Guepardos e gatos domésticos têm mais do que sua ‘felinidade’ em comum.

As, muitas vezes, exóticas e intrincadas padronagens das pelagem dos animais nos causam admiração e nos demandam explicações inclusive de natureza evolutiva. Contudo, embora existam muitas hipóteses adaptativas que explicariam por que alguns desses padrões podem ter se tornado tão disseminados em certos animais com base na seleção natural ou tão diversificados em função da seleção sexual através do papel na ”propaganda” típicos dos processos de cortejamento e escolha de parceiros, infelizmente, sabemos muito pouco sobre as bases genéticas e desenvolvimentais que estariam por trás destes padrões de pelagem. Esta situação, entretanto, vem sendo mitigada pelo trabalho diligente e criativo de muitos cientistas, como é muito bem exemplificado por um artigo publicado em setembro deste ano na revista Science por um time de pesquisadores de diversas instituições espalhadas pelo mundo, inclusive do Brasil.

Neste artigo, a equipe de biocientistas, que conta com a participação do geneticista brasileiro, Eduardo Eizirik, da PUC-RS, conseguiu mostrar que mutações em um mesmo locus, em um mesmo gene, identificado a pouco tempo, podem produzir alterações nos padrões de pelagem tanto de Guepardos como dos gatos domésticos. O gene em questão, conhecido como Tadpep, codifica uma proteína transmembrana – isto é, que atravessa a bicamada lipídicas que forma a membrana plasmática – a aminopeptidase Q que é um tipo de enzima metaloprotease.

Enquanto nos guepardos as mutações neste gene produzem um raro padrão de pelagem [que de tão distintivo levou os primeiros naturalistas a identificá-lo a considerarem os animais que o exibiam com sendo de uma espécies diferente de guepardo, o ‘guepardo rei’], em gatos domésticos que apresentam o conjunto de padrões conhecido como tabby (manchados, pintados, tigrados etc), a mutação produz o que os especialistas em raças de gatos chamam de ‘tabby blotched‘ [A, B, C]. Nos animais com esta mutação as listras que geralmente nos animais com o padrão ‘tabby mackerel‘ são uniformemente distribuídas e mais nitidamente espaçadas acabam fundindo-se formando aquilo que parecem redemoinhos irregulares que é o que caracteriza o padrão ‘blotched’. Como pode ser observado na figura ao lado este padrão ‘blotched‘ parece ser análogo ao padrão ‘guepardo rei’ como fica claro ao contrastá-lo com padrão pintado muito mais comum nestes belos animais. Apesar de deste padrão ‘bloteched’ ser bastante comum em gatos domésticos ele não é comum em felinos selvagens, mesmo nas contrapartidas selvagens dos gatos domésticos.

A vantagem do trabalho com organismos modelo, no caso gatos domésticos, é que estes podem ser cruzados seletivamente por gerações e a partir do conhecimento dos ‘pedigrees’ de cada padrão resultante e do emprego de várias técnicas de análise genética torna-se possível identificar os genes que se correlacionam com estas mudanças e, assim, detectar as prováveis causas de cada fenótipo. Uma vez identificado o gene pode-se verificar se loci equivalente em espécies próximas e mutações que ocorram podem explicar também a variação nos fenótipos equivalentes destas outras espécies. Esta é uma grande vantagem ao que normalmente é feito investigando as características genéticas associadas a coloração e padronagem da pele em modelos animais mais comuns, como são o caso de camundongos e ratos, que não exibem padronagens análogas as de interesse.

Ao analisarem 31 outras espécies de felinos foi possível identificar que o gene Taqpep era realmente a causa do fenótipo Guepardo rei em que as pintas aglutinam-se em manchas e listras. Além disso, os pesquisadores fizeram estudos histológicos, de expressão genômica e transgênica em camundongos e ratos que indicaram que a expressão parácrina de outro gene, responsável pela codificação da Endothelin3 (Edn3), é que coordena os padrões espaciais da coloração. Os cientistas então propuseram um modelo em duas fases para explicar a formação do padrão de pelagem, em que primeiro o produto do gene Taqpep ajudaria a estabelecer um pré-padrão periódico durante as etapas iniciais do desenvolvimento da pele dos animais que, em fases mais tardias do desenvolvimento, seria implementado (isto é, cujo padrão seria gerado) por meio da expressão diferencial de gene Edn3. Estes genes e seus produtos, portanto, estariam por trás dos mecanismos morfogenéticos que produziriam os fenótipos típicos destas pelagem, como os vários processos e mecanismos dinâmicos de padronização espaço-temporal (‘formadores de padrão‘) que parecem ocorrer em tecidos vivos, como já discutimos em outras ocasiões, como na  resposta do nosso tumblr, em artigo sobre o sistema de reação-difusão de Turing,  intitulado “Turing ou como os camundongos conseguem seu palato enrugado.”, assim como no mais recente “De determinantes ‘genéricos’ aos ‘genéticos’: A importância da física nos primódios da evolução animal.

Estes resultados são muito importantes por que, a partir do conhecimento da base molecular destas mudanças, poderemos investigar os processos evolutivos que os influenciaram, determinando com mais segurança quais destes padrões evoluíram por realmente terem sido adaptativos – tendo se disseminado nas populações ancestrais pelas vantagens conferidas aos indivíduos que os portavam (que por causa deles se camuflavam melhor ou atraíam mais parceiros etc)- e quais tenham se estabelecido por causa de processos estocásticos não adaptativos, como a deriva genética associada a, por exemplo, a ‘efeitos fundadores’, e aqueles que tiveram sua origem associadas a outras características e genes (estes sim adaptativos) que seriam intimamente associados aos padrões de pelagem ou com os quais as variantes dos genes de padronagem, simplesmente, tenham pegado carona por causa de sua proximidade física nos cromossomos, sendo assim subprodutos da seleção de outros genes e características.

Este detalhamento das bases genéticas das características biológicas vai nos levar cada vez mais longe, nos permitindo compreender cada vez melhor como a evolução destas incríveis características ocorreu, enquanto continuamos a nos maravilhar com  a beleza destes fenótipos e dos seres que os exibem.

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Referências:

  • Kaelin CB, Xu X, Hong LZ, David VA, McGowan KA, Schmidt-Küntzel A, Roelke ME, Pino J, Pontius J, Cooper GM, Manuel H, Swanson WF, Marker L, Harper CK, van Dyk A, Yue B, Mullikin JC, Warren WC, Eizirik E, Kos L, O’Brien SJ, Barsh GS, Menotti-Raymond M. Specifying and sustaining pigmentation patterns in domestic and wild cats. Science. 2012 Sep 21;337(6101):1536-41. PubMed PMID: 22997338.

  • Norton, Elizabeth How the Tabby Got Its Blotches Science Now on 20 September, 2012.

  • Saey, Tina Hesman How the cheetah loses its spots Science News Web edition : Friday, September 21, 2012

  • Diniz, Isis Nóbile Mutação gera padrão em espiral no pelo de gatos e guepardos Revista FAPESP Edição Online 23:33 20 de setembro de 2012

Crédito das imagens:

Imagens dos Guepardos e gatos: © GREG BARSH / RESERVA ANN VAN DYK

Foto de Eduardo Eizirik – Academia Brasileira de Ciências

 

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24 comentários

  • Anônimo 18 de outubro de 2012  

    Certa vez observei um pombo bastante diferenciado dos padrões a que estamos acostumados a ver, algo análogo ao contraste exibido entre os dois guepardos da primeira ilustração do seu post. E, é claro, somos todos testemunhos ¨in loco¨ do que a seleção artificial pode produzir em termos de diferenciação e variabilidade fenotípica como, por exemplo, nos cães. Quem precisa de mais evidências do que essas no que diz respeito à ¨descendência com modificações¨ ?

  • Anônimo 21 de março de 2013  

    Maravilhoso Rodrigo, e vou lhe pedir licença para complementar a mensagem com uma obsevação importante para um eventual leitor leigo como eu, a saber, que essas mutações aos poucos vão sendo introduzidas na população ao longo do espaço e do tempo pela reprodução diferenciada de seus indivíduos e que resultam finalmente nas características fenotípicas diferenciadas na população como um todo relativamente à população original. Seria isto mesmo ? Se não for, peço-lhe que me corriga pensando nesses mesmos leitores, ok ? Grande abraço.

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