Assinaturas moleculares da seleção natural nos primeiros americanos.

A seleção natural é um dos mais importantes fatores evolutivos. Juntamente com as mutações (a fonte derradeira da variabilidade genética) e a deriva genética aleatória, a seleção é um do motores da evolução dos seres vivos. Ela tem um papel crucial na evolução de adaptações bioquímicas, fisiológicas, morfológicas e comportamentais em resposta a mudanças no clima, na dieta e nas doenças etc, inclusive em seres humanos. Infelizmente, não é muito fácil estudá-la, principalmente quando sua ação aconteceu em um passado remoto e temos apenas a variação genética atual como evidência. Felizmente, é possível utilizar técnicas de análise genética atuais para identificar variantes genéticas que existem em diferentes frequências em populações distintas, vasculhando-as em busca de ‘assinaturas moleculares’ da seleção natural. Isso é feito com a ajuda de métodos estatístico-computacionais muito poderosos que nos permitem discernir tais assinaturas comparando-se ao que esperaríamos encontrar caso elas fossem fruto de evolução neutral, ou seja, em virtude dos efeitos da deriva genética em variantes que não conferiam nem vantagens ou desvantagens adaptativas apreciáveis (veja, por exemplo, ‘A evolução do receptor TAS2R38 em primatas: O amargor da seleção natural‘ e ‘Marcas da adaptação: A teoria neutra e as ssinaturas moleculares da seleção natural‘).

Há alguns anos haviam sido identificadas certos tipos de variantes genéticas (SNPs, do inglês ‘single nucleotide polymorphisms’) muito comuns em populações inuítes, mas raras em outras populações, que exibiam tais ‘assinaturas moleculares‘, sugerindo que os genes associados a essas variantes haviam sido selecionados nessas populações, no passado, em virtude de alguma vantagem conferida aos seus portadores nesses ambientes extremos. Agora, um grupo de cientistas brasileiros investigou variantes genéticas similares em populações nativas americanas que habitam diferentes regiões ecológicas, e descobriram variantes específicas em dois cromossomos que são comuns a todas essas populações estudadas (53) e estão associadas aos mesmos tipos de genes que parecem ter sido alvos da seleção natural nas populações do Ártico: os genes de enzimas chamadas FADS (‘Fat Acid Desaturases’), isto é Dessaturases de ácidos graxos. O artigo com este estudo foi publicado este mês na revista PNAS e indica, segundo seus autores, um único e forte evento adaptativo que teria ocorrido na Beríngia, cerca de 18 mil anos atrás -isto é, antes da grande expansão pelo continente Americano e Groenlândia. Como é explicado no abstract:

Quando os seres humanos se deslocaram da Ásia para as Américas, mais de 18.000 anos atrás, eventualmente, povoando o Novo Mundo, eles encontraram um novo ambiente com condições climáticas extremas e recursos dietéticos distintos. Essas pressões ambientais e dietéticas podem ter levado a casos de adaptação genética com o potencial de influenciar a variação fenotípica em populações indígenas nativas. Um exemplo de tal evento é a evolução dos genes das dessaturases de ácidos graxos (FADS), que foram apresentados como portadores de sinais de seleção positiva em populações inuítes devido à adaptação ao clima frio do Árctico da Groenlândia e a uma dieta rica em proteínas. Como havia evidências de variação intercontinental nessa região genética, com indicações de seleção positiva para suas variantes, decidimos comparar os achados inuítes com outros dados de nativos americanos. Aqui, usamos várias linhas de evidência para mostrar que o sinal de seleção positiva para FADS não está restrito ao Ártico, mas, ao invés disso, é amplamente observado em todas as Américas. A assinatura compartilhada de seleção entre as populações que vivem em uma gama tão diversificada de ambientes é provavelmente devida a um exemplo único e forte de adaptação local que teve lugar na população ancestral comum antes de sua entrada no Novo Mundo. Esses primeiros americanos povoaram todo o continente e espalharam essa variante adaptativa através de um conjunto diversificado de ambientes.”

A ideia é relativamente simples. Nesses ambientes remotos e extremos, com baixas temperaturas e com recursos escassos, os indivíduos que conseguissem metabolizar melhor as gorduras saturadas disponíveis nas fontes de alimentos mais abundantes, teriam uma clara vantagem, tendo uma maior chance de sobrevivência e, assim, de deixarem mais descendentes. O maior sucesso reprodutivo desses indivíduos em relação aos demais faria com que esses genes mutantes (e as variantes genéticas associadas a eles) aumentassem de frequência na população, tornando-se cada vez mais comuns com o passar das gerações. Assim, mesmo que as populações descendentes, ao espalharem-se pelas Américas, não tivessem mais vantagens adaptativas por causa de mudanças para outros ambientes mais prósperos, ainda assim, como tais variantes não implicavam em nenhuma desvantagem, elas tenderiam a ser mantidas, como parte de um efeito fundador.

Abaixo temos um vídeo em que a pesquisadora Tábita Hünemeier explica o trabalho realizado por ela e vários colaboradores:

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Referência:

  • Amorim CEG, Nunes K, Meyer D, Comas D, Bortolini MC, Salzano FM, Hünemeier T. Genetic signature of natural selection in first Americans. Proc Natl Acad Sci U S A. 2017 Feb 28;114(9):2195-2199. doi: 10.1073/pnas.1620541114.

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