Uma janela para Ediacara

Algumas dezenas de milhões antes da ‘explosão cambriana‘ (veja A Explosão Cambriana: Uma introdução, A explosão cambriana. Parte II: Rápida, mas nem tanto assim!‘ ,’ O ‘pavio filogenético’ e a ‘explosão cambriana’ não se fundem.‘, ‘A Explosão Cambriana’, ‘De volta ao cambriano: Dividindo o evento,’, ‘Conheça os fósseis dos primeiros animais com ‘esqueleto’ (via Revista FAPESP)), os oceanos da terra eram habitados por um grupo de animais bastante diferentes daqueles que estamos acostumados (e dos quais nós mesmos fazemos parte) formando aquilo que se convencionou chamar de ‘biota de Ediacara‘.

Ao lado uma reconstrução dos ramos e ‘folhas’ dos rangeomorfos, um grupo de animais que viveram durante o período Ediacarano (635-541.000.000 anos atrás), feita a partir de modelos matemáticos do crescimento e desenvolvimento destes animais. [Crédito: Jennifer Hoyal Cuthil] [1]

Esta biota representa um marco na evolução da vida multicelular complexa e é entre seus representantes que encontramos os primeiros organismos mais complexos de corpo mole. Entre as criaturas ediacarianas estão esponjas e cnidários, mas também vários grupos considerados ‘problemáticos’, representados tanto por macrofósseis como microfósseis [2]. Embora alguns desses fósseis sejam tradicionalmente considerados como os restos de precursores de animais do Cambriano (e portanto de alguns grupos modernos), outros têm sido encarados como pertencentes a grupos completamente extintos, ‘uma experiência evolutiva que não deu certo‘ pelo menos frente as mudanças de condições ambientais que viriam depois e que teriam sido o gatilho da ‘explosão cambriana‘.

Os Rangeomorfos, que constituem esta parte mais bizarra da biota de Ediacara, viveram há cerca de 575 milhões de anos e seus representantes, em sua maioria, tinham por volta de até 10 cm de altura, com alguns poucos, entretanto, chegando a cerca de de 2 metros. Eles habitavam o fundo dos oceanos deste período e possuíam estruturas ramificadas compostas por partes macias que davam origem outros ramos laterais menores que davam origem a outros ramos ainda menores e assim por diante. Exibiam, portanto, um padrão fractal, isto é, sua organização corporal básica era formada por estruturas semelhantes que tendem a re-ocorrer em várias escalas diferentes. Estas diferenças em relação aos animais ‘modernos’ tornaram muito difícil a determinação de como estes animais do Ediacariano alimentavam-se, cresciam e se reproduziam, o que entre outros problemas torna muito difíceis os esforços de identificação das relações de parentesco destes animais com qualquer outro grupo de animais modernos. Portanto, o parentesco exato destes organismos entre eles e com outros grupos modernos ainda está é bastante incerto, mas muitos pesquisadores concordam que eles exibem uma ampla gama de morfologias, sugerindo pertencerem a diferentes grupos na base da árvore da vida animal, isto é, na filogenia dos metazoários.

Acima estão alguns dos possíveis padrões de relacionamento evolutivo entre os diferentes tipos de animais de Ediacara, que estão na base da árvore de vida animal. As linhas pontilhadas representam o intervalo provável em que viveu um determinado grupo de animais e as linhas sólidas representam a evidência fóssil. Os grupos extintos (taxa) são representados por uma cruz circundada. (Esta figura foi modificado da figura de Xiao e Laflamme, Peterson et al e Dunn et al que está disponível no site do Museu Real de Ontário sobre o folhelho de Burgess Shale) [2].

Agora, um novo estudo publicado por Jennifer Hoyal Cuthil e Simon Conway Morris, apresenta reconstruções tridimensionais construídas a partir de um modelo matemático de 11 táxons deste  grupo que mostram como alguns destes animais deviam crescer e desenvolver-se, fornecendo algumas respostas sobre o porquê eles foram extintos [2]. Essa radiação adaptativa de morfologias fractais que deu origem a essa fauna provavelmente foi possibilitada por que este padrão geométrico maximiza a área de superfície corporal, o que é consistente com o padrão alimentar destes animais que os pesquisadores acreditam ter se dado por meio da absorção de nutrientes por difusão, a osmotrofia [1, 2].

Abaixo um vídeo com uma das reconstruções.


Assim, como defendem os autores do estudo [2], os Rangeomorfos devem ter sido otimamente adaptados às condições prevalentes nos oceanos do Ediacariano, que incluíam a baixa competição e o alto teor de nutrientes dissolvidos naquelas águas. Porém, com a ‘explosão cambriana’ (que ocorreu a partir de 541 milhões de anos atrás, mas que teve seu auge por volta de 530 milhões de anos atrás), as mudanças nas condições ecológicas e geoquímicas acabaram por levar à extinção dos Rangeomorfos que deram lugar aos organismos modernos com seus padrões corporais, metabólicos e modos de vida que estamos familiarizados [3].

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Referências:

  1. How some of the first animals lived – and died, University of Cambridg Research News, 11 Aug 2014.
  2. Enigmatic Ediacarans The Burgess Shale, acessado em 12 de agosto de 2014.
  3. Cuthill, Jennifer F. Hoyal and Conway Morris, Simon Fractal branching organizations of Ediacaran rangeomorph fronds reveal a lost Proterozoic body plan. PNAS, August 11, 2014 DOI: 10.1073/pnas.1408542111

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32 comentários

  • Como sempre, estão excelentes os artigos de Rodrigo Véras. Sugiro reunir todos os artigos do site, adaptando-os em um livro, separando-os por temas.

    Quero apenas apresentar algumas ideias sobre a relação entre evolução e religião e como ela poderia ser tratada no ensino fundamental e médio.

    A religião e a teoria da evolução não são necessariamente incompatíveis. A compatibilidade ou não entre religião e teoria da evolução é uma questão filosófica (metafísica) e não empírica, uma vez que ela não pode ser refutada por observações ou experimentos. Podemos acreditar, por exemplo, que a evolução foi a forma como Deus fez surgir as diversas formas vida na Terra; que Deus criou não só o Universo, mas também as leis da natureza – como as leis da Física e o processo de evolução. É verdade que alguns cientistas negam a compatibilidade entre evolução e religião, mas não vejo como essa questão possa ser decidida empiricamente, já que se trata de uma questão filosófica.

    A compatibilidade entre ciência (incluindo a evolução) foi defendida por vários cientistas, incluindo evolucionistas importantes (T. Dobzhansky, S. J. Gould, F. Collins, K. Miller, etc.), além de instituições científicas, como a National Academy of Sciences and Institute of Medicine.

    Além disso, as religiões ensinam mensagens éticas importantes, além do alcance da ciência: a ciência não nos diz como as coisas deveriam ser, ou seja, não nos dá valores éticos, apenas cria modelos explicativos de como as coisas são. Em outras palavras, como disse Stephen Jay Gould (1941-2002), a ciência desenvolve teorias para explicar o universo natural. Já a religião tenta explicar o universo moral, trabalhando em uma esfera diferente: a dos significados e valores humanos – assuntos que a ciência pode até esclarecer, mas nunca solucionar.

    Várias religiões aceitam a teoria da evolução em relação à parte material dos seres vivos (incluindo o ser humano), acrescentando que o ser humano tem uma dimensão espiritual que é de origem divina. Novamente, estamos diante de questões como a existência de Deus, da alma, do livre arbítrio e de valores éticos, que são questões filosóficas, que não podem ser resolvida apenas pela ciência.

    Por outro lado, em relação a questões materiais, o ser humano precisa de poder explanatório e preditivo, nem que seja para controlar a natureza. Por isso, não é suficiente explicar um fenômeno natural dizendo apenas “Porque Deus quis”. Perguntas do tipo “Por que os corpos caem?” não podem ser respondidas apenas dessa maneira: é preciso descobrir uma explicação naturalista, que possa ser testada por experimentos ou observações, para gerar poder preditivo e controle sobre a natureza. Isso é conseguido formulando, leis, teorias e modelos. Somente com leis como a lei da queda livre podemos prever quanto tempo um objeto em queda livre vai levar para chegar ao chão a partir da distância entre o objeto e o chão, por exemplo.

    Precisamos, portanto, da teoria da evolução para explicar a sequência de fósseis; para explicar por que precisamos tomar vacina contra a gripe todo o ano; por que as bactérias ficam resistentes aos antibióticos; por que o ser humano é mais parecido com o chimpanzé do que com o orangotango; por que a nadadeira da baleia, a asa do morcego e o braço humano têm a mesma configuração de ossos; por que devemos procurar fósseis de transição entre peixes e anfíbios em terrenos de determinada idade  — entre um sem número de fatos. A teoria da evolução é a melhor explicação em termos de capacidade de unificação e poder preditivo que temos atualmente – o que, sempre é bom frisar, não significa que não possa ser corrigida e melhorada ou até substituída por outra teoria melhor.

    É verdade que existem grupos religiosos que não aceitam a teoria da evolução e defendem uma forma de criacionismo, segundo o qual as espécies foram criadas por Deus da forma como existem hoje e de acordo com uma leitura literal de livros religiosos. Nesse caso, alguns professores podem perguntar o que fazer se um aluno afirmar que não aceita a teoria da evolução devido a sua crença religiosa.

    Em primeiro lugar, devemos nos lembrar de que crenças religiosas devem ser respeitadas e devem ser tratadas na esfera religiosa, em aulas de religião. Pode-se acrescentar também que cabe ao professor de Ciências ou Biologia apresentar teorias aceitas consensualmente pela comunidade científica, como a teoria da evolução, tratando de temas científicos publicados em revistas científicas especializadas.

    O professor pode dizer também que não exige que o aluno aceite a teoria da evolução: o que ele quer apenas é que o aluno a conheça – até para poder criticá-la, se for o caso.

    O professor deve acentuar que o termo “evolução” se aplica tanto a um fato como a uma teoria. A sequência de fósseis é um, entre muitos, desses fatos da evolução, não menos controversos do que os fatos históricos. Deve lembrar também que o termo “teoria” em ciência é um conjunto de conceitos, leis e modelos que fornecem uma explicação para uma série de fatos. É o caso da teoria da relatividade, da mecânica quântica e da teoria atual da evolução, entre outras. A teoria da evolução está no mesmo nível de todas essas. Para todas há uma quantidade imensa de evidências. Isso não quer dizer que, no futuro, essas teorias não possam ser corrigidas ou substituídas por outras melhores. Mas, no momento, não há teoria alternativa (e talvez nunca apareça essa nova teoria).

  • Rodrigo Véras 19 de setembro de 2014  

    Obrigado pelos comentário, Luiz e Pedro.

    Luiz, entendo usa exasperação com relação ao FaceBook. Por vezes, me sinto assim também.

    Grande abraço,

    Rodrigo

  • Anônimo 19 de setembro de 2014  

    Obrigado pelos comentário, Luiz e Pedro.

    Luiz, entendo usa exasperação com relação ao FaceBook. Por vezes, me sinto assim também.

    Grande abraço,

    Rodrigo

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