Evolução do ciclo reprodutivo multicelular: Lições da evolução experimental!
Embora a biologia evolutiva seja claramente uma ciência histórica – com muitos dos padrões, processos e mecanismos evolutivos sendo inferidos por meio da análise de evidências morfológicas, moleculares comparativas e da análise do registro fóssil, empregando uma série de métodos e estratégias analíticas e estatístico-computacionais – ela também é uma disciplina orientada experimentalmente.
Infelizmente, também é muito pouco conhecido que o emprego de métodos experimentais não restringe-se aos estudos da microevolução, ou seja, aqueles que visam a compreensão exclusiva da dinâmica genética e adaptativa intraespecífica. Existem estratégias experimentais que nos permitem investigar o processo de especiação e mesmo processos e mecanismos associados a padrões macroevolutivos bem mais amplos, como a transição entre o modo de vida unicelular para o multicelular.
Ao longo das décadas, os biólogos evolutivos vêm questionando-se sobre como a multicelularidade teria evoluído, não só uma, mas várias vezes ao longo da evolução dos eucariontes. Esta questão crucial pois foi por meio desta transição para multicelularidade que organismos de maiores dimensões e de maior complexidade puderam evoluir [1, 2].
Neste campo as abordagens experimentais são bem disseminadas e muitos estudos como aqueles realizados algas volvocíneas, com fungos unicelulares, como leveduras, e mesmo bactérias, têm sido levados à cabo e ajudado lançar luz sobre uma série de assuntos relacionados a evolução dos seres multicelulares.
Este capítulo da história evolutiva dos seres vivos criou oportunidades para os sistemas biológicos mais complexos evoluírem, modificando fundamentalmente o que constitui ‘um indivíduo’, algo que antes era sinônimo equivalente de organismo unicelular, mas que, a partir desta transição, passou a também referir-se a sistemas de agregados coesos de várias células, o que inclusive envolveu uma mudança do nível da seleção natural [2].
Esta transição destaca-se, principalmente, quando comparada a outras transições que ocorreram apenas uma vez na história evolutiva (como, por exemplo, o caso da origem de eucariontes), pois a multicelularidade evoluiu repetidamente várias vezes, como exemplificado pelo caso das cianobactérias filamentosas que evoluíram um tipo de multicelularidade simples cerca de 2.5 bilhões de anos atrás, e por outros grupos taxonômicos de organismos multicelulares que surgiram nos últimos 200 milhões de anos, como as algas marrons e as da família Volvocaceae de algas, evoluíram esta condição várias vezes, além, claro, das plantas, fungos e animais [2]
Um dos tópicos que mais intriga os pesquisadores neste campo da investigação científica diz respeito a como teriam evoluído os processos ontogenéticos característicos dos seres multicelulares nos quais células individuais, gametas e zigotos, fazem parte da fase inicial de cada ciclo reprodutivo [1].
Agora, um novo estudo [2], publicado na revista Nature Communications, mostra mais uma vez a importância do emprego da abordagem experimental em estudos sobre questões evolutivas deste porte e o tipo de respostas que eles podem nos fornecer [2]. Um grupo de pesquisadores liderados por William Ratcliff, pós-doutorando da Universidade de Minnesota, sob a supervisão do professor associado Michael Travisano, revelou pistas importantes sobre a evolução dos ciclos de vida nos quais os organismos alternam entre fazes uni e pluricelulares, o que fizeram ao aplicar a abordagem da evolução experimental de mod a transformar uma alga unicelular em um organismo multicelular que se reproduz dispersando células individuais [1].
“Compreender as origens da complexidade biológica é um dos maiores desafios da ciência”, disse Travisano o autor sênio do artigo [1].
O pesquisadores, William C. Ratcliff, Matthew D. Herron, Kathryn Howell, Jennifer T. Pentz, Frank Rosenzweig e Michael Travisano, submeteram populações da alga Chlamydomonas reinhardtii a condições que favorecem a multicelularidade, obtendo como resultado a evolução de um ciclo de vida multicelular em que aglomerados compostos de várias células reproduzem-se por meio de células únicas móveis [2].
Há alguns anos, Travisano e Ratcliff já haviam ganhado as machetes dos sites e de revistas de divulgação científica ao terem evoluído sistemas multicelulares a partir de leveduras (fungos unicelulares) empregando um modelo de seleção artificial semelhante ao empregado neste novo trabalho, por meio da sedimentação/assentamento preferencial. Este estudo anterior já foi alvo de postagens anteriores (“Evolução da multicelularidade em laboratório” e “Evolução da multicelularidade em laboratório II”) e é magnificamente resumido em um vídeo do próprio grupo de cientistas disponível neste site.
Com este novo estudo, entretanto, eles ampliam seu modelo anterior, desta vez usando a alga Chlamydomonas reinhardtii, conseguindo mostrar que a complexidade multicelular, incluindo o desenvolvimento a partir de uma única célula, pode evoluir de maneira muito rápida e, o mais importante, em um tipo de organismo unicelular que apesar de ser aparentado com as algas da família volvocidea, nunca teve um ancestral multicelular, refutando uma crítica comum ao estudos feitos anteriormente com leveduras (ou com outros eucariontes unicelulares de linhagens descendentes de organismos multicelulares) de que o processo teria sido uma mera reversão de potencial latente [1, 2].
Os cientistas cultivaram algas da espécie Chlamydomonas reinhardtii por várias gerações, a cada geração, selecionaram àquelas que assentavam-se mais rapidamente no fundo em um tubo de ensaio cheio de líquido.
Na 46a rodada de transferências, os pesquisadores começaram a observar de maneira mais nítida que em uma das populações submetidas ao experimento de seleção, agregados multicelulares assentava-se no fundo dos tubos de forma mais rápida do que o que ocorria nas outras 19 populações; sendo que, na 73a rodada, a diferença na velocidade de assentamento era facilmente perceptível (veja a figura abaixo). Durante o experimento pôde ser constatado que os agregados multicelulares resultantes eram mantidos juntos por uma matriz extracelular transparente, como pode ser visto em b, podendo conter centenas de células. Os cientistas também foram capazes de seguiram o crescimento de um pequeno agregado no meio líquido por meio da microscopia de lapso temporal, durante 24 horas [2].
O mais importante, entretanto, é que os agregados desenvolveram-se clonalmente por meio de células-filhas únicas, cujas células descendentes “ficavam juntas” após a mitose, como pode ser visto em e e não através da agregação de células individuais que coabitam a mesma câmara de crescimento [2].
Acima em (a) observamos os agregados multicelulares de C. reinhardtii (à esquerda) assentarem mais rapidamente do que a população contemporânea que passou pela seleção por assentamento , mas que permaneceu unicelular (à direita), formando pelotas depois de 20 min de sedimentação (as culturas mostradas têm 72 h de idade). Em (b) as células são mantidas ligadas umas as outras por uma matriz extracelular transparente, indicada pelas setas. Em (c) propágulos móveis desprendem-se dos aglomerados multicelulares (imagem de microscopia de contraste de fase); em (d) está mostrada a forma de crescimento unicelular ancestral. Os autores chamam a atenção que c e d são fenotipicamente idênticas. Em (e) podem ser observadas a formação de agregado a partir de uma única célula, o que ocorre por que elas permanecem unidas após reprodução mitótica. Todas as barras de escala são 25 um [Nature Communications 4: 2742; doi:10.1038/ncomms3742].
Esses agregados multicelulares reproduzem-se, como observado por Ratcliff e Travisano, partindo-se ativamente, liberando células individuais móveis que passam a ser multiplicar formado novos agregados multicelulares [1]. Um ponto enfatizado pelos autores do estudo é que, apesar deste gargalo genético de reprodução por meio de uma única célula durante a ontogenia ser amplamente considerado como uma adaptação para limitação do conflito entre células, seu surgimento muito rápido, nesta transição experimental, sugere que não evoluíram sob este tipo de pressão, ou seja, redução do conflito genético:
“Até agora os biólogos têm pressuposto que esse gargalo de uma única célula evoluiu bem após multicelularidade, como um mecanismo para reduzir os conflitos de interesse entre as células que compõem o organismo“, afirma Ratcliff.[1]
“Em vez disso, descobrimos que ela surgiu ao mesmo tempo que multicelularidade. Isso tem grandes implicações na forma como a complexidade multicelular pode surgir na natureza, porque mostra que essa característica chave que abre a porta à evolução maior complexidade, pode evoluir rapidamente.“, completou o pesquisador. [1]
Isso quer dizer que, em contraste ao anteriormente presumido, os propágulos unicelulares são adaptativos (ou seja, conferem vantagens) mesmo na ausência de conflito intercelular. Como já comentado, tradicionalmente os biólogos evolutivos acreditavam que esta fase unicelular no ciclo de vida de organismos celulares teria evoluído apenas secundariamente, como forma de minimizar as diferenças intragrupais, ou seja, com o processo de reprodução tendo que passar por um gargalo genético de uma única célula (fazendo que todas as células descendentes fosse geneticamente idênticas), resultando na ausência de ‘conflito genético de interesses’ entre as diversas células do agregado, uma vez que estas seriam basicamente clones umas das outras. Contudo, a evolução tão rápida deste modo de reprodução sugeriu aos pesquisadores que uma resposta mais simples e mais geral deveria poder explicar este fenômeno.
Eles desenvolveram, então, um modelo matemático que mostra que este modo de reprodução (passando por uma única célula) seria mais vantajoso do que as alternativas hipotéticas em que os propágulos seriam formados por mais células [1]. O modelo desenvolvido pelos cientistas previa que, a longo prazo, a reprodução por meio de células individuais seria mais bem sucedida mesmo que cada célula individual tivesse, a princípio, menos chances de sobreviverem do que propágulos maiores. O seu maior número mais do que compensaria a maior chance de não sobrevivência individual, maximizando assim a fecundidade dos aglomerados [2].
Assim, de acordo com os pesquisadores, seus resultados mostram que o gargalo unicelular, uma característica essencial para a evolução de complexidade multicelular, pode surgir rapidamente através da co-opção da forma unicelular ancestral para fins de maximização da fecundidade direta [2]. Não há necessidade disso ocorrer mais tarde secundariamente, como forma de resolver conflitos genéticos intra-grupais.
Na figura ao lado [Nature Communications 4: 2742; doi:10.1038/ncomms3742] é mostrado a evolução do ciclo celular de C. reinhardtii. Nela podemos observar que pouco depois da seleção para assentamento e transferência para um novo meio de cultura, propágulos unicelulares móveis dispersam-se para longe do agregado principal, perdendo, então, sua mobilidade e desenvolvendo-se em grupos antes que ocorra a próxima rodada de seleção por sedimentação. Em (b) podem ser vistos os resultados do modelo que prevê que os agregados menores devem experimentar sobrevivência reduzida, até um tamanho de cerca 70 células (sobrevivência é garantida por grupos maiores). Em (c) são mostrados o número de descendentes sobreviventes de um aglomerado de 64 células que foi ajustado para reproduzir como uma função do tamanho dos propágulos e do número de duplicações a que os propágulos são submetidos antes da seleção por assentamento (em azul escuro: 1, em vermelho: 2, em verde: 3 , em roxo: 4, em azul claro: 5, em laranja: 6). Apesar da redução da sobrevivência de grupos menores durante seleção por assentamento, propágulos unicelulares maximizam o número de descendentes sobreviventes que um agregado pode produzir [2].
Uma inversão de expectativas e um bônus ‘pré-adaptativo’:
É importante enfatizar que, uma vez evoluído o gargalo de uma única célula, a variação genética automaticamente passa a ser eficientemente segregada entre indivíduos multicelulares, limitando a possibilidade de conflito genético que poderia surgir em virtude da diversidade genética intra-agregados. O bônus desta situação é que, ao reduzir-se a possibilidade de conflito, a evolução das características normalmente sensíveis à exploração social (por exemplo, divisão celular de trabalho) passa a ser favorecida [2]. Este gargalo unicelular, portanto, garante que todas as células que constituem um único indivíduo multicelular compartilham ‘um mesmo meio ambiente e uma história de desenvolvimento comum’ [2].
A partir destas considerações, os autores do estudo propõem que os seres multicelulares que reproduzem-se por meio de uma fase unicelular, ao invés de terem evoluído esta característica inicialmente em virtude da pressão pela minimização de conflitos genéticos, teriam evoluído bem precocemente o gargalo genético unicelular como uma adaptação para maximizar o sucesso reprodutivo direto, porém, esta característica teve como subproduto a criação de linhagens ‘pré-adaptadas’ para a resolução de conflitos intercelulares intragrupais, ou seja, surgindo como um efeito colateral fortuito [2]. De acordo, com os autores esses fatores teriam facilitado a transição da seleção ao nível unicelular para o nível multicelular e, desta maneira, teriam permitido a evolução subsequente de complexidade multicelular [2].
Infelizmente, conhecemos muito pouco sobre a origem desses gargalos reprodutivos envolvendo uma única célula em grupos taxonômicos não-extintos. Daí a importância de estudos como este que mostram, claramente, como um gargalo unicelular deste tipo pode evoluir já logo durante as primeiras fases de uma transição evolutiva como essa, conferindo vantagens diretas, mesmo na ausência de conflitos genéticos, maximizando o sucesso reprodutivo do indivíduo multicelular nascente.
Os pesquisadores responsáveis pelo estudo esperam, por meio de uma colaboração já em andamento com outros pesquisadores (Matthew Herron e Frank Rosenzweig, da Universidade de Montana), descobrir quais genes estão por trás desta transição para multicelularidade, além de pretenderem se valer desta mesma abordagem de evolução experimental para tentarem produzir ainda maior complexidade multicelular [1].
“Neste experimento temos reordenadas um dos primeiros passos para a origem da multicelularidade mostrando que dois passos evolutivos importantes podem ocorrer muito mais rapidamente do que o previsto anteriormente. Olhando para a frente, esperamos investigar diretamente as origens da complexidade do desenvolvimento, ou como jovens se tornarem adultos, usando os organismos multicelulares que evoluíram no laboratório.” disse Travisano [1]
Estes resultados somam-se ao dos, já mencionados, trabalhos anteriores e, de acordo com a equipe de cientistas, indicam que a complexidade multicelular pode evoluir mais rapidamente do que pensávamos anteriormente [2], um resultado por si só notável e que sugere uma reorientação da questão:
Então por que não teria ocorrido ainda mais vezes ao longo da história evolutiva da vida em nosso planeta?
Estamos longe de ter uma compreensão realmente satisfatória dessas transições, mas estudos como os de Ratcliff, Travisano e seus vários colaboradores mostram como modelos experimentais podem ajudar muito neste empreitada, iluminando etapas extremamente importantes das grandes transições macroevolutivas.
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Referências:
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U of M scientists solve major piece in the origin of biological complexity U M News 1º de janeiro de 2003.
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Ratcliff, William C., Herron, Matthew D., Howell, Kathryn, Pentz, Jennifer T., Rosenzweig, Frank, Travisano, Michael. Experimental evolution of an alternating uni- and multicellular life cycle in Chlamydomonas reinhardtii. Nature Communications, 2013; 4 DOI: 10.1038/ncomms3742
Muito legal o experimento e as discusões dos autores. Quanto ao gargalo genético de uma célula evoluir junto com a multicelularidade, achei extremamente razoável. Foi um experimento simples e elegante com fortes evidências e ótima discussão. Gostei muito. Ao fim do texto os pesquisadores se dizem interessados na genética do processo. Pois eu os indicaria que estudassem os eventos epigenéticos também. Tenho suspeita que nesta transição para a multicelularidade a epigenética tenha contribuído bastante, afinal são todas as células clones e memórias epigenéticas são fortemente necessárias para o desenvolvimento do organismo multicelular e para a diferenciação celular. Sendo a epigenética importante no desenvolvimento do corpo multicelular creio que também deve ter sido muito importante na evolução da multicelularidade.
Muito legal o experimento e as discusões dos autores. Quanto ao gargalo genético de uma célula evoluir junto com a multicelularidade, achei extremamente razoável. Foi um experimento simples e elegante com fortes evidências e ótima discussão. Gostei muito. Ao fim do texto os pesquisadores se dizem interessados na genética do processo. Pois eu os indicaria que estudassem os eventos epigenéticos também. Tenho suspeita que nesta transição para a multicelularidade a epigenética tenha contribuído bastante, afinal são todas as células clones e memórias epigenéticas são fortemente necessárias para o desenvolvimento do organismo multicelular e para a diferenciação celular. Sendo a epigenética importante no desenvolvimento do corpo multicelular creio que também deve ter sido muito importante na evolução da multicelularidade.
Ah, que interessante! Obrigado pelas dicas, Rodrigo e Francisco! São úteis as suas orientações!