, ‘A’, ‘T’, ‘C’, ‘G’, associadas, respectivamente, às bases nitrogenadas adenina, timina, citosina, guanina), além de outros marcadores genéticos, que revelariam arquiteturas genéticas subjacentes as doenças humanas que estão sendo investigadas.

O problema com esta abordagem é que vários dos esforços mais sistemáticos ao longo da última década, acabaram se mostrando não reproduzíveis. Por isso variantes genéticas que explicam uma parte substancial do risco hereditário de certas doenças humanas comuns ainda não foram descobertas, embora vários candidatas tenham sido levantadas e inicialmente se mostrado promissoras. Em muitos casos as associações encontradas em uma população não são confirmadas em outra muito semelhante. Isso pode ocorrer por vários motivos, um deles é que muitas vezes os SNPs e outros marcadores não são eles próprios os causadores das doenças mas encontram-se próximos, geneticamente ligados, aos genes que realmente teriam um papel causal, entretanto, em outras populações essas ligação pode ter sido quebrada como efeito da recombinação.

Além disso, como as relações entre a posse de uma dada variante e uma condição são bem pouco diretas e dependem de uma combinação de fatores, e complicadas interações, é também possível que uma dada variante que realmente faz parte das cadeias causas por trás de uma dada doença, em outra população, tenham seu efeito compensado por um outro pano de fundo genético ou por uma sutil mudança de ambiente que altera a forma como os genes interagem uns com os outros e como seus produtos são expressos. Além disso, boa parte dos ‘sinais’ produzidos por estes estudos podem ser espúrios e estarem correlacionados com as doenças apenas por causa de um fator comum talvez associado a origem da população particular ou surgirem como artefato de múltiplas comparações, o que pode ocorrer no caso de estudos prospectivos com desfechos mais amplos e não muito bem definidos. Porém, novos esforços e procedimentos vêm sendo desenvolvidos para lidar com estas frustrantes limitações deste tipo de estudo.

Um grupo de biocientistas, liderados por Sudhir Kumar, do Biodesign Institute da Universidade do Estado do Arizona – e que contava também com a participação de Rong Chen, Maxwell Sanderford, Atul J. Butte e Joel T. Dudley, do Programa em Informática Biomédica, Stanford University School of Medicine, este último, primeiro autor do artigo publicado em abril deste ano na revista Molecular Biology and Evolution – empreendeu uma análise em que foram investigadas 5.831 supostas variantes genéticas envolvidas em possíveis riscos à saúde humana e que estavam associadas a mais de 230 fenótipos de doença e que, por sua vez, haviam sido relatados em 2.021 estudos [1].

Este tipo de estudo é conhecido como meta-análise, um grande estudo estatístico que aglutina vários estudos estatísticos de associação do tipo anteriormente descrito. Neste estudo, o grupo de Kumar combinou estes dados com informações filogenéticas que permitiram aos autores desenterrarem padrões e tendências evolutivas que estariam ocultas nos dados e que poderiam indicar uma maior relevância das associações entre certos alelos e as doenças com as quais deveriam estar correlacionados.


“Cada posição no genoma humano entre os bilhões de pares de bases evoluiu ao longo do tempo” [2]

diz Kumar e acrescenta:

“Como o genoma evolui, algumas posições permitem mudanças com maior freqüência, enquanto outras não.” [2]

Nos estudos genômicos associativos, do tipo analisado por Dudley et al. [1], normalmente são calculadas as probabilidades de alelos, ao longo do genoma, estarem relacionados à doenças. Estas probabilidades, por sua vezes, aparecem na forma de estatísticas bem conhecidas, como o valor-p que indica a probabilidade daquela associação, ou de uma mais extrema, ser real caso a hipótese de nulidade – ou seja, que as correlações são apenas fruto do acaso e que não há uma vinculação necessária – seja verdadeira. Assim, os alelos com os menores valores-p são considerados os menos prováveis de estarem associados as doenças pelo mero efeito do acaso e passam a ser os melhores candidatos para fatores causais.

O esquema acima ilustra um exemplo do cálculo envolvido nos estudos de associação genômica que seguem o delineamento de estudos casos-controle. As contagens de alelos de cada SNPs medido são avaliadas, neste caso com um teste de Chi-quadrado (χ2), a fim de se identificar variantes associadas com a característica em questão. Os números neste exemplo são tomados de um estudo de 2007 sobre doença arterial coronariana (DAC) que mostraram que os indivíduos com o alelo G do SNP1 (rs1333049) estavam ‘sobrerepresentados’ entre os pacientes com DAC. [Wellcome Trust Case Control Consortium (June 2007). “Genome-wide association study of 14,000 cases of seven common diseases and 3,000 shared controls”. Nature 447 (7145): 661–78. doi:10.1038/nature05911.; Fonte: wikicommons; Autor:Lasse Folkersen; Data: 16 de janeiro de 2012]

 

Dudley afirma que:

“Mesmo se uma variante GWAS não tiver um papel funcional em uma doença, a informação evolutiva é ainda muito relevante, porque cada posição no genoma humano tem uma assinatura evolutiva que nos dá informação prévia sobre a forma como os alelos naquela posição são suscetíveis de variar em populações humanas modernas “ [2]

Os pesquisadores de posse dos resultados da meta-análise constataram que a maioria dos alelos presumivelmente relacionados a doenças, descobertos nos estudos associativos genômicos, ocorriam em regiões genômicas que evoluíam de maneira relativamente lenta. Essas posições que mostram-se menos propensas a mudar com o tempo e mantém-se estáveis em várias espécies de organismos vivos, no caso do estudo, outros mamíferos, são ditas ‘evolutivamente conservadas’ [2].

Isto é, as abordagens atuais mostram uma tendência à descobrir SNPs associados à doenças (dSNPs) em posições conservadas do genoma, já que tanto o tamanho do efeito (razão de chance/odds ratio) como os valores-p alélicos de associação genética de um SNP correlacionam-se fortemente com a conservação evolutiva da sua posição genômica. Segundo Kumar, como parafraseado por Harth:

Este fato dá conta da pobre reprodutibilidade de muitos alelos de doenças putativos através de diferentes populações, uma vez que alelos que ocorrem em locais conservados tendem a ser raros.” [2]

Kumar então explica:

“Você pode continuar encontrando alelos raros como este o dia inteiro, mas eles têm utilidade clínica limitada em uma população mais ampla.” [2]

A partir daí os autores propuseram um nova sistema de ranqueamento de SNPs que integraria os scores (pontuações) de conservação evolutiva e o valores-p que foi chamado de ”E-rank”. Este sistema  incorpora, portanto, a informação filogenética de estudos envolvendo múltiplas espécies de mamíferos e os aplica aos dados provenientes dos estudos associativos e as medidas de significância das associações. Assim, os autores conseguiram remover o viés intrínseco de amostragem de alelos raros de pequeno efeito, permitindo que alelos mais comuns e que ocorrem em sítios que evoluem mais rapidamente nos genomas sejam descobertos de forma mais fácil.

Com base nisso, usando os dados publicados de um estudo caso-controle muito grande, os cientistas puderam demonstrar que o método de E-rank prioriza SNPs, com maior verossimilhança (likelihood), associações de doenças fidedignas e reprodutíveis, muitas das quais podem explicar a maior proporção da variância genética. Dudley afirma:

“Nosso método elimina este viés, o que dá um ‘gás’ nas variantes comuns de alta freqüência que são mais propensas a serem reproduzidas através de populações devido à história evolutiva da posição genômica onde elas se encontram” [2]

Isso mostra que, a longo prazo, o histórico evolutivo das posições genômicas ofereceriam uma forma útil e prática mais confiável de reavaliar os dados de estudos de associação de doenças existentes, além de poderem ser usados para melhorar o delineamento e análise de futuros estudos deste tipo que pretendessem mostrar a base genética das várias doenças humanas comuns.

Estas aplicações biologia evolutiva não deveriam causar espanto de maneira alguma. Como produtos de um longo processo evolutivo não é de se estranhar que nossas próprias doenças tenham elas mesmas um histórico evolutivo, especialmente quando estão associadas a variabilidade genética humana e a interação dos nossos organismos com o meio ambiente. Recusar-se a encarar a importância da evolução biológica e relegar a biologia evolutiva a um segundo plano não é só uma atitude ignorante de quem não quer aceitar a realidade e aventurar-se em compreendê-la da melhor forma possível, mas é socialmente perigosa e medicamente contraproducente. Queiram ou não, a evolução é uma realidade e a biologia evolutiva está aqui para ficar.

_______________________________________________

Referências:

  1. Dudley, J. T,. Chen, R. ,Sanderford, M.,Butte, A. J. , Kumar, S. Evolutionary Meta-Analysis of Association Studies Reveals Ancient Constraints Affecting Disease Marker Discovery. Molecular Biology and Evolution, 2012; DOI: 10.1093/molbev/mss079

  2. Harth, Richard Evolutionary information improves discovery of mutations associated with diseases Biodesign Institute Latest News, July 17, 2012. [Link]

Referências adicionais:

  • Crow JF. The origins, patterns and implications of human spontaneous mutation. Nat Rev Genet. 2000 Oct;1(1):40-7. Review. PubMed PMID: 11262873.
  • Crow JF. The high spontaneous mutation rate: is it a health risk? Proc Natl Acad Sci U S A. 1997 Aug 5;94(16):8380-6. Review. PubMed PMID: 9237985; PubMed Central PMCID: PMC33757.
  • Lynch M. Rate, molecular spectrum, and consequences of human mutation. Proc Natl Acad Sci U S A. 2010 Jan 19;107(3):961-8. Epub 2010 Jan 4. PubMed PMID: 20080596; PubMed Central PMCID: PMC2824313. DOI: 10.1073/pnas.0912629107 [PDF]
  • Nesse RM. How is Darwinian medicine useful? West J Med. 2001 May;174(5):358-60. Review. PubMed PMID: 11342524; PubMed Central PMCID: PMC1071402. [PDF]
  • Nesse RM, Ganten D, Gregory TR, Omenn GS. Evolutionary molecular medicine. J Mol Med (Berl). 2012 May;90(5):509-22. Epub 2012 Apr 29. PubMed PMID: 22544168
  • Nesse RM. What evolutionary biology offers public health. Bull World Health Organ. 2008 Feb;86(2):83. PubMed PMID: 18297156; PubMed Central PMCID:PMC2647384. [PDF]
  • Nesse RM, Williams GC. Evolution and the origins of disease. Sci Am. 1998 Nov;279(5):86-93. Erratum in: Sci Am 1999 Mar;280(3):14. PubMed PMID: 9796548.

Créditos das Figuras:

Uma Breve História da Vida

Comprei e terminei de ler o ¨História da Vida ¨, objeto de comentários e observações de Rodrigo Veras em sua mensagem de blog abaixo entitulada  ¨O pavio filogenético e a explosão cambriana não se fundem ¨. O autor, o geólogo e paleontólogo Michael J. Benton realiza a façanha de descrever em 8 capítulos as principais fases de transição macroevolutivas cobrindo um período de aproximadamente 4 bilhões de anos do maior de todos os épicos naturais de que temos conhecimento, a origem e a evolução dos sêres vivos na Terra. Em um estilo conciso e cauteloso em muitas passagens, achei o livro particularmente adequado ao leitor interessado no assunto e que não dispõe de muito tempo para ler e pesquisar. A seguir destaco um trecho do livro que achei dos mais interessantes e que ilustra o estilo do autor e que sinaliza para uma leitura de grande prazer. No cap. 7, entitulado ¨ A Origem dos Ecossistemas Modernos ¨ e referindo-se à assim denominada ¨ Revolução Marinha do Mesozoico ¨ o autor escreve ( pag. 154 ) :

¨ Os perversos novos modos de predação parecem ter estimulados o surgimento de novos grupos de animais no fundo do mar que quebravam, esmagavam e perfuravam suas presas. Os ancestrais do caranguejos e lagostas surgiram no Cretáceo Inferior, e eles mordiam e rachavam as conchas e os equinodermos. Apareceram novos tipos de trituradores de conchas, os durófogos, incluindo os placodontes doTriássico, bem como uma ampla gama de peixes e répteis esmagadores de conchas do Jurássico e do Cretáceo. Alguns gastrópodes perversos, essencialmente búzios, desenvolveram capacidades de perfuração extraordinárias. A perfuração de conchas é um modo eficiente de predação, mas novos grupos no Cretáceo refinaram essa habilidade para novos níveis. O gastrópode usa tanto meios químicos quanto físicos para cortar um buraco no escudo de sua presa e depois sugar o conteúdo. Ele pode secretar ácidos diluídos, que queimam a casca de carbonato de cálcio, ou usar a rádula com dentes, uma espécie de língua, para limar um buraco. Outros predadores martelavam suas presas contra superfícies e depois as espetavam e as sugavam por suas aberturas naturais, engolindo-as inteiras , ou arrancavam a carne da concha ¨.

 

Termino esta breve mensagem por aqui. Ao leitor interessado recomendo fortemente que leia antes o post de Rodrigo citado acima que comenta e corrige um erro de tradução no fundamental e controverso assunto da chamada ¨Explosão Cambriana¨. Por fim, preparem-se para uma agradável surpresa no último capítulo. Evidentemente não irei contar o final do filme, reservado, é claro, àqueles que como eu e muitos outros não conseguem controlar curiosidades congênitas. Boa leitura ! .

Surpresas sobre as origens do músculo estriado no reino animal

A mobilidade é uma das principais características dos animais e embora existam muitos animais sésseis, que vivem fixados aos substratos, a imensa maioria dos metazoários é capaz de se mover, pelo menos, em uma fase de seu ciclo de vida. Da habilidade de locomoção ativa é que advém várias atividades essenciais nos modos de vida destas criaturas, como evitar predadores e evadir seus eventuais ataques, perseguir presas ou simplesmente buscar alimentos ou condições ambientais mais apropriadas, além de permitirem que se aproximem de parceiros em potencial e, eventualmente, acasalem-se com eles ou liberarem ovos ou esperma em suas proximidades.

Para mover-se ativamente são necessários nervos e músculos, dois tecidos que originaram-se em certo ponto na evolução animal, após a separação do filo Porifera (grupo representado pelas esponjas) dos Eumetazoa, grupo ao qual os BilatResearchBlogging.orgeria (animais com simetria bilateral, como nós, as moscas, vermes e as estrelas do mar, por exemplo), e os Cnidaria (como os corais, anêmonas e águas vivas); com isso tendo ocorrido há mais de 600 milhões de anos, ainda no período pré-cambriano. [Acima podemos ver dois momentos do processo de locomoção da medusa hidrozoária da espécie Clytia hemisphaerica que ocorre através da contração dos seus músculos estriados  – Crédito: Patrick Steinmetz. Fotos retiradas do material disponível no site]

Apesar de conhecemos bastante sobre a estrutura e função dos músculos, especialmente os dos vertebrados que têm sido intensamente estudados desde o século XIX na aurora da fisiologia comparativa, ainda sabemos muito pouco sobre as origens deste tecido.

 

O esquema abaixo [retirado do J Clin Invest. 2005; 115(3):518–526 doi:10.1172/JCI24351] http://www.jci.org/articles/view/24351/figure/2] representa um sarcômero, a unidade básica do processo de contração, que engloba os segmentos de proteínas entre os discos-Z. Em vertebrados as proteínas filamentosas finas são compostas de actina e das troponinas C , T, e I. Os filamentos sarcômericos mais grossos são compostos pelas proteínas filamentosas: miosina de cadeia pesada, pelas cadeias leves essenciais e de regulação da miosinas, pela protein-C de ligação à miosina e pela titina. O sarcômero ancora-se por meio de interações entre a titina e a actina com as proteínas dos discos-Z, α-actinina, calsarcin-1, MLP, teletonina (T-cap), e ZASP.

Um dos motivos que mantém nosso atual estado de ignorância sobre estas temas é o fato de que boa parte dos estudos nos quais dependem a nossa inferência evolutiva, como os de fisiologia, embriologia e anatomia comparativa, e mesmo sobre genética do desenvolvimento, serem conduzidos em animais terrestres, quando a maioria dos filos animais são aquáticos, particularmente marinhos, e foi neste tipo de ambiente em que acreditamos que os primeiros passos da evolução animal ocorreram.

Felizmente as técnicas desenvolvidas nas últimas décadas e empregadas em organismos-modelo tradicionais vêm sendo aplicadas também a diversos grupos de invertebrados marinhos como os cordatos tunicados e anfioxos, em outros animais de simetria bilateral, como equinodermos e anelídeos, e por fim à animais diploblásticos, como anêmonas e medusas, além das esponjas, claro. Essas técnicas permitem aos cientistas investigarem diretamente as moléculas responsáveis pelas características estruturais e funcionais dos tecidos de interesse e assim têm nos descortinado um panorama evolutivo bem mais rico e impressionante do que possuíamos há algumas décadas.

Em um trabalho representativo dessa abordagem, publicado online na revista Nature no mês de junho deste ano, um grupo de cientistas de várias instituições de pesquisa, na Europa, revelaram que a história da evolução da musculatura estriada começa muito antes do que havíamos pensado, antes mesmo que os organismos multicelulares houvessem evoluído.

O artigo tem como primeiro autor, Patrick R. H. Steinmetz, pós-doutorando no laboratório do grupo de Genética Molecular do Desenvolvimento de Cnidaria, do Centro Internacional para Biologia Marinha Molecular, Sars, em Bergen, na Noruega – liderado por Ulrich Technau, autor sênior do trabalho. Nesta pesquisa, o alvo dos cientistas foi a musculatura estriada, um tipo de tecido muscular presente em animais com simetria bilateral e em alguns outros eumetazoários não-bilaterais como os cnidários.

Os eumetazoários, Bilateria e os Cnidaria, assim como uma única espécie de ctenóforos (que no passado eram reunidos em um grande grupo chamado ‘celenterado’.), compartilham células musculares lisas e estriadas que não estão presentes em outros animais, como os placozoa e as esponjas. No caso da musculatura estriada dos vertebrados, por exemplo, o característico padrão de estriação resulta em várias unidades contrateis, conhecidas como sarcômeros, que são formadas conjuntos de grossos filamentos da proteína miosina alternados com filamentos da proteína actina, margeadas pelos discos-Z* que dão suporte a unidade contrátil. E um dos primeiros fatos que chamam a atenção dos biólogos é a grande similaridade ultra-estrutural desses tipos de músculos entre os Bilateria e Cnidaria, o que sugere uma origem evolutiva comum, ainda que cenários de origem independente já tenham sido propostos. Porém, muitos cientistas acreditam que este padrão de musculatura realmente teria surgido antes da separação desses grupos, o que é consistente com a observação de que a principal proteína motora associada ao aparato contrátil, a miosina de cadeia pesada tipo II (MyHC) é encontrada somente nos tecidos musculares dos animais desses grupos, corroborando a ideia de uma origem comum mais recente, após a separação do eumetazoa do grupo das esponjas.

O grupo de cientistas, então, resolveu reavaliar a evolução da musculatura estriada nos animais usando ferramentas de mineração genômica, análise filogenética molecular, aplicadas conjuntamente à análise dos perfis de expressão gênica em esponjas e cnidários.

 

Abaixo um ‘close-up’ das células musculares estriadas (vermelho, na horizontal) e lisas (vermelho, na vertical) da água-viva hidrozoária, Clytia hemisphaerica, e o núcleos das células coloridos em azul [Crédito: Johanna Kraus – retirado do material disponível no site] Os pesquisadores também empreenderam uma análise comparativa de 47 componentes moleculares dos tecidos musculares de organismos com simetria bilateral, em 22 genomas que já haviam sido completamente seqüenciados de espécies de metazoários, bem como de grupos de protistas proximamente relacionadas aos animais, assim como fungos e outros eucariontes, de modo que os autores do estudo pudessem desvendar e reconstruir os passos-chave na evolução muscular deste tipo específico de tecido animal. Então, de maneira muito semelhante ao que outro grupo de pesquisadores haviam feito para estudar a origem das sinapses (Veja por exemplo, “A origem das sinapses em animais descerebrados“), a colaboração liderada por Ulrich Technau, identificou a princípio um conjunto altamente conservado de proteínas contráteis e que pré-datavam a evolução das células e tecidos musculares. [Ao lado estão mostrados, em vista lateral, os músculos (em vermelho) e núcleos (em azul) de uma jovem medusa da espécie Clytia hemisphaerica Esses belos animais nadam através da contração de seus músculos estriados que localizam-se circunferencialmente dentro do ‘sino medusal’ e que levam a característica ‘propulsão a jato’ típica das medusas – Crédito: Johanna Kraus – retirado do material disponível no site]

Estas proteínas ‘[proto]musculares’ eram compartilhadas por metazoas, protistas holozoa (os mais próximos aos animais), além de fungos e amoebozoas. Esse conjunto incluía a já mencionada, miosina II de cadeia pesada (MyHC), a actina, além de outras proteínas a elas associadas:

  • Miosina de cadeia leve

  • Tropomiosina

  • Calmodulina

Isso mostra que genes como o que codifica a MyHC possuem genes ortólogos em grupos, como as esponjas, e que já, desde muito tempo atrás eram diferencialmente expressos, por já se mostrarem assim em pelo menos duas espécies de poríferos, com um deles já tendo características similares a variante do gene típica de músculos estriados. Porém, ainda mais impressionante é que mesmo organismos unicelulares já possuem ortólogos deste gene em particular.

“Como esta miosina específica até agora só fora encontrada em células musculares, esperávamos que a sua origem coincidisse com a evolução das células musculares. Ficamos muito surpresos ao ver que a “miosina do músculo” evoluíu provavelmente em organismos unicelulares, muito antes dos primeiro animais viveram”, explicou Ulrich Technau em um release de imprensa.

Mas outras surpresas aguardavam o time de cientistas. De todas as 47 proteínas estruturais ou regulatórias que foram analisadas, os cientistas puderam constatar que nenhuma delas é exclusiva de cnidários e bilatérios, ou seja, nenhuma dessas proteínas correlaciona-se com a origem evolutiva dos tecidos musculares. Desta maneira fica claro que o tal conjunto central de proteínas ‘musculares’ – em particular a proteína motora miosina de cadeia pesada tipo II (MyHC) típica dos vertebrados – já estava presente em organismos unicelulares antes mesmo da origem dos animais multicelulares. Este conjunto central conservado de proteínas que formam esta ‘maquinaria’ ‘actomiosínica’, muito antes da evolução dos músculos, já desempenhava algum tipo de função básica provavelmente envolvendo o cito-esqueleto de vários eucariontes, ajudando com a divisão celular e com a mudança da forma das células. Por isso, a origem evolutiva deste aparato contrátil é bem anterior a origem do reino animal e se deu através de inovações mais sutis específicas de cada linhagem no modo como estas proteínas são reguladas e combinadas, mais uma vez repetindo um padrão conhecido que vem sendo revelado e confirmado há décadas: a evolução ocorre por um processo de ‘bricolagem’ em que a reutilização e cooptação de partes e estruturas de maneira contingente parece ser a forma mais comum de inovar.

Mas afinal, como os músculos teriam evoluído a partir desse conjunto de proteínas empregado para outras funções?

Algumas pistas de como isso teria ocorrido foram reveladas no estudo, como o fato da cinase da miosina de cadeia leve, uma proteína fosforiladora da miosina de cadeia leve, ter sido identificada como uma inovação dos animais (metazoa) que permitiu a nós uma regulação mais fina da contração mediada pela actomiosina, fazendo isso ao acoplar a fosforilação regulatória da cadeia leve de miosina ao aumento das concentrações citoplasmática de Ca2+ em células musculares e não musculares. Entretanto, talvez a descoberta mais interessante seja a feita em relação a origem das duas principais variantes do gene da MyHC.

Estudos realizados anteriormente haviam sugerido que um evento de duplicação gênica teria dado origem a dois grupos filogenéticos distintos de ortólogos MyHC em animais bilatérios, cada um dos quais tendo uma função distinta e exibindo um padrão particular de expressão. Assim, a variante “não muscular” (NM) da MyHC dos bilateria  funcionaria durante processos celulares comuns, como a divisão celular ou migração, e também durante contração da musculatura lisa dos vertebrados, enquanto isso, os ortólogos ‘musculares’  (ST) dos bilatérios desse gene, funcionariam especificamente nos músculos estriados dos vertebrados e tanto nos músculos lisos e estriados dos protostômios. Porém, não foi isso que a análise descrita no artigo da Nature mostrou.

Os pesquisadores concluíram que, ao contrário do que era especulado, a duplicação do gene que gerou os dois grupos de ortologia da MyHC deve ter ocorrido bem mais cedo do que se pensava, isto é, antes da origem das células musculares, uma vez que bilatérios, cnidários, ctenóforos, além de placozoas e esponjas, estes dois últimos não possuidores de músculos, já possuem, pelo menos, um de cada ortólogo MyHC , com domínios estruturais do tipo ‘mola-espiralada’ específicos de cada uma das formas (ST e NM), enquanto os organismos unicelulares Capsaspora owczarzaki e Sphaeroforma arctica, possuem apenas um dos membro do grupo de ortologia MyHC, caracterizado pela estrutura ‘mola-espiralada’ específica de NM. Esta constatação e a topologia da árvore filogenética indicam fortemente que os genes MyHC ST e NM já haviam se originado por duplicação e se diferenciado ante do último ancestral comum de todos os animais, com os protistas mencionados tendo perdido a variante ST do MyHC.

 

 

Ao lado à esquerda podemos observar uma árvore filogenética de máxima verossimilhança de proteínas MyHC tipo II. Os nós são colapsados caso tenham divergido entre as ‘junções-vizinhas’ (Neighbor-Joining – NJ), máxima verossimilhança (ML) ou inferência Bayesiana. O aninhamento das MyHCs de protistas dentro do grupo de ortologia MyHC NM apóia um evento de duplicação MyHC no ancestral comum dos Metazoa, Choanoflagellata, Filasterea e Ichthyosporea, mas também assume perdas secundárias dos genes MyHC ST em vários filos de protistas. [Diagramas das estruturas de domínio MyHC. Comprimento do alinhamento final, 1,730 aminoácidos (A.A.). Barra de escala, 0,2 mudanças por sítio. Números coloridos representam posições domínios mola-espiralada (coiled-coil) não-canônicos; retirado de[Steinmetz et al., 2012 Nature; doi 10.1038/nature11180].

 

No entanto, apesar dos cnidários e ctenóforos já possuírem genes ortólogos a MyHC do músculo estriado, estes animais não possuem vários outros componentes cruciais dos músculos estriados que estão presentes nos Bilateria, tais como os genes responsáveis pela codificação de proteínas como titina e o complexo troponina. Isso sugere uma perspectiva bem particular e diferente da visão mais comum sobre a origem dos tecidos musculares. Os genes do grupo de ortologia MyHC NM e ST teriam sido herdados de um ancestral comum, mas sua cooptação por parte dos tecidos contráteis teria ocorrido de maneira independente nas duas linhagens, o que sugere que a evolução dos músculos estriados nesses dois grupos de eumetazoa seria um caso de convergência evolutiva. De maneira consistente com esta visão, várias proteínas ortólogas as que codificam disco-Z do aparato de contração em organismos bilatérios, nas águas vivas não são expressas na mesma localização que são nos Bilateria, com algumas delas sendo expressas em vários locais diferentes, por todo animal.

 

Os componentes do disco-Z aliás são outro caso interessante pois não exibem a grande conservação observada para os componentes centrais do aparato contrátil de actomiosina, mesmo dentro do Bilateria. Dos grupos analisados, quase metade das proteínas dos vertebrados (13 das 28) e um quarto das proteínas relacionadas ao disco-Z em D. melanogaster são únicas ou possuem domínios únicos nos cordados e em D. melanogaster. Das proteínas restantes, apenas quatro grupos de ortologia encontram-se em ambos os táxons: a proteína α-actinina, que serve de suporte para actina, as parceiras de ligação, LIM e Ldb3, e a proteína gigante titinina que regula o comprimento e a integridade dos sarcômeros. Então, boa parte das complexas redes de interação protéica, os ‘interatomas’ como em geral são chamados, associadas aos discos-Z de vertebrados e invertebrados evoluíram através do recrutamento (linhagem-específico) de componentes novos que foram agregados a um conjunto protéico ‘proto-disco-Z’ original que era compartilhado desde o ancestral comum destes dois grupos.

Em resumo, todos os cnidários não possuem as características moleculares dos músculos estriados dos Bilateria, exceto a expressão da variante do MyHC ST, e, por causa, disso os músculos estriados dos Bilateria e Hydrozoa provavelmente tenham evoluído de forma convergente a partir da maquinaria bioquímica contrátil celular bem mais antiga.

Segundo a conclusão dos autores, isso também poderia aplicar-se aos músculos estriados do ctenóforo Euplokamis, o único entre os ctenóforos com este tipo de músculo. Os cientistas propõem que o uso independente da expressão da proteína MyHC ST na construção dos músculos estriados tanto em bilatérios como em medusas se deu devido a restrições funcionais, uma vez que os tipos de filamentos grossos característicos ‘bipolares’ formados pelo MyHC ST favoreceriam uma rápida contração e para re-iteração da máquina actomiosínica, quando comparada ao que poderia ser oferecido pelo MyHC NM cujos filamentos baseiam-se em uma organização ‘latero-polar’.

Os  pesquisadores responsáveis pelo trabalho sugerem que a evolução independente de músculos estriados em duas linhagens de eumetazoários por meio de acréscimo de novas proteínas sobre uma base pré-existente, no caso um aparelho ancestral contrátil baseado em MyHC, pode servir como um modelo para a evolução de tipos de células complexas durante a evolução animal, e desta maneira ressaltam que a semelhança ultra-estrutural sozinha não é uma indicação confiável da origem evolutiva comum, uma vez que pode ser alcançada de forma independente por diferentes conjuntos de proteínas.

___________________________________

Referências:

  • Steinmetz PR, Kraus JE, Larroux C, Hammel JU, Amon-Hassenzahl A, Houliston E, Wörheide G, Nickel M, Degnan BM, & Technau U (2012). Independent evolution of striated muscles in cnidarians and bilaterians. Nature, 487 (7406), 231-4 PMID: 22763458

O ‘pavio filogenético’ e a ‘explosão cambriana’ não se fundem.

Traduzir nem sempre é algo fácil, por isso admiro tanto as boas traduções e por consequência aos bons tradutores. Por causa dessa dificuldade, um trabalho de revisão independente sempre pode melhorar tal esforço ou pelo menos evitar que coisas simples atrapalhem a leitura de um bom texto.

Mesmo em boas traduções, às vezes, detectamos algumas pequenas coisinhas que nos saltam aos olhos, chamando nossa atenção mais do que esperaríamos, talvez mesmo, por que destacam-se do fundo de excelência do resto do trabalho. Um exemplo disso ocorreu recentemente comigo quando detectei, em uma leitura mais relaxada da tradução da LP&M do ótimo The History of Life, do paleontólogo britânico Michael J. Benton,  uma expressão técnica traduzida de uma maneira bem estranha.

A nossa versão brasuca tem alguns pequenos erros (ou escolhas menos do que ideias de tradução), mas eles perdem relevância em uma tradução que, tirando estes detalhes, está realmente muito boa. Mas um desses erros, na minha opinião, destacou-se e pode tornar a compreensão da parte texto onde a expressão se encontra bem complicada,  confundindo os leitores não familiarizados com o jargão da moderna paleobiologia.

A expressão em questão é ‘phylogenetic fuse’ que em português virou “fusão filogenética“. Está na página 76 da tradução brasileira do livro e é um erro simples (quase bobo) que poderia ter sido prevenido por um trabalho de revisão adicional – neste caso a revisão não precisaria nem ser necessariamente técnica, pois o termo ‘fuse‘ não é tão incomum assim e é bem diferente de ‘fusion‘.

Vamos ao problema. Compare o trecho traduzido com o da versão original da Oxford University Press que faz parte da ótima coleção Very Short Introductions‘:

O termo ‘fusão filogenética’ foi inventado para descrever tal situação, em que um grande grupo (neste caso, os metazoários) diverge, e isso é indicado pela data molecular, mas os primeiros fósseis aparecem muito mais tarde. A ‘fusão’ se refere à hipótese de que a evolução continuou acontecendo, mas os organismos eram pequenos e raros, e por isso não eram detectados como fósseis.” [1]

The term ‘phylogenetic fuse’ was invented to describe such a situation, where a major group (here metazoans) diverges, and that is marked by the molecular date, and then the first fossils appear much later. The ‘fuse’ refers to the proposition that evolution continued, but the organisms were small and rare, and so not detected as fossils.” [2]

O termo ‘fuse’ é mais apropriadamente traduzido como ‘pavio’ ou ‘estopim’ e no contexto de uma ‘explosão’ mesmo que metafórica faz bem mais sentido do que ‘fusão’. No abstract do artigo em que o termo foi cunhado, fica claro o contexto em que ele foi usado através da analogia empregada ao final do resumo:

Furthermore, molecular evidence indicates that prolonged periods of evolutionary innovation and cladogenesis lit the fuse long before the `explosions’ apparent in the fossil record.” [3]

Além disso, a evidência molecular indica que períodos prolongados de inovação evolutiva e cladogênese acenderam o estopim muito antes das ‘explosões’ aparentes no registro fóssil.” [Tradução minha]*

Portanto, a expressão ‘phylogenetic fuse’ (‘estopim filogenético‘) é empregada para explicar a aparente discrepância entre as primeiras estimativas filogenéticas baseadas em relógios moleculares, feitas no final da década de 1990, para o começo da diversificação dos metazoários – principalmente para a origem dos bilateria, grupo ao qual pertencem os protostômios e deuterostômios – que, segundo os primeiros estudos, deveria ter se iniciado cerca de 600 milhões de anos antes da primeira aparição desses animais no registro fóssil, no começo do período cambriano. Desta forma, de acordo com a hipótese, o ‘pavio filogenético‘ da evolução animal já estaria ‘queimando’ muito, muito, mas muito tempo mesmo antes da ‘explosão cambriana‘ que apenas marcaria a época em que os números de indivíduos das diversas linhagens teriam crescido muito, bem como o tamanho dos espécimens e seu nível de ‘esqueletização‘, tornando aparente aquilo que já havia acontecendo subrepticiamente  há centenas de milhões de anos.

Acima podemos ver uma representação da evidência molecular, cladística e biogeográfica como interpretada no final da década de 90 que indicava que a ‘explosão’ evolutiva cambriana poderia ter sido precedida por um longo período de diversificação pré-cambriana. A diversificação que indubitavelmente ocorreu na base do cambriano seria a acompanhada da aquisição de partes duras – além do aumento concomitante do tamanho e do potencial de fossilização de metazoários ao “estilo Fanerozóico”,  mas os planos  corporais que caracterizam estes clados, provavelmente, já teriam tido uma história muito mais longa do que havia se suposto até então. Na figura as linhas grossas sólidas representam a extensão no tempo conhecida dos grupos em questão por meio dos fósseis;  as linhas sombreadas mostram  a  ‘extensão fantasma’ (‘ghost range‘) que foi  implicada pela análise cladística; enquanto as linhas sólidas finas, mostram o padrão implicado de cladogênese pré-cambriana. Também podem ser vistos esboços dos grupos animais e asteriscos denotando divergências datadas por dados moleculares. Também são mostradas a fauna de Ediacara que precede a explosão cambriana, mas cujas afinidades filogenéticas com os grupos modernos (que tornam-se evidentes no cambriano) ainda são um tanto incertas. [ A Ilustração é uma obra de M.A. Wills e a figura foi retirada de Cooper A, Fortey R. Evolutionary explosions and the phylogenetic fuse. Trends Ecol Evol. 1998 Apr 1;13(4):151-6. PubMed PMID: 21238236. e foi modificada por mim com a adição da bomba e do estopim à direita da figura.

Ao lermos ‘fusão filogenética’ essa simples analogia perde-se e pode até subverter a ideia de diversificação e ramificação das linhagens que seria o contrário do que se esperaria observar ao usarmo o termo ‘fusão’.  Essa potencial confusão não ocorre com o texto original de Benton e é ainda menos provável caso leiamos o artigo original de Cooper e Fortey, de 1998, de onde tirei a figura e na qual adicionei um detalhe para quem ainda não compreendeu a analogia.

Trabalhos posteriores tornaram a ideia de um ‘pavio filogenético’, de queima tão lenta, desnecessária, uma vez que o emprego de outras técnicas de calibração mais flexíveis para os relógios moleculares produziram estimativas bem menos antigas para o inicio da diversificação dos animais, trazendo para bem mais perto do período cambriano este evento, como é explicado no livro de Benton.

Mais uma vez, esses e outros pequenos detalhes na tradução não tiram os méritos da publicação e nem minha recomendação para que todos interessados em uma boa introdução ao assunto, escrita em português, adquiram este livro e os demais da mesma coleção que já divulgamos aqui no evolucionismo.org.

Aproveito aqui para parabenizar a LP&M por estar traduzindo os livros da OUP, especialmente os títulos que se referem a evolução, paleontologia e história natural da coleção a ‘Very Short Introductions‘ que certamente têm um publico ávido aqui no Brasil que há muito espera por obras como essas.

____________________________________________

* “Furthermore, molecular evidence indicates that prolonged periods of evolutionary innovation and cladogenesis lit the fuse long before the `explosions’ apparent in the fossil record.”

______________________________________________________

Referências:

  1. Benton, M.J. A História da Vida – Tradução de Janaína Marcoantonio – Porto Alegre: LP&M Pocket, 2012. 192 pg

  2. Benton, M.J. The history of life: A very short introduction. Oxford University Press, Oxford, 2008. 170 pp.

  3. Cooper A, Fortey R. Evolutionary explosions and the phylogenetic fuse. Trends Ecol Evol. 1998 Apr 1;13(4):151-6. PubMed PMID: 21238236.

Por mais que ela ame o arsênio, a GFAJ-1, não consegue viver sem o fósforo.

Caso você tenha algum interesse em ciência, acesso aos meios de comunicação e não tenha estado fora do planeta nos últimos dois anos, muito provavelmente, acompanhou, mesmo que de relance, a polêmica gerada pela divulgação, dos rresultados da pesquisa, liderada pela microbiologista Felisa Wolfe-Simon, em muito badalada conferência de imprensa da NASA, em que foi sugerido que uma dada cepa de bactéria, a Halomonadaceae, GFAJ-1 – encontrada do lago Mono, na Califórnia – não só tolerava altos níveis de arsênio, mas era capaz de usá-lo no lugar do fósforo na formação de seus ácidos nucléicos. Agora, após 18 meses de espera, dois grupos de pesquisadores 1,2 divulgaram os resultados das suas tentativas de replicar os experimentos que geraram a polêmica. O veredicto oficial, como relatado por Quirin Schiermeier, em artigo/comentário na revista Nature, é que as bactérias tolerantes ao arsênio, encontradas no lago Mono, não podem viver sem fósforo. Portanto, não foi desta vez que descobrimos um ser vivo com uma nova bioquímica de ácidos nucléicos em nosso planeta ou uma ‘biosfera das sombras’, como alguns gostam de chamar esta possibilidade.

 

Para quem não acompanhou a polêmica desde o início, essas bactérias foram descobertas em um lago raso, alcalino e altamente salino, na Califórnia – o tal lago Mon -, prosperando em sedimentos ricos em arsênio, um elemento altamente tóxico para a imensa maioria dos seres vivos e cuja toxicidade em parte se dá por causa de sua similaridade com o fósforo, o que permite que o substitua em algumas reações, interferindo com as mesmas e levando a interrupção de certas funções vitais dos organismos que têm a má sorte de absorvê-lo.

Por causa disso, a sugestão de que essas bactérias não só toleravam o arsênio – e, quem sabe,  incorporassem-no em suas membranas, por exemplo -, mas também, ativamente, o usassem no lugar do fósforo, despertou um grande ceticismo entre os químicos, bioquímicos e microbiologistas de plantão que produziram uma série de artigos em seus blogs atacando vários detalhes metodológicos do artigo original e, principalmente, os argumentos e conclusões de Wolfe-Simon e colaboradores – publicados online, em dezembro de 2010 3 e divulgados na já famigerada conferência de imprensa organizada pela NASA, entidade co-financiadora do estudo.

O jornalista Carl Zimmer cobriu a polêmica e a resumiu em um de seus artigos na revista Slate, com o sugestivo título “This Paper Should Not Have Been Published”, e em vários post em seu blog, seus e de convidados cientistas. Essa reação mostrou a velocidade do novo meio e gerou acaloradas discussões sobre o papel dos blogs e a adequação das críticas veiculadas pelos mesmos que teriam, segundo alguns, sido exageradas, agressivas e que, de alguma forma, atrapalhariam o processo de análise crítica em periódicos, como se os blogueiros/cientistas houvessem colocado a carroça na frente do bois. Uma crítica um tanto injusta especialmente por causa da própria forma escolhida pelos pesquisadores e pela NASA para divulgaram os achados e as interpretações do grupo, a já mencionada conferência de imprensa que parecia feita para criar polêmica (Veja ‘Microbe gets toxic response’).

Após essa tempestade na blogosfera, em junho do ano passado, quando o artigo de Wolfe-Simon e colaboradores foi definitivamente publicado na revista Science4, oito comentários técnicos, de muitos dos cientistas que haviam criticado as interpretações e conclusões de Wolfe-Simon e colegas sobre a GFAJ-1 em seus blogs, foram publicados acompanhando o artigo principal, ainda mantendo a polêmica em um nível científico do ‘ela disse ele disse’ que não é pouca coisa, por sinal, mas basicamente com as mesmas críticas já vociferadas nos blogs, seguidas de uma resposta tímida dos Wolfe-Simon e seus colegas que não acrescentou nada de novo a questão.

 

Já na época da polêmica, Rosie Redfield, uma microbiologista da Universidade da Columbia Britânica, em Vancouver, Canadá, crítica ferrenha do artigo, prontificou-se a replicar alguns dos experimentos e testar outras possibilidades que não foram testadas no artigo original. No início deste ano de 2012, ela afirmou que não pudera reproduzir os resultados Wolfe-Simon através de seus experimentos de laboratório (Veja ‘Study challenges existence of arsenic-based life’), antecipando o desfecho da polêmica. Agora, Redfield e colegas publicaram um dos artigos que confirmam o fato que as bactérias GFAJ-1 podem tolerar o arsênio, mas não vivem sem o fósforo e não incorporam arsênio em seu lugar em suas moléculas de DNA, refutando as sugestões mais polêmicas e desconcertantes de Wolfe-Simon et al (2011).

Redfield e colaboradores (2012), de acordo Schiermeier, relataram em seu artigo que quando bactérias da cepa GFAJ-1 foram cultivadas em meio contendo arsênio e uma quantidade muito pequena de fósforo, eles não foram capazes de detectar  em seu DNA compostos de arsênio, tais como arseniato, composto análogo ao fosfato, a forma como o fósforo é encontrado nas moléculas de DNA. Em outro artigo, outros pesquisadores, liderados por Julia Vorholt, microbióloga do Instituto Federal de Tecnologia, em Zurique, na Suíça, relataram que a bactéria não pôde crescer em um meio livre de fósforo na presença apenas de arseniato, podendo, no entanto, crescer em meios com baixas concentrações de fosfato e na presença de arseniato. A equipe de pesquisadores escreveu:

GFAJ-1 é resistente ao arseniato, mas ainda uma bactéria fosfato-dependente”


“Eu acho que nós temos agora uma evidência muito sólida de que o metabolismo da GFAJ-1 é tão dependente do fósforo, assim como o de todas as outras formas conhecidas de vida orgânica”, disse Vorholt e completou: “Estes micróbios muito robustos e muito bem adaptados parece são capazes de extrair eficientemente os nutrientes de seus ambientes extremamente pobres em fósforo.”

Aparentemente, um dos problemas com o estudo de 2010/2011 é que as amostras que a equipe de Wolfe-Simon havia usado em seus experimentos continham maiores concentrações de fósforo do que eles supunham inicialmente, de acordo com Vorholt a partir do relatado por Schiermeier:


“A nova pesquisa mostra que a GFAJ-1 não quebra as regras de longa data da vida, ao contrário de como Wolfe-Simon havia interpretado os dados de seu grupo.” [Veja aqui]

 

Wolfe-Simon ao comentar os novos artigos afirmou, esquivou-se afirmando:

“O artigo original da GFAJ-1 enfatizava tolerância ao arsénio, mas sugeria que as células necessitavam de fósforo, como se vê nestes dois novos trabalhos”

“No entanto, os nossos dados implicavam que uma quantidade muito pequena de arseniato pode ser incorporado as células e as biomoléculas, ajudando as células à sobreviver em ambientes com alto arseniato e com muito pouco fosfato. Tais quantidades baixas de incorporação de arsênio podem ser um desafio para serem encontradas e instáveis uma vez que as células estão abertas.”

Para Wolf-Simon, a história da GFAJ-1 está longe de terminar e acrescenta.

“As principais questões são: como é que estas células prosperam em concentrações letais de arsênio E para onde o arsênico vai?”

Com certeza são questões pertinentes e de interesse científico, mas bem mais modestas do que o hype que se criou com as sugestões de que essas bactérias poderiam substituir o fosfato por arseniato e assim constituírem-se em uma ‘nova forma de vida’, ideias que podem não terem sido divulgadas por Felisa e seus co-autores, mas que se criaram pela falta de apreciação pelos vários problemas nas interpretações do artigo original, suas limitações metodológicas – mesmo para consubstanciar as alegações mais modestas, mas ainda assim sensacionais, contidas no artigo original -, além da forma sensasionalista com que a NASA divulgou o estudo.

O importante, no entanto, é que a ciência é um processo que demanda a interação entre cientistas, crítica (às vezes pouco amistosa), divulgação dessas críticas e novas tentativas de reproduzir ou refutar resultados, métodos e conclusões originais por especialistas independentes. E foi isso que aconteceu!

——————————————————————————-

  • Schiermeier, Quirin Arsenic-loving bacterium needs phosphorus after all Nature News 09 July 2012; doi:10.1038/nature.2012.10971

Literatura Recomendada:

  1. Reaves ML, Sinha S, Rabinowitz JD, Kruglyak L, Redfield RJ. Absence of Detectable Arsenate in DNA from Arsenate-Grown GFAJ-1 Cells. Science. 2012 Jul 8. [Published Online July 8 2012] doi: 10.1126/science.1219861

  2. Erb TJ, Kiefer P, Hattendorf B, Günther D, Vorholt JA. GFAJ-1 Is an Arsenate-Resistant, Phosphate-Dependent Organism. Science. 2012 Jul 8. [Published Online July 8 2012] Science doi: 10.1126/science.1218455

  3. Wolfe-Simon, F. et al. A bacterium that can grow by using arsenic instead of phosphorus. Science. Published online Dec 2, 2010. doi:10.1126/science.1197258

  4. Wolfe-Simon F, Switzer Blum J, Kulp TR, Gordon GW, Hoeft SE, Pett-Ridge J,Stolz JF, Webb SM, Weber PK, Davies PC, Anbar AD, Oremland RS. A bacterium that can grow by using arsenic instead of phosphorus. Science. 2011 Jun 3;332(6034):1163-6. doi: 10.1126/science.1197258

Veja vários comentários:

A origem das sinapses em animais descerebrados

As unidades morfofuncionais básicas que possibilitam os comportamentos exibidos pelos animais são as sinapses, as junções entre células excitáveis especializadas como neurônios e músculos, através dais quais a comunicação eletroquímica ocorre e por meio da qual são controlados os processos sensório-efetores e de integração que subjazem aos modos de vida mais ativos típicos desses seres, nós incluídos. As sinapses podem ser vistas, como explica Kenneth Kosik do Instituto de Pesquisa em Neurociência no Departamento de Biologia Molecular, Celular e do Desenvolvimento (NRI/MCDB) da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, como microprocessadores que realizam muitas funções sofisticadas, tais como enviar e receber sinais, mas também mudar a forma como enviam e recebem sinais de acordo com o que ocorreu anteriormente, modificando suas característica em função de sua atividade, uma propriedade conhecida como “plasticidade” que está na base dos processos de aprendizagem.

Porém, compreender como estas unidades e os elementos que elas conectam surgiram ao longo da história dos seres vivos têm sido uma tarefa complicada, especialmente examinar seus primórdios que infelizmente não deixam fósseis. Por causa disso, temos que nos voltar para o grupo de animais vivo que se separou dos demais antes que os sistemas nervosos mais primitivos evoluíssem no ancestral comum que compartilhamos com cnidários, estrelas do mar, vermes, insetos e os demais vertebrados. Por isso, a melhor forma de investigarmos como os animais ‘cerebrados‘ começaram a evoluir é estudando nossos parentes descerebrados, as esponjas.

O sequenciamento prévio de um representante desse grupo (Porifera), a esponja Amphimedon queenslandica, que habita a grande barreira de cora, na Austrália, já havia revelado as primeiras pistas. Em seu genoma puderam ser identificados genes muito semelhantes (prováveis homólogos) aos que nos demais animais levam a formação das sinapses.

A questão interessante é que mesmo as esponjas possuindo basicamente os genes necessários para construírem as sinapses, estes animais não o fazem já que nem ao menos neurônios elas têm, como afirma Cecilia Conaco – na época, no NRI/MCDB, da Universidade da Califórnia Santa Bárbara (UCSB) -, co-autora de um trabalho que foi publicado no mês passado no periódico científico PNAS, intitulado  “Functionalization of a protosynaptic gene expression network.” e que teve como co-autores Danielle Bassett, do Departamento de Física e do Centro Sage para estudos da mente, Hongjun Zhou e Mary Luz Arcila, ambos o NRI/MCDB da UCSB, Sandie M. Degnan,  Bernard M. Degnan, da Universidade de Queensland, na Austrália, além do autor sênior, o já mencionado Kosik co-diretor do instituto.

Hoje me dia, não existem dúvidas de que boa parte da inovação evolutiva envolve principalmente processos de mutação (seguidos de deriva e seleção natural) em genes pré-existentes, especialmente a duplicação gênica e aquelas mutações que alteram os elementos regulatórios e que produzem novos sítios de interação das proteínas sintetizadas a partir desses genes. Estes processos podem explicar, em grande parte, como a partir de um estoque ancestral de genes conservados novas estruturas e funções podem emergir durante a evolução, como parece ser o caso do complexo sináptico. Ainda assim, as várias etapas evolutivas envolvidas na organização e refinamento dessas redes de interações, que fazem com que surjam uma unidade funcional biológica discreta, permanecem obscuras e demandam métodos precisos e muita criatividade, além de muito trabalho duro de investigação.

Novos estados de ativação celular e novos tecidos são formados por meio da modificação dos padrões de ativação dos genes e da quantidade de seus produtos, isto é, através de alterações no tipo e quantidade de diferentes proteínas e RNAs. Esses diferentes produtos em diferentes quantidades e’ formam redes de interação distintas e que possibilitam que cada tipo celular exista, resultando em padrões de adesão, movimento, proliferação e migração diferentes. Por causa disso, os padrões de co-expressão dos genes são importantes para definirmos funções e estruturas específicas e podem indicar, quando estamos analisando genes candidatos a  ortólogos (aqueles genes cuja origem se deu por herança direta a partir de um ancestral comum e são basicamente o mesmo gene em organismos diferentes), a conservação de função e do papel do gene em questão na formação de uma dada estrutura compartilhada.

Por isso, com o intuito de compreender mais a fundo como se deu a transição evolutiva entre organismos sem neurônios e sinapses para os animais com estes tipos celulares e as estruturas funcionais que os conectam, os pesquisadores empregaram procedimentos de análise de rede de modo a identificarem padrões únicos de co-expressão de genes ‘sinápticos’ em espécies representativas que localizam-se em diferentes posições na árvore filogenética dos animais.

Ao lado estão, em A, os genes homólogos aos do complexo sináptico humano que foram identificados nos genomas dos organismos selecionados que representam eventos de separação das linhagens e, neste sentido, ‘passos filogenéticos chave‘ (como referem-se a eles os autores do estudo) na evolução animal. As cores indicam o ancestral inferido no qual cada gene deve ter se originado, como indicado em B, que, por sua vez, traz as relações evolutivas entre os filos animais. [Os nomes das espécies representantes são mostrados.]

Como a construção de uma sinapse neuronal depende da coordenação precisa da síntese de várias proteínas, os pesquisadores envolvidos no estudo, rastrearam os padrões de expressão dos genes que codificam um conjunto essencial de proteínas altamente conservadas entre os diversos grupos animais e que são empregadas no processo de sinaptogẽnese, comparando seus padrões de expressão em uma amostra representativa do grupo dos metazoários. Os padrões de codependência e corregulação dessas proteínas foram avaliadas através de medidas correlacionais dos padrões de expressão dos vários transcritos dos genes investigados, o que mostrou que os padrões de correlação aumentam significativamente com a emergência de sistemas nervosos funcionais.

Os perfis de expressão dos genes homólogos aos envolvidos na formação das sinapses em outros animais foram obtidos por sequenciamento dos transcritos de quatro fases de desenvolvimento – da larva à forma adulta – da A. Queenslandica. Essas amostras foram comparadas com os perfis de expressão dos genes equivalentes de cinco outras espécies animais que exibem uma variada complexidade na organização tecidual e que já apresentam sinapses, incluindo uma espécie de coral Acropora millepora (Cnidaria); invertebrados bilatérios, como Caenorhabditis elegans (nematoda) e Drosophila melanogaster (Arthropoda); além de dois vertebrados, o peixe-zebra, Danio rerio (Actinopterygii) e o anfíbio, Xenopus tropicalis (Sarcopterygii/Tetrapoda).

O primeiro resultado que atrai a nossa atenção  é que as esponjas – que possuem praticamente um conjunto completo desses genes, aos quais os cientistas referem-se como “protosinápticos” por que esses animais não possuem sinapses – exibem padrões muito menos correlacionados de expressão do que os dos animais com sistemas nervosos e que formam sinapses, apesar de alguns módulos de genes co-expressos poderam ser identificados ao empregarem-se procedimentos de análises de redes.

Na figura abaixo e a direita podem ser vistas os resultados das análises de correlação e modularidade para redes de expressão gênica de seis organismos. Em (A) (a Fig 3 do artigo) estão mostradas a força de corregulação genética para quaisquer dois genes em uma rede, que foi estimada pelo cálculo do coeficiente de correlação de Pearson da sua expressão através dos vários estádios de desenvolvimento. Os ‘mapas de calor’ representam matrizes N × N com as correlações de genes de cada rede para cada espécie (vermelho: correlação positiva e azul: correlação negativa).

Em B, D, F e H estão as correlações médias, R, calculadas a partir dos dados das matrizes em A. Já em C, E, G e I podem ser vistas as estimativas da corregulação de diferentes módulos que foram estimadas pelo valor-Q. Os cálculos para cada rede verdadeira (círculos vermelhos) também foram realizadas em conjuntos de dados controle: permutados no tempo (1.000 versões aleatoreamente misturadas a partir da matriz de correlação, losangos laranjas), conjunto aleatórios de genes (100 conjuntos de genes de tamanho N, aleatoreamente alocados a partir de todo o transcriptoma: triângulos azuis), e matrizes de número aleatórios (100 matrizes geradas com o mesmo número de genes e estágios de desenvolvimento que a verdadeira rede: quadrados verdes). O número de genes incluídos na análise para cada rede em cada espécie está indicado entre parênteses. As barras de erro representam Desvios Padrão (SD) de R e Q, ressaltando que alguns SDs são menores do que o tamanho do marcador. Os asteriscos indicam uma diferença significativa em relação ao conjunto de genes aleatório usados como controle (P <0,05, bicaudal teste t).

Os processo de detecção dessas comunidades de genes corregulados é um processo dirigido pelos dados e portanto não é enviesado a priori pelo conhecimento prévio que temos sobre as funções dos genes envolvidos na análise. A composição dos módulos (representados pelas cores dos nós) de três dos maiores complexos funcionais (densidade pós-sináptica, vesícula sináptica, e vATPases) pode ser vista na figura abaixo (Fig. 4B do artigo) e podemos perceber que genes correspondentes a densidade pós-sináptica tendem a cair dentro de um único módulo na maioria dos eumetazoa. Esta mesma tendência também foi encontrada nos genes das vesículas sinápticas na maioria dos bilateria. Em contraste, como esses mesmos genes nas esponjas cujos módulos funcionais mostraram-se um padrão de expressão bem mais heterogêneo, como se seguissem uma lógica regulatória distinta daquela das redes sinápticas funcionais, como pode ser apreciado pela maior diversidade na composição dos módulos dentro de cada complexo biológico.

Os autores chamam nossa atenção para uma exceção notável, entretanto. O complexo da ATPase vacuolar (vATPase) mostra-se bem corregulado mesmo na esponja, o que sugere que mesmo antes do desenvolvimento das sinapses e das células nervosas (portanto, antes das esponjas terem divergido dos outros grupos animais) ele já deveria ter uma função bem definida.

Nas imagens acima e abaixo a direita é possível vermos os módulos corregulados cujos genes das redes sinápticas de cada espécie que os compõem foram alocados por meio da otimização de modularidade. Os genes foram coloridos de acordo com o módulo do qual foram derivados, com o tamanho do módulo sendo indicado como segue: azul > vermelho > amarelo > verde.  Em cinza estão os genes não representados no organismo ou sobre os quais não haviam dados de expressão disponíveis [Apenas genes com os dados de expressão disponíveis em cada uma das espécies é que foram incluídos na análise.]. Os círculos de linhas tracejadas representam os limites aproximados das três redes sinápticas: densidade pós-sináptica, vesícula sináptica, e vATPases. Em (B) estão as percentagem de genes em cada complexo funcional que pertencem aos módulos corregulados detectados pela técnica de otimização de modularidade. As cores correspondem aos módulos de genes em A. Os asteriscos indicam complexos para os quais 50% ou mais dos genes pertencem ao mesmo módulo corregulado.

É interessante observar que, assim como as redes de expressão de genes [proto]sinápticos, as redes de genes ‘epiteliais’ também não possuem correlatos morfológicos óbvios, tendo o tecido epitelial e posteriormente neuronal evoluído após a separação dos eumetazoários das esponjas. De maneira semelhante ao encontrado na análise do conjunto de genes nas redes sinápticas, os padrões de expressão gênicos epiteliais das seis espécies – como evidenciados pelos cálculos de correlação média, R, e modularidade, Q, das rede correguladas (Fig. 3 D e E) – revelaram que todas as espécies testadas apresentaram ‘Rs’ significativamente maiores quando comparados par a par com as esponjas (valor-P < 1 × 10-8, teste t bicaudal )

Como esperado, esses achados sugerem que as sinapses funcionais evoluíram ao ‘exaptarem’ a maquinaria celular pré-existente, provavelmente através de algum tipo de modificação dos circuitos reguladores desses genes, como os seus elementos promotores e reforçadores cis-regulatórios. Alguns do módulos de genes co-expressos que puderam ser identificados funcionando nos tecidos das esponjas continuam a funcionar perfeitamente dentro das sinapses dos animais modernos, sugerindo sua antiguidade.

Por fim, os cientistas testaram uma outra ideia, a de que os genes envolvidos em sistemas bioquímicos e celulares já presentes em todos os eucariontes mostrariam um padrão diferente de expressão, talvez mais característico do maquinário que havia adquirido suas funções antes da origem dos animais. Os mesmos procedimentos de otimização de modularidade foram executados a partir dos dados dos transcriptomas dos genes homólogos do complexo do poro nuclear (NPC) e do proteassoma 26S.

As redes desses sistemas mais antigos são altamente interligadas e exibem um grau de distribuição negativamente desviada, muito diferentes dos ‘hubs’ relativamente grandes e com distribuições positivamente desviadas que são observados, por exemplo, nas redes sinápticas e epiteliais de mamíferos. A presença da carioteca, o envoltório nuclear, é uma das características distintivas dos eucariontes e assim também é o sistema NPC, um de seus principais componentes, responsável pelo transporte de moléculas entre o núcleo e o citoplasma, constituído por cerca de 30 genes que codificam proteínas conhecidas como nucleoporinas.

Ao analisarem as redes correguladas dos genes nucleoporinas, a partir dos seus transcritos, os cientistas observaram uma maior correlação média, R, e menor modularidade, Q. Estas últimas geralmente inferiores as das redes sinápticas ou epiteliais, quando comparadas com as das mesmas espécies. Os resultados foram bastante consistentes, com maioria das redes do NPC mostrando Rs maiores e Qs menores ao serem comparados com conjuntos de dados alterados por permutação ou aleatórios de tamanhos iguais, sugerindo aos pesquisadores que os componentes do NPC agem de maneira bem coesa como uma única unidade funcional. Esse resultado é bastante diferente do exibido pelas redes sináptica e epitelial, com a maior modularidade dessas redes indicando, talvez, a maior necessidade de subdivisão organizacional para que as sinapses funcionem bem, quem sabe, como resultado de terem sido montadas durante a evolução a partir de outras redes menores e mais antigas, os submódulos, como o do complexo da ATPase vacuolar que tinham e tem ainda outras funções, portanto, sua organização geral sendo limitadas por certos fatores coercitivos, como demandas múltiplas.

O proteassoma 26S é um complexo multimacromolecular que tem como função a degradação de proteínas, sendo muito bem conservado e composto dos produtos da transcrição de mais de 31 genes diferentes. A análise dos módulos corregulados formados por estes genes homólogos revelaram um padrão similar ao do NPC, exibindo maior correlação média e menor modularidade em comparação com as redes sinápticas ou epiteliais dentro de cada espécie.

Todos os eumetazoa apresentaram correlação significativamente maior quando comparados par a par com as esponjas (valor-p < 1 × 10-52, teste t bicaudal). A corregulação e a modularidade dos genes proteassômicos diferiram significativamente dos dados de permutação no tempo ou aleatória, menos nas esponjas, mas em compensação, em todas as espécies testadas, o que inclui a esponja, o conjunto de genes do proteassoma também apareceu como uma comunidade distinta quando analisados em conjunto com genes do NPC, provavelmente, representando um módulo funcionalmente significante.

Ao lado são mostrados os resultados da técnica de otimização de modularidade que detecta comunidades de genes biologicamente relevantes. Nela podemos observar os ‘mapas de calor’ representando matrizes N × N de correlações de Pearson para redes gênicas unitárias do NPC e do proteassoma. As correlações positivas são mostradas em vermelho e as negativas em azul.

A medida utilizada foi a média de similaridades de partição que foi calculada a partir de testes de permutação com 1.000 iterações. Essa medida mostrou que ao serem comparados com o conjunto de genes misturados aleatoreamente, os genes nas redes unitárias agrupam-se em comunidades que mais bem recapitulam a partição real entre redes (P <0,05 ). As barras de coloridas à direita dos mapas de calor indicam os limites das comunidades de genes corregulados detectados (Módulos) e a localização relativa dos genes do NPC (laranja) e do proteassoma (azul) dentro das comunidades detectados (Genes).

Esses resultados assemelham-se muito aos obtidos para um eucarionte unicelular como a levedura Saccharomyces cerevisiae, em que as redes de genes do NPC e do Proteassoma exibem alta interconectividade, mas baixa modularidade, com valores médios bem similares aos dos metazoários. Isso mostra que as redes que evoluíram há muito tempo estabelecendo suas funções antes da origem dos animais, tendem a se mostrarem muito mais interconectadas (como mostrado pelo alto grau de correlação), mas ao mesmo tempo menos modularizadas, o que é bem consistente com o padrão de conectividade entre os produtos gênico sendo bem mais homogêneo.

A análise dessas redes, portanto, mostra como a evolução de estruturas como o epitélio e sinapses ocorreu por meio do recrutamento de genes pré-existentes e mesmo de conjuntos menores de genes corregulados representando complexos funcionais que passaram a ser incorporados em módulos maiores, o que resultou em diferenças da organização da estrutura das redes, em nítido contraste com  a organização das redes responsáveis por estruturas e sistemas biomoleculares mais antigos que são mais homogêneas em termos de seu padrão de conexão.

Os autores enfatizam a importância da aplicação das técnicas de análises de redes ao dados genômicos emergentes e de expressão gênica, especialmente por que eles podem nos trazer insights sobre a evolução dos complexo maquinário bioquímicos e celulares por trás de estruturas tão impressionantes como as sinapses.

O crescimento da complexidade dos organismos ao longo de evolução têm dependido das redes de interação de genes e seus produtos. Este fato torna-se mais claro quando percebemos que o número de genes não aumentou muito ao longo da evolução dos animais e, portanto, a expansão das redes de interação de genes e dos seus produtos – RNAs e proteínas – fundamentais para os processos de organogênese, morfogênese e amadurecimento dos tecidos, teve como base as propriedades de interação e comunicação celular, efetivando-se através da combinação dos genes já existentes e da corregulação dos seus padrões de expressão e interação.

Neste contexto, várias estudos têm afirmado que as redes de expressão gênica seriam livres de escala e, embora não existam evidências conclusivas, muitas delas apresentam uma cauda em sua distribuição que, segundo os autores, indicaria a presença de grandes ‘hubs’. Um modelo de crescimento de redes livres de escala sugere que as expansão se dê continuamente pela adição de novos ‘nós’ e que esses novos ‘nós’ interagiriam preferencialmente com os sítios que já estivessem bem conectados, o que faz sentido frente aos vários achados do trabalho.

Mais uma vez, o tema do uso do que já existe, modificando-o e empregando em combinações diferentes, se sobressai, mostrando como a evolução biológica pode ser rastreada e reconstruída se levarmos a sério esse princípio simples.

____________________________________

Referências:

  • Srivastava M, Simakov O, Chapman J, Fahey B, Gauthier ME, Mitros T, Richards GS, Conaco C, Dacre M, Hellsten U, Larroux C, Putnam NH, Stanke M, Adamska M, Darling A, Degnan SM, Oakley TH, Plachetzki DC, Zhai Y, Adamski M, Calcino A, Cummins SF, Goodstein DM, Harris C, Jackson DJ, Leys SP, Shu S, Woodcroft BJ, Vervoort M, Kosik KS, Manning G, Degnan BM, Rokhsar DS. The Amphimedon queenslandica genome and the evolution of animal complexity. Nature. 2010 Aug 5;466(7307):720-6. PubMed PMID: 20686567; doi:10.1038/nature09201
  • Conaco C, Bassett DS, Zhou H, Arcila ML, Degnan SM, Degnan BM, Kosik KS. Functionalization of a protosynaptic gene expression network. Proc Natl Acad Sci U S A. 2012 Jun 26;109 Suppl 1:10612-8. Epub 2012 Jun 20. doi: 10.1073/pnas.1201890109
  • Fernandez, Sonia Clues to nervous system evolution found in nerve-less sponge  [18-Jun-2012] University of California – Santa Barbara via Eurekalert.org

 

Créditos das Figuras:

http://spongebob.wikia.com/wiki/File:SpongeBob%27sBrainHouse.jpg

Exemplar adulto de Amphimedon queenslandica [ Fonte: Adamska M, Degnan SM, Green KM, Adamski M, Craigie A, et al. (2007) Wnt and TGF-β Expression in the Sponge Amphimedon queenslandica and the Origin of Metazoan Embryonic Patterning. PLoS ONE 2(10): e1031. doi:10.1371/journal.pone.0001031 [Link] ]

JOHN BAVOSI/SCIENCE PHOTO LIBRARY

JOHN BAVOSI/SCIENCE PHOTO LIBRARY