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O Bê-A-Bá da Evolução (Legendado por Valmidênio Barros)

Segue um excelente vídeo com uma introdução à evolução biológica e à moderna teoria evolutiva feito por QualiaSoup (que já havia feito outros vídeos sobre o tema como dois vídeos refutando o argumento da complexidade irredutível que podem ser vistos aqui e aqui) e que foi traduzido e legendado por Valmidênio Barros. O vídeo, além de mostrar alguns dos principais fundamentos da moderna biologia evolutiva, desfaz alguns mal entendidos sobre o tema (que nós mesmos já abordamos aqui em outras ocasiões) de maneira simples e efetiva, mas que são repetidos por criacionistas de todas as estirpes ou por má-fé ou por simples falta de conhecimento sobre evolução e sobre como funciona a ciência moderna.

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Guepardos e gatos domésticos têm mais do que sua ‘felinidade’ em comum.

As, muitas vezes, exóticas e intrincadas padronagens das pelagem dos animais nos causam admiração e nos demandam explicações inclusive de natureza evolutiva. Contudo, embora existam muitas hipóteses adaptativas que explicariam por que alguns desses padrões podem ter se tornado tão disseminados em certos animais com base na seleção natural ou tão diversificados em função da seleção sexual através do papel na ”propaganda” típicos dos processos de cortejamento e escolha de parceiros, infelizmente, sabemos muito pouco sobre as bases genéticas e desenvolvimentais que estariam por trás destes padrões de pelagem. Esta situação, entretanto, vem sendo mitigada pelo trabalho diligente e criativo de muitos cientistas, como é muito bem exemplificado por um artigo publicado em setembro deste ano na revista Science por um time de pesquisadores de diversas instituições espalhadas pelo mundo, inclusive do Brasil.

Neste artigo, a equipe de biocientistas, que conta com a participação do geneticista brasileiro, Eduardo Eizirik, da PUC-RS, conseguiu mostrar que mutações em um mesmo locus, em um mesmo gene, identificado a pouco tempo, podem produzir alterações nos padrões de pelagem tanto de Guepardos como dos gatos domésticos. O gene em questão, conhecido como Tadpep, codifica uma proteína transmembrana – isto é, que atravessa a bicamada lipídicas que forma a membrana plasmática – a aminopeptidase Q que é um tipo de enzima metaloprotease.

Enquanto nos guepardos as mutações neste gene produzem um raro padrão de pelagem [que de tão distintivo levou os primeiros naturalistas a identificá-lo a considerarem os animais que o exibiam com sendo de uma espécies diferente de guepardo, o ‘guepardo rei’], em gatos domésticos que apresentam o conjunto de padrões conhecido como tabby (manchados, pintados, tigrados etc), a mutação produz o que os especialistas em raças de gatos chamam de ‘tabby blotched‘ [A, B, C]. Nos animais com esta mutação as listras que geralmente nos animais com o padrão ‘tabby mackerel‘ são uniformemente distribuídas e mais nitidamente espaçadas acabam fundindo-se formando aquilo que parecem redemoinhos irregulares que é o que caracteriza o padrão ‘blotched’. Como pode ser observado na figura ao lado este padrão ‘blotched‘ parece ser análogo ao padrão ‘guepardo rei’ como fica claro ao contrastá-lo com padrão pintado muito mais comum nestes belos animais. Apesar de deste padrão ‘bloteched’ ser bastante comum em gatos domésticos ele não é comum em felinos selvagens, mesmo nas contrapartidas selvagens dos gatos domésticos.

A vantagem do trabalho com organismos modelo, no caso gatos domésticos, é que estes podem ser cruzados seletivamente por gerações e a partir do conhecimento dos ‘pedigrees’ de cada padrão resultante e do emprego de várias técnicas de análise genética torna-se possível identificar os genes que se correlacionam com estas mudanças e, assim, detectar as prováveis causas de cada fenótipo. Uma vez identificado o gene pode-se verificar se loci equivalente em espécies próximas e mutações que ocorram podem explicar também a variação nos fenótipos equivalentes destas outras espécies. Esta é uma grande vantagem ao que normalmente é feito investigando as características genéticas associadas a coloração e padronagem da pele em modelos animais mais comuns, como são o caso de camundongos e ratos, que não exibem padronagens análogas as de interesse.

Ao analisarem 31 outras espécies de felinos foi possível identificar que o gene Taqpep era realmente a causa do fenótipo Guepardo rei em que as pintas aglutinam-se em manchas e listras. Além disso, os pesquisadores fizeram estudos histológicos, de expressão genômica e transgênica em camundongos e ratos que indicaram que a expressão parácrina de outro gene, responsável pela codificação da Endothelin3 (Edn3), é que coordena os padrões espaciais da coloração. Os cientistas então propuseram um modelo em duas fases para explicar a formação do padrão de pelagem, em que primeiro o produto do gene Taqpep ajudaria a estabelecer um pré-padrão periódico durante as etapas iniciais do desenvolvimento da pele dos animais que, em fases mais tardias do desenvolvimento, seria implementado (isto é, cujo padrão seria gerado) por meio da expressão diferencial de gene Edn3. Estes genes e seus produtos, portanto, estariam por trás dos mecanismos morfogenéticos que produziriam os fenótipos típicos destas pelagem, como os vários processos e mecanismos dinâmicos de padronização espaço-temporal (‘formadores de padrão‘) que parecem ocorrer em tecidos vivos, como já discutimos em outras ocasiões, como na  resposta do nosso tumblr, em artigo sobre o sistema de reação-difusão de Turing,  intitulado “Turing ou como os camundongos conseguem seu palato enrugado.”, assim como no mais recente “De determinantes ‘genéricos’ aos ‘genéticos’: A importância da física nos primódios da evolução animal.

Estes resultados são muito importantes por que, a partir do conhecimento da base molecular destas mudanças, poderemos investigar os processos evolutivos que os influenciaram, determinando com mais segurança quais destes padrões evoluíram por realmente terem sido adaptativos – tendo se disseminado nas populações ancestrais pelas vantagens conferidas aos indivíduos que os portavam (que por causa deles se camuflavam melhor ou atraíam mais parceiros etc)- e quais tenham se estabelecido por causa de processos estocásticos não adaptativos, como a deriva genética associada a, por exemplo, a ‘efeitos fundadores’, e aqueles que tiveram sua origem associadas a outras características e genes (estes sim adaptativos) que seriam intimamente associados aos padrões de pelagem ou com os quais as variantes dos genes de padronagem, simplesmente, tenham pegado carona por causa de sua proximidade física nos cromossomos, sendo assim subprodutos da seleção de outros genes e características.

Este detalhamento das bases genéticas das características biológicas vai nos levar cada vez mais longe, nos permitindo compreender cada vez melhor como a evolução destas incríveis características ocorreu, enquanto continuamos a nos maravilhar com  a beleza destes fenótipos e dos seres que os exibem.

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Referências:

  • Kaelin CB, Xu X, Hong LZ, David VA, McGowan KA, Schmidt-Küntzel A, Roelke ME, Pino J, Pontius J, Cooper GM, Manuel H, Swanson WF, Marker L, Harper CK, van Dyk A, Yue B, Mullikin JC, Warren WC, Eizirik E, Kos L, O’Brien SJ, Barsh GS, Menotti-Raymond M. Specifying and sustaining pigmentation patterns in domestic and wild cats. Science. 2012 Sep 21;337(6101):1536-41. PubMed PMID: 22997338.

  • Norton, Elizabeth How the Tabby Got Its Blotches Science Now on 20 September, 2012.

  • Saey, Tina Hesman How the cheetah loses its spots Science News Web edition : Friday, September 21, 2012

  • Diniz, Isis Nóbile Mutação gera padrão em espiral no pelo de gatos e guepardos Revista FAPESP Edição Online 23:33 20 de setembro de 2012

Crédito das imagens:

Imagens dos Guepardos e gatos: © GREG BARSH / RESERVA ANN VAN DYK

Foto de Eduardo Eizirik – Academia Brasileira de Ciências

 

De determinantes ‘genéricos’ aos ‘genéticos’: A importância da física nos primódios da evolução animal.

O biólogo do desenvolvimento Stuart Newman*, professor de biologia celular e anatomia do New York Medical College representa uma tradição de biocientistas que remonta ao famoso D’Arcy Wentworth Thompson (e mais recentemente, na década de 1950, ao matemático Alan Turing, como seu modelo morfogenético de reação e difusão) que encaram os sistemas biológicos a partir de suas propriedades físicas e químicas e as interações que emergem nos diversos níveis de organização espacial e temporal, tentando modelá-los matematicamente e compreendê-los de maneira mais ampla e menos contingente, buscando por exemplo, leis da forma biológica e que estariam por trás das transformações que se sucedem durante o desenvolvimento ontogenéticos dos indivíduos e como estas características e processos influenciam na evolução das populações e linhagens de organismos.

Já abordamos algumas das visões de Newman e de outros biólogos teóricos que se alinham a esta tradição, conhecida por alguns como ‘estruturalismo de processo‘, em artigos anteriores (Veja por exemplo: “É a evolução genética previsível? Parte II ou Além da genética parte I” e “Viva Turing ou como os camundongos conseguem seu palato enrugado.”), mas agora em um número especial [1] da revista Science que lida especificamente com as forças que agem durante o desenvolvimento embriológico, Newman novamente expõem suas interessantes ideias de como propriedades genéricas físicas e geométricas teriam entrado em ação quando os primeiros seres unicelulares eucariontes começaram a organizarem-se em conjuntos multicelulares.

O modelo de evolução animal proposto por Newman é um tanto diferente da perspectiva tradicional que encara a evolução como uma processo contingente e que portanto ocorrendo de maneira oportunista através de pequenos passos que originalmente ocorrem ao acaso e que são mantidos e disseminadas nas populações ou não de acordo com as vantagens funcionais conferidas ao seus portadores frente aos demais indivíduos em um dado contexto ecológico e demográfico. Todava, para Newman, as coisas devem ter sido bem diferentes nos momentos iniciais da evolução de organismos multicelulares. As ideias de Newman tẽm suas raízes em duas fontes principais. A primeira fonte é a incrível gama de evidências e informações sobre a genética dos nossos ancestrais unicelulares mais remotos, mas a segunda é que o coloca na tradição de Thompson e Turing, pois Newman, embasa sua perspectiva nas propriedades de certos materiais e na dinâmica física da”mesoescala” [2].

Os corpos de animais – e, claro, os embriões que os geram – exibem toda uma variedade de “motivos morfológicos” recorrentes que de acordo com as evidências obtidas através da análise do registro fóssil, teriam aparecido pela primeira entre 550 e 650 milhões de anos atrás. Nos animais, durante o seu desenvolvimento embrionário, as células se organizam em tecidos formando camadas que não se misturam e que possuem cavidades internas. Os embriões animais também exibem padrões arranjados de tipos celulares que podem formar segmentos, exoesqueletos e vasos sanguíneos, além de durante o processo ontogenético, os embriões em desenvolvimento passam por várias mudanças ‘morfogenéticas’ que envolvem o seu dobramento, elongamento, projeção de apêndices, e, em algumas espécies, a formação de endosqueletos a partir de elementos repetitivos como, por exemplo, é o caso da mão humana. [3] Assim, de acordo com o seu modelo alternativo, os motivos estruturais que estão na base da forma animal até hoje são de fato bastante previsível e, na realidade, refletem a dinâmica física das interações dessa ‘mesoescala‘ e provavelmente entraram em ação de maneira mais ou menos súbita do que as perspectivas mais tradicionais da Evo-Devo tendem a reconhecer, com transformações morfológicas bruscas tendo sido favorecidas durante este período inicial de evolução animal. Este modelo é explicado em detalhes no artigo “Physico-Genetic Determinants in the Evolution of Development” da já mencionada edição especial da revista Science disponível online a partir do dia 12 de outubro e no podcast com uma entrevista com o próprio Newman que acompanha esta edição online [2, 3].

O modelo de Newman tem como base a constatação que esses motivos que aparecerem recorrentemente durante os desenvolvimento animal são na realidade muito semelhantes às formas assumidas por materiais não-vivos que são tipicamente estudados por áreas da física com a da matéria condensada, e que são observados em sistemas quimicamente ativos, como meios excitáveis e em materiais viscoelásticos, embora os motivos dos embriões vivos sejam, via de regra, muito mais complexos e sutilmente controlados.

Então, a partir desta constatação, Newman propõe que os ancestrais dos animais atuais adquiriram essas formas estereotipadas quando os antigos organismos unicelulares dos quais evoluíram passaram a viver em aglomerados multicelulares, período em que os processos físicos relevantes para a matéria nesta nova escala (para a vida celular) espacial passaram a ser imediatamente mobilizados [2].

Como os estudos genéticos e genômicos comparativos e as análises filogenética indicam, os progenitores unicelulares dos organismos multicelulares já possuíam vários dos genes do chamado “kit de ferramentas de genético-desenvolvimental” com o qual todos os animais de hoje orquestram o seu desenvolvimento embrionário. Acontece que no passado estes genes e seus precursores eram empregados para funções típicas de organismos com uma única célula, mas foram precisamente estes genes e seus produtos, entretanto, que permitiram que os recém formados grupos ancestrais de organismos multicelulares aproveitassem dos efeitos físicos da ‘mesoescala’ que produziram os motivos morfológicos e desenvolvimentais característicos. A partir daí estes diversos agregados originais devem ter evoluído paralelamente recrutando conjuntos distintas dos genes ancestrais, formando os circuitos e vias de desenvolvimento, para o controle e estabilização desses diversos ‘novos’ processos e motivos que surgiram quando os organismos adentraram nesta nova escala espacial e geométrica. [2, 3]

Na perspectiva de Newman, a seleção natural teria agido a partir daí, atuando por centenas de milhões de anos desde a ocorrência desses eventos de originação, levando, de acordo com a hipótese de Newman, a maior complexidade dos processos de desenvolvimento que aos poucos foram tornando a embriogênese muito menos dependente dos, potencialmente, inconsistentes determinantes físicos, embora esses motivos e processos físicos “genéricos” ainda estejam no cerne dos processos e mecanismos do desenvolvimentos animal, embora estejam sobre camadas e camadas de controle genético mais fino [2, 3].

Esta perspectiva, como enfatizado por Newman em seu artigo, oferece interpretações bem naturais para aspectos intrigantes dos primórdios da evolução animal, incluindo o aumento “explosivo” das formas corporais complexas que teria ocorrido durante o período cambriano, além de nos ajudar a compreender a conservação do mesmo conjunto de genes de controle do desenvolvimento em todos os filos animais, mesmo os mais morfologicamente distintos, além da chamada “ampulheta embrionária” [4, e veja também o artigo “Por que cinco dedos?”] que é a observação por parte de gerações de embriologistas comparativos e biólogos do desenvolvimento que as espécies de um dado filo mesmo passando por trajetórias ontogenéticas de embriogênese muito diferentes uma das outras (por exemplo, rãs e ratos) passando por pontos de partida embrionários bem distintos, e, ainda assim, passarem por fases intermediárias de desenvolvimento muito semelhantes , como as conhecidas fases ‘filotípicas’, mantendo seu ‘plano básico de desenvolvimento‘ [2, 3, 4].

As perspectivas de Newman enriquecem a moderna biologia evolutiva e nos leva um pouco mais próximos a compreender mais  a fundo como as formas emergem durante o desenvolvimento ontogenético e como se modifica durante a evolução, integrado áreas bem distintas das ciẽncias de uma forma fértil, e fazendo uma ponte entre uma visão mais nomológica da vida com a mais contingente e histórica, ampliando o leque de explicações evolutivas de modo a tornar mais claro este belo entrejogo entre ‘acaso e necessidade’ que caracteriza a vida e sua evolução.

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*Newman oferecerá em novembro deste ano, na Universidade Federal da Bahia, um curso sobre Evo-Devo contando com a organização do professor Charbel Niño El-Hani, como já noticiado aqui em nosso site.

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Referências:

  1. Purnell, Beverly A. Forceful Thinking Science 12 October 2012: 338 (6104), 209. doi:10.1126/science.338.6104.209

  2. Newman, Stuart A. Physico-Genetic Determinants in the Evolution of Development. Science, 12 October 2012: 217-219 doi: 10.1126/science.1222003

  3. New York Medical College (2012, October 11). Developmental biologist proposes new theory of early animal evolution that challenges basic assumption of evolution. ScienceDaily. Retrieved October 12, 2012 [Link]

  4. Irie N, Kuratani S. Comparative transcriptome analysis reveals vertebrate phylotypic pe…. Nat Commun. 2011;2:248. PubMed PMID: 21427719.

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Referências Adicionais Recomendadas:

Um Darwin Diferente

O naturalista Charles Darwin (1809-1882), notável por suas idéias revolucionárias sobre as origens das espécies era um personagem marcado por conflitos e dramas pessoais como todo mundo. [Na foto: Paul Bettany interpretando Darwin no cinema no filme ‘Criação’ (2010)]

O naturalista Charles Darwin  (1809-1882) combinava perfeitamente o espírito do explorador com o do cientista. Antes de mais nada era um apaixonado pela Natureza, pela sua criatividade e versatilidade, e, como bom cientista, unia a essa paixão, a confiança na capacidade humana de decifrar os mistérios do mundo através da razão. Com um apetite insaciável pelo conhecimento, saiu pelo mundo em um navio da famosa Marinha Britânica, em busca de aventuras  e pistas que o ajudassem a desvendar  as variações que existiam nas diversas formações geológicas da Terra e na diversidade entre as espécies, bem como nas possíveis relações entre as duas.

Darwin viveu em uma época  em que a explicação mais aceita para a variação das espécies era dada pela Bíblia, segundo a qual Deus  criou o mundo em sete dias com todos os animais e plantas viventes até hoje. Se alguém questionasse essa explicação, por exemplo, perguntando por que não existiam mais dinossauros  (cujos  fósseis, é claro, já eram conhecidos bem antes do século  XIX), a resposta seria que esses monstros  eram muitos grandes para  caber na Arca de Noé e, portanto, acabaram afogados no Dilúvio. Darwin não se convencia muito com esse tipo de explicação. Ele achava que a Bíblia não deveria ser usada como texto científico e que deveria ser possível entender a mecânica do mundo através de seu estudo meticuloso, a partir da coleta de dados.

Esse Darwin que se notabilizou por seus estudos sobre a origem da espécies a a partir da seleção natural todo mundo conhece. Eu quero apresentar um Darwin diferente, um Darwin com mais características humanas, alguém como você e eu, cheios de qualidades e defeitos. Talvez quem leu a biografia de Darwin conheça um pouco desse lado do naturalista, embora a história tenha lhe reservado os louros de suas descobertas ou as críticas por suas teorias a respeito da origem do homem.

Para começar, quando jovem Charles Darwin tinha fama de gastador. Em cartas enviadas às suas irmãs Susan e Catherine quando estava no Chile entre 1834-35,  Darwin se revela um gastador compulsivo. Diz ele:

” Tudo isso é muito brilhante, mas agora vem a parte desanimadora do projeto. Aquele fantasma horrendo, o dinheiro(…) Em suma , descontei uma letra cambial de 100 libras, isso logo depois de ter gasto 60 libras na travessia dos Andes (…) Creio sinceramente que eu seria capaz de gastar dinheiro até na Lua (…) não consigo, ou melhor, nunca resisti à Tentação.”

Ainda bem que ele era filho do afortunado Dr. Robert  Waring  Darwin, um médico milionário que trabalhava com especulações financeiras, tais como ações  de minas de ouro da América do Sul. Gastar 180 libras  em 4 meses , em 1834, em um país  pobre como o Chile naquela época, não era nada fácil. Isso representava quase o salário anual  de um professor da Universidade de Cambridge. Essa extravagância declarada não era novidade no jovem Darwin. Anos antes, em maio de 1831, recém-formado, recebera do pai 200 libras. Elas deveriam ser suficientes para quitar a s suas dívidas em Cambridge, onde estudara, e deveria sobrar um pouco para gastar em algo verdadeiramente ligado aos estudos universitários. Para “amolecer” o coração e o bolso do severo pai, o jovem Charles não hesitava em pedir ajuda das irmãs , de quem sempre se manteve muito próximo desde que se tornara órfão de mãe aos 8 anos de idade.

Darwin deixou sua cidade com 16 anos, para estudar Medicina na Universidade de Edinburgh. Porém, o pai de Charles o obrigou a mudar de caminho, e ir para a Universidade de Cambridge, para tornar-se clérigo da Igreja Anglicana. Ainda jovem, Darwin se interessou por geologia e voltou seus estudos para a geologia da América do Sul, decidindo explorar a Cordilheira dos Andes. As despesas não seriam pequenas ( mais tardes estimadas em 500 libras), mas Darwin deveria mostrar que, dessa vez a causa da gastança era verdadeiramente nobre. Ele cavaria fundo a ignorância humana e descobriria coisas jamais vistas.

“Uma galinha ciscando o chão sabe mais da geologia do galinheiro do que nós sabemos daquilo que está sob os nossos pés”, costuma dizer Darwin, já exibindo seu conhecimento  teórico e prático sobre o assunto.

Em 1831, aos 22 anos e recém-formado, Darwin foi convidado a participar de uma expedição patrocinada pelo governo inglês até os trópicos, como acompanhante do comandante do navio HMS Beagle. A missão do Beagle estava revestida de importância geopolítica. Darwin não embarcaria com um carregamento de batatas ou carvão mineral. Ele estava acompanhado de nada menos do que 22 cronômetros H-4 de precisão inaudita, garantida por preciosos rubis à prova de desgaste, guardados por uma tripulação armada, disposta a proteger à bala os mais modernos artefatos da tecnologia da época. A expedição  consertaria os erros dos mapas anteriores que tinham dizimado tripulações inteiras de navios e determinaria com precisão, interesses geopolíticos e militares, como as Ilhas Malvinas, que, conquistadas à força  por aquela época, passaram a se chamar Falklands.

A decisão de navegar estava ligada a vários fatores, entre eles a vida amorosa de Charles Darwin. Sua amiga de infância, Fanny Owen (1808-1891), estava disponível para um relacionamento mais sério. Seria possível adiá-lo para depois da viagem? Mas esse capítulo sobre a vida amorosa de Darwin eu conto depois em uma outra postagem.

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Para saber mais: 

O ruído por trás do ENCODE Parte 1

As repercussões a divulgação dos resultados do ENCODE continuam e vários pesquisadores que trabalham com as partes do DNA consideradas ‘sucata’ (mais sobre isso adiante) – isto é, elementos genéticos móveis ou elementos transponíveis (TEs), como retroposons e transposons (funcionais ou ‘quebrados’), sequências repetitivas, retrovírus endógenos (ERVs), pseudogenes etc – têm se manifestado contra a hype incitada pelos artigos e releases de imprensa e pelas as discussões nos blogs de não-especialistas que abraçaram a ideia simplista de que este era o fim da história do DNA sucata. Como Mark Twain já havia dito “Parece-me que as notícias sobre a minha morte são muito exageradas” e assim parece ser o caso do epitáfio do ‘DNA sucata’.

A noção estendida de função adotada nos ensaios conduzidos pelos participantes do consórcio ENCODE buscam apenas regiões transcritas em que proteínas liguem-se ou que tenham sido quimicamente modificadas diferencialmente, mas nada disso é uma evidência inequívoca de que aqueles trechos sirvam para algo de um ponto de vista mais específico para a sobrevivência do organismo e muito menos que tenha sido produzido pelos seus efeitos favoráveis na sobrevivência e sucesso reprodutivo nos indivíduos que os portassem, mas esse não parece ser o caso ou pelo menos ainda não temos evidências diretas disso.

Como já havia comentado, as melhores estimativas são de que 20% das regiões do genoma analisadas parecem realmente ter uma função em sentido estrito, o que é compatível com as estimativas anteriores levando-se em conta os estudos sobre DNA sucata [Veja por exemplo esta comparação que T. Ryan Gregory faz de uma entrevista do principal investigador do artigo que resume os achados do ENCODE Ewan Birney e o primeiro artigoa usar o termo ‘DNA sucata’ e a discuti-lo, escrito por David Commins em 1972]. Este ponto é importante pois muitos dos posts, comentários e releases tem simplesmente apresentados a situação como se a maioria dos cientistas pensasse que 95% do DNA em nossos genomas não servia para nada ou que tivesse uma função desconhecidas, mas isso é simplesmente falso, como procurei mostrar em artigo anterior aqui em nossa página, pelo simples fato que já se sabia que parte do DNA não-codificante estaria envolvido com regulação especificamente com sítios de ligação para proteínas chamadas fatores de transcrição ao DNA ou como elementos estruturais importantes para a organização e movimento dos cromossomos, associados por exemplo as imediações dos centrômeros e telômeros, além de elementos espaçadores.

Além disso, não se imaginava que o resto do genoma fosse bioquimicamente inativo, isto é, não ‘fizesse nada’, mas apenas que uma boa parte não ‘servisse para nada’ em relação as necessidades do organismo portador, comportando-se como formas de DNA egoístas, vivendo como comensais ou mesmo parasitas genômicos. Porém, desde sempre já se imaginava que pelo menos alguns desses elementos genéticos móveis já deveriam ter sido domesticados e portanto estariam mais para simbiontes, tendo sido recrutados para uma função específica, como dar origem a novos genes ou sistemas de regulação ou ter um papel mais amplo como quem sabe um sistema de coesão molecular ou algo assim. O que muitos acreditavam e acreditam até hoje é que em muitos casos o que manteria estes trechos de DNA egoístas ou simbiontes seria o alto custo em removê-los o que provavelmente dependeria de vários detalhes como a eficiência da seleção natural e sua vinculação com os tamanhos efetivos da população, como é indicado pelo fato dos genomas de microrganismos procariontes serem bem mais enxutos do que o os dos eucariontes, especialmente os multicelulares.

Mas o fato que realmente tira o sono dos pesquisadores e que torna qualquer explicação funcional simples e direta e que sirva amplamente para as porções de ‘DNA sucata’ na maioria dos organismos é a imensa variação do seu conteúdo entre as espécies. Isso é ilustrado pelo chamado ‘teste da cebola’ proposto por T. Ryan Gregory que deixa claro o tipo de problema que está diante dos que negam simplesmente a ideia do DNA sucata e que boa parte dele esteja lá não por que nos sirva para algo específico, mas por que eles funcionam muito bem se replicando e se mantendo e por que em muitos casos removê-los é difícil e evolutivamente custoso. Este processo associa-se também intimamente ao ‘enigma do valor C’ (antes denominado ‘paradoxo do valor C‘) que é a falta de correlação restrita entre o tamanho dos genomas e todas as outras medidas de complexidade organísmica, como exceção de algumas coisas como volume celular e em algumas circunstâncias a velocidade de divisão celular que depende da quantidades de coisas a serem duplicadas.

Como Sidney Brenner teria dito, existe uma diferença entre lixo e sucata, pois lixo é o que você se joga fora e sucata é o que você mantém. Este mote tem me feito evitar a tradução comum de ‘Junk DNA’ por ‘DNA lixo’, preferindo e insistindo na tradução ‘DNA sucata’ que apesar da conotação de  acumulo de tranqueira não necessariamente atribui as vastas quantidades de DNA não-codificante, não-estruturais e não-regulatórios, a condição de desinteressante ou mesmo inútil. Pérolas podem ser esconder entre a sucata e boa parte da evolução biológica a longo prazo pode depender direta ou mais provavelmente indiretamente do que ocorre nestas vastas terras de ninguém que acumulam-se nas células dos organismos vivos.

Além do mais, sem uma definição mais restrita de função as coisas ficam confusas. Aproveitando as metáforas, arrisco-me a produzir a minha própria para ilustrar a questão: Em um ferro-velho, ao procurar por uma peça específica, alguém pode puxar uma tranqueira candidata a peça desejada que estava embaixo de uma pilha de sucata fazendo toda a pilha colapsar e cair em cima do escritório do dono do ferro-velho que de pronto poderia dizer: “Nossa vc foi puxar logo a peça que servia para evitar que meu escritório fosse destruído” O tipo de definição adotada pelo ENCODE permite este e outros usos que são muito diferentes daquilo que muitos pesquisadores interessados na evolução genõmica e na dinâmica de certas porções não-codificantes do genoma estão interessados e tendem a referir-se por ‘sucata’, na falta de um termo melhor [Veja “Sobre sucata, lixo, DNAs egoístas, comensais e simbiontes:”]

Após a tradução do ótimo artigo de Michael Eisen, “Uma teoria neutra da função molecular” dois outros artigos de blog de dois outros cientistas, ‘ENCODE says what?, “On The Neutral Sequence Fallacy, respectivamente, escritos por Sean R. EddyCasey Bergmanque continuam a destrinchar o recente hype sobre o ENCODE. Eddy afirma em seu artigo:

Uma descoberta chave que explicou satisfatoriamente o paradoxo C-valor foi a descoberta de que genomas, especialmente de origem animal e genomas de plantas, contêm um grande número de elementos transponíveis (móvel) que se replicam por si mesmos, muitas vezes à custa (geralmente leve) de genoma do seu hospedeiro . Por exemplo, cerca de 10% do genoma humano é composto por cerca de um milhão de cópias de um pequeno elemento móvel chamado Alu. Outra grande fração do genoma é composto por um elemento móvel denominado L1. Transposons são relacionados a vírus, e pensamos que em sua maior parte, eles são parasitas na natureza. Eles infectam um genoma, replicando-se, espalhando-se e multiplicando-se, eventualmente morrem, sofrem mutações e são erodidos, deixando suas seqüências de DNA. Às vezes, quando ago como uma Alu replica-se em saltos, em um novo lugar em nosso genoma, ela quebra alguma coisa. Normalmente (em parte porque o genoma é grande parte não-funcional) a Alu nova apenas pula em outro lugar na sucata e não tem qualquer efeito sobre nós.


Assim, verifica-se que, quando olhamos para todos esses diferentes tamanhos de genoma, quase toda a variação de tamanho intrigante é explicado por genomas com diferentes “cargas” de elementos transponíveis. Algumas criaturas, como baiacu, têm apenas baixas cargas de transposons. Algumas criaturas, como salamandras, peixes-pulmonados, amebas, milho e lírios, são carregados com um enorme número de transposons. Da mesma forma, o genoma humano é anotada como tendo cerca de 50% seqüência derivadas de transposons – no ponto certo da fronteira de 50/50 para que alguém possa dizer “o genoma humano é principalmente sucata” e que alguém poderia dizer “o genoma humano não é principalmente sucata “.

Sean R. Eddy vai adiante e deixa claro que DNA não-codificante, aquela parte que não está diretamente associada a codificação de proteínas e mesmo pequenos RNAs regulatórios que totalizariam entre 21000 e 22000 genes (veja os artigos Gene number and complexity, de T. Ryan Gregory, “False History and the Number of Genes“de Larry Moran e “Human genome at ten: Life is complicated” de Erika Chck Hayden), que talvez equivalham a 1 ou 2% do genoma, é em parte sucata (o que mesmo assim não diz que esta porção seja inativa bioquimicamente), mas também parte regulatória, como também já havíamos comentado, e, claro, também parte desconhecida:


É fundamental compreender que o DNA “não codificante” não é sinônimo de “DNA. Sucata”. A visão atual do genoma humano, que o ENCODE agora confirma sistemática e amplamente e estende, é que cerca de 1% é ligado a codificação de proteínas, talvez com cerca de 20.000 “genes” em média com cerca de 1.500 bases de codificantes cada (onde o conceito de um “gene” é amorfo, mas útil; sabemos que um quando vemos um). Os genes são ligados e desligados por regiões reguladoras de DNA, tais como promotores e potenciadores – como tem sido descoberto ao longo de 50 anos, começando com a forma como vírus bacterianos funcionam. Em animais, como os seres humanos, a maioria das pessoas (ok, eu) diria que há talvez 10-20 regiões regulatórias por gene, cada uma talvez com 100-300 bases de comprimento,então, muito aproximadamente, talvez algo da ordem de cerca de 1000-6000 bases de informação reguladora não codificante por cada 1500 bases codificantes de por gene. Eu só estou dando a noções superficiais e aproximadas aqui porque é realmente muito difícil de calcular esses números exatamente, o nosso conhecimento atual dos detalhes de seqüências de DNA reguladoras é dolorosamente incompleto. Isso é algo que ENCODE está tentando a ajudar a descobrir, de forma sistemática, e onde está uma grande parte do valor real de ENCODE. O ponto é, nós já sabíamos que havia provavelmente pelo menos como DNA regulatório tanto quanto a DNA codificante, e provavelmente mais, nós simplesmente não temos uma compreensão satisfatória de tudo isso ainda, e nós pensamos que precisávamos de um projeto ENCODE para avaliar isso de forma mais abrangente

Fazendo coro a Eisen, Eddy propõem a ideia altamente importante uma vez que dentro da definição de função usada pelo ENCODE encaixam-se perfeitamente boa parte do DNA já anotado como sucata. Por isso ele propõem o seguinte experimento de pensamento:

Se você fizer um pedaço de sucata por si mesmo – uma sequência de DNA completamente aleatória! – E deixasse o cair no meio de um gene humano, o que aconteceria com ele? Seria transcrito, porque o aparelho de transcrição para que o gene passaria rasgando pelo seu DNA sucata. O ENCODE chamaria o RNA transcrito de seu DNA sucata aleatório “funcional”, por sua definição técnica. E se ainda não fosse transcrito, seria porque ele agiu como um tipo diferente de elemento funcional (seu DNA aleatório poderia criar acidentalmente um terminador da transcrição).

A partir daí Eddy propõem a ideia de “Projeto do Genoma Aleatório”:

Assim, a-ha, há a questão real. A experiência que eu gostaria de ver é o Projeto Genoma Aleatório. Sintetizar um cromossomo de cem milhões de bases de DNA totalmente aleatório, e fazer um projeto ENCODE nesse DNA. Façam suas apostas: será que vai ser transcrito? Ligado por proteínas de ligação ao DNA? A cromatina será marcada?

 

O Projeto Genoma Aleatório é a hipótese nula, uma peça essencial para a compreensão de que seria ótim ter, antes que todos lutássemos sobre a interpretação dos dados do ENCODE sobre genomas. Para DNA aleatório (DNA não derivado de transposons, nem codificante e nem regulador), qual é a a nossa expectativa nula para todos essas características “funcionais” para o ENCODE, devida simplesmente ao acaso, em DNA aleatório?

Uma importante mensagem deixada por Eddy é que a evolução ocorre, muitas vezes, a partir do que há sucata:


Mesmo se você fizer o Projeto Genoma Aleatório e descobrir uma fração considerável de uma sequência totalmente aleatória “funcional”, transcrita e ligada e cuja cromatina é marcada, isso de alguma forma diminuiria a sua visão do genoma humano?


Pessoalmente, eu não acho que nós podemos entender genomas, a menos que tentemos reconhecer todos os diferentes ruidosos, processos neutros evolutivos estão ocorrendo nele. Sem “ruído” – sem um fundo de transcrição específico, mas não funcional, ligação e marcação – a evolução teria menos tração, menos de material de novo para agarrar e refinar e selecionar, para torná-lo mais e mais útil. Genomas são feitos de seqüência recondicionadas, emprestadas do que seja que estivesse por lá, incluindo o “DNA lixo” de transposons invasores.

 

Essas ideias ecoam os argumentos de Eisen sobre a necessidade de uma teoria neutra da função espelhando a teoria neutra da evolução molecular de Motoo Kimura que depois foi estendida no modelo quase-neutro por Tomoko Otha. É neste ponto que alguns alertas muito importantes devem ser feitos e que estão muito bem aprensados e esmiuçados por Casey Bergman em seu, também excelente e longo, post On The Neutral Sequence Fallacy, em que o cientista nos explica o que realmente é o modelo neutro de Kimura e Otha e por que precisamos separar a ‘restrição funcional‘ ou a falta dela de certas sequências – isto é, o fato de certas sequências possuírem certos limites além dos quais elas perdem suas funções essenciais e passam a ser alvo da seleção negativa e purificadora, enquanto outras não os possuem por serem não funcionais – da questão da neutralidade seletiva de certas variantes de uma mesma sequência, ou seja, o fato de que certas mutações ou alelos de uma determinada sequência de DNA são equivalentes em termos da aptidão conferida ao organismo que as portam, sendo assim igualmente, ou pelo menos quase equivalentes, funcionais, mesmo que as sequências em si seja funcionalmente restritas no sentido de não poderem variara completamente ou mesmo deixar de existir:

 

Apesar de sua ampla adoção, ao longo dos últimos dez anos, tem havido um aumento preocupante do abuso de terminologia sobre a teoria neutra, que vou chamar aqui coletivamente a “Falácia da Sequência Neutra” (inspirado na Falácia do Ornitorrinco de T. Ryan Gregory). A Falácia Sequência Neutra surge quando os conceitos distintos de restrição funcional e neutralidade seletiva são confundidos, levando à descrição equivocada de seqüências funcionalmente sem restrições como sendo “neutras”.A Falácia, em suma, é a de atribuir o termo neutro para uma sequência biomolecular particular.

 

Este tópico será abordado em breve e nos permitirá voltar a um das principais ideias que enriqueceram a biologia evolutiva moderna no período pós síntese, a teoria neutra da evolução molecular e os modelos e teorias dela derivadas.

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Para saber mais veja os postos anteriores “Uma teoria neutra da função molecular:“, Decodificando os novos resultados do ENCODE e “Sobre sucata, lixo, DNAs egoístas, comensais e simbiontes:

Créditos das Figuras:

TEK IMAGE/SCIENCE PHOTO LIBRARY
JAMES KING-HOLMES/SCIENCE PHOTO LIBRARY
LAURENT DOUEK/LOOK AT SCIENCES/SCIENCE PHOTO LIBRARY

Uma teoria neutra da função molecular [Tradução de texto de Michael Eisen]:

Aproveitando a publicação dos diversos artigos sobre os resultados do ENCODE, achei oportuno traduzir este pequeno post do biólogo evolutivo Michael Eisen que discute alguns problemas com certas conclusões veiculadas pela mídia e mesmo vociferadas por alguns dos pesquisadores ligados ao projeto. Eisen explica por que estas conclusões não se seguem diretamente dos dados apresentados e como elas envolvem, na realidade, uma certa dose de ingenuidade em termos de biologia evolutiva, especialmente sobre o que aprendemos nos últimos 40 anos sobre evolução molecular. São palavras sóbrias e ao mesmo tempo intelectualmente instigantes que mostram o tipo de cuidado que precisamos ter ao analisar e interpretar essa montanha de dados sobre atividade bioquímica genômica e interações moleculares que estão surgindo via ENCODE e principalmente o quão claros devemos ser ao empregar palavras com ‘função’ em relação a estes achados.

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Uma teoria neutra da função molecular:

Autor: Michael Eisen | 7 de setembro de 2012

Fonte: it is NOT junk: ‘a blog about genomes, DNA, evolution, open science, baseball and other important things’

Post original: A neutral theory of molecular function

Tradução: Rodrigo Véras

Em 1968 Motoo Kimura publicou um pequeno artigo na Nature em que argumentava que “a maioria das mutações produzidas por substituições de nucleotídeos são quase completamente neutras em relação a seleção natural”. Este fantástico artigo é geralmente visto como tendo estabelecido a “teoria neutra” da evolução molecular, cujo princípio central foi definido por Jack King e Lester Jukes em um artigo da Science no ano seguinte:

A mudança evolutiva nos níveis morfológico, funcional ou comportamental resulta do processo de seleção natural, operando através de mudanças adaptativas no DNA. Disso não necessariamente se segue que toda, ou quase toda, mudança evolutiva no DNA seja devida a ação da seleção natural Darwiniana.

É difícil exagerar a importância desses artigos. Eles ofereceram um desafio imediato à crença profundamente falha, mas amplamente difundida, de que todas as alterações do DNA deveriam ser adaptativas – uma suposição que estava envenenando a maneira com que a maioria dos biólogos estavam avaliando a primeira onda de dados de seqüências de proteínas. E como suas idéias foram rapidamente aceitas no campo emergente da evolução molecular, a teoria neutra pairava sobre praticamente todas as análises de variação de seqüência dentro e entre as espécies nas décadas vindouras.

 

O que Kimura, King e Jukes realmente fizeram foi estabelecer um “modelo nulo” novo contra o qual qualquer exemplo hipotético de mudança molecular adaptativa deveria ser julgado. Na verdade, a neutralidade ofereceu uma explicação tão boa para alterações nas seqüências ao longo do tempo que, quando eu entrei no campo no início dos anos 90, os pesquisadores ainda lutavam para encontrar um único exemplo de mudança molecular para o qual uma explicação neutra pudesse ser rejeitada.

Embora a explosão de dados de seqüências na década passada finalmente rendeu evidências inequívocas de evolução adaptativa molecular em grande escala, é difícil exagerar o quão poderoso o modelo nulo neutro foi em forçar as pessoas a pensar claramente sobre o que significam as mudança adaptativas, e como alguém deveria proceder para identificar exemplos claros delas.

Penso muito sobre Kimura, sobre a teoria neutra, e os efeitos salutares de modelos nulos claros cada vez que eu me envolvo em discussões sobre a função, ou a falta dela, de eventos bioquímicos observados em experimentos de genômica, como os desencadeados esta semana pelas publicações do projeto ENCODE.

É fácil ver os paralelos entre a maneira que as pessoas falam sobre transcritos de RNAs, interações DNA-proteína, regiões hipersensíveis à Dnase e etc, com a forma que as pessoas falavam sobre mudanças em sequências PK (pré Kimura). Embora muitas das pessoas realizando RNA-seq, ChIP-seq, etc… foram indoutrinadas com Kimura em algum ponto de suas carreiras, a maioria parece incapaz de aplicar as lições dele ao seu próprio trabalho. O resultado é um campo impregnado implícita ou explicitamente com um pensamento que segue essa linha:

Eu observo A ligar-se a B. A poderia só ter evoluído para ligar-se a B se estivesse fazendo algo de útil. Logo, a ligação entre A a B é “funcional”.

Pode-se entender a tentação de pensar desta forma. Na perspectiva de livro-texto da biologia molecular, tudo é altamente regulado. Os genes são transcritos com um propósito. Fatores de transcrição ligam-se ao DNA quando estão regulando algo. Quinases fosforilam alvos para alterar sua atividade ou localização subcelular. E assim por diante. Embora sempre houve muitas razões para descartar essa maneira de pensar, até cerca de uma década atrás, era assim que a literatura científica parecia. Nos dias em que artigos descreviam genes únicos e interações individuais, quem se daria ao trabalho de publicar um artigo sobre uma interação não-funcional que haviam observado?


Mas a genômica experimental explodiu este mundo isolado e idílico da biologia molecular. Por exemplo, quando Mark Biggin e eu começamos a fazer experimentos ChIP-chip em embriões de
Drosophila, descobrimos que fatores não apenas ligavam-se com sua dúzia ou mais de alvos, mas a milhares e, em alguns casos, dezenas de milhares de lugares em todo o genoma. Tendo estudado Kimura, eu simplesmente assumi que a grande maioria destas interações tinha evoluído por acaso – um conseqüência natural, essencial, da fixação alterações nucleotídicas neutras que aconteceram e que por ventura criaram sítios de ligação de fatores de transcrição. E assim eu fiquei chocado que quase todos com quem conversava sobre esses dados assumiam que cada um desses eventos de ligação estava servido para alguma coisa – só não tinhamos descoberto ainda para que.

Mas se você pensar sobre isso, você se dará conta que isso simplesmente não pode ser assim. Como nós e muito outros temos mostrado agora, as interações moleculares não são raras. Transcritos, sítios de ligação de fatores de transcrição, modificações ao DNA, modificações na cromatina, sítios de ligação de RNA, sítios de fosforilação, interações proteína-proteína, etc … estão em toda a parte. Isso sugere que este tipo de eventos bioquímicos são fáceis de criar – mude um nucleotídeo aqui – Tcham!, um novo fator de transcrição se liga, e um sítio de splicing é perdido, um novo promotor é criado, um sítio de glicosilação é eliminado.

Será que isso entra em conflito com a teoria neutra? Não mesmo! Na verdade, é perfeitamente consistente com ela. A teoria neutra não exige que a maioria das alterações nas sequências não tenham nenhum efeito mensurável sobre os organismos. Pelo contrário, a única coisa que você tem que assumir é que a grande maioria dos eventos bioquímicos que ocorrem como conseqüência de mutações aleatórias não afetam significativamente aptidão dos organismos. Dado que uma fração tão grande do genoma é bioquimicamente ativa, a mesma lógica básica Kimura, King e Jukes usaram para argumentar pela neutralidade – que seria simplesmente impossível que um número tão grande de características moleculares tivessem sido levadas a fixação pela seleção – indica fortemente que a maioria dos acontecimentos bioquímicos não contribuem significativamente para a aptidão. Na verdade, dado a freqüência aparente com que novas interações moleculares surgem, é praticamente impossível que nós ainda existíssemos se cada novo evento molecular tivesse um efeito fenotípico forte.

Isto, naturalmente, não significa que todos esses eventos moleculares não façam nada – a sua existência é uma forma de função. Mas estamos geralmente interessados ​​em diferentes tipos de função – coisas que surgiram por meio da seleção natural, são mantidas por meio de da seleção purificadora, cuja perturbação vai causar uma doença ou outro fenótipo significativo. É claro que essas coisas existem no meio dos escombros. A questão é como encontrá-las. E aqui eu acho que devemos, mais uma vez, tomar nossa pista de Kimura.

Com argumentei acima, o campo da evolução molecular desenvolveu um núcleo intelectual poderoso em grande parte por que os pesquisadores tiveram que se ver as voltas com a poderosa hipótese neutra – significando que a mudança adaptativa teria que ser demonstrada, não pressuposta. Nós temos que aplicar a mesma lógica às interações moleculares.

Ao invés de assumir – como tantos pesquisadores do ENCODE parecem fazer – que os milhões (ou seriam bilhões?) de eventos moleculares que eles observam são um tesouro de elementos funcionais aguardando para serem compreendidos, eles deveriam encarar cada um e todos os eventos com um ceticismo Kimuriano. Nós jamais deveríamos aceitar a existência ou uma molécula ou uma observação de que ela interage com algo como uma evidência prima facie de que é algo importante. Ao contrário, nós deveríamos assumir que todas essas interações são não-funcionais até prove-se o contrário, e desenvolver melhores, convincentes, maneiras de rejeitar essa hipótese nula.

Parafraseando King e Jukes:


A
vida depende da produção de e das interacção entre DNAs, RNAs, proteínas e outras biomoléculas. Isso não significa necessariamente que todas as biomoléculas, ou a maioria delas, e as interações entre elas, sejam devidas à ação da seleção natural darwiniana.

Quero terminar salientando que há muitas pessoas (eu e meu grupo, incluídos) que já tem se digladiado com esta questão, com muitas ideias interessantes, e os resultados já por aí. Do ponto de vista intelectual, eu gostaria de destacar particularmente a influência dos escritos de Mike Lynch tiveram em mim – ver especialmente este.

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NOTA: Há muito mais a dizer sobre isso, e no interesse de tempo (eu tenho que dar uma palestra sobre genética logo no início da manhã) eu não me aprofundei como algumas dessas questões merecem. Vou atualizar este post quando o tempo permitir.

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Michael Eisen é um biólogo evolutivo da Universidade de Berkeley e pesquisador do Instituto Médico Howard Hughes. Sua pesquisa se ​​concentra na genômica evolutiva e de populações da regulação genética em moscas, e sobre as formas que os micróbios controlam o comportamento de seus hospedeiros animais. Eisen é um forte defensor da ciência aberta, e um co-fundador da Public Library of Science., o famoso PloS e, segundo ele mesmo, o mais importante de tudo, um fã do Red Sox.

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Para saber mais veja nossos posts que abordam vários assuntos relacionados aos comentados por Eisen, como “Além da seleção natural ou a importância da evolução neutra.”, “O preço da complexidade”, “Mutações: A aleatoriedade em sua essência*”, “Post no blog: Marcas da adaptação: A teoria neutra e as assinaturas moleculares da seleção natural”, além do artigo anterior sobre as recentes notícias sobre o ENCODE, “Decodificando os novos resultados do ENCODE

Literatura intensamente recomendada:

 

Decodificando os novos resultados do ENCODE

O projeto ENCODE (Encyclopedia Of DNA Elements), um grande consórcio de instituições de pesquisa envolvendo centenas de pesquisadores, liberou novos dados [1] extremamente interessantes sobre o assunto que indicariam que pelo menos 80% do nosso genoma seria ‘funcional’ através de um artigo publicado hoje na revista Nature. Segue uma tradução do abstract:

O genoma humano codifica uma planta da vida, mas a função da grande maioria dos seus quase três bilhões de bases é desconhecida. O projeto da Enciclopédia de Elementos de DNA (ENCODE) tem sistematicamente mapeado regiões de transcrição, associação a fatores de transcrição, estrutura da cromatina e modificação de histonas. Estes dados permitiram atribuir funções bioquímicas a 80% do genoma, em especial regiões fora das bem estudadas de codificação de proteínas. Muitos elementos reguladores candidatos foram descobertos estão fisicamente associados uns aos outras e com genes expressos, fornecendo novas perspectivas sobre os mecanismos de regulação dos genes. Os elementos identificados recentemente também mostram uma correspondência estatística de variantes de sequência associadas à doenças humanas e podem, assim, guiar a interpretação desta variação. No geral, o projeto fornece novas pistas sobre a organização e regulação de nossos genes e do genoma, e é um recurso expansivo de anotações funcionais para a pesquisa biomédica”*.[Nature 489, 57–74; 06 September 2012; doi:10.1038/nature11247]

Porém, a forma que o os pesquisadores do ENCODE definem ‘função’ diverge bastante da maneira como ela é normalmente compreendida pela maioria dos biólogos que investigam a evolução fenotípica e até mesmo a evolução molecular que geralmente preferem deixar este termo para algum tipo de sequência genômica que produza algum tipo de modificação que influencie na aptidão dos organismos, tendo um papel mais específico ao nível celular, tecidual, organísmico e ecológico por exemplo. Contudo, no projeto ENCODE por motivos técnicos e por causa do objetivos da empreitada qualquer elemento do DNA que seja transcrito em um RNA ou que seja alvo de ligação de proteínas, especialmente se esta ligação variar entre tipos celulares é considerado ‘funcional’. Isto é, para o projeto ENCODE qualquer nível de atividade bioquímica ao nível do DNA é considerada ‘função’, uma vez que são este tipo coisas é que os métodos e técnicas empregadas estão a vasculhar. Esta definição que não pode ser considerada errada, mesmo por que esta atividade básica também pode ser considerada fenotípica em um nível mais básico, infelizmente acabou por causar muitas confusões, principalmente do ponto de vista da evolução molecular e da natureza de boa parte do nosso genoma.

De fato, os estudos do ENCODE revelam que até o momento, juntamente com os cerca de 1,5% do genoma, apenas 8,5% do genoma corresponde a sequências que parecem ter realmente uma relevância funcional em sentido mais restrito e significativo para a evolução, uma vez que além de genes tradicionais codificadores de proteínas, estão incluídas nesta estimativa mais modesta sequências altamente conservadas – isto é, que variam muito pouco entre os organismos e entre os indivíduos – e que são realmente alvos de ligação de proteínas regulatórias, devendo portanto estar diretamente envolvidas na regulação gênica. Como a cobertura de tipos celulares é incompleta, os pesquisadores estimam que estes número de cerca de 8,5% deva representar cerca de metade das porções genômicas realmente funcionais, em um sentido mais relevante, e que devem estar associadas a características funcionais específicas dos organismos.

Mas existem outros problemas sobre o tipo de coisas que estão sendo concluídas a partir desses novos dados do ENCODE. Uma delas é que sabemos que boa parte do chamado DNA sucata corresponde a sequências de elementos genéticos móveis defeituosos, isto é, que não funcionam direito e não conseguem saltar ou se replicar de forma independente e adequada, mas que eventualmente podem ser transcritas parcialmente. Portanto, essas e outras sequências acabam por entrar na conta das estimativas mais exageradas de funcionalidade e podem na realidade até mesmo mesmas terem um impacto indireto na aptidão dos organismos que as portam, já que podem atrapalhar os processos de transcrição de certos genes. E aí entramos em outra questão interessante, pois existem evidências que o silenciamento por modificações estruturais do DNA, como a metilação de citosinas e condensação de cromatina, dois critérios utilizados para diagnosticar funcionalidade pelo ENCODE, podem ter evoluído como forma de controle desses parasitas genômicos, como vírus [2, 3], o que tornaria boa parte destas estimativas um mero artefato de definição, consequência indiretas de respostas evolutivas muito gerais de controle de danos. Muitos dos artigos apontam as conclusões do ENCODE como revelando segredos inesperados do genoma humano, mas na verdade as coisas não são bem assim e o que está sendo revelado é a enorme complexidade da questão e a intrincamento das estruturas biológicas e a dinâmica de processos evolutivos que as moldaram em diversos níveis.

Na página principal de Ewan Birney, um dos responsáveis pelo projeto e que comentou extensamente sobre estes resultados, está uma visão bem mais nuançada e equilibrada desses achados que mostra os problemas de se definir função dentro do projeto ENCODE e a natureza metodológica operacional deste procedimento. No blog de Larry Moran existe uma discussão na sessão de comentários sobre o assunto, enfocando o artigo de Ed Young em seu blog no site d a revista Discovery “Not Rocket Science” explicando o projeto que segundo muitos dos comentaristas exagerou o impacto dos achados e não deu a devida a atenção ao fato de coisas muito diferentes estarem sendo comparadas e quantificadas, além de ainda estarmos muito longe de saber a significância dos resultados particulares de modo que possamos discutir sua relevância para evolução genômica e de nossa espécie de modo geral.

Um excelente remédio para isso é o texto do biólogo evolutivo especialista em genômica T. Ryan Gregory que criou o chamado ‘teste da cebola‘ que através de um simples exemplo, usando a comparação dos tamanhos genômicos de plantas da família das cebolas (que variam entre 7 bilhões a 31, 6 bilhões de pares de bases, comparados as parcas 3 bilhões do genoma humano), ilustra bem por que as estimativas do cientistas ligados ao ENCODE, e a definição de ‘função’ adotada por eles, não poder ser diretamente transferidas para a biologia evolutivas; mesmo por que creio que poucos cientistas que estudam os elementos genéticos móveis – como transposons e retroposons, ERVs, pseudogenes, sequências repetitivas das mais variadas [‘What’s in Your Genome?‘ e veja também o nosso artigo, “Sobre sucata, lixo, DNAs egoístas, comensais e simbiontes:”] – realmente acreditavam que mais de 90% do genoma fosse realmente estático (inativo bioquimicamente) ou mesmo completamente irrelevante do ponto de vista evolutivo, uma vez que a dinâmica evolutiva desses trechos de DNA egoístas ou simbiontes podem interferir com outras funções do organismo- mesmo que eles mesmos não tenham um papel funcional, em sentido estrito, bem definido e adaptativo no organismos – o que, por sinal, ainda assim tornara estas sequências relevante s de um ponto de vista biomédico .

As diferenças de objetivos e as peculiaridades metodológicas por trás do projeto ENCODE justificam esta definição mais frouxa e genérica, uma que se quer anotar minuciosamente o que está acontecendo com as diversas regiões do genoma e não sabemos previamente o que pode ou não ser realmente essencial. Porém, o excesso de alarde sobre o suposto significado dessas descobertas e a falta de contextualização sobre exatamente o que os cientistas envolvidos estão investigando e anotando, com sua ênfase em ‘atividade bioquímica’ amplo senso pode trazer muitas confusões que devem ser evitadas, caso queiramos realmente compreender a importância do projeto e o que ele pode e, principalmente, o que ele não pode nos dizer neste estado atual de desenvolvimento.

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*”The human genome encodes the blueprint of life, but the function of the vast majority of its nearly three billion bases is unknown. The Encyclopedia of DNA Elements (ENCODE) project has systematically mapped regions of transcription, transcription factor association, chromatin structure and histone modification. These data enabled us to assign biochemical functions for 80% of the genome, in particular outside of the well-studied protein-coding regions. Many discovered candidate regulatory elements are physically associated with one another and with expressed genes, providing new insights into the mechanisms of gene regulation. The newly identified elements also show a statistical correspondence to sequence variants linked to human disease, and can thereby guide interpretation of this variation. Overall, the project provides new insights into the organization and regulation of our genes and genome, and is an expansive resource of functional annotations for biomedical research.” [Nature 489, 57–74; 06 September 2012; doi:10.1038/nature11247]

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Udpdate (06/09/2012 – 17:30) Valem muito a pena os posts e comentários de T. Ryan Gregory (“The ENCODE media hype machine“) e Jonathan Eisen (“Michael Eisen’s take on ENCODE — there’s no junk?“), ambos no blog de Gregory, sobre a hype em cima dos artigos com as novidades do ENCODE (Até a geralmente comedida e  ótima jornalista científica Elizabeth Pennisi embarcou na Hype com um artigo/comentário intitulado “ENCODE Project Writes Eulogy for Junk DNA” na revista Science) que estão sendo divulgadas como se demolissem a ideia de DNA sucata, mas baseando-se em definições e resultados que simplesmente não tem muito a ver com o que os especialistas afirmam sobre esta questão. De novo, não me lembro de nenhum desses cientistas que investigam as regiões não codificantes e repetitivas do DNA dizendo que grande parte dele é um marasmo sem graça, onde não acontece nada de interessante e nas quais não ocorre qualquer atividade bioquímica. Isso é um simples espantalho.

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Referências:

  1. The ENCODE Project Consortium [Afiliations]An integrated encyclopedia of DNA elements in the human genome Nature 489, 57–74 (06 September 2012) doi:10.1038/nature11247 [Link]

  2. Riddihough G, Pennisi E. The evolution of epigenetics. Science. 2001 Aug 10;293(5532):1063. PubMed PMID: 11498569 [Link].

  3. Matzke MA, Mette MF, Aufsatz W, et al. 1999. Host defenses to parasitic sequences and the evolution of epigenetic control mechanisms. Genetica 107: 271–287.

A Explosão Cambriana: Uma introdução

Aproveitando os posts anteriores sobre os oportunos lançamentos, pela LP&M pocket, dos livros sobre evolução e paleontologia, especialmente ‘História da Vida‘ de Michael J. Benton, apresento aqui o primeiro de dois artigos discutindo a famosa ‘explosão cambriana’ que dá início a era fanerozóica e é ponto importante na história da vida animal e ecológica de nosso planeta. Reforçando o coro de Luiz Dadário, que escreveu um post comentando o livro de Benton, volto a recomendá-lo, apesar de um ou outro erro ou má escolha de tradução, mas que não tiram a importância do lançamento e a qualidade geral da tradução.

Este primeiro artigo portanto usa como base os capítulos referentes a explosão cambriana e acrescenta novas informações e atualizações ao excelente livro de Benton que por característica tem uma abordagem bem mais sucinta e direta.

A ‘explosão cambriana’ é a expressão utilizada para referir-se ao aparecimento ‘súbito’ no registro fóssil, por volta de 542 milhões de anos atrás, de muitos grupos de animais, especialmente aqueles com simetria bilateral e ‘esqueletizados’, ou seja, como endo ou exoesqueleto, conchas e outros apêndices duros mineralizados ou parcialmente mineralizados (formados por compostos de fosfato ou carbonatos de cálcio, por exemplo), ou não-mineralizados quitinosos ou à base de colágeno.

Infelizmente, a própria expressão ‘explosão cambriana’ suscita uma série de interpretações inadequadas e dá margem a muita confusão e manipulação deliberada por parte dos lobbies antievolucionistas. Por isso é bom explicar o que ela não é, antes de detalharmos o que ela foi e que qual a sua repercussão na nossa compreensão da evolução biológica dos animais. Em primeiro lugar muitas das confusões se originam da não apreciação do simples fato de que a ‘aparição súbita’ de partes facilmente fossilizadas, os ‘esqueletos’ como descreve Benton, no registro fóssil não é sinônimo de origem dos animais e dos filos, uma vez que a primeira vez que os grupos de seres vivos em geral aparecem no registro fóssil logicamente ocorre após sua origem e muitas vezes pode acontecer apenas muito tempo depois da mesma, quando os números, tamanhos, potencial de fossilização atingem determinados níveis que tornam a fossilização (um evento relativamente raro) mais provável.

Outra questão é que o termo ‘explosão’ não deve ser entendido de maneira muito literal especialmente por que com o tempo e a melhor avaliação e estimação das idades das diversas eras e períodos geológicos, o evento em si, designado por tal termo, é relativamente estendido no tempo, como veremos mais adiante, tendo durado dezenas de milhões de anos; sendo rápido apenas de um ponto de vista relativo a imensidão do tempo geológico. Porém, se pensarmos que a maioria dos grupos de animais que protagonizaram a referida radiação evolutiva era formada por pequenos invertebrados, possivelmente com tempos de gerações relativamente curtos e que se reproduziam em abundância, os tempos em questão não são tão extraordinários assim ainda que alguns estudos indiquem que os níveis de diversificação são realmente mais rápidos do que no resto do fanerozóico.

Por fim, a ideia que todos os grandes grupos de animais ali se originaram (na verdade, ali teriam dado as primeiras caras no registro fóssil) é, na melhor das hipóteses, exagerada e depende de uma certa  arbitrariedade no uso do termo ‘grande’ e, na pior das hipóteses, simplesmente, falsa, uma vez que o termos ‘grandes grupos’ pode incluir várias categorias taxonômicas diferentes de filos.

É preciso lembrar que mamíferos, aves e anfíbios, bem como insetos e outros grupos de artrópodes surgiram bem depois e são considerados também ‘grandes grupos’. Como veremos mais adiante, o que parece ter caracterizado a radiação cambriana é o aparecimento e [geologicamente] rápida diversificação dos filos de metazoários, mais especialmente dos animais com simetria bilateral que certamente tiveram sua origem em algum ponto, possivelmente no neoproterozóico, antes do cambriano, como vários indícios fósseis e oriundos da reconstrução filogenética deixam claro.

Um fato que é frequentemente esquecido pelos detratores da biologia evolutiva é que antes do cambriano pelo menos uma fauna macroscópica é bem conhecida, a famosa fauna de Ediacara, encontrada em 1946 na Austrália que conta com vários seres multicelulares, alguns deles provavelmente aparentados com grupos modernos de animais [I, II].

Voltando a explosão cambriana propriamente dita, apesar da fronteira cambriana ser atualmente bem datada, a explosão em si não foi tão súbita assim, podendo ser dividida em pelo menos duas fases marcadas por duas biotas bem características, com a primeira delas sendo conhecida ‘fauna Tomotiana’, também conhecida como ‘small shelly‘ (literalmente ‘pequenas conchinhas‘) cujos fósseis podem ser achados no final do neoproterozóico superior, i.e. o final do período que antecedeu o cambriano. Portanto, em um olhar mais atento, esta fauna seria uma continuação de uma fauna semelhante que dataria do Ediacarano (635–542 milhões de anos atrás), embora tendo tornado-se mais comum durante o cambriano inferior, entre 542 e 530 milhões de anos atrás. [Veja figura abaixo]

Dois são os principais grupos de animais encontrados entre a ‘fauna de conchas pequenas’. O primeiro é formado por hiolitelmintideos [III] (hyolithelminthids), formados por tubos fosfáticos abertos em ambos os lados, e o segundo grupo constituído de pequenas conchas cônicas que geralmente ocorrem em pares e que são designadas por tomotiideos (tomotiids).

Além desses dois grupos, haviam outros animais que cavavam tubos e secretavam paredes de carbonato, tubos de material orgânico que parecem ser fruto da atividade de vermes não-segmentados e placas fosfáticas finas que são conhecidas como ‘escléritos’, que possuem uma forma de folhas e que os paleontólogos acreditam que deveriam agrupar-se formando um tipo de armadura, mas cujos animais que as possuíam ainda são em sua maioria enigmáticos e desconhecidos, como Benton chama a nossa atenção, com algumas exceções como o Microdyscton mostrado na figura ao lado, o que sugere que alguns dos animais que portavam os ‘escléritos’ podiam ser vermiformes e relativamente mais complexos.

Essa fauna de pequenas conchas que pode ser encontrada a partir do finalzinho da era neoproterozóica e estende-se pelo cambriano, período em que torna-se mais evidente, é a precursora da real explosão cambriana que acontece em um segundo momento, no qual cerca de 12 novos grupos surgiram sobrepondo-se a fauna de conchas pequenas. E, ao contrário do que se pensava no início, estes grupos não apareceram de uma única vez.

Uma análise mais pormenorizada do registro fóssil deste período mostrou que os diferentes grupos aparecem de maneira mais gradual e ordenada, ainda que em um intervalo de tempo geologicamente curto, mas ainda assim que teria durado entre 10 ou 20 milhões de anos, talvez mais. Mas mais do que isso, os primórdios da ‘explosão’ propriamente dita podem de fato serem traçados até algumas dezenas de milhões de anos antes do cambriano, através de icnofósseis – ou seja, vestígios de tubos, rastros e pegadas de animai, preservados nos sedimentos pré-cambrianos. Estes vestígios podem ser bastante incertos, mas certos tipos de marcas são bastante características de seus perpetradores, especialmente quando mostram pés ou marcas de pernas, por exemplo. Até bem pouco tempo atrás estes indícios poderiam ser traçados há 555 milhões de anos atrás, mas mais recentemente a análise de sedimentos de 585 milhões de anos mostram claras evidências de atividade locomotora animal.

Boa parte desses rastros parecem ter sido feitos por animais com simetria bilateral e com corpo vermiforme alongado. Porém, por volta, de 540 milhões de anos atrás já são detectáveis marcas de patas que apontam para a existência de artrópodes com seus apêndices locomotórios articulados. Contudo, somente a partir de 530 milhões de anos atrás é que os conhecidos trilobitas passam a poder ser encontrados fossilizados, assim como os equinodermos.

Assim, de acordo com Benton, a explosão cambriana propriamente dita teria se iniciado há 530 milhões de anos, com o aparecimento dos restos de ‘esqueletos’ fossilizados dos já mencionados trilobitas e equinodermos, e teria durado entre 10 e 20 milhões de anos, intervalo de tempo durante o qual a diversidade global aumentou muito.

Alguns dos grupos de animais que fizeram sua primeira aparição em estratos do cambriano, além dos já mencionados trilobitas (artrópodes) e equinodermos, como os braquiópodes podem ser encontrados até hoje e continuam muito similares aos seus antepassados mais remotos, mas tendo seu auge no paleozóico entre 542 e 251 milhões de anos atrás.

Os grandes astros da explosão cambriana e do paleozóico de modo geral são realmente os trilobitas, cujos primeiros indícios conhecidos estão na forma de pegadas descobertas, no comecinho do cambriano, mas que apenas mais tarde revelam-se em seus detalhes, através dos restos fossilizados com a característica e distintiva morfologia destes animais. Estes belos animais possuem uma estrutura corporal formada por três lobos (daí ‘trilobita’) distribuídos de lado a lado, com o eixo antero-posterior, isto é da cabeça à cauda, podendo ser divido em estrutura protetora da cabeça o ‘cefalon’, seguidos de vários segmentos torácicos, cada um com um par de patas, terminado em um escudo caudal conhecido como pigídio. A boca destes artrópodes era localizada sob o cefalon e permitia que estes animais alimentassem-se no fundo marinho ao revolver os sedimentos. Na porção mais anterior da cabeça havia um par de antenas sensoriais similares a de crustáceos modernos e que deveriam ajudar os trilobitas locomoverem através dos sedimentos em suspensão, apesar dos restos fossilizados dos olhos desses animais indicarem excelente visão:

Cada olho consistia em numerosos tubos oculares, cada um com um a lente, como os artrópodes moderno. Os paleontólogos dissecaram esses olhos (a lente é um cristal de calcita que sobrevive inalterado pela fossilização) e viram através dele; que estranho ver o mundo como um trilobita viu há mais de 500 milhões de anos.” (p 67)

Os equinodermos que são bem conhecidos hoje na forma de alguns de seus representantes como estrelas, bolachas e pepinos do mar, durante o cambriano eram representados por criaturas um tanto diferentes; segundo Benton, algo entre uma estrela do mar e um lírio do mar, como a característica simetria adulta* pentaradial, sendo uma particularidade das linhagens modernas e não um traço existente desde os primórdios do grupo. Esses animais eram geralmente sésseis e pedunculados, com seus esqueleto de carbonato de cálcio feitas de placas poligonais bem juntinhas e ajustadas, com espécies de tentáculos que eram usados para captura alimento saindo de suas bocas que ficava alojadas geralmente no topo de seus corpos.

Além desses dois grandes grupos, durante a explosão cambriana também são encontrados outros tipos de animais em abundância, como o arquiciatos, com sua característica forma cônica e que forma pequenos recifes que chegam em algumas regiões há 10 metros de altura, algumas esponjas bem semelhantes as encontradas atualmente, mas com a maioria delas sendo conhecidas apenas por suas espículas; os famosos hiolitas [III] animais que conhecemos por suas conchas cônicas e constituídas de carbonato de cálcio; além de outros grupos cujas relações com as faunas e filos modernos são ainda alvos de intensos debates entre os sistematas de invertebrados.

A figura acima foi traduzida e retirada da figura do artigo de Marshal (2006) cujas datas foram retiradas de Grotzinger et al. (1995), Landinget al. (1998), Gradstein et al. (2004), and Condon et al. (2005). As curvas de isótopos de carbonatos do Neoproterozoico vieram de Condon et al. (2005), do cambriano inicial em sua maioria de Maloof et al. (2005), mas também de Kirschvink & Raub (2003), as do cambriano médio e tardio de Montanez et al. (2000). Na figura é possível perceber a ampla variação desses valores durante parte do cambriano inicial que em parte são devidas a variação geográfica, mas também a variação medida no Marrocos. As medidas de disparidade são provenientes de Bowring et al. (1993) e as de diversidade são oriundas da tabulação de Foote (2003) derivadas dos dados, de gêneros marinhos, compilados por Sepkoski (Sepkoski 1997, 2002). Todos os taxa encontrados em intervalos , assim como aqueles que estendem-se através dos intervalos, são contados. As idiossincrasias de curta duração no registro das rochas, podem adicionar ‘ruído’ as curvas de diversidade, devendo assim serem omitidas para descartar este efeito. Marshal ressalta que a diversidade persistente era muito mais baixa que os valores mostrados; muitos dos táxons encontrados em um intervalo do registro estratigráfico não coexistiram. As fronteiras das curvas de cruzadas (de acordo com Michael Foote em comunicação pessoal a Marshal) nos fornece o número de táxons que devem ter coexistido nos pontos mostrados, mas é preciso lembrar que como as fronteiras estratigráficas tradicionais são baseadas em tempos de reviravoltas taxonômicas incomuns, as estimativas podem na realidade subestimarem as diversidades típicas permanentes.

O mais interessante, porém, é que neste mesmo período achamos as primeiras evidências dos próprios grupo de animais aos quais pertencemos mais diretamente, os cordados e até mesmo os vertebrados. Esses ancestrais ou ramos colaterais remotos (talvez ‘tios-avós’) não passavam de singelas criaturas com corpo vermiforme lateralmente achatados, com apenas poucos centímetros de comprimento, nadando ondulando sua musculatura da maneira como fazem os peixes modernos.

Embora a fauna do folheio de Burgess (Burgess Shale) na Colúmbia Britânica, no Canadá, seja a mais conhecida, especialmente por causa do tratamento dada a ela por livros como ‘Vida Maravilhosa’, do célebre e finado paleontólogos Stephen Jay Gould, ela é relativamente moderna, datando do cambriano superior. Por isso, o conjunto de fósseis que melhor caracteriza a explosão cambriana em seu auge é a da fauna de Chengjiang, encontrada nos depósitos xistosos de Maotinashan (Chengjiang Maotianshan Shales), na península de Yunnan, que foram descobertos em 1912, mas que só começaram realmente a serem mais intensamente investigados nas décadas de 80 e 90 do século passado. Estes fósseis datam em torno de 525 a 520 milhões de anos atrás e, até a publicação do livro de Benton, esta biota era formada por 185 espécies reconhecidas, incluindo algas, esponjas, medusas, anelídeos, priápulos, equinodermos, cordados e artrópodes, com este últimos perfazendo 45% da fauna, com cerca de 40% das espécies podendo ser distribuídas pelos demais grupos e algo em torno de 15% constituindo-se em grupos de difícil classificação em que não existe muito consenso em qual grupo taxonômico estas espécies deveriam ser colocadas.

Faunas, como dos folhelhos de Burgess e Chengjiang, são extraordinárias e sem elas ão conheceríamos vários organismos vivos e não compreenderíamos como certas partes de outros organismos relacionariam em um organismo completo. Estes dois depósitos fossilíferos são o que os paleontólogos chamam de ‘Lagerstätte, formados por sedimentos muito finos, tendo provavelmente se originados a partir de mares rasos e calmos em condições de baixa atividade degradadora, o que permitiu que os fósseis ali formados apresentassem-se em um incrível estado de conservação, com tecidos moles muito bem preservados, bem como boa parte da organização tridimensional dos tecidos dos organismos que ali pereceram:

Os tecidos moles são preservados como películas de argila e são, por vezes, incrivelmente coloridos – vermelhos, roxos, amarelos -, devido à adição de quantidades variáveis de óxido de ferro. Mas por que essa preservação magnífica? A configuração sedimentar da biota de Chengjiang parece ser um mar raso. Os sedimentos são essencialmente compostos por grãos finos – lama e siltito -, e por isso não havia marulho ou atividade das correntes. Os animais que viviam no fundo, e aqueles nadavam acima, devem ter morrido, e suas carapaças, acumuladas sem pertubação. Devido as mudanças de temperatura sazonais e à estagnação do ambiente, é provável que as águas do fundo tenham ficado anóxicas em determinados períodos, o que teria afastado os seres detritívoros e acelerado a réplica de músculos e outros tecidos modelos por meio de bactérias e materiais argilosos.” (p 69)

 

Nestes langestätten do período cambriano, podem ser encontradas impressões de peles, intestinos, olhos, brânquias e músculos segmentados que permitem uma análise muito mais refinada e o diagnóstico de algumas estruturas essenciais para identificarmos certos grupos e classificar adequadamente os espécimens ali encontrados.

Algumas pistas sobre como surgiram os primeiros esqueletos podem ser encontradas nos artrópodes de Chengjiang. Os trilobitas destes depósitos fossilíferos, bem como seus parentes encontrados mais tarde, todos possuíam esqueletos de carbonato de cálcio, prontamente fossilizáveis, porém, mais de 90 por cento das espécies restantes dos artrópodes de exibem esqueletos muito mais moles que não tinham um componente mineralizado. Estes esqueletos eram constituídos da já mencionada proteína quitina que hoje encontramos nos exoesqueletos dos insetos, por exemplo. Se não fosse por sítios como os de Chengjiang, alguns desses artrópodes com esqueletos não-mineralizadas seria conhecidos apenas fugazmente e de maneira muito incompleta. Um exemplo da importância destes sítios para a compreensão de como se deu o processo de evolução da esqueletização, é o famoso Anomalocaris que ficou mais conhecido a partir das descrições da fauna de Burgess Shale. Este animal variava de 60 centímetros de comprimento até surpreendentes 2 metros, formado por vários segmentos corporais, e uma região de cabeça e cauda. 

 

Os cientistas acreditam que ele nadasse agitando os grandes lobos flexíveis ao longo das regiões laterais do seu corpo, e capturava suas presas por meio das suas grandes e curvos apendices flexíveis encouraçados surgiam como barbilhões adornados com ferrões farpados, através dos quais traziam a presa para sua boca circular que era rodeada por surpreendentes que se pareciam um anel de abacaxi gigante, mas que deveria ser formada por placas que deslizavam umas sobre as outras, e que abriam e fechavam, como o diafragma em uma antiga câmera moderna. Acontece que se não fosse pelos langestätten do período cambriano, só conheceríamos os Anomalocarispelos restos fossilizados de suas bocas circulares e teríamos uma enorme dificuldade de interpretá-las corretamente, como parte de um artrópode predador muito maior e impressionante. O fóssil Peytoia é agora considerado a boca do Anomalocaris, enquanto  Laggania é o seu corpo, e o que foi batizado originalmente como Anomalocaris é apenas o seu apêndice de alimentação que estendia-se da parte de baixo da cabeça e com o qual provavelmente capturava suas presas para daí serem triturados pela sua boca circular.

É incontestável que a explosão cambriana tenha gerado e até hoje produza muitos debates. Também não é possível negar que não compreendamos muitos dos detalhes relacionados ao como e ao porque dela ter acontecido no período em que ocorreu, mas nada disso pode ser usado  para argumentar que este evento desafie explicações naturalistas ou que não tenhamos vários modelos, hipótese e cenários plausíveis, cada um deles contando com vários níveis de evidências em seu favor. O real significado da explosão cambriana é ainda muito discutido, mas o tipo de debates que se dão dentro da comunidade científica em nada tem a ver com as alegações e argumentos antievolucionistas dos criacionistas tradicionais e do Design Inteligente.

Alguns especialistas tendem a interpretá-la como um evento único na história da vida e outros apenas como um (possivelmente o maior) entre várias explosões de diversidade na história da vida da terra e alguns negam veementemente sua existência, atribuindo a aparência de uma explosão, como derivada do potencial de fossilização das biotas e das condições geológicas associadas a estes eventos, mesmo que esta seja uma tendência minoritária entre os especialistas. Porém, assumindo que o evento seja real, a visão mais ‘padrão’ da ‘explosão cambriana’ é a de que quase todos os filos animais teriam aparecido pela primeira vez ali, após terem evoluídos ‘esqueletos’ e diversificado-se, representando um incrível evento de evolução paralela e suscitando a questão:

Por que toda essa diversificação esqueletal teria se dado mais ou menos ao mesmo tempo?

 

Há muito tempo os geólogos vêm especulando sobre grandes alterações na química atmosférica e especialmente dos oceanos que teriam ocorrido durante o neoproterozóico e que, portanto, teriam precedido a Explosão Cambriana, deflagrando o processo de evolução paralela dos grupos esqueletizados. Uma das mais antigas hipóteses desta natureza envolve a ideia que os níveis de oxigênio, ou outro componente químico essencial a esqueletização ou para a manutenção de altos níveis metabólicos, tornarem-se abundantes o suficientes para fazerem alguma diferença e articulam-se mais ou menos desta maneira, como coloca Benton:

‘Talvez os níveis de oxigênio estivessem demasiado baixos para que uma grande quantidade de animais maiores evoluísse, ou a composição química dos oceanos tenha permitido que mais carbonato e fosfato entrassem em circulação e, desta forma, se tornassem disponíveis para que os animais desprotegidos pudessem capturá-los e fabricar esqueletos.” (pg 73)

 

Benton rejeita essas ideias individuais como muito simplistas e argumenta que no caso do oxigênio, os níveis deste gás já estavam em processo de aumento há mais de um bilhão de anos, apesar de uma segunda elevação para cerca de 10% que teria ocorrido por volta de 800 milhões de anos atrás.

É, francamente, difícil acreditar em qualquer uma dessas idéias um tanto simplistas. Os níveis de oxigênio já vinham aumentando durante o Pré-Cambriano e não está claro se um limiar importante foi cruzado exatamente no início do Cambriano. Além disso, é inportante aclarar que os animais relativamente grandes de Ediacara haviam existido, embora sem esqueletos, cerca de 50 milhões de anos antes. Além disso, a idéia de que a mineralogia dos oceanos mudou e que isso desencadeou, a aquisição de esqueletos entre grupos diversos, todos ao mesmo tempo, também é certamente demasiado mecanicista – como se os organismos esperassem a aparição de um mineral, e, em seguida, as várias linhagens evolutivas incorporassem em seus corpos de forma independente.”(p 73)

 

O problema maior, entretanto, não é que estas ideias sejam absurdas ou completamente irrelevantes para a nossa compreensão da Explosão Cambriana, muito pelo contrário. Elas são provavelmente partes do quebra-cabeça e desta forma devem fazer parte de uma explicação mais ampla e completa. Porém, essas ideias parecem mais elementos possibilitadoras ou condutivas, mas do que propriamente deflagradoras do processo. Por isso, é mais sensato esperar que uma combinação de causas e eventos prévios e concomitantes a ‘Explosão Cambriana’ estejam envolvidos na gênese e desenvolvimento deste processo de evolução paralela da fauna animal esqueletizada.

As observações de Benton são importantes também por que este paralelismo e imediatismo não é exatamente o que se vê ao examinarmos o registro fóssil cambriano que indicam que a ‘explosão’ foi na realidade prolongada no tempo, sendo mais progressiva e ordenada do muitos imaginam, sugerindo um componente ecológico mais ativo, geralmente, tido pelos especialistas como tendo sido alguma forma de corrida armamentistas coevolutiva.

Em detalhe, os fósseis mostram uma Explosão Cambriana um tanto prolongada, de pelo menos 10 milhões de anos – um instante geológico, mas muito tempo para viver. O mais provável é que a aquisição sequencial dos esqueletos tenha sido parte da chamada ‘corrida armamentista’ . Se um grupo desenvolveu um esqueleto – fosse esse baseado em quitina ou mineralizado por carbonato ou fosfato-, outros podem ter precisado seguir o exemplo. Se um grupo de presa se torna blindado, os predadores terão que aprender a lidar com as novas defesas ou morrerão. Uma maneira de perfurar armadura é ter apêndices blindados. Da mesma maneira, o surgimento de formas predatórias como trilobitas e o monstro Anomalocaris exerceria uma pressão evolutiva bastante direta em todos os outros organismos da época para se tornarem blindado ou morrerem.

 

Charles R. Marshal, da Universidade da California, em uma revisão de 2006, enfatiza que para compreendermos este evento complexo e um tanto prolongado no tempo, são necessárias ,uma variedade de explicações ‘extrínsecas’ – incluindo as de natureza ambiental abiótica – envolvendo modificações geológicas, atmosféricas, e mesmo bióticas – e intrínsecas que englobariam a evolução da organização genômica e dos mecanismos e restrições genético-desenvolmentais a eles associados, bem como outras de natureza ecológica, como as que dependem de corridas armamentistas entre predadores e presas e mesmo competição inter-específica, que se dariam de maneira concomitante a ‘explosão’ em si.

 

Para Marshal, o aumento da disparidade que ele associa a origem do filos e de grupos taxonômicos mais amplos como classes e ordens, e da diversidade, associada a origem de gêneros, seriam melhor compreendidas como resultantes da interação do sistema genético-desenvolvimental combinatório dos Bilateria e do aumento do número do de necessidades e demandas, por vezes conflitantes, que os primeiros bilatérios teriam se deparado com crescente aumento da complexidade das interações ecológicas, no que ele chamou de ‘princípio da frustração’.

O início da explosão entretanto seria fortemente restringido pela evolução do meio ambiente, enquanto que a sua duração parece ser controlada principalmente pelas taxas de inovação do desenvolvimento; já a singularidade da ‘explosão’ poderia ter sido devida tanto as limitações desenvolvimentais intrínsecas a sobreposição de sistemas de controle genéticos que estabilizaram e canalizaram as formas, como por causa da saturação do ‘ecoespaço’, ou ainda, mais abstratamente falando, simplesmente, por que haveriam se esgotado as morfologias ecologicamente viáveis que poderiam ser produzidas pelos sistema genético-desenvolvimentais nascentes dos organismos bilaterais.

Benton, ao aproximar-se do final do capitulo sobre a Explosão Cambriana, resume outra área de controvérsia relativa a este evento e que relaciona-se a ideia defendida por Stephen J. Gould, em seu livro ‘Vida Maravilhosa’, 1989, em que argumenta que o Cambriano teria sido um momento único. Segundo Gould cada espécie de Burgess Shale seria tão surpreendentemente diferente de outras formas que o cambriano teria sido um período de ‘irrestrita’ evolução de alto nível de planos corporais fundamentais. Gould e outros cientistas na época alegavam que os planos corporais básicos dos artrópodes, durante o Cambriano , teriam sido maiores do que os de outros períodos posteriores. Alguns pesquisadores sugeririam que existiriam perto de 100 filos cada um exibindo padrões de organização morfológica particulares e que denotariam a disparidade morfológica dos metazoários, em contrapartida a diversidade revelada pelo número de espécies e gêneros que envolveriam apenas variações dentro de um mesmo tema do ponto de vista morfológico. Como explica Benton:

Gould usou isso para criar uma nova metáfora para a evolução: que de alguma forma, no Cambriano, os artrópodes e outros grupos animais se diversificado de modo tão desenfreado que exploraram ao máximo as possibilidades genéticas. Desde então, a evolução, segundo ele, vem podando este espantoso crescimento da base da árvore evolutiva dos animais. Pelo menos metade da diversidade cambriana se perdido. Esta foi a evolução por explosão e poda.”

Benton, acrescenta que atualmente a maioria dos pesquisadores rejeitam essa visão esboçada por Gould, inclusive o próprio em seus escritos posteriores mais perto do final de sua vida, termina precocemente em 2002, e que, segundo Benton, talvez tenha se dado conta que ele mesmo havia se empolgado demais com sua própria prosa rebuscada.

Estudos posteriores como o de Matthew Wills, da Universidade de Bath, mostraram através da análise quantitativa da disparidade (a variação em forma) dos artrópodes presentes na fauna de Burgess Shale que esta era comparável a de faunas mais modernas de artrópodes:

Se compararmos uma lagosta e uma borboleta, uma aranha e um caranguejo-aranha, um besouro- rinoceronte e um ácaro, as disparidades são tão grandes quanto as observadas no Cambriano, ou mesmo maiores. Esses resultados podem ser generalizados para comparar todo o oceano Cambriano com toda a fauna moderna, ou se concentrar em uma região geográfica de hoje para torná-lo mais comparável com a localidade específica do folhelho de Burgess.”

 

Um dos problemas com esta questão e que provavelmente levaram Gould e outros cientistas a exagerarem o impacto da explosão cambriana e seu caráter único é que o próprio conceito de filo não é tão simples como gostaríamos. Por definição, como esclarece Derek E. Briggs ao comentar o livro de James Valentine sobre a ‘Origem dos Filos’, é que estes seriam grupos de espécies que compartilham um plano corporal (ou organização) único que não revelaria nenhuma evidência de relação com outros filos. Como enfatiza Briggs, esta definição é relativamente fácil de ser aplicada para os animais viventes, para os quais tal definição foi criada, mas muitas vezes acaba tornando-se problemática quando passamos a analisar grupos de animais extintos:

 

Os filos originaram-se centenas de milhões de anos atrás, e extinção eliminou as formas intermediárias, deixando diferenças significativas entre os filos remanescentes. Não há qualquer dificuldade, por exemplo, de distinguir entre um artrópode (digamos, uma aranha), um equinodermo (uma estrela do mar, por exemplo) e uma cordado (tal como o chefe do seu departamento). Os fósseis, entretanto, particularmente aqueles da Era Paleozóica (de 543 para 251 milhões de anos atrás), podem ser mais difícil de lidar. Sua morfologia pode ser pouco familiar, e há o problema que a informação sobre os tecidos moles geralmente foi perdida por causa da decomposição e não foi preservada.” [Decoding the Cambrian RadiationAmerican Scientist Volume 93 | Number 3 | May-June, 2005]

 

O problema pode ser melhor percebido ao analisarmos perguntas bem simples, proposta por Briggs:

Ao nos deparamos com os primeiros membros de uma linhagem que ainda não adquiriram as características distintivas e usadas para o diagnóstico dos planos de corpo que definem os filos, como modernamente os entendemos, como nós os classificaríamos? A qual filo essas primeiras linhagens pertenceriam?

De acordo com Briggs, a cladística – a principal abordagem de inferência das relações entre grupos taxonômicos e que é baseada na análise de características homólogas compartilhadas -, permite que uma ênfase seja colocada sobre os membros vivos de um filo, estabelecendo os chamados “grupos copa” (“crown groups”) que são formados pelo último ancestral comum de todos os membros vivos do filo e todos os descendentes daquele ancestral, pode ser distinguido dos “grupos tronco” (“stem groups”) que é formado pelas demais espécies e linhagens do clado, uma série de organismos extintos que estariam “abaixo” do “grupo copa”, mais próximos à base do grupo como um todo:

Os dados moleculares estão disponíveis para determinar as relações entre os “grupos copas”, mas é claro que nenhum dado deste tipo jamais existirá para o tronco, o que é uma pena, porque, como Valentine salienta, ‘Os taxons-tronco devem fornecer mais evidências das características ancestrais de um filo do que os taxons-copa.’” [Decoding the Cambrian Radiation” American Scientist Volume 93 | Number 3 | May-June, 2005]

 

Como explica Briggs, os taxons-tronco podem ser eventualmente alocados a um filo, uma vez que evoluíam as características diagnosticas, além de ser possível usar as informações baseadas nos fósseis para estimar as datas do aparecimento dos filos ao qual forma alocados. Na realidade, essa abordagem – que associa filogenias baseadas em dados moleculares dos representantes vivos de um grupo taxonômico, a hipótese do relógio molecular e informações do registro fóssil para calibrar o relógio molecular com os tempos mínimos de divergência – tem sido usada para estimar a data da real origem dos animais e que precedeu a explosão cambriana e que discutiremos mais tarde [Veja a discussão de Nick Matzke no blog Panda’s Thumb sobre esta questão e o artigo por ele comentado, além da resposta do ‘Pergunte ao Evolucionismo‘ sobre a origem dos filos].

Desta maneira, o excesso de filos, sugerido em algumas análises iniciais, poderia ser apenas um artefato da confusão causada pelas várias linhagens de grupos tronco de filos modernos, ‘pegos’ em um momento onde as características que usamos hoje para distinguir e classificar os filos ainda não haviam surgido ou pelo menos se cristalizado na forma como estão hoje.

No entanto, mesmo que a perspectiva inicial de Gould tenha sido descartada em sua forma mais extrema, existem ainda certa controvérsia sobre as relações entre diversidade e disparidade. Muitos paleontólogos ainda acreditam que a disparidade chegou perto de um máximo bem no começo do cambriano, sendo apenas a diversidade que demoraria mais a aproximar-se de seu máximo. Na figura abaixo estão resumidas três das possíveis formas que as relações entre diversidade e disparidade podem ter assumido durante o fanerozóico.

Benton, no final do capítulo nos apresenta uma questão, lembrando aquela parcela de cientistas que colocou em dúvida a própria realidade da ‘explosão cambriana’ e que sugeriram que a grande radiação era apenas aparente ou que a explosão fosse, na realidade, precedia por um logo processo de evolução e diversificação, neoproterozóico adentro, e que se tornariam evidentes apenas no cambriano. Estas sugestões já tinham se prenunciado por descobertas anteriores controversas de fósseis supostamente de animais bem mais antigos que as faunas cambrianas e ediacaranas e mesmo de fósseis de rastros e de túneis. Porém, foi fortalecida pela utilização de novas evidências moleculares, publicadas em 1996 por Greg Wraye colegas, da Duke University, que sugeriram que os animais tinham se diversificado cerca de bilhão e 200 milhões de anos atrás, portanto mais de 600 milhões de anos antes do cambriano.

 

Tomada em seu valor de face, esta nova evidência implicaria que o registro fóssil de animais do período pré-cambriano era muito mais deficiente do que se supunha originalmente, estendendo a explosão cambriana para trás no tempo e como alguns sugeriram na época simplesmente a desfazendo por completo.

De acordo com o já citado Briggs e seus colegas, Richard Fortey e o também já citado M.A. Wills, é muitas vezes assumido que a origem e diferenciação dos principais clados teriam que ocorrer concomitantemente com a “explosão” da evidência fóssil para diferentes morfologias, o que chamamos de ‘disparidade’ que teria ocorrido na base do Cambriano. Os autores sugeriram então que este não seria o caso, e argumentam que isto seria corroborado por duas linhgas de evidências:

 

  1. As análises da diferenciação biogeográfica e morfológica entre os primeiros trilobitas, que revelaria segundo eles a incompletude no registro fóssil do início do Cambriano, além do fato que, segundo os autores, evidências similares que poderiam ser reunidas no registro fóssil para outros grandes grupos;

  2. Análises filogenéticas, como as baseadas em estudos como o já mencionado de Gray, que mostrariam que haveria grande a probabilidade de terem existido linhagens ‘fantasma’*** que se estenderiam para o Pré-cambriano.

Segundo estes mesmos pesquisadores, os eventos importantes na geração dos clados teriam ocorrido muito antes da “explosão cambriana”, que foi apenas quando os grupos surgidos anteriormente se tornaram evidentes no registro fóssil. Assim, os autores defendem que alterações filogenéticas importantes provavelmente ocorreram nas linhagens de animais quando estes tinham pequenos tamanhos; o que poderia ser corroborado pelo fato que os taxons irmãos dos principais grupos são formados por linhagens de pequenos animais. A proposta é que ao dissociarmos a cladogênese, a origem das linhagens, da “explosão” cambriana em si, removeriamos a necessidade de invocarmos mecanismos evolutivos desconhecidos na base do Fanerozóico [2].

Uma extensão desse argumento que já foi comentada em um post anterior sobre o mesmo livro de Benton, deu origem a hipótese do ‘pavio filogenético’ (Veja “O ‘pavio filogenético’ e a ‘explosão cambriana’ não se fundem.) que tratava a radiação cambriana como uma explosão antecipada pela queima lenta de um ‘pavio’ bem mais longo e pouco vísivel em que eventos de cladogênese e diversificação de linhagens viriam já ocorrendo há centenas de bilhões de anos, mas como as populações permaneciam pequenas e as criaturas representante dessas linhagens mantinham tamanhos diminutos e possivelmente eram menos esqueletizadas, tendo seus corpos pouco duros e mineralizados, teriam escapado a fossilização. Embora, como enfatiza Benton, possa aceitar-se como plausível e mesmo provável a existência de um período mais longo de queima do estopim filogenético antecedendo o cambriano e mesmo o ediacarano, fica muito difícil aceitar que isso tenha ocorrido por mais de algumas dezenas de milhões de anos que dirá por mais de meio bilhão [2, 3].

 

Este impasse na última década tem começado a ser resolvido aparentemente com o lado vitorioso sendo o das estimativas baseadas em dados fósseis, uma vez que amostragens de genes e táxons mais amplas e a utilização de métodos mais modernos, em que as taxas de evolução dos relógios moleculares podem ser relaxadas e ajustadas para corresponder melhor as das diferenças linhagens, parecem estar se reconciliando, aproximando-se uma das outras, apesar de alguns autores ainda insistirem que as discrepâncias são mais profundas do que maioria dos paleontólogos e neontólogos gostariam de aceitar, principalmente por que mesmo os novos métodos com relógios relaxados e abordagens bayesianas dependem de certas suposições até certo ponto questionáveis:

O fim do debate teórico sobre o “o pavio filogenético’ foi precipitado por estudos mais recentes, realizados por Kevin Peterson e outros pesquisadores da Dartmouth University. Esses estudos usaram as nova evidência molecular para mostrar que a data estimada para a origem dos metazoários era realmente 650-600 milhões de anos atrás, mais velho do que o primeiro fóssil, mas não muito mais antigas que as enigmáticas faunas Ediacaranas, por exemplo. As primeiras análises enfrentaram uma variedade de problemas com os genes e os métodos de cálculo. O principal problema foi, entretanto, que todas as datas foram inferidas com base datas dos o início da peixes e outros vertebrados. O que os analistas anteriores não sabiam é que o relógio molecular dos vertebrados é um pouco mais lentamente do que dos outros filos de metazoários. Assim, inferindo com um relógio lento, mas pressupondo um ritmo rápido, a estimativa aumenta demasiado; na verdade, isso praticamente a duplica, de 650 a 600 milhões de anos para 1,2 bilhão” (pg 77)[3]

 

Por fim, embora hoje pareçam que as ideias originais de Gould realmente fossem exageradas e muitos dos supostos filos extintos deveriam ser mesmo membros tronco ainda em processo de aquisição das características diagnósticos dos filos moderno, existem ainda questões pertinentes sobre a velocidade e magnitude do aumento da disparidade. Muitos especialistas têm defendido que a disparidade aumentou muito rapidamente, chegando perto de seu máximo durante o cambriano e mesmo que não tenha decrescido como imaginava Gould não sofreu grandes aumentos posteriormente, o que parece ter havido com a biodiversidade se contarmos o número de gêneros e espécies que seriam variações dentro de um mesmo tema morfológico, após as linhagens terem evoluído as características que as tornam grupos copa, incluindo os últimos ancestrais e todos seus descendentes. Ao lado estão três perspectivas para esta relação entre diversidade e disparidade com duas delas sendo menos prováveis de acordo com os dados.

Note que nos três casos, a diversidade mostrada em termos da densidade dos ramos aumenta com o tempo, mas a disparidade mostra padrões bem distintos. A primeira, de cima para baixo, mostrando o padrão sugerido por Gould em que a disparidade teria alcançado rapidamente o seu máximo ainda no cambriano e decrescido ainda, como parte do processo contingente de evolução; a segunda denota a visão que tem sido defendida por vários cientistas e como a anterior sugere que a disparidade alcançou seu auge rapidamente no cambriano, mas ao contrário da perspectiva anterior, manteve-se mais  ou menos estável até os dias de hoje; e, por fim, a terceira, representando a visão que disparidade e diversidade aumentariam juntas e de maneira mais gradual.

Todas também assumem que a ‘explosão cambriana’ não foi tão prolongada no tempo como sugere a hipótese do ‘pavio filogenético‘ [3] de queima lenta, sugerindo um pavio mais curto e de queima mais rápida ainda que não tão excepcional como alguns tendem a pensar, sendo, possivelmente, a  interpretação mais comum da radiação cambriana que deve ter tido seu real início próximo de 650 ou 700 milhões de anos atrás, o que ainda é bem incerto, entretanto.

Este padrão de rápido aumento da disparidade precisa ser compreendido em um contexto apropriado, mais fundamental. Muitos cientistas sugerem que este fenômeno pode ser explicado ao encararmos o cambriano como um período de ‘experimentação’ genético-desenvolvimental em que as espécies ali existentes (algumas das quais dariam origem aos filos que hoje conhecemos, enquanto outras formas mais basais se extinguiram) não possuíam o nível de controle e canalização genética do desenvolvimento que vemos hoje em dia [sobre canalização veja esta resposta de nosso tumblr].

Em artigo anterior (“É a evolução genética previsível? Parte II ou Além da genética parte I“), chegamos a abordar algumas dessas ideias. Entre elas estão as que vem sendo defendidas por biólogos do desenvolvimento, como Stuart Newman, e que seguem a tradição ‘estruturalista’ de pesquisa científica em biologia. Esta abordagem enfatiza os processos e mecanismos físicos e químicos que estão em jogo nas interações entre moléculas, células e tecidos, bem como dá grande importância às relações geométricas que vão de modificando ao longo do desenvolvimento embriológico e do crescimento de organismos multicelulares. Estes processos mudam as relações entre os sistemas físicos e químicos que compõem os organismos vivos ao mudar suas distâncias e arranjos espaciais relativos, interferindo com a dinâmica das forças mecânicas envolvidas na interação entre células e tecidos em movimento e proliferação, assim como dos fluxos de moléculas especialmente através de processos como a difusão. Os mecanismos de reação e difusão propostos por Turing e desdobramentos mais modernos são exemplos do tipo de mecanismos que estes pesqusadores investigam. Assim, estes autores encaram as contribuições ‘genéticas’ especialmente aquelas associadas a sequência específica dos genes e ao padrão de expressão de seus produtos, neste contexto mais amplo, ou seja, como responsáveis pelo controle dos parâmetros dos processos morfogenéticos.

A ideia em questão é bem simples e pode ser resumida pela proposta que os organismos multicelulares mais primitivos, durante o pré-cambriano e provavelmente no comecinho do cambriano, ainda eram mais dependentes desses processos, que Stuart Newman chama de ‘genéricos’, e, portanto, mais flexíveis e dependentes dos ambientes em que os organismos estavam inseridos. Segundo Newman e outros ainda não haveria toda a ‘canalização’ genético-desenvolvimental, ou seja, o controle fino dos processos de desenvolvimento por meio de genes e vias bioquímicas específicas (mecanismos ‘genéticos’) que evoluiriam durante o cambriano, estabilizando esses processos e mecanismos, durante a ‘explosão’ cambriana, tornando os fenótipos mais estáveis e mais fixos, que quando se estabeleceram teria impedido que a disparidade crescesse muito mais.

Esta, porém, não é a única ideia que pode explicar este rápido aumento da disparidade em um período tão curto, mas deixaremos estas outras explicações e hipóteses para o próximo artigo que deverá concentrar-se nos mecanismos específicos que tem sido propostos para explicar a ‘explosão cambriana’. Assim, no próximo artigo, vou me concentrar especificamente na revisão de Charles R. Marshal que resumiu muito bem as discussões sobre os processos e mecanismos causais associados a radiação cambriana, deixando bem claro o tipo de pluralismo que precisamos ter em mente para explicar este impressionante evento de maneira adequada e testável.

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I – As interpretações de que tipos de animais compunham a fauna de Ediacara ainda é outro ponto de intensas discussões, com alguns autores acreditando que tratavam-se de animais diferentes dos encontrados no Cambriano e, portanto, nas faunas modernas, que está por trás da ideia de ‘Vendobionta’, comentada por Benton, e defendida por Dolf Sellacher, e mesmo um autor sugerindo que tratavam-se não de animais mas sim de fungos. Porém, a maioria dos cientistas acreditam que os organismos de Ediacara eram em sua maioria animais dipobásticos (com dois folhetos embrionários) aparentados aos cnidários modernos, talvez grupos basais dos mesmos, e que alguns deles seriam animais tripoblásticos (com três folhetos embrionários), inclusive como simetria bilateral que provavelmente relacionavam-se de algum modo com as faunas posteriores.

II – Existem outros fósseis mais controversos como os embriões putativos encontrados na fauna de Doushantuo, na China, que apresentariam padrões de clivagem típicos de animais dipoblásticos, mas que mais recentemente foram sugeridos como sendo bactérias sulfurosas gigantes e não embriões animais e nem ao menos eucariontes unicelulares coloniais. Estudos tafonômicos experimentais (i.e. sobre os processos de fosssilização em si), entretanto, feitos mais recentemente não apóiam esta interpretação, sugerindo que estes fósseis seriam certamente de eucariontes e não de bactérias que segundo os pesquisadores não suportariam o processo, colapsando as estruturas em equetsão antes que pudessem ser preservadas, processo qu epor sinal é  tem o envolvido biofilmes de origem bacteriana, talvez intermediada pelas bactérias sulfurosas.

 

  • Chen JY, Bottjer DJ, Li G, Hadfield MG, Gao F, Cameron AR, Zhang CY, Xian DC, Tafforeau P, Liao X, Yin ZJ. Complex embryos displaying bilaterian charactersfrom Precambrian Doushantuo phosphate deposits, Weng’an, Guizhou, China. ProcNatl Acad Sci U S A. 2009 Nov 10;106(45):19056-60. Epub 2009 Oct 26. PubMed PMID:19858483; PubMed Central PMCID: PMC2776410. [PDF]
  • Chen JY, Oliveri P, Li CW, Zhou GQ, Gao F, Hagadorn JW, Peterson KJ, Davidson EH. Precambrian animal diversity: putative phosphatized embryos from theDoushantuo Formation of China. Proc Natl Acad Sci U S A. 2000 Apr 25;97(9):4457-62. PubMed PMID: 10781044; PubMed Central PMCID: PMC18256. [PDF]
  • Bailey JV, Joye SB, Kalanetra KM, Flood BE, Corsetti FA. Evidence of giantsulphur bacteria in Neoproterozoic phosphorites. Nature. 2007 Jan 11;445(7124):198-201. Epub 2006 Dec 20. PubMed PMID: 17183268.
  • Cunningham JA, Thomas CW, Bengtson S, Marone F, Stampanoni M, Turner FR,Bailey JV, Raff RA, Raff EC, Donoghue PC. Experimental taphonomy of giant sulphur bacteria: implications for the interpretation of the embryo-like EdiacaranDoushantuo fossils. Proc Biol Sci. 2012 May 7;279(1734):1857-64. Epub 2011 Dec 7. PubMed PMID: 22158954; PubMed Central PMCID: PMC3297454.
  • Raff EC, Schollaert KL, Nelson DE, Donoghue PC, Thomas CW, Turner FR, Stein BD, Dong X, Bengtson S, Huldtgren T, Stampanoni M, Chongyu Y, Raff RA. Embryo fossilization is a biological process mediated by microbial biofilms. Proc Natl Acad Sci U S A. 2008 Dec 9;105(49):19360-5. Epub 2008 Dec 1. PubMed PMID: 19047625; PubMed Central PMCID: PMC2614766.
  • Yin L, Zhu M, Knoll AH, Yuan X, Zhang J, Hu J. Doushantuo embryos preserved inside diapause egg cysts. Nature. 2007 Apr 5;446(7136):661-3. PubMed PMID:17410174.

 

Outros estuos identificaram outros fósseis semelhantes a embriões mais diversificados e que indicam já certo nível de separação dos grupos animais no mesmo depósito fossilífero, reforçando a ideia que estas estrituras sejam mesmo restos fossilizados de embriões animais dipoblásticos. Ainda mais controverso é um suposto animal tripoblástico de simetria bilateral que dataria de 600 milhões de anos atrás que foi batizado de Vernanimalcula guizhouena, mas neste caso o status deste suposto fóssil é ainda mais questionado, com muitos pesquisadores sugerindo que seja apenas um artefato geoquímico e não um fóssil de verdade.

  • Bottjer DJ. The early evolution of animals. Sci Am. 2005 Aug;293(2):42-7. PubMed PMID: 16053136.

  • Chen, J. Y., D. J. Bottjer, P. Oliveri, S. Q. Dornbos, F. Gao, S. Ruffins, H. Chi, C. W. Li, and E. H. Davidson. 2004. Small bilaterian fossils from 40 to 55 million years before the cambrian. Science 305:218-22. doi: 10.1126/science.1099213

  • Chen, Jun Yuan, Paola Oliveri, Eric Davidson and David J. Bottjer. 2004. Response to Comment on “Small Bilaterian Fossils from 40 to 55 Million Years Before the Cambrian”.Science 19 November 2004: Vol. 306 no. 5700 p. 1291 doi: 10.1126/science.1102328

III- Este é um outro erro que encontra-se na tradução da LP&M, os ‘hiolitelmintideos’, cujos tubos fosfatizados abertos nas extremidades caracterizam parte da fauna ‘small shelly‘,  são traduzidos como e confundidos com os ‘hiolitas’ com suas conchas carbonatadas que aparecem posteriormente no período cambriano e que devem ter relação com os moluscos.

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Referências:

  • Benton, M.J. A História da Vida – Tradução de Janaína Marcoantonio – Porto Alegre: LP&M Pocket, 2012. 192 pg

  • Benton, M.J. The history of life: A very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2008. 170 pp.

Literatura Recomendada

  1. Briggs, DE Decoding the Cambrian Radiation [Book Review – On the Origin of Phyla. James W. Valentine. xxiv + 614 pp. University of Chicago Press, 2004. ] American Scientist May-June 2005, Volume 93, Number 3.

  2. Fortey RA, Briggs DEG, Wills MA. The Cambrian evolutionary ‘explosion’: decoupling cladogenesis from morphological disparity. Biological Journal of the Linnean Society. 1996 Jan;57:13-33.

  3. Briggs DEG, Fortey RA, Wills MA. Morphological Disparity in the Cambrian. Science. 1992 Jun;256(5064):1670-1673.

  4. Marshall CR. Explaining the ‘Cambrian Eexplosion’ of animals. Annual Review of Earth and Planetary Sciences. 2006;34(1):355-384.

  5. Cooper A, Fortey R. Evolutionary explosions and the phylogenetic fuse. Trends Ecol Evol. 1998 Apr 1;13(4):151-6. PubMed PMID: 21238236.

  6. Valentine, J. W. Prelude to the cambrian explosion Annual Review of Earth and Planetary Sciences 2002, 30, 285-306.

Referências adicionais sobre datação do início da divergência dos metazoários, especialmente bilatérios:

  • Aris-Brosou S, Yang Z: Bayesian models of episodic evolution support a late pre-cambrian explosive diversification of the Metazoa. Mol Biol Evol 2002, 20:1947-1954. [PDF]
  • Ho SYW, Philips MJ, Drummond AJ, Cooper A: Accuracy of rate estimation using relaxed clock models with a critical focus on the early Metazoan radiation. Mol Biol Evol 2007, 22:1355-1363.
  • Ayala FJ, Rzhetsky A, Ayala FJ. Origin of the metazoan phyla: molecular clocks confirm paleontological estimates. Proc Natl Acad Sci U S A. 1998 Jan 20;95(2):606-11. PubMed PMID: 9435239; PubMed Central PMCID: PMC18467.
  • Blair JE, Hedges SB. Molecular clocks do not support the Cambrian explosion.Mol Biol Evol. 2005 Mar;22(3):387-90. Epub 2004 Nov 10. Erratum in: Mol Biol Evol. 2005 Apr;22(4):1156. PubMed PMID: 15537810. [PDF]
  • Bromham L. What can DNA Tell us About the Cambrian Explosion? Integr Comp Biol. 2003 Feb;43(1):148-56. PubMed PMID: 21680419.
  • Chernikova D, Motamedi S, Csürös M, Koonin EV, Rogozin IB. A late origin of the extant eukaryotic diversity: divergence time estimates using rare genomic changes. Biol Direct. 2011 May 19;6:26. PubMed PMID: 21595937; PubMed Central PMCID: PMC3125394. [PDF]
  • Douzery EJ, Snell EA, Bapteste E, Delsuc F, Philippe H. The timing ofeukaryotic evolution: does a relaxed molecular clock reconcile proteins andfossils? Proc Natl Acad Sci U S A. 2004 Oct 26;101(43):15386-91. Epub 2004 Oct 19. PubMed PMID: 15494441; PubMed Central PMCID: PMC524432. [PDF]
  • Peterson KJ, Lyons JB, Nowak KS, Takacs CM, Wargo MJ, McPeek MA. Estimating metazoan divergence times with a molecular clock. Proc Natl Acad Sci U S A. 2004 Apr 27;101(17):6536-41. Epub 2004 Apr 14. PubMed PMID: 15084738; PubMed Central PMCID: PMC404080. [PDF]
  • Welch JJ, Fontanillas E, Bromham L. Molecular dates for the “cambrian explosion”: the influence of prior assumptions. Syst Biol. 2005 Aug;54(4):672-8. PubMed PMID: 16126662.

Créditos das Figuras:

ALAN SIRULNIKOFF/SCIENCE PHOTO LIBRARY – Burgess Shale
GARY BROWN/SCIENCE PHOTO LIBRARY – Stephen Gould, US palaeontologist
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:OxygenLevel-1000ma.svg Oxygen Levels
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Phanerozoic_Biodiversity.png

http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Trilobite_sections-en.svg
NATURAL HISTORY MUSEUM, LONDON/SCIENCE PHOTO LIBRARY
ALAN SIRULNIKOFF/SCIENCE PHOTO LIBRARY
RICHARD BIZLEY/SCIENCE PHOTO LIBRARY

Biologia Evolutiva do Desenvolvimento/Evo-Devo – Um curso de curta duração na Universidade Federal da Bahia

Evolutionary Developmental Biology (Evo-Devo) – A short course at the Federal University of Bahia
(Biologia Evolutiva do Desenvolvimento/Evo-Devo – Um curso de curta duração na Universidade Federal da Bahia)
Stuart A. Newman, Ph.D.
New York Medical College
Organização: Charbel Niño El-Hani, Ph.D.
Promoção: Projeto “Integrando Níveis de Organização em Modelos Ecológicos Preditivos: Aportes da Epistemologia, Modelagem e Estudos Empíricos” (INOMEP/PRONEX).
Professores assistentes: Charbel Niño El-Hani, Ph.D. (Instituto de Biologia, Universidade Federal da Bahia); Emilio de Lanna Neto (Instituto de Biologia, Universidade Federal da Bahia), Ms. C.; José Wellington Alves dos Santos (Instituto de Biologia, Universidade Federal da Bahia), Ph.D.; Ana Maria Rocha de Almeida (Universidade da Califórnia, Berkeley), Ms. C.
Estrutura do curso
O curso terá um total de 20 horas. Destas 20 horas, 10 horas consistirão de aulas proferidas por Prof. Stuart Newman em língua inglesa e 10 horas corresponderão a sessões de discussão de artigos selecionados. Os artigos serão em língua inglesa, mas a discussão será conduzida em língua portuguesa pelos professores assistentes, em grupos de 20 alunos.
Somente serão emitidos certificados para participantes com mais de 80% de presença.
Número de vagas: 80
Local: Instituto de Biologia, Campus de Ondina, Universidade Federal da Bahia.
Data: 12 a 16/11/2012
Turno das aulas: Matutino.
Procedimento de inscrição: Enviar email para charbel.elhani@gmail.com manifestando seu interesse pelo curso. Enviar currículo (formato Lattes CNPQ) e carta de justificativa do interesse pelo curso.
 

As inscrições estão abertas até 01/09/2012. O curso está aberto a estudantes da graduação, da pós-graduação e a pesquisadores.

Data de divulgação do resultado da seleção dos estudantes: 05/09/2012
Programa provisório
Dia 1 (Segunda, 12 de Novembro) 
Vida multicelular: animais, plantas, fungos, amebozoários. Quando eles surgiram; exemplos modernos; similaridades e diferenças anatômicas e genéticas. Exemplos de processos e mecanismos desenvolvimentais característicos de cada grupo. Uniformitarismo vs. não-uniformitarismo na teoria evolutiva; desafios conceituais da Evo-Devo à Síntese Moderna.
Dia 2 (Terça, 13 de Novembro)
Mecanismos físicos de morfogênese e formação de padrões em sistemas animais (e em alguns sistemas vegetais): liquidez (liquidity) de tecido; adesão diferencial e separação de fase; oscilação e sincronização de estado bioquímico; multi-estabilidade do estado diferenciado; conseqüências moleculares da polaridade celular; morfógenos; inibição lateral; padronização de reação-difusão (reaction-diffusion patterning); filotaxia; mecanismos celulares de padronização autônoma; mecanismos envolvendo sinalização célula a célula e mecanismos independentes de sinalização; mecanismos compostos: morfoestáticos vs. morfodinâmicos.
Dia 3 (Quarta, 14 de Novembro)
Módulos de padronização dinâmica (DPMs): a física encontra a genética no estado multicelular. O genoma do coanoflagelado Monosiga brevicollis; mobilização de adesão e adesão diferencial por caderinas e de inibição lateral por Notch-Delta, conseqüências multicelulares de polaridade apico-basal e planar mediada por Wnt; oscilações e sincronia baseadas em Hes1; difusão e quebra controlada na formação dos gradientes dos morfógenos Hedgehog, BMP e FGF; actomiosina e excitabilidade mecânica dos epitélios; formação de redes e matrizes extracelulares colagenosas. Plasticidade inerente dos resultados de padronização DPM. Papel geral dos DPMs na origem dos planos corporais de animais e plantas.
Dia 4 (Quinta, 15 de Novembro)
Interação dos DPMs na formação do plano corporal animal e dos motivos de órgãos: dinâmica do modelo do relógio e da onda frontal (clock and wavefront) na somitogênese; papel do oscilador Notch-Hes1; sincronização; FGF, Wnt e plasticidade da somitogênese: o caso da segmentação aumentada na serpente; interação do ambiente uterino com o relógio somítico levando a número alterado de segmentos ou defeitos axiais; dinâmica ativadora-inibidora no desenvolvimento do membro de vertebrados; papéis de TGF-β e fibronectina; plasticidade do desenvolvimento dos membros: efeito de mutações, transplantes de tecidos, teratógenos; cenários para a produção de membros fósseis. Introdução às galectinas; um novo DPM baseado em rede de galectinas no membro em desenvolvimento.
Dia 5 (Sexta, 16 de Novembro)
A “ampulheta embrionária”: diferentes trajetórias embrionárias para o mesmo ponto médio morfológico. Insetos de banda germinativa longa vs. insetos de banda germinativa curta; exemplos do desenvolvimento de nematódeos; a relação da padronização celular autônoma no ovo com a função dos DPMs no estágio morfogenético do desenvolvimento; papel das propriedades variacionais dos mecanismos de padronização pós-estágio morfogenético. Plasticidade desenvolvimental na inovação evolutiva; origens de aves a partir de dinossauros em conseqüência de perda de genes: a hipótese do músculo esquelético termogênico.
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Aproveitem e inscrevam-se logo. As inscrições encerram-se em poucos dias!

A Casta dos Super Soldados: Exemplo de Acomodação Genética em Formigas

Depois de uma longa e ansiosa espera por novidades, Eduardo Bouth Sequerra, biólogo formado pela UFRJ e  doutor pelo Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, finalmente nos brinda com uma nova postagem no seu blog chamado Biologia do Envolvimento. Desta vez ele exemplifica um conceito que vem discutindo há tempos na sua página, o ‘acomodamento genético’. A espécie utilizada para exemplificar o acomodamento genético é a formiga do gênero Pheidole, que ocorre no hemisfério norte.  Veja o que ele diz sobre este assunto:

“Nós todos sabemos que a sociedades das formigas são organizadas em castas. Todas as espécies fazem rainhas, que geralmente tem asas, e operárias sempre sem asas. O gênero Pheidole ainda desenvolveu uma divisão entre as operárias com operárias menores, que fazem a maior parte do trabalho no formigueiro e saem pra procurar comida, e as soldado, que protegem o formigueiro e processam comida. Algumas espécies no norte do México e no estado americano do Arizona, ainda possuem uma terceira subcasta de operárias, as super soldado, que possuem a cabeça significativamente maior que a soldado e tem um cotoco no lugar das asas, chamadas asas vestigiais.  A grande descoberta deste grupo foi que há uma espécie de Pheidole no estado de Nova York, isso é, muito distante dessas espécies que ocorrem mais próximas a fronteira com o México, que também produzem formigas com características de super soldado, como a cabeça e o corpo muito maior que a de um soldado e a asa vestigial, só que muito raramente, esse fenótipo é considerado uma anomalia pra essa espécie. A distância geográfica entre estas espécies sugeria que este era um caso de co-evolucão, onde os super soldados apareceram de forma independente pelo menos duas vezes. Além disso, eles mostraram que dentro da árvore filogenética do grupo as espécies que fazem super soldados estão separadas e não tem um ancestral comum só delas.”

Continua Eduardo Sequerra:  

“Mas então, se as espécies criaram super soldados independentemente será que o caminho do desenvolvimento é o mesmo? A decisão entre o desenvolvimento de operária e soldado é regulado pela nutrição que por sua vez regula a produção de hormônio juvenil (HJ). Eles então mostraram que o fenótipo de super soldado que é muito raro nessa espécie de Nova York, P. Morrisi, pode ser induzido em grandes quantidades com o tratamento das larvas com o análogo de HJ, o metoprene, após a sua decisão por serem soldados. Existem então dois pontos de decisão, um primeiro entre soldado e operária, e um segundo entre soldado e super soldado. E eles mostraram que conseguiam induzir super soldados em outras duas espécies que não os produzem normalmente. Assim, por mais que muitas destas espécies de formigas não desenvolvam uma subcasta de super soldados, a informação para o caminho de desenvolvimento está em algum lugar escondido e sendo herdada a milhões de anos.”

Segue o autor esmiuçando o assunto:

“É muito comum ouvir que no caso de características que aparecem paralelamente em grupos separados filogeneticamente, que estas teriam aparecido por co-evolução, que indica a idéia de que esta teria surgido independentemente pelo menos duas vezes. Mas no caso dos super soldados de Pheidole os dados levam a uma diferente explicação. Esse gênero teve um ancestral comum aonde surgiram os super soldados, a expressão desse fenótipo desapareceu durante a história do grupo mas não a informação para tal. Assim, algumas espécies próximas a fronteira entre os Estados Unidos e o México encontraram um pressão semelhante que as levou a re-expressar o fenótipo de super soldados. Então, o surgimento de super soldados nesta região não apareceu graças a uma nova mutação e sim através da plasticidade dos mecanismos de regulação do aparecimento do fenótipo, mecanismo conhecido por acomodamento genético. No acomodamento genético, por a via estar sendo herdada continuamente, pode-se induzir o seu aparecimento mesmo que a espécie não o faça naturalmente. E por ser independente de uma nova mutação a indução pode ser feita em muitos indivíduos de uma vez e não em um só indivíduo.”

 

“Esta é uma bela demonstração de que a herança da informação para o desenvolvimento de fenótipos silenciados na história da espécie é uma boa fonte de variação que pode levar ao surgimento em paralelo das mesmas características em grupos separados. Esse também é uma bom exemplo de como são valiosos os dados obtidos sobre o desenvolvimento da espécie para traçar a sua história.”, conclui Eduardo Sequerra.

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Para saber mais: