Viva Turing de novo, mais pistas sobre a evolução dos membros em vertebrados

Um dos grandes enigmas da moderna biologia diz respeito a compreensão de como estruturas morfológicas complexas podem ser produzidas através da modulação da expressão gênica no embrião de organismos multicelulares em desenvolvimento. A compreensão destes processos têm implicações vastas, que vão desde a explicação de mal formações, como a polidactilia, até  lançar luz sobre como, ao longo da evolução dos organismos multicelulares, especialmente animais, estruturas morfológicas de organismos ancestrais deram origem as de linhagens descendentes. 

Um grande problema com as abordagens mais tradicionais é que simplesmente apontar quais genes estão envolvidos nos processos, e mesmo mostrar que existem diferenças em seus padrões de expressão, não são suficientes. O que normalmente é almejado é uma compreensão de como a expressão diferencial destes genes, por meios dos efeitos das interações de seus produtos na proliferação e morte celular localizadas, na diferenciação celular e nos movimentos e deformações de camadas de tecidos, resulta em mudanças complexas na forma dos organismos. É preciso portanto explicar como cascatas de reações químicas dentro das células, a liberação de moléculas de comunicação célula a célula e a alteração de seus números, seu padrão de movimento e de adesividade, produzem alterações espaço-temporalmente organizadas por meio das interações dinâmicas entre seus componentes em diversos níveis. Portanto, o que se quer mais precisamente é compreender como o padrão geral pode ser produzido e como ele pôde ser modificado, por alterações dos genes e das regiões controladoras de sua expressão, ao longo da evolução das diversas linhagens.

Estes terrenos da investigação científica são eminentemente multidisciplinares exigindo a combinação dos métodos e conceitos da genética molecular, com os da biofísica, da biologia do desenvolvimento, bem como da paleobiologia, mas também de estratégias de modelagem computacional e matemática. E aí que entram os mecanismos ‘formadores de padrão’ (definir) entre os quais os mecanismos baseados em sistemas de reação-difusão que foram originalmente proposto pelo matemático Alan Turing ainda no começo dos anos 50, pouco antes de sua trágica morte, que certamente está entre os mais investigados [Veja “Viva Turing ou como os camundongos conseguem seu palato enrugado.” e “É a evolução genética previsível? Parte II ou Além da genética parte I” e “De determinantes ‘genéricos’ aos ‘genéticos’: A importância da física nos primódios da evolução animal.”]. De acordo com Turing, dois reagentes químicos que interagem e difundem-se através do espaço por meio de processos de retroalimentação poderiam formar padrões espaciais de ondas interagentes. Isto é, a partir de duas substâncias químicas, respectivamente, um ‘ativador’ e um ‘repressor’, inicialmente distribuídas uniformemente,  por meio da dinâmica não linear das interações entre estes reagentes que amplificam pequenas flutuações locais e produzem ciclos autossustentáveis de atividade, seriam produzidos padrões espaciais e estruturas complexas em um meio originalmente homogêneo.

Durante um bom tempo o modelo de Turing para a formação de padrões, ainda que plausível, carecia de evidências mais diretas de sua ação em organismos vivos, como explica a primeira autora de um novo estudo sobre o tema, Rushikesh Sheth, pós-doutorada no laboratório de Mary Kmita, autora sênior de mais do artigo. [Veja “What mechanism generates our fingers and toes?”]. Mas este cenário tem mudado na última década, como recentemente ilustrado por estudos da formação do palato enrugado em camundongos (que comentamos aqui no evolucionismo.org Viva Turing ou como os camundongos conseguem seu palato enrugado.”),  além de muitos outros trabalhos que sugerem que este mesmo mecanismo do tipo proposto por Turing (ou alguma variação dele) desempenhe um papel no crescimento de estruturas como penas e folículos capilares, no padrão de ramificação dos pulmões, etc. Desta vez, em um artigo publicado nesta edição de dezembro da revista Science, uma equipe de pesquisadores apresentam evidências de uma papel para este mecanismo formador de padrão durante o desenvolvimento dos dedos nas patas de camundongos, indicando uma possível via para a formação dos membros autopodes a partir de nadadeiras com projeções ósseas encontradas em vertebrados aquáticos ancestrais.

Em mamíferos, o que inclui nós seres humanos, os padrões de mudança ao longo do desenvolvimento embrionário dependem da ação de genes que funcionam como grandes ‘interruptores’, ativando e reprimindo uma série de outros genes e seus produtos em uma cascata de eventos de transdução de sinal e de ativação diferencial de vias bioquímicas. Entre estes genes estão os muito conhecidos  genes Hox – os mesmos por trás, por exemplo, da formação do eixo antero-posterior, isto é, cabeça-cauda, tanto em vertebrados como em invertebrados com simetria bilateral, mas também os genes associados as vias Shh (Veja Mais pistas sobre as origens do membros nos vertebrados), ambos os grupos também estando envolvidos na formação de membros durante a embriogênese. 

O padrão de formação dos dedos tradicionalmente tem sido mais comumente interpretado com dependendo da formação de um ‘gradiente morfogenético‘ em que a proteína codificada pelo de Sonic Hedgehog (Shh) funcionaria como ‘morfógeno’ (isto é, uma molécula difusível com papel de ativação de determinados estados celulares) emanando da ‘zona de atividade polarizante’ (ZPA) que consiste em um aglomerado de células mesodérmicas na borda posterior do broto do membro a partir do qual se estabeleceria um gradiente com os níveis máximos do morfógeno na região posterior.

Neste modelo para a formação dos dedos, a proteína Gli3 seria a principal mediadora da sinalização da via Shh e alterações neste gene seriam uma das causas genéticas da polidactilía. Porém, ao contrário das expectativas, tanto o Shh como Gli3, parecem dispensáveis para este processo, inclusive com mutantes nulos para Gli3 (ou seja, em que o gene Gli3 não é expresso) exibindo fenótipos de membros polidáctilos idênticos aos que ocorrem na sua presença, o que sugere que uma série de dedos pode se formar iterativamente na ausência de Shh, o que é mais compatível com um mecanismo formador de padrão do tipo Turing que já havia sido proposto como o responsável pela formação de um pré-padrão nesta porção distal do broto do membro que guiaria o processo de condrogênese, ou seja, de formação de agregados de tecido cartilaginoso.

Uma das previsões específicas deste modelo é que o período dos dedos, ou comprimento de onda (que pode ser definido como a espessura combinada de ambos os dígitos e da região interdigital) deve estar sujeito a modulação por perturbações no parâmetro correto da rede de genes que controla o processo de diferenciação, levando a membros autopodes com dedos de diferentes números e espessuras, o que, segundo o time de pesquisadores responsável pelo artigo da Science, nunca havia sido claramente observada até à data. E foi exatamente isso que os cientistas responsáveis pelo estudo obtiveram como resultando ao usaram métodos de análise genética para estudar a formação dos dedos durante o desenvolvimento de camundongos, encarando este fenômeno como um processo iterativo que leva a um padrão intercalado, ‘dedo/não dedo’, portanto, análogo aos que tem sido modelados por sistemas de reação-difusão do tipo Turing.

Embora ainda houvessem incertezas de quais moléculas poderiam fazer parte desse mecanismo auto-organizado de formação de padrão, alguns genes Hox, que já sabidamente atuavam nas porções distais do broto o membro, Hoxa e Hoxd, eram candidatos óbvios, tanto por terem  um impacto bem documentado na formação dos dedos, como por interagirem em várias instâncias como as vias de dos genes Shh e Gli3.

Os biólogos conseguiram mostrar que ao reduzirem progressivamente a dose de genes Hoxa13 e Hoxd11-Hoxd13 (este último discutido no post anterior, “Superexpressão do gene 13Hoxd: Mais pistas sobre a transição entre peixes e tetrápodes”) – que atuam na porção distal do membro em formação sobre um pano de fundo em que o gene Gli3 havia sido ‘deletado’ – levava a quadros de polidactilia progressivamente mais graves, ou seja, com maior número de dedos que por sua vez eram mais finos mais e densamente ‘empacotados’.

Abaixo podemos observar os fenótipos, associados aos esqueletos de camundongos recém-nascidos, que foram considerados os mais representativos das séries de alelos dos genes  Hoxa13; Hoxd11-13; Gli3 [o sinal de + indica a presença do alelo e o de – a sua ausência; e o Hoxd11-13 indica que ambos os loci são tratado e manipulados como um só].  Note que o número de dedos (indicados para a condição,  na base  da figura,  Gli3XtJ/XtJ) aumenta à medida que a dose de genes Hox distais é reduzida. Outro resultado importante é que quando resta apenas uma única cópia funcional de Hoxa13, como fica claro na coluna da direita, as pontas dos dedos passam a estar ligadas por faixas contínuas de tecido (ossificado, em vermelho, e cartilaginoso, em azul) beirando a extremidade distal dos membros, o que fica ainda mais visível com a remoção de cópias do gene Gli3.

Assim, conforme mais genes Hox são removidos de um membro em desenvolvimento de camundongo, sem que haja o gene Gli3, mais dedos são gerados o que é exatamente o que se espera em um modelo semelhante ao proposto por Alan Turing.

Para compreender melhor estes resultados, a equipe de pesquisadores combinou a análise experimental com modelagem computacional do processo de formação de padrão por um mecanismo de reação-difusão. De posse das duas abordagens, os pesquisadores concluíram que os seus resultados dão forte apoio a ideia que existe realmente um mecanismo do tipo do de Turing subjacente a formação do padrão intercalado que produz os dedos em que a dose dos genes Hox distais modula o período (ou o ‘comprimento de onda’) dos dedos.

 “Nosso estudo genético sugere que os genes Hox atuam como moduladores de um mecanismo de do tipo Turing, que foi posteriormente confirmado por testes matemáticos realizados por nossos colaboradores, Dr. James Sharpe e sua equipe”, acrescenta Marie Kmita, Diretor da Genética e unidade de desenvolvimento de pesquisa na IRCM. [Veja “What mechanism generates our fingers and toes?”]

Abaixo pode-se observar nas ​​três primeiras linhas os padrões de expressão do gene Sox9 com diferentes combinações de mutantes para as séries alélicas Hoxa13; Hoxd11-13; Gli3. Os autores, por meio da simulação, puderam replicar os fenótipos associados ao mutantes triplos podem ser replicados pelo modelo de Turing em que a diminuição do gradiente de PD utilizado para modular a onda está correlacionada com a dose reduzida Hox (khox).

Os autores também ressaltam que estes padrões, que assemelham-se muito ao padrões endoesqueletais das nadadeiras de peixes, sugerem que o estado pentadáctilo dos vertebrados tetrápodes deve ter evoluído por meio de modificações de um mecanismo do tipo do postulado por Turing que agia em nossos antepassados não tetrápodes mais antigos e que, por meio de modificações dos padrões de expressão dos genes e de seus produtos, alteraram a dinâmica das reações que resultaram em mudanças na formação, número e na distribuição dos elementos esqueletais mais distais:

Além disso, mostramos que reduzir drasticamente a dose dos genes Hox em camundongos transforma dedos em estruturas que lembram as extremidades das nadadeiras dos peixes. Essas descobertas também apoiar o papel fundamental dos genes Hox na transição de barbatanas para membros durante a evolução, uma das mais importantes inovações anatômicas associadas com a transição do meio aquático para a vida terrestre.” completa Kumita. [Veja “What mechanism generates our fingers and toes?”]

Estes resultados nos permitem postular uma relação entre a evolução dos membros dos vertebrados e o papel de mudanças nos genes Hox distais. Assim, como é mostrado na árvore filogenética de grupos de animais representativos, podemos perceber relações entre os padrões esqueléticos dos  apêndices (nadadeiras e membros) desses animais com a expressão correspondente dos genes Hox distais – e dos gradientes de Gli3R (‘Repressor Gli3’, resultado da proteólise da proteína Gli3, que tem função inibitória na transcrição) que estão representados quando conhecidos [o actinopterígio mostrado na figura é o peixe da espécie Polyodon spathula].

Notem bem que ao revogar a sinalização da via Shh e reduzir a função de genes Hox distais no membro autopode de camundongo (Hoxa13+/-; HoxdDel11-13/Del11-13; Gli3XtJ/XtJ) tem-se como resultado o aparecimento, nestes animais, de características de esqueleto que são compartilhadas com as do tecidos esqueléticos das nadadeiras peitorais de tubarões, como o Chiloscyllium punctatum, que exemplificam os condrictios, e de peixes ósseos com nadadeiras raiadas, como o Polypterus senegalus, representando os osteícitios, isto é elementos iterativos, numerosos e densamente empacotados com uma banda distal cartilaginosa correspondente aos arcos radiais distais das nadadeiras destes animais (vejam as setas):

“O padrão periódico de elementos esqueléticos evidentes em nadadeiras e membros mutantes sugere fortemente que um processo auto-organizado de condrogênese  baseado em um mecanismo tipo Turing seja profundamente conservado entre os vertebrados. Os resultados indicam ainda que a dose de genes Hox distal regula o número e o espaçamento dos elementos esqueléticos formados, implicando distais redes reguladoras de genes Hox como sendo impulsionadores críticos da evolução do membro pentadáctilos.” [Sheth R et al, 2012]

Este estudo, bem como o descrito no post anterior, nos mostra como hipóteses derivadas da análise comparativa de grupos de animais vivos e extintos, juntamente com insights advindos  genética do desenvolvimento, e de modelos teóricos de formação de padrões, podem ser colocadas a prova e avaliadas quanto a sua viabilidade e coerência com os dados por meios de engenhosos experimentos,  modelagem matemático-computacional e análise filogenética. Através deste tipo de investigação multidisciplinar, por meio da proposição e teste criterioso e criativo de  ideias como essas, é que vamos compreendendo mais e melhor como grupos de organismos puderam dar origem a outros e como novos órgãos, estruturas e sistemas surgiram e evoluíram ao longo do tempo em função de mutações que alteravam a forma com estes mecanismos ‘genéricos’ [De determinantes ‘genéricos’ aos ‘genéticos’: A importância da física nos primódios da evolução animal.] formadores de padrão operavam.

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Referências:

  • Vogel G. Developmental biology. Turing pattern fingered for digit formation. Science. 2012 Dec 14;338(6113):1406. doi: 10.1126/science.338.6113.1406. PubMed PMID: 23239707.

  • Sheth R, Marcon L, Bastida MF, Junco M, Quintana L, Dahn R, Kmita M, Sharpe J, Ros MA. Hox genes regulate digit patterning by controlling the wavelength of a Turing-type mechanism. Science. 2012 Dec 14;338(6113):1476-80. doi:10.1126/science.1226804. PubMed PMID: 23239739.

  • Kondo S, Miura T. Reaction-diffusion model as a framework for understanding biological pattern formation. Science. 2010 Sep 24;329(5999):1616-20. doi: 10.1126/science.1179047. Review. PubMed PMID: 20929839.

Creditos das Figuras:

MIKKEL JUUL JENSEN / SCIENCE PHOTO LIBRARY

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Um comentário

  • Rodrigo Véras 17 de dezembro de 2013  

    Olá, Cícero.

    O texto citado diz:

    “O pesquisadores, William C. Ratcliff, Matthew D. Herron, Kathryn Howell, Jennifer T. Pentz, Frank Rosenzweig e Michael Travisano, submeteram populações da alga Chlamydomonas reinhardtii a condições que favorecem a multicelularidade, obtendo como resultado a evolução de um ciclo de vida multicelular em que aglomerados compostos de várias células reproduzem-se por meio de células únicas móveis…
    Há alguns anos, Travisano e Ratcliff já haviam ganhado as machetes dos sites e de revistas de divulgação científica ao terem evoluído sistemas multicelulares a partir de leveduras (fungos unicelulares) empregando um modelo de seleção artificial semelhante ao empregado neste novo trabalho, por meio da sedimentação/assentamento preferencial.”.

    “Note que houve várias interferências inteligentes humanas (DI?) nos experimentos, incluindo condições de temperatura, equipamentos e adição de ingredientes, liquidos para facilitar a reprodução dessa célula e posteriormente de suas irmãs, numa estrutura com escolhas já predeterminadas envolvendo intenção, ordenamento, inteligência.”

    Desculpe, mas este argumento é completamente sem sentido, pois isso o que descreveu é basicamente metodologia experimental. Não há nada de errado com ela e ela é constantemente usada para investigar os mecanismos e processos naturais. Suas colocações, desta maneira, são completamente irrelevantes em relação ao questão do criacionismo/DI versus a ciência moderna, por que o objetivo de experimentos nesta área é explorar em que condições a multicelularidade pode evoluir e foi isso que eles fizeram, mostrando que frente a pressões de seleção específicas (neste caso a seleção artificial por velocidade de sedimentação, mas, como já havia sido mostrado antes por Boraas, o que poderia ocorrer seleção por predação, esta sim muito mais compatível com o que encontramos na natureza) e em poucas gerações ela facilmente evolui. Isso é tremendamente significante do ponto de vista científico e refuta várias objeções sobre a suposta dificuldade de um processo como esse. É uma prova de conceito.

    “Mas não vemos tais condições extremamente favoráveis na natureza, pelo contrário”

    Na realidade, as condições empregadas no estudo não são tão incomuns assim, excetuando o ponto específico da seleção por velocidade de sedimentação (mas como disse, a predação é um tipo de condição ambiental bem comum), além de existirem várias linhagens que evoluíram a multicelularidade de maneira independente, como vários estudos comparativos e filogenéticos mostram que é outra evidências muito importante e que é independente desses estudos experimentais, portanto, você está claramente errado neste ponto. Outro ponto importante é que este processo de evolução em laboratório ocorreu em meras 78 gerações, ou seja, tal reorganização massiva celular foi capaz de evoluir de maneira muito rápida, o que mostra que mesmo em condições menos favoráveis não existem grandes obstáculos a seleção da multicelularidade e dos ciclos reprodutivos, como alternância de fases, uni e pluricelulares ou mesmo a evolução da diferenciação celular e divisão de funções, como mostrado em estudos anteriores.

    … ainda mais no caso da evolução química, assim denominada pra formação do 1º organismo unicelular em LAMA abiótica num ambiente estéril e hostil numa Terra primitiva inundada por radiações destrutivas, isso teria sido praticamente impossível, e mesmo que por um milagre extremo e inimaginável um ser desses pudesse surgir; por acidentes fortuitos de compostos químicos, muitas e muitas perguntas seguiriam a sobrevivência e reprodução desse ser milagroso naquelas condições tão adversas.’”

    Desculpe, mas este é completo desvio do assunto do post, pois a origem da vida é um problema separado da evolução dos seres vivos que envolve um trabalho multidisciplinar e mais incerta, ainda embora obviamente correlacionado. É sempre estranho esta mudança de foco, saindo do caso bem claro dos modelos de evolução experimental de organismos vivos, para a origem da vida.

    Lembre-se que quem afirma ser necessário um milagre ou um conjunto de milagres (no sentido de intervenção sobrenatural especifica que violaria as leis naturais) são os criacionistas tradicionais e adeptos do Design Inteligente, além do fato que os cientistas não afirmam que os processos e mecanismos por trás da origem da vida sejam frutos do encontro fortuito do compostos. Isso é ridículo, sendo apenas uma caricatura da pesquisa científica nesta área. Os cientistas postulam processos naturais e os investigam através de métodos experimentais, estudos geofísicos e geoquímicos, modelagem computacional etc. Várias das questões que foram suscitadas sobre várias dessas etapas e processos já estão sendo respondidas e avanços sendo feitos. Nada nem parecido com isso ocorre vindo das fileiras dos promotores do criacionismo seja ele tradicional ou do Design Inteligente.

    O que fica claro é que você não acompanha os estudos nem em evolução e nem os sobre a origem da vida. A terra era estéril apenas no sentido que ainda não existiam seres vivos, mas isso não quer dizer que não existiam condições propícias ao surgimento e evolução dos primeiros sistemas autorreplicantes e sua evolução nas primeiras células. As radiações UV por exemplo, além de não necessariamente impedirem a vida (como é obvio ao olharmos a nossa volta) podem ter sido uma fonte importante de energia nas reações originais de formação de moléculas orgânicas, além de poderem ter contribuído como agentes seletores de certos tipos de moléculas precursoras dos nucleotídeos, como Ricardo e Szostak mostraram.

    A lama, a qual você menciona (argilas mais especificamente como, por exemplo, são as argilas de montogomeronita), além do papel protetor contra UV, tem também propriedades catalíticas e podem ajudar a ordenar moléculas em processo de polimerização. Além disso, provavelmente existiam alguns complexos organometálicos que poderiam proporcionar catálise e estabilização de compostos orgânicos maiores, sem falar nas moléculas orgânicas, como certos açúcares e aminoácidos, além de compostos minerais (como fósforo, enxofre e ferro) expelidos por fontes geotérmicas que, além de proporcionarem materiais e energia através da formação de gradientes térmicos e químicos, através de suas superfícies e poros serviriam como fonte de catálise, acumulação e ordenação de reações cada vez mais complexas. As muitas perguntas sobre a origem da vida já foram feitas e estão sendo investigadas, basta procurar na literatura científica e não há nenhuma impossibilidade a vista, apenas os problemas e dúvidas naturais que surgem de investigar um conjunto de evento (além dos processos e mecanismos) que ocorreram há mais de 3,9 bilhões de anos e cujas evidências são difíceis de descobrir.

    Portanto, embora não saibamos muita coisa ainda (o que é normal em termos da pesquisa científica), mesmo assim não há por que afirmar que seria necessário um milagres para a origem natural destes primeiros sistemas e sua, aí sim, evolução.

    “E mesmo que tal ocorrência se efetivasse na natureza posteriormente, em que? pergunto,… isso provaria macroevolução nos planos corporais???”

    Você realmente não parece ter lido o texto ou se atinado muito com a questão. Estes experimentos mostram como uma grande reestruturação dos ‘planos corporais’ dos seres vivos, isto é, a passagem da uni para a multicelularidade, a evolução do ciclo uni/pluri celular e, como disse, a diferenciação celular – todos processos associados a uma grande transição macroevolutiva – teriam acontecido.

    “ veriamos apenas e unicamente, descendência hereditaria genética da espécie gerando esta mesma espécie… cfe. os postulados já bem definidos empiricamente de Mendel.”

    Não.! Veríamos a mudança na complexidade do organismos e em sua organização de uni para multicelular e portanto o surgimento de um novo nivel da organização biológica. O problema da especiação perto disso é trivial em demanda, como vários estudos mostram a divergência genética das subpopulações das populações ancestrais, com o tempo resultando no acumulo de diferenças genéticas e fenotípicas e eventualmente isolamento reprodutivo. Seus comentários mostram que você realmente não sabe do que está falando. É uma pena.

    “Mas para mudanças radicais em novos e diferentes clados taxonômicos verticais certamente haveriam conflitos genéticos, além de outros fatores adversos e agravantes.”

    Essa é uma mudança radical, além do mais clados surgem sempre por um processo de especiação que nem precisa ser muito radical em termos das diferenças fenotípicas, que fique claro, e é apenas com o tempo que, a medida que novos eventos de especiação vão ocorrendo e os descendentes desses processos divergem mais e mais é que os clados adquirem seu status mais estável, que é que chamamos de ‘grupos copa’ em contraste com os grupos tronco que marcam as etapas iniciais de divergência. Esse tipo de confusão que você demonstra só faz sentido partindo do pressuposto errôneo e completamente caricato de que os grandes grupos, durante a evolução, surgem exatamente com as características modernas, instantaneamente, o que não é defendido por nenhum cientistas qu estuda seriamente a biologia evolutiva. São os criacionistas que tentam argumentar que é isso que a evolução implica, mas isso é mais uma de várias distorções. O problema é todo de vocês que não compreendem (ou não querem compreender) os conceitos e evidências da biologia evolutiva.

    “Como admitem no final do estudo:
    “Infelizmente, conhecemos muito pouco sobre a origem desses gargalos reprodutivos envolvendo uma única célula em grupos taxonômicos não-extintos. Daí a importância de estudos como este que mostram, claramente, como um gargalo unicelular deste tipo pode evoluir [ou se reproduzir como ele diz abaixo] já logo durante as primeiras fases de uma transição evolutiva como essa, conferindo vantagens diretas, mesmo na ausência de conflitos genéticos, maximizando o sucesso reprodutivo do indivíduo multicelular nascente.”

    Perceba que os pesquisadores admitem que ainda não sabemos de muita coisa e é por isso que estes estudos são importantes, pois através deles podemos explorar possibilidades e testar quais as mais razoáveis e plausíveis. Isso é fazer ciência. Creio que você não compreendeu bem a questão.

    Estamos longe de ter uma compreensão realmente satisfatória dessas transições, mas estudos como os de Ratcliff, Travisano e seus vários colaboradores mostram como modelos experimentais podem ajudar muito neste empreitada, iluminando etapas extremamente importantes das grandes transições macroevolutivas.”

    Este trecho é minha formulação e não é dos autores, apenas para ficar claro. Nele, como não deveria ser de impressionar admito que ainda existe muito o que sabemos, mas diferente do que bizarramente você parece ser compreendido disso, os experimentos deste tipo ajudam muito a compreender melhor a questão e mais uma vez mostram que não há por que esperar milagres e que as condições favoráveis a este tipo de tranição são são nada absurdas. Lembre-se da extrema velocidade em que isso ocorreu. Mesmo sabendo que em ambientes naturais isso seriam menos comum e demoraria mais tempo, fica claro que é perfeitamente viável e, o mais importante, os processos envolvidos predisporiam as linhagens futuras e evoluírem ainda maior complexidade por causa de segregação genética e clonalidade associada a reprodução por propágulos unicelulares. Não perceber estes avanços, mostra como sua compreensão da questão está equivocada.

    Você realmente está bem confuso e não compreendeu o meu texto e nem o trabalho de Ratcliff e colaboradores. Na verdade, você parece ter grande dificuldade de compreender com as ciências funcionam. O primeiro ponto é que, o fato de termos conhecimento incompleto, não é o mesmo que admitir que não temos conhecimento algum e nem que este conhecimento seja impossível e, muito menos, que haja a necessidade em postular-se um criador que, no final das contas, não explica nada a menos que tenhamos evidências independentes de que tal ser exista, de que ele tenha as capacidades necessárias e de como ele teria feito o que supostamente fez.

    “Uma coisa é fazermos experiências em laboratório planejadas inteligentemente, outra é verificarmos se de fato o que desejamos, ocorre naturalmente nos seres vivos em inúmeros processos transformativos ‘macro’ desde amebas até chegar a girafas, elefantes e GENTE??!! tanto fósseis como vivos parecem não revelar nenhuma das inúmeras fases macroevolutivas necessárias.”

    Sds.”

    Já expliquei como suas objeções são irrelevantes, pois os tipos de experimentos que foram feitos por Raticliff e colaboradores servem como ‘prova conceitual’ e como forma de investigar quais os mecanismos e processos estariam por trás destes eventos macroevolutivos, o que são objetivos complementares aos que podem ser alcançados por meio de estudos comparativos e filogenéticos (morfológicos e moleculares) dos organismos uni e multicelulares que revelam QUE e QUANDO estes eventos aconteceram. Isso é assim por que o tipo de fenômenos macroevolutivos em toda a sua extensão que você faz menção ocorre em em períodos geológicos mais estendidos de tempo como mostra o registro fóssil e as estimativas baseadas em dados moleculares. Ninguém afirma que eles ocorrem do dia para a noite, como você e outros criacionistas parece querer concluir e, assim, desqualificar.

    O problema é que você parece ter em mente definições bem confusas e diferentes das dos cientistas (o que é comum entre os criacionistas) sobre o que é evolução (especialmente do que é a chamada macroevolução e sobre os padrões, processos, mecanismos e as escalas de tempo nela envolvidas), também não compreendendo que os cientistas empregam múltiplas abordagens complementares para compreender estes eventos, padrões, mecanismos e processos evolutivos. As conclusões portanto não saão baseadas em um único estudo e nem em um único modelo, mas em uma gama de abordages, experimentos e linhas de investigação independentes e complementares.

    Sua crítica, portanto, carece de qualquer mérito pois ela usa um experimento e seus resultados para objetar a questões respondidas por outros tipos de estudos, além de negar o tipo de conhecimento que estes experimentos específicos nos trazem ao tentar redefinir conceitos, misturar questões, exagerar e inventar lacunas em nosso conhecimento.

    Além disso, preciso enfatizar que não existem alternativas cientificamente viáveis para a explicação da origem da vida – que, como eu disse, é uma questão diferente, ainda que relacionada à evolução biológica – uma vez que postular um criador com poderes infinitos, conhecimento ilimitado e objetivos acima de nossa compreensão não nos dá, de fato, qualquer resposta cientifcamente proveitosa.

    Aliás, é por isso que mesmo muitos religiosos (especialmente os cientistas religiosos que trabalham com as geociências e com a biologia evolutiva), ao reconheceram este simples fato pragmático, separam sua fé em Deus da investigação científica e das explicações que convêm a esta atividade. Isso é assim por que, mesmo que Deus ou um deus tenha, de alguma forma, sido responsável pela origem de nosso universo, planeta e pela vida, de uma perspectiva científica, o que interessa são os mecanismos e circunstâncias em que isso se deu e que podem ser estudados e esmiuçados com cuidado, de maneira metódica e a partir de evidências empíricas pelos seres humanos, ou seja, os processos e mecanismos naturais. Esta postura não nega a possibilidade da existência de entidades sobrenaturais e nem de domínios transcendentes, mas admite que seu poder explicativo é problemático, pelo menos, caso não operacionalizemos tais seres e domínios de modo que possamos os investigar de maneira mais direta e metódica, o que entra em outras questões filosóficas e teológicas que mostram-se improdutivas e não passíveis do tipo de acordo que seria necessário para investigar tais seres e domínios.

    O criacionismo tradicional ou do DI são, por causa destas questões, completamente estéreis quando encarados de uma perspectiva científica, sendo rejeitados por estes pesquisadores religiosos que eu havia comentado, assim como é rejeitado pelos cientistas não religiosos. O problema que simplesmente afirmar que algo é muito complicado e improvável e portanto deve ter sido criado por um superser sobre o qual não tenho evidências independentes e nada posso sobre ele investigar, não é produtivo de uma perspectiva científica, além de ser um raciocínio falacioso, um argumento de ignorância ou de Deus das lacunas. Esta constatação pragmática e meta-metodológica é diferente de dizer que tal Ser não existe, que fique bem claro. Como disse, vários cientistas acreditam em Deus, mas nem por isso tentam explicar os fenômenos que eles estudam alegando que foi ele que os fez e isso deve bastar como explicação e evidência.

    Boas festas,

    Rodrigo

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