Charada: o que não vive, mas evolui? Resposta: príons.

Lembra-se do mal da vaca louca, que há poucos anos custou bilhões à Europa em vacas abatidas e incineradas?

O mal da vaca louca não é causado por bactérias, nem por vírus, nem por qualquer outro patógeno maior que estes. É causado por uma ‘coisa’ que os biólogos nem sabem dizer se tem vida ou não: uma proteína que é produzida pelo próprio cérebro da vaca, que por alguma razão muda sua forma, e depois causa a mesma mudança de forma de outras proteínas idênticas quanto à sequência de aminoácidos. Essa mudança de forma dessas proteínas se espalha, e essas proteínas mal dobradas se acumulam nos neurônios, matando-os e deixando o cérebro com uma aparência de esponja.

Por isso o nome técnico do mal da vaca louca é encefalopatia espongiforme bovina.

E esta proteína mal dobrada – incapaz de se reproduzir sozinha, limitando sua reprodução meramente a passar adiante sua informação física de dobramento – é chamada de príon. Estes príons se espalharam de vaca para vaca porque a ração utilizada naqueles casos continham restos de vaca – obrigando as vacas ao canibalismo.

Existem príons similares em outros animais, que causam doenças espongiformes similares em seus cérebros. As ovelhas também ficam “loucas” pela ação de um príon, mas a doença é chamada “scrapie”.

Nas décadas de 50 e 60 do século passado, descobriu-se uma encefalopatia espongiforme humana, também causada por príon, chamada “Kuru”. Era transmitida por canibalismo ritual, e ocorria nas crianças e mulheres da Papua Nova Guiné que comiam o cérebro de entes queridos mortos, num ritual de luto. (Uns vestem preto, outros contratam carpideiras, outros comem cérebros: é a diversidade da cultura humana.)

Como proteínas que são, os príons não têm RNA nem DNA. Ou seja, não possuem nem material genético. Ainda assim, se comportam como parasitas, e podem até evoluir! É o que descobriram recentemente cientistas do Instituto de Pesquisa Scripps, divulgado em publicação científica (Science Express) em 31 de dezembro de 2009.

ResearchBlogging.orgO novo estudo mostra que, mesmo no nível de proteína, os príons podem sofrer mutações, e estas mutações possuem diferentes capacidades de propagação do mal dobramento, ou seja, sofrem seleção natural. E esta seleção natural fora do nível do gene pode até conferir resistência a fármacos para os príons (coisa que até então só era conhecida entre vírus e bactérias), o que indica que a proteína normal do príon (que é produzida naturalmente pelo corpo) pode ser um alvo mais apropriado para o tratamento do que sua forma transformada.

“Em vírus, a mutação é ligada a mudanças na sequência do ácido nucléico [DNA ou RNA], o que leva à resistência. Agora, essa adaptabilidade foi a outro nível – para príons e dobramento de proteínas – e fica claro que ácidos nucléicos não são necessários para acontecer o processo da evolução”, diz Charles Weissman, que chefiou a pesquisa.

Todas as cerca de 20 doenças em humanos e animais causadas por príons (incluindo o Kuru, também conhecido como Doença de Creutzfeldt-Jakob) são fatais e sem tratamento conhecido.

“Quando você transmite príons de ovelhas para camundongos, eles se tornam mais virulentos com o tempo. Agora nós sabemos que os príons anormais se replicam, e criam variantes, talvez inicialmente num nível baixo. Mas uma vez que são transferidos para um novo hospedeiro, a seleção natural eventualmente escolherá as variantes mais virulentas e agressivas”, acrescenta Weissman.

Como se adaptam os príons?

No começo do estudo, os pesquisadores notaram que havia diferentes príons adaptados a células cerebrais e a células de cultura em laboratório, e que em cada ambiente uma forma adaptada sobrepujava a outra, o tipo de competição que Darwin descrevia em seres vivos.

Então, os cientistas testaram os príons com uma droga encontrada em plantas e fungos, capaz de inibir algumas linhagens de príons, chamada swainsonina ou swa. Em culturas em que a droga estava presente, foram encontrados príons que evoluíram e se adaptaram a esse novo ambiente. Quando a droga foi retirada, a linhagem de príons suscetível à sua ação voltou a predominar na população.

15 anos atrás, Weissman e seus colaboradores mostraram que camundongos que não possuem a proteína normal aproveitada pela virulência dos príons se desenvolvem normalmente e são, é claro, resistentes aos príons, o que indica que futuros tratamentos deverão atacar a proteína normal, e não a proteína dobrada em príon.

Weissman julga que os príons não são seres vivos, mas confirmam o conceito de “quase-espécie”, cunhado pelo biofísico Manfred Eigen, Nobel de Química em 1967. Uma quase-espécie é definida como uma população complexa de entidades diversas e correlatas capaz de se perpetuar ao longo do tempo. Há 30 anos Weissman havia confirmado este conceito usando vírus bacteriófagos.

Referência científica

Li, J., Browning, S., Mahal, S., Oelschlegel, A., & Weissmann, C. (2009). Darwinian Evolution of Prions in Cell Culture Science DOI: 10.1126/science.1183218

Crédito da imagem

Micrografia eletrônica de transmissão de fibras do scrapie, colorida artificialmente. EM UNIT, VLA / SCIENCE PHOTO LIBRARY

Entrevista adaptada de Science Daily.

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5 comentários

  • Anônimo 7 de janeiro de 2010  

    Ops, Eli, quando li o título pensei estar diante de uma nova partícula elementar encontrada pelos físicos do LHC. Bem, isto é muito interessante ( já li alguma coisa a respeito ) mas estou tentando imaginar como estas proteinas poderiam estar sujeitas à um processo de ¨evolução¨ do tipo darwiniano. É certo que as proteinas normais ( que chamarei de agora em diante de Pré-Príons ) conseguem ¨transmitir¨ suas mutações ( que chamarei de agora em diante de G-Mutações ( G de Geométricas, supondo que não há modificações na sequência de aminoácidos)) para outros pré-príons , mas ( e que grande ¨mas¨) o fazem utilizando-se de um mecanismo semelhante ao ¨efeito dominó¨ sobre uma população de pré-príons já existente no ¨meio ambiente¨do cérebro. Uma possível seleção natural sobre uma população de pré-príons estaria provavelmente atuando pela via indireta de eliminação ou mecanismos de desativação quase total dos genes ou dos processos metabólicos que participam da fabricação dessas proteinas. Nessa ordem de idéias posso imaginar o mundo pré-biótico constituido quase que exclusivamente de macromoléculas com altas taxas de g-mutaçoes e que foram rapidamente eliminadas pela seleção natural darwiniana em detrimento de outras macro-moléculas com altas taxas de estabilidade estrutural. Sim, os pré-príons existem, mas são raros! Eis aí alguns dos motivos pelos quais achei que a interpretação de Weissmann e colaboradores foi um tanto forçada , mas de qualquer forma o fato em si mesmo é de grande relevância e potencialmente rico em informações novas e sugestivas.Parabéns pelo tema.

  • Rodrigo Véras 21 de junho de 2012  

    Um videozinho sobre a evolução do besouro citado no texto:

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