Sendo humano: linguagem: uma história social das palavras

por Eörs Szathmáry¹ & Szabolcs Számadó¹

1. Eörs Szathmáry e Szabolcs Számadó são do Instituto de Biologia da Universidade Eötvös Loránd, Budapeste, Hungria. E.S. é também do Collegium Budapest e do Centro Parmênides para o Estudo do Pensamento, Munique, Alemanha.

A linguagem evoluiu como parte de um grupo de características exclusivamente humanas, cuja interdependência demanda uma abordagem integrada de estudo das funções cerebrais, argumentam Eörs Szathmáry e Szabolcs Számadó.

Nossa habilidade de nos comunicar usando a língua é frequentemente citada como o elemento que nos separa dos outros animais. Embora a língua não seja exclusivamente humana em todos os aspectos – cães e grandes macacos africanos, por exemplo, podem aprender o significado de muitas palavras – ela quase certamente merece um status especial. Isso porque, mais do que qualquer outro atributo, a linguagem foi provavelmente imprescindível no desenvolvimento do conjunto de características que fazem dos humanos seres únicos.

A evolução da linguagem provavelmente ocorreu em sinergia com a evolução de muitas das outras características que definem o humano, como a habilidade de fabricar ferramentas ou uma forte propensão a aprender. Se isso é verdade, é uma sugestão de que não deveríamos tentar entender um atributo caracteristicamente humano isolado dos outros. Além disso, em vez de o cérebro ser ser um apanhado de módulos separados, cada um dedicado a uma capacidade específica, humanos provavelmente têm uma arquitetura cognitiva complexa que é altamente interconectada em níveis múltiplos.

A comunicação refinada teria ajudado os humanos no mínimo desde o Pleistoceno tardio, cerca de 120 mil anos atrás. A este ponto, os humanos já eram proficientes em grandes caçadas. De fato, as vantagens que grupos de caçadores teriam com a comunicação melhor podem ter ajudado a guiar a evolução da linguagem no princípio. Mas a linguagem foi quase certamente co-optada para uma gama de atividades mais tarde. A diversidade de comportamentos que apareceram durante o Pleistoceno tardio, incluindo pesca, uso de pigmentos, e manufatura de ferramentas e armas, e também a taxa em que emergiram, sugerem que naquele tempo os humanos adquiriram o conjunto completo de habilidades, e podiam também se comunicar usando linguagem complexa.
Muitos desses desenvolvimentos tiveram um contexto social claro: fazer pontas de lança ou usar pigmentos, por exemplo, pode ter dependido do aprendizado a partir de outros membros do grupo. Estudos com chimpanzés mostram que, sem a linguagem, o conhecimento em tarefas básicas de uso de ferramentas, tais como usar pedras como martelo e bigorna para quebrar uma noz, se espalha de forma altamente ineficiente.

“A evolução cultural nos mostrou que uma palavra pode valer mil genes.”

De fato, a maior parte do nosso maquinário gramático nos permite engajar nos tipos de interação social dos quais depende o aumento na frequência dessas tarefas. Conseguimos combinar frases sobre quem fez o quê a quem, quem fará o quê a quem, e assim por diante, de um modo rápido, fluente e em grande parte inconsciente. Isso apóia a noção de que a linguagem evoluiu num contexto altamente social e potencialmente cooperativo, envolvendo e demandando ao menos três atributos: atenção compartilhada, intencionalidade compartilhada e teoria da mente. Em outras palavras, os indivíduos teriam sido capazes de prestar atenção à mesma cena ou objeto que os outros; se atentarem de que deviam agir como um grupo para alcançar uma meta comum; e atribuir estados mentais aos outros tão bem quanto a si mesmos.

Singularmente humano

A provável emergência da linguagem moderna no contexto dessas outras capacidades indica a evolução de um conjunto singularmente humano de características. Nós mal começamos a perscrutar a arquitetura dessa ‘série’, mas há pouco para se sugerir que cada capacidade evoluiu uma por uma, ou que cada uma poderia ser perdida independentemente sem prejudicar ao menos alguma outra característica no conjunto.

Tomemos a cooperação. Em humanos, práticas como a fidelidade a um parceiro sexual e o compartilhamento de comida suprimem a competição dentro dos grupos. Estes podem ser agregados mais facilmente com a linguagem, porque linguagem quer dizer que pode haver concordância em detalhes e que os conflitos podem se resolver. Caçar em bandos é mais eficiente se as caças podem ser planejadas e os planos comunicados. E ambas cooperação e comunicação com o uso da linguagem são mais fáceis se as pessoas podem focar atenção na mesma coisa, saber que os outros têm estados mentais que podem diferir de seus próprios, e perceber que precisam agir em grupo.

Além disso, algumas das características na série demandam tipos bem similares de operação. A linguagem não é crítica para fazer ferramentas; os passos envolvidos podem se espalhar por ensinamento não-verbal e imitação, ou aprendidos através da experiência individual. Mas, do mesmo modo que a sintaxe, a ‘gramática da ação’ de manipulações complexas envolve o processamento hierárquico. Quando fabricamos uma ferramenta, bem como quando formamos uma frase, a construímos a partir de unidades mais simples.

Desenvolvimento conjunto

Evidências que corroboram uma evolução entrelaçada dessas características vêm, por exemplo, de experimentos que mostram que pessoas que brigam com a gramática também têm dificuldades ao desenhar estruturas hierárquicas, tais como combinações dispostas em camadas.

Além disso, os registros de atividade cerebral sugerem que as mesmas estruturas cognitivas estão envolvidas no processamento linguístico e manufatura de ferramentas. Num estudo recente, pediu-se a um grupo de pessoas que fizessem um tipo antigo específico de machado de pedra, que precisava de tipos diferente de trabalhos feitos numa ordem específica. Imagens cerebrais tiradas durante o processo revelaram a ativação de uma região no hemisfério cerebral direito. Esta região é análoga a outra no hemisfério esquerdo chamada área de Broca [pronuncia-se “brocá”], que é envolvida na linguagem. A área do hemisfério direito é também conhecida por participar de funções de processamento de linguagem quando o hemisfério esquerdo é lesado numa idade jovem.

Estabelecer a forma como os genes subjacentes a vários traços interagem pode igualmente dar base para a idéia de que os traços humanos são intimamente inter-relacionados. Obviamente, os genes não codificam para a linguagem ou para a capacidade de fazer ferramentas. Eles codificam para proteínas e moléculas de RNA que desempenham papéis estruturais, funcionais e regulatórios. Tomemos o gene FOXP2. Quando mutado, ele perturba o controle motor da boca e da face, e a forma das palavras, tais como as do pretérito dos verbos regulares do inglês. O FOXP2 é expressado em outros vertebrados além dos humanos, e em outros tecidos humanos além do cérebro. Em aves e mamíferos, ele parece estar envolvido no desenvolvimento geral da circuitaria neural que garante a descarga rápida e contínua de movimentos sequenciais.

Que os genes envolvidos numa característica cognitiva afetem outras características, e tenham efeitos que interagem entre si, é o normal para o comportamento complexo. Mas o resultado é provável que seja uma rede de efeitos interagentes, em que a evolução em uma característica monta um atributo já modificado como um subproduto da seleção atuando em outra. A natureza das redes de genes subjacentes ao comportamento complexo sugere que muitos genes teriam sido selecionados porque melhoram a proficiência numa variedade de tarefas – em domínios sociais, linguísticos e do uso de ferramentas.

A análise da possibilidade de os genes envolvidos em, digamos, cooperação, influenciarem outros traços na série é uma estimulante trilha para pesquisas. Como um primeiro passo, seria útil esclarecer as funções dos hormônios oxitocina e arginina-vasopressina. Certas variantes genéticas dos receptores desses hormônios foram ligadas ao autismo, um transtorno cerebral que dificulta a interação social por prejudicar o desenvolvimento da linguagem e a capacidade de prestar atenção à mesma coisa que outras pessoas. Mudanças genéticas no gene do receptor de vasopressina também são correlatas ao modo como as pessoas reservam fundos para outros jogadores num jogo de economia experimental que investigou o altruísmo.

Cortando o canivete

A interdependência funcional de traços cognitivos caracteristicamente humanos, mais as redes interligadas de genes subjacentes apontam para uma arquitetura cognitiva complexa. As distintas redes genéticas e regiões cerebrais que subjazem a cada traço podem ser comparadas às torres separadas de um castelo, que são conectadas por salas comuns e corredores. Essa imagem poderia potencialmente substituir a tão usada visão “canivete-suíço” do cérebro. Defendidas há tempos na psicologia evolutiva, essas propostas que separam os módulos cognitivos desempenham funções específicas. Várias observações que estão em contradição com o modelo do canivete poderiam ser explicadas pela visão mais holística do castelo.

Por exemplo, como mostrado por pessoas com deficiências de sintaxe desenhando pobremente estruturas hierárquicas, as capacidades podem ser sinergísticas, onde a proficiência em um domínio significa proficiência em outro. Além disso, a perturbação em um elemento específico de uma característica é frequentemente acompanhada por um problema em outra capacidade. Por exemplo, pessoas que têm problemas em formular frases gramaticais tendem a se sair pior que a média em testes de QI por causa de uma memória de curto prazo pobre. Isso é consistente com a visão de que os genes que afetam uma combinação de capacidades cognitivas são muito mais comuns que genes que quando prejudicados afetem uma única característica.

O transtorno conhecido como prejuízo específico de linguagem [specific language impairment] também impõe problemas à perspectiva de canivete suíço. Como o nome sugere, considera-se geralmente que essa condição afeta apenas a linguagem. O QI não-verbal é deixado aparentemente intacto. Mas, embora na faixa ‘normal’, crianças com essa síndrome tendem a mostrar pontos de QI significativamente inferiores aos de seus irmãos. E até portadores adultos têm problemas frequentes em capacidades além da linguagem, por exemplo, no processamento auditivo e habilidades motoras.

Juntas, essas observações sugerem que se a imagem modular de canivete suíço do cérebro é de alguma forma aplicável, pode sê-lo apenas ao resultado final do desenvolvimento. As associações de regiões cerebrais específicas com certas características são claramente evidentes, mas estas devem ser avaliadas em diferentes estágios no desenvolvimento e investigadas como parte de uma rede multifacetada de interações. Uma abordagem mais holística é provável que revele ‘capacidades intermediárias’ que emergiram como um resultado da seleção evolutiva agindo sobre múltiplas características. O raciocínio de analogia – a capacidade para transferir informação de um objeto para outro e deduzir algo sobre o segundo objeto a partir do primeiro – pode se encaixar nessa categoria, como crítico no uso e na fabricação de ferramentas, mas provavelmente também na abertura de possibilidades para a linguagem complexa.

As evidências sugerem fortemente que a linguagem evoluiu até sua forma moderna embutida num grupo de características sinergísticas. Entretanto, a linguagem quase certamente tem um status especial sobre as outras características no conjunto. Mais que qualquer outro atributo, a linguagem provavelmente desempenhou um papel-chave em guiar as evoluções cultural e genética humanas.

A linguagem nos permite passar adiante informação cultural mais eficazmente que qualquer outra espécie. Foi preciso cerca de 40 milhões de anos, por exemplo, para cinco sistemas de agricultura aparecerem em formigas cultivadoras de fungo. A agricultura humana se diversificou numa escala gigantesca em apenas alguns poucos milhares de anos. A linguagem facilita para as pessoas a vida em grandes grupos e ajuda a impelir a evolução cultural cumulativa – a acumulação de sistemas de crença complexos, e o estabelecimento de leis e teorias ao longo de várias gerações. Ela nos permitiu construir um mundo social e físico altamente alterado, que por sua vez moldou nossa evolução. A evolução cultural nos mostrou que uma palavra pode valer mil genes. A linguagem foi a chave da inovação evolutiva porque trabalhou sobre pré-requisitos cognitivos importantes e assim abriu a porta para muita coisa.
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Nature 456, 40-41 (6 de novembro de 2008) Publicado online em 5 de novembro de 2008

LEITURA COMPLEMENTAR

Hurford, J. The origins of meaning (Oxford University Press; 2007).

Karmiloff-Smith, A. Cogn. Affect. Behav. Neurosci. 6, 9–17 (2006).

Fisher, S. E. & Marcus, G. F. Nature Rev. Genet. 7, 9–20 (2006).

Számadó, S. & Szathmáry, E. Trends Ecol. Evol. 21, 555–561 (2006).

Tomasello, M. & Carpenter, M. Dev. Sci. 10, 121–125 (2007).

Leia também

3 comentários

  • Anônimo 30 de novembro de 2008  

    A língua e a natureza humana

    Lendo mais este excelente artigo com que o Eli nos presenteou aqui, acabei me lembrando de Pinker em seu último livro lançado:

    A língua é um meio público e digital, e como tal oculta aspectos de nossa experiência que sejam particulares e inexatos: nossas sensações, nossas emoções, nossas indiretas e intuições, e a coreografia de nossos corpos. De qualquer jeito, somos animais sociáveis que gostam de ensinar, fofocar e dar ordens uns aos outros, e são raros os aspectos de nossa vida que não são afetados por nossas relações com os outros. No papel de canal pelo qual boa parte dessas informações passa, a língua está adaptada a cada característica de nossa experiência que seja compartilhável, e grande parte da condição humana se encaixa nesse escopo.

    (…)

    Nenhum ser humano é uma ilha. Os seres humanos equipam sua mente com artifícios mentais, como nomes e outros tipos de palavras, que são produtos da mente de outros seres humanos. Algumas dessas criações são onipresentes em determinada sociedade de determinada época, e se tomadas coletivamente compõem o que chamamos de cultura, sendo que uma parte dela é sua língua. Embora uma criação mental como uma palavra possa ser onipresente entre as pessoas de uma sociedade, ela necessariamente se originou na cabeça de um inventor, e seu destino depende tanto de seu apelo em relação a outras mentes como das redes de influência que as conectam. Cada ser humano é ao mesmo tempo produtor e consumidor dessas criações (…).

    Os seres humanos não só têm idéias como as encharcam de emoções. Temem divindades, suas partes e suas posses, e os reinos sobrenaturais controlados por elas. Têm pavor de doenças, da morte e dos infortúnios. Têm repugnância por secreções corporais. Têm um interesse obsessivo pela sexualidade, em todas as suas variedades. Abominam inimigos, traidores e povos subalternos. Por mais desagradáveis que esses pensamentos sejam, as pessoas os impõem aos outros, às vezes para intimidá-los ou denegri-los, às vezes para chamar a atenção deles, às vezes para mostrar que são capazes de suportar os pensamentos por vontade própria. No transcorrer do dia-a-dia, os seres humanos reagem emocionalmente aos seus altos e baixos, em especial às frustrações e aos reveses, e às vezes propagandeiam essas reações para as outras pessoas.

    Os seres humanos são melindrosos no que diz respeito a suas relações. Mantêm “aparências” que lhes permitem reivindicar posições em negociações e conflitos. São sensíveis a sua hierarquia social, e também à solidariedade e empatia que têm para com outrem. Com alguns de seus iguais — normalmente parentes, amantes e amigos — os seres humanos compartilham recursos, fazem favores e cultivam sentimentos de empatia e intimidade, envoltos pela intuição de que todos são a mesma carne. Com outras pessoas, lutam pela dominação, ou para alardear seu status, o que lhes garante o direito de exercer poder ou influência. Com outros, ainda, negociam bens e serviços em trocas na mesma moeda, ou dividem coisas e responsabilidades em porções iguais.

    As pessoas investem seus relacionamentos de coloração moral. Ficam constrangidas quando rompem a lógica do relacionamento com uma ação inadvertida, e sentem desdém por quem faz isso de forma deliberada. Os relacionamentos humanos são ratificados pelo conhecimento mútuo, em que as pessoas sabem que as outras sabem que elas sabem que o relacionamento é de determinado tipo. Isso torna os seres humanos especialmente sensíveis ao reconhecimento público de um ato que viole a lógica do relacionamento, como uma ameaça, uma oferta, um pedido ou uma ofensa. Mesmo assim, os seres humanos se arriscam a fazer esse tipo de rompimento, às vezes para continuar vivendo, às vezes para renegociar um relacionamento. Em conseqüência disso, adotam a hipocrisia e o tabu, programados para preservar o conhecimento mútuo que mantém um relacionamento em patamares iguais, mesmo quando negociam coisas que não são coerentes com essa lógica. (PINKER, Steven. Do que é feito o pensamento: A língua como janela para a natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, págs. 481-487.)

    Enfim, a língua é, na metáfora de Pinker, uma janela pela qual podemos contemplar muito da natureza humana. Não apenas aquilo que ela tem de admirável, mas também suas fraquezas, seus pontos falhos.

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