O que faz de um dinossauro um dinossauro? [Tradução]

A pergunta pode soar como … hmmm … “duh”, mas chega ao coração de como categorizamos e definimos a natureza.

O que é um dinossauro, afinal? A resposta está na árvore evolutiva. (Marcio Silva/Alamy)

Por Brian Switek, 8 de dezembro de 2017

Pergunte a qualquer criança de 8 anos de idade o que é um dinossauro e ela recitará avidamente sua celebridade pré-histórica favorita. E quando nos tornamos adultos, nos sentimos totalmente familiarizados com os dinossauros; eles são os rockstars da pré-história, mais famosos e duradouros que qualquer supercelebridade de Hollywood. Eles se destacam em nossa imaginação como seres grandes, cheios de dentes e, acima de tudo, animais bizarros que têm ocupado um lugar na Terra nos últimos 235 milhões de anos. Mas o que é realmente um dinossauro?

Para responder a isso, precisamos voltar no tempo (não, não tão longe). Muito antes de os cientistas serem chamados cientistas, pessoas de todo o mundo se perguntavam quem deixava todos aqueles ossos e pegadas antigas. Em Flag Point, no sul de Utah, por exemplo, os nativos americanos esculpiram pictogramas de pegadas de três dedos, inspirados por pegadas de dinossauros nas rochas jurássicas ao redor. E mesmo quando o naturalista William Buckland batizou o Megalossauro, o primeiro dinossauro a ser nomeado, em 1824, os primeiros geólogos estavam no escuro em relação a como esses animais eram. Megalossauro e outras descobertas iniciais, como o Iguanodon, foram encaradas como basicamente crocodilos e iguanas por mais compridos que um ônibus de linha.

Entra na história o paleontólogo e biólogo britânico Richard Owen, um superstar da anatomia do século XIX, famoso por sua atitude rabugenta. Enquanto observava o que seus contemporâneos estavam descobrindo, Owen notou algo estranho sobre alguns dos répteis petrificados que saíam das antigas rochas do continente Europeu. “Muitos novos répteis fósseis foram encontrados no início do século 19“, diz o curador de dinossauros do Smithsonian, Matthew Carrano, “mas não ficou claro o que eles eram, ou se eles eram todos relacionados uns aos outros.” Owen começou a tentar identificar esse relacionamento misterioso.

Owen concluiu que o Megalossauro, o Iguanodon e uma terceira espécie chamada Hylaeosaurus estavam todos unidos por semelhanças esqueléticas no quadril, que excluíam outros saurianos da mesma época. Essas características, incluindo cinco vértebras fundidas em uma parte do quadril chamada sacro, são “peculiares entre os répteis“, escreveu Owen em seu relatório de 1842. Ele argumentou que isso era “base suficiente para estabelecer uma tribo ou subordem distinta de Répteis Saurianos, para os quais eu proporia o nome de Dinosauria” – os terríveis lagartos.

Desde então, descobertas de todos os continentes têm enchido museus com um número crescente de dinossauros cada vez mais incomuns. No entanto, quanto mais os paleontólogos descobrem, mais estranhos e maravilhosos se tornam esses terríveis lagartos – e mais difícil é definir o que faz um dinossauro um dinossauro.

Uma vista do Salão dos Dinossauros no Museu Nacional de História Natural, em 2003, mostra um Triceratops à esquerda da frente e um Tiranossaurus rex à frente na direita; Diplodocus longus está no centro. (John Steiner, Smithsonian Institution Archives)

Primeiramente, os dinossauros são maravilhosamente diversos. Os paleontologistas reconheceram mais de 1.000 espécies não-avianas distintas, desde minúsculos caçadores de insetos de penas até gigantes que cresceram até mais de 30 metros de comprimento e pesavam mais de 70 toneladas. Havia dinossauros com chifres, dinossauros encouraçados, dinossauros com cabeça em cúpula, dinossauros com crista, dinossauros de pescoço comprido, dinossauros com garras em foice e dinossauros que rasgavam a carne. A maioria viveu uma existência inteiramente terrestre, mas algumas vezes foram encontradas em lagos e rios (recentemente, os cientistas ficaram espantados com o primeiro dinossauro anfíbio conhecido, um dinossauro nadador similar a um cisne, não muito diferente de um velociraptor). E uma linhagem bateu asas e alçou-se ao ar, evoluindo para as aves, que são os únicos dinossauros vivos nos dias de hoje.

Esses animais muito diferentes compartilham alguns traços-chave: todos eles punham e eclodiram de ovos, por exemplo, e todos os dinossauros dentados substituíram constantemente seu aparato dental ao longo de toda a vida. Mas se realmente quisermos entender o que faz do dinossauro um dinossauro, precisamos diminuir o zoom.

Distinguir os dinossauros na árvore genealógica dos répteis – do poderoso tiranossauro a um peqeuno beija-flor – requer uma perspectiva evolutiva. Hans-Dieter Sues, o curador de paleontologia de vertebrados do Smithsonian, coloca desta forma: Dinosauria é um grupo que contém o mais recente ancestral comum das aves – como um pombo desses de rua – e o dinossauro não-aviano Triceratops, diz Sues, incluindo todos os descendentes daquele ancestral comum.

Existem algumas características reveladoras dos membros posteriores que permitem aos especialistas separar os dinossauros dos não-dinossauros, indo até as primeiras espécies, diz Sues, mas a visão geral é que se você pegar o Triceratops em uma mão e um pombo na outra e descer ao seu último ancestral comum; cada animal que cai dentro desse grupo conta como um dinossauro e compartilha certas características em comum. Os dois conceitos estão ligados, Carrano diz, “os dinossauros estão ligados por ancestralidade comum, o que lhes conferiu, através da hereditariedade, um conjunto de características únicas”.

“Dinossauro”, então, não é apenas um termo popular para qualquer coisa escamosa e extinta. É um termo científico com um significado estrito com uma associação definida. Às vezes isso cria o que pode parecer um paradoxo entre o antigo e o moderno. Todas as aves são dinossauros, por exemplo, mas nem todos os dinossauros são aves. Dado que as aves são os únicos dinossauros que permanecem até os dias de hoje, os especialistas geralmente especificam se eles estão falando sobre dinossauros não-avianos ou avianos. Mesmo assim, um pinguim é um lagarto tão terrível quanto o estegossauro.

Os quadris não mentem: Hoje nós separamos o clado Dinosauria em dois grupos, Saurischia (quadril de lagarto, acima) e Ornithischia (quadril de ave, abaixo). (Museu de História Natural)

A cultura pop, como você provavelmente notou, nem sempre obedece às regras. Em coleções de brinquedos de plástico, programas de TV paleocêntricos, como DinoRiders, e até mesmo os filmes da franquia Jurassic Park, dinossauros e não-dinossauros são muitas vezes indiscriminadamente misturados sem pensar muito no fato de que a palavra dinossauro não se aplica a qualquer coisa. A ideia de que a palavra dinossauro se refere a qualquer criatura reptiliana característica, diz Sues, “é devida a inúmeros livros infantis e produtos comerciais que tratam qualquer animal extinto grande ou bizarro como um ‘dinossauro’”.

Então, como você pode, como intelectual de poltrona ou aspirante a paleontólogo, saber se o dito ‘sauro’ na tela de cinema é um verdadeiro dinossauro ou um mero aspirante? Felizmente, há algumas pistas que os entregam. “Muitas características que unem os dinossauros envolvem a construção das regiões do quadril e coxa”, diz o Peter Buck Smithsonian Fellow, Adam Pritchard, que conferiu aos dinossauros sua postura ereta e pernas em forma de pilares. “Olhe para o topo do osso da coxa“, ou a parte superior da perna dos dinossauros digitalmente ressuscitados do cinema, Pritchard sugere, “e veja se ele se ajusta para dentro do encaixe do quadril.”

Outro desafio para o público decifrar os dinossauros é que o tempo geológico pode ser difícil de assimilar em nossas cabeças. “Eu acho que é muito comum no pensamento popular imaginar o passado como tendo acontecido mais ou menos de uma vez”, diz Carrano, o que significa que, quanto mais recuado no tempo tentamos pensar, mais as linhas ficam borradas. Isso significa que alguns não-dinossauros têm sido falsamente agrupados com estegossauros e outros simliares, apesar de viverem separados por milhões de anos.

O Dimetrodon com sua ‘vela’ dorsal? Era um protomamífero mais aparentado a nós do que aos dinossauros. Os ‘peixoides’ ictiossauros que nadavam pelos mares? Eles eram uma das muitas linhagens de répteis que se adaptaram à vida na água durante o Mesozoico. E os pterossauros de asas membranosas que viajavam pelos céus? Apesar de terem sido apresentados nos três últimos filmes do Jurassic Park, eles eram apenas primos dos dinossauros, que se separaram de um ancestral comum anterior. Os dinossauros são o seu próprio grupo discreto, em outras palavras, unidos a todo o resto de sua família através de sua ancestralidade comum e identificados através das características dos seus quadris que foram mantidas desde o Triássico até o presente. Pode ser difícil pensar em uma ema ou codorna como um lagarto terrível, mas você terá que aceitar esse argumento com o fantasma de Richard Owen.

      Versão simplificada da árvore genealógica dos dinossauros, antes da última reformulação. (Museu de História Natural)

É claro que falar sobre dinossauros dessa maneira é tão exato quanto discutir sobre mamíferos. Mamíferos – que são tipicamente definidos por sua tendência a ter pelos, dar à luz aos seus filhotes e produzir leite – incluem tudo, desde seres humanos a hienas, de musaranhos às baleias que habitam o

mar. Mamíferos são compostos de muitos ramos que se movimentaram ao longo dos anos, e o mesmo aconteceu com os dinossauros. Os paleontólogos passaram décadas organizando e rearranjando esses ramos, e um estudo no início deste ano revigorou um debate sobre a forma da árvore genealógica dos dinossauros. “A classificação dos dinossauros passou por inúmeras mudanças ao longo dos anos”, diz Sues, com as raízes da última alteração remontando ao século XIX.

Em 1888, o paleontólogo britânico Harry Govier Seeley argumentou que Dinosauria de Owen não era um grupo natural, mas sim uma mistura do que ele via como dois grupos muito diferentes de répteis antigos. Seeley separou esses dois grupos com base na sua forma de quadril. Havia Saurischia, que ele definia por seu tipo de quadril semelhante ao de lagartos, e incluía os dinossauros saurópodes e terópodes. E também havia Ornithischia, que tinha um tipo de quadril mais parecido com o de uma ave, e continha dinossauros encouraçados, dinossauros com chifres, dinossauros de bico de pato e seus parentes. (A ironia é que agora sabemos que os dinossauros de “quadris de aves” não são parentes próximos das aves. As aves são tecnicamente dinossauros saurísquios com quadris altamente modificados.)

Os paleontólogos combinaram as ideias de Owen e Seeley. Hoje acredita-se que Dinosauria é um grupo real, ancorado em características compartilhadas por ancestralidade comum à exclusão de outros animais. Mas os saurísquios e os ornitísquios são os dois ramos principais, com linhagens mais específicas dispostas ao longo de cada um deles. Outras ideias surgiram e desapareceram, mas essa visão da árvore genealógica dos dinossauros permaneceu estável. Então, no início de 2017, um estudo do paleontólogo Matthew Baron e seus colegas abalou as coisas.

Em vez de encontrar o arranjo tradicional, a nova análise feita por Baron e seus colegas resultou em algo diferente. Os dinossauros permaneceram como um grupo natural, mas os dinossauros terópodes surgiram como parentes próximos dos ornitísquios – normalmente posicionados do outro lado da árvore genealógica – e os dinossauros saurópodes apareciam como parentes de um enigmático grupo de dinossauros carnívoros primitivos chamados herrerassáurideos. Os pesquisadores decidiram chamar o grupo de Ornithoscelida (um termo cunhado pelo naturalista do século XIX Thomas Henry Huxley) e manteve Saurischia para o outro grupo.

Mas um único novo artigo não produz um consenso. Meses depois, um grupo diferente de paleontólogos defendeu o arranjo tradicional em uma réplica, à qual foi seguida de uma réplica à réplica. No momento, diz Sues, “a maioria dos especialistas em dinossauros não foi balançada pela nova hipótese, mas ela serve a um propósito útil, pois estimulará uma análise mais aprofundada, especialmente dos primeiros dinossauros”.

Se todo esse embaralhamento sistemático deixou você ansioso, não se preocupe. Um novo fóssil ou análise pode semear mais confusão do que compreensão após seu anúncio, diz Pritchard. Mas isso não é motivo para desespero. É assim que a ciência funciona: assim como os dinossauros evoluíram e mudaram, o mesmo acontece com a ciência, ao incorporar novas evidências e teorias. “Relacionamentos não são ‘estabelecidos’, mas devem sempre permanecer como hipóteses”, diz Sues, “mantendo-se ou caindo conforme as evidências vão se acumulando.” “Isso parece ser normal na natureza”, acrescenta Pritchard. “É sempre muito mais complicado e inesperado do que os cientistas preveem.

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Brian Switek escreve sobre ciência e é especializado em evolução, paleontologia e história natural. Ele escreve regularmente para a Scientific American.

Leia mais: https://www.smithsonianmag.com/science-nature/ask-smithsonian-what-is-dinosaur-180967448/#rWyCoIe78TZAyDAK.99

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SWITEK, Brian O que faz um dinossauro um dinossauro? SMITHSONIAN.COM, 8 de DEZEMBRO, 2017.

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Tradução: Rodrigo Véras

O que é um ‘elo perdido’? [Tradução]

Enquanto alguns ainda usam a expressão, os especialistas a abominam porque implica que a vida é uma hierarquia linear.


Os ossos da mão vistos em um modelo de baleia no centro desta imagem contam a curiosa história de como as baleias foram da terra para a água. (© BrokenSphere / Wikimedia Commons)

por Brian Switek (SMITHSONIAN.COM – 6 de Março, 2018 )*

Quando Darwin publicou Origem das Espécies, uma coisa faltou em seu argumento: um “elo perdido”.

Embora o termo nunca apareça no livro, Darwin sabia que suas afirmações poderiam se beneficiar grandemente da evidência paleontológica de uma transição de espécies – uma espécie intermediária conectando, por exemplo, seres humanos aos macacos. Menos de dois anos após a publicação de Origens, ele teve seu desejo atendido. Em 3 de janeiro de 1863, Charles Darwin recebeu uma carta de seu amigo paleontólogo Hugh Falconer com notícias de uma impressionante descoberta: Archaeopteryx.

Esse fóssil extraordinário – que exibia penas, assim como dentes, garras, uma cauda óssea e outros traços reptilianos – era exatamente o tipo de criatura que a teoria de Darwin da evolução por meio da seleção natural previa que deveria ter existido. As penas não deixaram qualquer dúvida de que o Arqueopteryx jurássico era uma ave, mas a criatura também tinha um conjunto de traços saurianos que apontavam para uma ascendência reptiliana.

Falconer mal podia conter sua alegria.

Se os artesãos de Solenhofen tivessem recebido a encomendada – por ordem expressa – para criar um ser estranho ‘a la Darwin’”, seu amigo escreveu, “não poderiam ter executado o pedido de forma mais elegante” do que através do Archæopteryx”.

Hoje, algumas pessoas ainda se referem ao Archaeopteryx como aquele “elo perdido” há muito procurado entre aves e dinossauros. Certamente, ele preenche vários dos requisitos para ser considerado um animal que parece entre o que se pensava serem duas categorias distintas de organismos. Mas há boas razões para não usar a expressão algo que o próprio Darwin sabia. Como Nicholas Pyenson, curador de fósseis de mamíferos marinhos do Museu Nacional de História Natural Smithsonian, diz: “A vida é realmente uma árvore, não uma corrente”.

Para mim, a ideia de um ‘elo perdido’ implica uma cadeia linear de uma espécie que evolui para outra, que evolui para outra, e assim por diante”, diz a antropóloga do programa Smithsonian Human Origins, Briana Pobiner. Esse não é o padrão que observamos. Em vez disso, a evolução “produz um padrão de ramificação semelhante a uma árvore com múltiplos descendentes de uma espécie ancestral existentes ao mesmo tempo e, às vezes, mesmo ao lado dessas espécies ancestrais”.

A metáfora da corrente que o “elo perdido” implica nos faria buscar linhas retas, quando a realidade da evolução é muito mais divagante. Nem toda criatura fóssil pode ser inserida como um antepassado direto de algo vivo hoje. É por isso que os paleontólogos passaram a abominar o termo: Ele obscurece o verdadeiro padrão de mudança evolutiva.

Arqueopteryx tem sido considerado há muito tempo um “elo perdido” entre aves e dinossauros. Mas esse termo obscurece a realidade de como a evolução funciona. (NMNH Paleobiology Dept/Smithsonian)

Por qualquer outro nome

Mas do que chamar “seres estranhos ‘a la Darwin’”, como o Archaeopteryx, baleias com pernas e seres humanos que se parecem com macacos?

Paleontólogos normalmente preferem a expressão “forma de transição” ou “forma intermediária”, porque implicam que essas espécies são partes de um contínuo em constante mudança. Isso não é uma mera questão de detalhes semânticos; terminologia molda nossas ideias e a forma como as mudanças dramáticas no curso da vida são interpretadas. Antes (e mesmo depois) de Darwin, os naturalistas às vezes encaravam as espécies como parte de uma hierarquia ranqueada em que as formas mais recentes eram de alguma forma melhores do que as que existiam antes. “Palavras descuidadas levam ao pensamento descuidado”, como diz Pyenson.

“Em certo sentido, todas as espécies são uma forma de transição de seus ancestrais porque retém muitos características ancestrais, mas exibe características únicas suficientes para serem uma espécie separada”, diz Pobiner. E dado que todas as espécies vivas hoje têm fósseis relacionados à sua ascendência, são muitos fósseis de transição. Mais comumente, Pobiner afirma: “os paleontólogos costumam usar este termo quando falam de mudanças anatômicas ou ecológicas maiores que ocorreram durante a história da vida”.

Não que “forma de transição” não tenha seus próprios problemas. A frase às vezes pode, inadvertidamente, dar a impressão que um primo evolutivo seria um ancestral direto ao ser traduzido no jargão popular. Mas, pelo menos, destaca que o organismo em questão ajuda a determinar o que os paleontologistas identificaram como uma grande mudança na história da vida.

A evolução está constantemente produzindo ramos, e traçar linhas de descendência – de uma espécie ancestral para seu descendente direto – é quase sempre impossível devido à natureza incompleta do registro fóssil. “Eu olho para o registro geológico natural”, escreveu Darwin, “como uma história do mundo imperfeitamente mantida.” Relacionando estratos às páginas de um livro, ele continua: “Deste volume apenas aqui e ali um pequeno capítulo foi preservado; e de cada página, apenas aqui e ali algumas linhas”.

Os paleontólogos conhecem bem essas linhas, pois de toda a vida que já existiu apenas uma fração foi preservada e uma porção ainda menor ainda foi encontrada. O que é realmente incrível, então, é que somos capazes de detectar mudanças importantes!

Darwin ilustrou sua árvore da vida na versão de 1859 de Origem das espécies. Foi a única ilustração que constava no livro. (Wikimedia Commons)

Como a baleia obteve seus ossos de mãos.

Conhecemos muito da notável história evolutiva das baleias graças aos fósseis de transição. As primeiras baleias, por exemplo, não se pareciam com as baleias-minke e orcas nadando nos oceanos de hoje. Cerca de 55 milhões de anos atrás, eram animais terrestres com pés com cascos que pareciam com cervos pequenos com caudas longas. Eles eram artiodátilos, membros do mesmo grupo de mamíferos que incluem hipopótamos e vacas hoje em dia.

Ao longo de cerca de 10 milhões de anos, as primeiras baleias às margens da água tornaram-se cada vez mais anfíbias até que apenas as formas totalmente aquáticas restassem. Isso exigiu mudanças importantes em como as baleias se moviam, no que comiam e em seus sentidos. Uma acumulação crescente de fósseis desde a década de 1970 nos informa como essas mudanças se desenrolaram; ao mesmo tempo, você pode ver as formas passadas das baleias em sinais reveladores, como os ossos de mãos nas nadadeiras de uma baleia-azul.

Uma flotilha inteira de fósseis de baleias iniciais evidenciam essas mudanças, como os pés que se tornaram semelhantes a remos, as colunas espinhais adaptadas à ondulação ascendente e descendente para natação e os dentes adequados para pegar peixes escorregadios. “As baleias não se parecem com os parentes mais próximos”, hoje, diz Pyenson, que é o autor do livro a ser lançado ‘Spying on Whales: The Past, Present, e Future of Earth’s Most Awesome Creatures’. Os fósseis são o que nos revelam essas conexões“.

É por isso que o registro fóssil é tão essencial. “Se tivéssemos apenas o DNA para continuar e nenhum registro fóssil”, diz Pyenson, “ainda estaríamos coçando a cabeça para entender de onde as baleias vieram”.

A Transição Humana

As baleias não são únicas nesse sentido, claro. A mudança evolutiva transcendente aplica-se a todos os organismos, de sequoias vermelhas a baleias, de dinossauros a lesmas de mar – para nós, inclusive. Na verdade, somos um dos principais problemas com a frase “elo perdido”.

Muitas pessoas associam a frase especificamente aos seres humanos. Para eles, ela evoca a imagem de uma criatura de meio macaco, meio humana, que se encaixaria entre nós e os chimpanzés. Mas, como sabemos, a evolução não segue um caminho linear que produziria tal ser: temos uma árvore genealógica, não uma escada familiar. Em vez de um único fóssil que responda todas as nossas perguntas, o que temos é um grupo variado de seres humanos fósseis que nos ajudam a entender que somos apenas parte de uma história muito maior.

Há também uma razão política que os especialistas muitas vezes evitam usar o termo. Organizações antievolução, como Answers in Genesis e The Discovery Institute, muitas vezes, alegaram que “elos faltantes” são exatamente isso: faltantes. Para cada nova faceta da evolução que um organismo particular pode nos desnudar, há um negador de evolução apontando para o que ainda não foi encontrado como se isso provasse que a evolução não ocorreu. Basear-se no termo “elo perdido”, em outras palavras, dá muita vantagem aos agitadores anticiência, dando aos cientistas toda a razão para abandonar o termo.

Na realidade, a história humana remonta há milhões de anos, deixando-nos a última espécie em pé – literalmente. Nós habitualmente caminhamos de uma maneira que nenhum outro animal faz, com nossas costas totalmente eretas e nossas pernas abaixo de nós. Como isso aconteceu, tem sido um grande foco de pesquisa enquanto paleontólogos e antropólogos investigam o nosso passado.

Esta mudança ocorreu relativamente cedo, entre o tempo que nossos ancestrais se separaram dos antepassados dos chimpanzés, há mais de 6 milhões de anos, e, cerca de 3,6 milhões de anos atrás, quando pessoas pré-históricas andaram através das cinzas e nos deram a prova definitiva de que seres humanos antigos andavam como nós. Mas a história da humanidade vai mais além das pernas e coluna vertebral. “Os primeiros hominines também tinham caninos relativamente menores do que outros macacos”, afirma Pobiner, uma das muitas mudanças relacionadas a alterações na dieta, comportamento e muito mais.

Nós fomos capazes de reunir (montar e compreender) muitas dessas mudanças graças a fósseis de transição. Sem um DeLorean modificado ou TARDIS, no entanto, ficamos com o registro fóssil imperfeito, incompleto e, no entanto, esclarecedora: uma história épica da vida em transição.

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*Brian Switek é um escritor de ciências freelance especializado em evolução, paleontologia e história natural. Ele bloga regularmente para Scientific American.

O artigo foi publicado originalmente em: https://www.smithsonianmag.com/science-nature/whats-missing-link-180968327/

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  • SWITEK, B. What’s a “Missing Link”? SMITHSONIAN.COM MARCH 6, 2018.

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Tradução: Rodrigo Q. Véras

‘A teoria do cérebro trino tem credibilidade no meio científico?’ [do Tumblr]

Mais uma direto do Tumblr.

“A teoria do cérebro trino tem credibilidade no meio científico? Nosso cérebro ainda guarda os resquícios de formas de vida anteriores, e isso seria o “instinto”?

Respondendo a sua primeira pergunta:

A hipótese de MacLean chegou a gozar de uma certa popularidade e foi recebida com alguma empolgação no final dos anos de 1960 e 1970, mas atualmente não é aceita na comunidade científica, especialmente entre os neurobiólogos comparativos e biólogos evolutivos – exatamente, quem estuda a evolução dos cérebros dos vertebrados.

MacLean, a grosso modo, propôs que nós seres humanos possuiríamos ‘três mentes’ relativamente independentes, que competiriam entre si e que teriam sua origem em ‘estágios’ diferentes de nossa evolução, sendo, respectivamente, resquícios de nossos ancestrais reptilianos mais remotos, de nossos ancestrais mamíferos mais primitivos e, por fim, um que remontava a nossos ancestrais primatas [1]. O problema é que, apesar da imagem atraente, existem vários problemas com estas concepções com essa imagem da evolução cerebral dos vertebrados e da própria anatomia comparativa e advinha da forma bem pitoresca com que MacLean via essas regiões. Como explica Ben Thomas, em um artigo no blog da Scientific American [1]:

Pegue, por exemplo, os gânglios basais – esse grupo de estruturas neurais próximas a base do prosencéfalo. Elas são cruciais para o aprendizado e para o reforço de hábitos, como cortar pregos e escovar os dentes. Na década de 1960, os biólogos achavam que os prosencéfalos de répteis e das aves eram compostos principalmente de gânglios basais (eles não são), então MacLean decidiu agrupar essas estruturas, juntamente com o tronco encefálico, sob o rótulo “complexo reptiliano”. Esse “Complexo R” – afirmou MacLean – era responsável pela “agressão, domínio, territorialidade e exibição ritual” de nossos ancestrais reptilianos distantes.

MacLean também notou que algumas das estruturas neurais mais complexas que dobravam-se em volta dos gânglios basais—como a amígdala, o hipotálamo e o córtex cingulado – desempenham papéis centrais em emoções, como desgosto, nervosismo, dúvida e assim por diante. Então, ele especulou que essas áreas cerebrais devem ter surgido nos primeiros mamíferos para lidar com tarefas como a vinculação familiar e a criação de filhos. Ele reuniu-os sob um título e estampou-lhes o rótulo “complexo paleomamífero” nele.

Finalmente, MacLean observou que o neocórtex – a camada superior mais externa do cérebro – é encontrado apenas em mamíferos e está ligado a “habilidades cognitivas de alto nível” como o planejamento abstrato, a criação de ferramentas, a linguagem e a autoconsciência. Assim, ele o chamou de “complexo neomamífero”.

Mas MacLean não terminou aí. Ele prosseguiu com a hipótese de que esses três “complexos” não representavam apenas três estágios distintos da evolução do cérebro, mas permaneceram três cérebros separados e semi-independentes, “cada um com sua própria inteligência especial, sua própria subjetividade, seu próprio senso de tempo e espaço e sua própria memória”. MacLean estava dizendo, em outras palavras, que todo cérebro humano contém três consciências subjetivas independentes.”

Um exame um pouco mais detalhado põe em cheque a maioria dessas ideias e suposições. Para começar, os chamados gânglios basais são encontrados já nos cérebros dos primeiros gnatostomados, estando assim presentes nos peixes com mandíbulas. Desta maneira, nem faz sentido falar em “complexo reptiliano”, uma vez que estas estruturas são anteriores à origem deste grupo de vertebrados [1]. Além disso, os primeiros mamíferos já possuíam neocórtex bem definidos, indicando que, pelo menos, algumas habilidades cognitivas, ditas ‘superiores’, já estariam presentes em nossos ancestrais mais remotos [2, 3]. Outro fato importante é que muitos ‘répteis’ exibem comportamentos atribuídos apenas aos “paleomamíferos”, como o vínculo familiar e o cuidado parental, além de muitas aves, claramente, exibirem habilidades “neomamíferas”, como a confecção e emprego de ferramentas, compreensão verbal e até desenvolvimento de dialetos [4, 5]. Por fim, o cérebro humano não se comporta como três “complexos” separados, sendo uma órgão altamente integrado [1, 4, 5]. Então, apesar desta proposta externar uma visão de uma organização hierárquica do cérebro a partir de uma perspectiva evolutiva (e mesmo podendo ter sido um dia, uma maneira interessante de ver as relações mais gerais entre a estrutura do cérebro, a evolução e o comportamento, atualmente), ela é, na melhor das hipóteses, um resumo ultrasimplificado, que não leva em conta os avanços das neurociências.

Talvez aqui seja melhor fazer um pequeno preâmbulo. É importante que compreendamos que o que as pessoas tradicionalmente chamam de ‘répteis’ é um grupo definido basicamente pela exclusão, já que reúne espécies de vertebrados amniotas que não são nem mamíferos nem aves, como mostrado na figura abaixo [5], o que o torna tecnicamente um agrupamento parafilético [veja as postagens ’Filogenia Mastigada 1: Princípios de Filogenia e conceitos básicos’, ’Filogenia Mastigada 2: Polarização de Séries de Transformações e o conceito de Homoplasia’, ’Filogenia Mastigada 3. Grupos Monofiléticos e Merofiléticos e a filosofia por detrás da Filogenia’, ’Filogenia Mastigada 4 : Interpretando uma árvore filogenética – parte ½’ e ’Filogenia Mastigada 5 – Interpretando uma árvore filogenética 2/2’. ].

Entre os animais que chamamos de ‘répteis’ atualmente estão cerca de 10 mil espécies que incluem animais como a Tuatara (Sphenodons), lagartos, cobras, tartarugas e crocodilianos. Porém, hoje em dia é claro que podemos definir dois grandes subgrupos, um que incluiria os Squamata (lagartos e cobras) e o outro que incluiria as tartarugas e os arcossauros, que incluiria os crocodilianos, os dinossauros, tanto, aqueles que se extinguiram cerca de 65 milhões de anos atrás, como as aves, os únicos remanescentes deste grupo [5]. Portanto, se quisermos preservar o termo ‘répteis’ como uma categoria taxonômica coerente (‘Reptilia’), temos que equipará-la aos Sauropsídeos (de modo que as aves, como parte dos Dinossauros e Arcossauros, passando ser considerados ‘répteis’), que são um grupo irmão dos Sinapsídeos, o táxon ao qual os mamíferos pertencem. Desta maneira, nem ao menos somos descendentes diretos dos répteis, apesar de, enquanto amniotas, compartilhamos ancestrais comuns com os répteis [veja esta resposta do nosso tumblr aqui].

Agora, respondendo a sua segunda:

Sem dúvida, as marcas da ancestralidade comum não estão apenas em todo o nosso corpo, mas em nossos comportamentos e em nossa mente. Todavia, a visão de MacLean não captura bem essas relações e características. As ideias de MacLean revelam uma visão da evolução tremendamente simplista, altamente linear, em que novas características seriam adicionadas serialmente e se manteriam, em larga medida, independentes; enquanto as demais linhagens codescendentes continuariam, mais ou menos, da mesma forma, basicamente sem evoluir [1]. Porém, a evolução é um processo bem mais contingente e que procede em geral por ramificação, com cada linhagem sendo uma combinação de características primitivas e derivadas, ao evoluir em seus próprios termos, pelos seus próprios caminhos e adaptando-se aos seus novos ambientes e contextos demográficos.

Cérebros mais complexos evoluíram várias vezes, de maneira independente, entre os vertebrados, como foi o caso dos mamíferos, como os cetáceos e os primatas (incluindo nós, seres humanos), mas também de alguns peixes teleósteos e, principalmente, de aves, como os corvídeos e psitacídeos [4, 7]. De fato, as últimas décadas nos trouxeram uma nova compreensão do cérebro das aves, especialmente das funções cognitivas semelhantes as desempenhadas pelo neocórtex (a despeito das diferenças na organização anatômica) de uma estrutura chamada ‘pálio’ [6]. Recentemente, a descoberta de um ‘endomolde’ de um sinapsídeo extinto – um parente distante de nossos ancestrais mais diretos – revelou que mesmo uma estrutura análoga ao neocórtex evoluiu por convergência [2, 3; Veja o post do evolucionismo “As origens do neocórtex: Nem tão novo e nem tão único.”].

Na figura abaixo e ao lado estão ilustradas duas visões sobre a evolução do cérebro. A primeira, que podemos perceber na hipótese do cérebro trino de MacLean e que nos remete a ‘Scala Naturae‘ n qual o desenvolvimento do cérebro é linear, indo do simples para mais complicado através da mera adição de novas regiões e estruturas. A segunda é a visão moderna, baseada na compreensão do que realmente é a evolução, em que a evolução se dá a partir de uma estrutura comum básica, evoluída no ancestal

comum dos vertebrados, com evolução específica nos vários ramos da árvore evolutiva, de modo a acomodar as contingências e necessidades de cada linhagem específico. Essa figura [8] foi feita a partir de [9].

Algumas das ideias de MacLean sobrevivem em um campo de pesquisa muito interessante chamado de ‘neurociência afetiva’, mas em bases neuroanatômicas comparativas e funcionais muito mais sólidas. Esse campo de estudo preocupa-se com as bases neurais das emoções e do humor e de como certas áreas cerebrais e sistemas de neurotransmissores, fatores de liberação e hormônios estão por trás de nossas motivações, apetites e atenção e como eles influenciam nossa percepção, cognição, comportamento motor, linguagem etc [7].

Por fim, em relação ao instinto, recomendo as respostas aqui, aqui e aqui

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Literatura Recomendada:

  1. Thomas, Ben ‘Revenge of the Lizard Brain’ Scientific American Blog, September 7, 2012 https://blogs.scientificamerican.com/guest-blog/revenge-of-the-lizard-brain/

  2. Laaß M, Kaestner A. Evidence for convergent evolution of a neocortex-like structure in a late Permian therapsid. Journal of Morphology. 2017;00:000–000.https://doi.org/10.1002/jmor.20712.

  3. Laaß, M., & Schillinger, B.(2015). Reconstructing the auditory apparatus of therapsids by means of neutron tomography. Physics Procedia, 69,628–635. https://doi.org/10.1016/j.phpro.2015.07.089

  4. Roth G., Dicke U. (2013) Evolution of Nervous Systems and Brains. In: Galizia C., Lledo PM. (eds) Neurosciences – From Molecule to Behavior: a university textbook. Springer Spektrum, Berlin, Heidelberg https://doi.org/10.1007/978-3-642-10769-6_2.

  5. Naumann RK, Ondracek JM, Reiter S, et al. The reptilian brain. Current Biology. 2015;25(8):R317-R321. doi:10.1016/j.cub.2015.02.049.

  6. The Avian Brain Nomenclature Consortium. Avian brains and a new understanding of vertebrate brain evolution. Nature reviews Neuroscience. 2005;6(2):151-159. doi:10.1038/nrn1606.

  7. Dalgleish, Tim The emotional brain Nature Reviews Neuroscience 5, 583-589 (July 2004). doi:10.1038/nrn1432

  8. Mashour GA, Alkire MT. Evolution of consciousness: phylogeny, ontogeny, and emergence from general anesthesia. Proc Natl Acad Sci U S A. 2013 Jun 18;110 Suppl 2:10357-64. doi: 10.1073/pnas.1301188110.

  9.  Emery NJ, Clayton NS. Evolution of the avian brain and intelligence. Curr Biol.2005;15(23):R946–R950. www.sciencedirect.com/science/journal/09609822

Crédito das figuras:

Foto de Matthew Lewis, The Washington Post [Yale Medicine]

Naumam, Rk et al. (2015) doi:10.1016/j.cub.2015.02.049.

Mashour GA, Alkire MT. Evolution of consciousness: phylogeny, ontogeny, and emergence from general anesthesia. Proc Natl Acad Sci U S A. 2013 Jun 18;110 Suppl 2:10357-64. doi: 10.1073/pnas.1301188110.

As origens do neocórtex: Nem tão novo e nem tão único.

Os mamíferos são terapsídeos, um grupo de vertebrados pertencente aos sinapsídeos, um táxon mais amplo que, além dos mamíferos, inclui seus ancestrais mais diretos e vários subgrupos aparentados a esses ancestrais. Uma das características que distingue nosso ramo particular da linhagem dos terapsídeos é a posse de um neocortex, um região cerebral especializada formado por seis camadas que revestem o prosencéfalo, a porção mais anterior de nossos encéfalos [1, 2, 3]. Uma parte importante das habilidades sensoriais, motoras e cognitivas de nossa linhagem depende dessa estrutura. Apesar de a origem do neocortex ainda estar envolta em discussões e debates, a visão mais difundida é que ele teria evoluído, primeiramente, por volta do fim do período triássico em terapsídeos ‘mamaliformes’ [4]. Novas evidências, entretanto, sugerem que um tipo de ‘neocortex’ teria evoluído quase 25 milhões de anos antes da emergência dos primeiros mamíferos, em um ramo colateral dos terapsídeos – isto é, em um ramo distinto daquele dos nossos ancestrais diretos, portanto, denotando um caso de convergência evolutiva [4, 5, 6].

Estudando um crânio fóssil de 255 milhões de anos do Therapsida, Kawingasaurus fossilis, do final do Permiano, encontrado na Tanzânia, o estudante de doutorado Michael Laaß descobriu que o espécimen apresentava um volume cerebral relativo cerca de duas ou três vezes maior do que observado em outros terapsídeos não mamíferos. Segundo Laaß, o Kawingasaurus possuía um prosencéfalo grande com dois hemisférios cerebrais distintos, exibindo, claramente, uma estrutura semelhante ao neocórtex de mamíferos [5].

O trabalho, realizado em colaboração com Anders Kaestner, do Instituto Paul Scherrer, na Suíça, foi conduzido utilizando-se da tomografia de nêutrons e reconstrução computadorizada da anatomia craniana interna em 3D. O fato de a cavidade endocraniana do espécimen encontrar-se quase totalmente ossificada foi o que possibilitou uma reconstrução virtual menos hipotética da endomolde’ cerebral [5, 6, 7].

Os autores relataram, em um estudo publicado no Journal of Morphology [5], neste mês de junho, a ausência de um forame parietal e um pequeno fosso entre os hemisférios cerebrais foi interpretado como um corpo pineal. Segundo o artigo, um sulco mediano demarcaria os dois hemisférios cerebrais inflados um do outro e uma possível fissura da raiz, do resto da endocasta. Eles também relataram que o chamado ‘quociente de encefalização’* estaria por volta de 0,52, o que é 2-3 vezes maior do que o observado em outros sinapsídeos não-mamíferos. Canais infraorbitais extremamente ramificados no focinho são outra característica que chama a atenção, como constatam os autores do estudo. Como explicam, no abstract do artigo:

A forma da endocasta do cérebro, os canais maxilares extremamente ramificados, bem como os pequenos olhos posicionados frontalmente, sugerem que adaptações sensoriais especiais ao habitat subterrâneo, como um senso de toque bem desenvolvido e visão binocular, podem ter impulsionado a evolução paralela de um equivalente do neocórtex dos mamíferos e um sistema visual lemnotalâmico semelhante ao mamífero em Kawingasaurus. A anatomia bruta da endocasta cerebral de Kawingasaurus suporta a hipótese de grupo externo, segundo a qual o neocórtex evoluiu a partir do pálio dorsal de um antepassado semelhante aos anfíbios, que recebe projeções sensoriais da via lemnotalâmica. O cérebro alargado, bem como a ausência de um forame parietal, podem ser uma indicação para uma maior taxa metabólica em Kawingasaurus em comparação com outras sinapsídeos não-mamíferos.” [5]

Segundo o artigo, os princípios da tomografia por radiação de nêutrons quanto são semelhantes ao da mais conhecida baseada em raios-X; sendo um método de aquisição indireta, onde um conjunto de projeções (radiografias) são obtidas a partir de diferentes visualizações, no caso do estudo, ao longo de uma trajetória circular. Após obtidos, os dados de projeção são transformados em uma representação de volume da amostra [5, 6]. Já a modelagem tridimensional e a visualização das fatias tomográficas foram feitas utilizando-se do software AMIRA 5.4, seguindo o método descrito pelo próprio Laaß em colaboração com B. Schillinger, em dois artigos anteriores [6]. Os pesquisadores explicam que as estruturas de interesse, como os ossos cranianos, as endocastas cerebrais e vários canais de nervos e vasos sanguíneos foram ‘vetorializados’ em fatias manualmente ou, sempre que possível, semiautomaticamente, com a ferramenta de segmentação da AMIRA [5].

Acima uma figura que mostra o crânio de Kawingasaurus (créditos: Michael Laaß / Verlag Wiley-VCH) [4].

Em resumo, esse extraordinário espécimen possuía olhos frontalmente posicionados, consistentes com visão binocular em ambientes com baixa iluminação; além de extremidades do nervo trigêmeo extremamente ramificadas que adentravam pelo focinho, uma possível indicação que o animal possuía um senso de toque bem desenvolvido. Por fim, o Kawingasaurus possuía vestíbulos, no ouvido interno, muito grandes, sugerindo boa adaptação na detecção de vibrações sísmicas do solo.

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*O QE é uma medida relativa do tamanho do cérebro, definida como a relação entre a massa cerebral real e a massa cerebral prevista para um animal com um determinado tamanho, que se supõe indicar o nível aproximado de inteligência ou cognição dos animais [veja artigo da wikipedia].

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Referências:

  1. Benton, M. J. (2000) Mammals. Pp. 639-644, in The Oxford Companion to the Earth, P. L. Hancock and B. J. Skinner (eds), Oxford University Press, 1174 pp.

  2. Shoshani, J. 2003. Mammalia. eLS. Published Online: 29 JAN 2003 DOI: 10.1038/npg.els.0001552.

  3. Sues, H.-D. 2001. Synapsida (‘Mammal-like Reptiles’). eLS. . Published Online: 30 may 2001. DOI: 10.1038/npg.els.0001547

  4. Universität Duisburg-Essen, ‘A skull with history: A fossil sheds light on the origin of the neocortex’ 26 June 2017.

  5. Laaß M, Kaestner A. Evidence for convergent evolution of a neocortex-like structure in a late Permian therapsid. Journal of Morphology. 2017;00:000000.https://doi.org/10.1002/jmor.20712.

  6. Laaß, M., & Schillinger, B.(2015). Reconstructing the auditory apparatus of therapsids by means of neutron tomography. Physics Procedia, 69,628–635. https://doi.org/10.1016/j.phpro.2015.07.089

  7. Laaß, M. (2015). Virtual reconstruction and description of the brain of Pristerodon mackayi (Therapsida, Anomodontia). Journal of Morphology, 276,1089–1099. DOI: 10.1002/jmor.20397.

Os primeiros humanos modernos ou os ultimos seres humanos arcaicos?

No dia 8 de junho deste ano, dois artigos foram publicados na revista britânica Nature, que relatam a re-datação e análise de crânios fossilizados de um representante de nossa linhagem que pode ser o Homo sapiens mais antigo já encontrado, tendo vivido cerca de 100 000 anos antes do que os espécimes mais antigos conhecidos ante então [1, 2, 3]. Como consta no abstract de um dos artigos, publicado na revista Nature:

Nosso trabalho focado em amostras coletadas no site arqueológico Jebel Irhoud, no Marrocos. É um lugar bem conhecido pelos fósseis de homininas – isto é, ossos dos primeiros seres humanos – originalmente escavados na década de 1960. No entanto, a interpretação dos primeiros fósseis e a identificação de sua idade foram comprometidas anteriormente, devido à incerteza sobre a datação geológica das camadas de sedimento em que os restos foram encontrados. Mais de 40 anos depois, em 2004, uma equipe internacional de cientistas reabriu a escavação. Eles descobriram 16 novos fósseis de Homo sapiens e um grande número de artefatos da Idade da Pedra Média. Agora, em 2017, podemos relatar esses restos graças a melhores técnicas de namoro. A nova análise propõe uma versão revisada da história evolutiva dos seres humanos modernos, que envolve todo o continente africano, e muito antes da propagação “Para fora da África”, do Homo sapiens, para outros continentes (datada de cerca de 100 mil anos atrás). ” [2]

Segundo os pesquisadores, esses novos achados podem nos ajudar a contextualizar e compreender melhor esses outros fósseis de outros espécimes que viveram nesses últimos 600.000 anos e como estão relacionados aos seres humanos modernos e uns com os outros [1]. A descoberta fez os pesquisadores sugerirem um cenário mais complexo para a origem da nossa espécie, que não teria sua evolução limitada a região da África oriental, além de ter começado a se diferenciar morfologicamente bem antes do que acreditávamos de nossa espécie ancestral. De acordo com os trabalhos publicados na Nature [2, 3] e um comentário publicado na revista Science por Ann Gibons [1], a nova datação para os restos fossilizados encontrados em Jebel Irhoud, no Marrocos, poderia indicar que nossa espécie teria evoluído por todo o continente africano. [Veja a figura abaixo, por exemplo::‘’O alvorecer pan-africano do Homo sapiens’];

Figura: G. Grullón/Science; (Dados) Smithsonian Human Origins Program; (Fotos, na direção oposta ao relógio do centro para a esquerda) Ryan Somma/Wikimedia Commons; James Di Loreto & Donald H. Hurlbert/Smithsonian Institution/Wikimedia Commons; SHOP; SHOP; University of the Witwatersrand; SHOP; Housed in National Museum of Ethiopia, Addis Ababa, Photo Donation: ©2001 David L. Brill, human origins photos.com] retirado de [1].

Uma das características mais distintivas destes espécimes é o rosto; ele é bem mais achatado e, desta maneira, bastante semelhante ao nosso; enquanto o neurocrânio exibe uma forma bulbosa, característica das espécies mais antigas do nosso gênero. No entanto, é exatamente a posse desta característica de transição que pode sugerir que não estaríamos lidando com um espécime de Homo sapiens, mas, sim, com uma forma mais derivada de H. heidelbergensis. Walter Neves, professor da USP e coordenador do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências, desta universidade, neste vídeo abaixo e em entrevista e artigo, de Reinaldo Leite Lopes, para a Folha de São Paulo, explica com mais detalhes esta questão e ajuda a dissipar a hype em torno destes dois novos trabalhos. Assista ao vídeo do youtube do Canal USP,:

e este outro, do canal Dispersciência #18

Como ele deixa claro, mesmo a ideia de que nossa espécie não evoluiu em um único ponto na África não é tão desconcertante assim. Como lembra Neves, nós e outros hominines somos partes de espécies móveis e versáteis, que podem se locomover por grandes extensões e, portanto, migrar. Tendo este simples fato em mente, uma origem Pan-africana não é uma sugestão tão estranha assim; talvez, muito pelo contrário.

Claro, é preciso diferenciar esse processo de evolução das características anatômicas, que ocorreu com os seres humanos tipicamente modernos, daqueles fenômenos migratórios mais tardios que deram origem às populações humanas atuais a partir de várias levas de emigração (inclusive com vários gargalos demográficos) ‘para fora da África’ que ocorreram nos últimos 100000 anos.

Sem dúvida, é uma descoberta muito importante, como Neves mesmo deixa claro, que lança mais luz sobre nosso passado evolutivo. Contudo, ela não implica necessariamente em uma reinterpretação tão drástica da história de nossa espécie como alguns pareceram sugerir.

Referências:

  1. Gibbons, Ann Gibbons World’s oldest Homo sapiens fossils found in Morocco Science, Jun. 7, 2017. DOI: 10.1126/science.aan6934

  2. Hublin, Jean-Jacques et al. New fossils from Jebel Irhoud, Morocco and the pan-African origin of Homo sapiens Nature 546, 289–292, 2017. doi:10.1038/nature22336 [link].

  3. Richter, Daniel et al. The age of the hominin fossils from Jebel Irhoud, Morocco, and the origins of the Middle Stone Age Nature 546, 293–296, 2017. doi:10.1038/nature22335 [link].

Assinaturas moleculares da seleção natural nos primeiros americanos.

A seleção natural é um dos mais importantes fatores evolutivos. Juntamente com as mutações (a fonte derradeira da variabilidade genética) e a deriva genética aleatória, a seleção é um do motores da evolução dos seres vivos. Ela tem um papel crucial na evolução de adaptações bioquímicas, fisiológicas, morfológicas e comportamentais em resposta a mudanças no clima, na dieta e nas doenças etc, inclusive em seres humanos. Infelizmente, não é muito fácil estudá-la, principalmente quando sua ação aconteceu em um passado remoto e temos apenas a variação genética atual como evidência. Felizmente, é possível utilizar técnicas de análise genética atuais para identificar variantes genéticas que existem em diferentes frequências em populações distintas, vasculhando-as em busca de ‘assinaturas moleculares’ da seleção natural. Isso é feito com a ajuda de métodos estatístico-computacionais muito poderosos que nos permitem discernir tais assinaturas comparando-se ao que esperaríamos encontrar caso elas fossem fruto de evolução neutral, ou seja, em virtude dos efeitos da deriva genética em variantes que não conferiam nem vantagens ou desvantagens adaptativas apreciáveis (veja, por exemplo, ‘A evolução do receptor TAS2R38 em primatas: O amargor da seleção natural‘ e ‘Marcas da adaptação: A teoria neutra e as ssinaturas moleculares da seleção natural‘).

Há alguns anos haviam sido identificadas certos tipos de variantes genéticas (SNPs, do inglês ‘single nucleotide polymorphisms’) muito comuns em populações inuítes, mas raras em outras populações, que exibiam tais ‘assinaturas moleculares‘, sugerindo que os genes associados a essas variantes haviam sido selecionados nessas populações, no passado, em virtude de alguma vantagem conferida aos seus portadores nesses ambientes extremos. Agora, um grupo de cientistas brasileiros investigou variantes genéticas similares em populações nativas americanas que habitam diferentes regiões ecológicas, e descobriram variantes específicas em dois cromossomos que são comuns a todas essas populações estudadas (53) e estão associadas aos mesmos tipos de genes que parecem ter sido alvos da seleção natural nas populações do Ártico: os genes de enzimas chamadas FADS (‘Fat Acid Desaturases’), isto é Dessaturases de ácidos graxos. O artigo com este estudo foi publicado este mês na revista PNAS e indica, segundo seus autores, um único e forte evento adaptativo que teria ocorrido na Beríngia, cerca de 18 mil anos atrás -isto é, antes da grande expansão pelo continente Americano e Groenlândia. Como é explicado no abstract:

Quando os seres humanos se deslocaram da Ásia para as Américas, mais de 18.000 anos atrás, eventualmente, povoando o Novo Mundo, eles encontraram um novo ambiente com condições climáticas extremas e recursos dietéticos distintos. Essas pressões ambientais e dietéticas podem ter levado a casos de adaptação genética com o potencial de influenciar a variação fenotípica em populações indígenas nativas. Um exemplo de tal evento é a evolução dos genes das dessaturases de ácidos graxos (FADS), que foram apresentados como portadores de sinais de seleção positiva em populações inuítes devido à adaptação ao clima frio do Árctico da Groenlândia e a uma dieta rica em proteínas. Como havia evidências de variação intercontinental nessa região genética, com indicações de seleção positiva para suas variantes, decidimos comparar os achados inuítes com outros dados de nativos americanos. Aqui, usamos várias linhas de evidência para mostrar que o sinal de seleção positiva para FADS não está restrito ao Ártico, mas, ao invés disso, é amplamente observado em todas as Américas. A assinatura compartilhada de seleção entre as populações que vivem em uma gama tão diversificada de ambientes é provavelmente devida a um exemplo único e forte de adaptação local que teve lugar na população ancestral comum antes de sua entrada no Novo Mundo. Esses primeiros americanos povoaram todo o continente e espalharam essa variante adaptativa através de um conjunto diversificado de ambientes.”

A ideia é relativamente simples. Nesses ambientes remotos e extremos, com baixas temperaturas e com recursos escassos, os indivíduos que conseguissem metabolizar melhor as gorduras saturadas disponíveis nas fontes de alimentos mais abundantes, teriam uma clara vantagem, tendo uma maior chance de sobrevivência e, assim, de deixarem mais descendentes. O maior sucesso reprodutivo desses indivíduos em relação aos demais faria com que esses genes mutantes (e as variantes genéticas associadas a eles) aumentassem de frequência na população, tornando-se cada vez mais comuns com o passar das gerações. Assim, mesmo que as populações descendentes, ao espalharem-se pelas Américas, não tivessem mais vantagens adaptativas por causa de mudanças para outros ambientes mais prósperos, ainda assim, como tais variantes não implicavam em nenhuma desvantagem, elas tenderiam a ser mantidas, como parte de um efeito fundador.

Abaixo temos um vídeo em que a pesquisadora Tábita Hünemeier explica o trabalho realizado por ela e vários colaboradores:

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Referência:

  • Amorim CEG, Nunes K, Meyer D, Comas D, Bortolini MC, Salzano FM, Hünemeier T. Genetic signature of natural selection in first Americans. Proc Natl Acad Sci U S A. 2017 Feb 28;114(9):2195-2199. doi: 10.1073/pnas.1620541114.

Ressuscitando genes e proteínas ancestrais: Uma viagem molecular no tempo.

Tudo o que sabemos sobre o passado mais remoto depende daquilo que restou dele nos dias atuais e do que podemos concluir a partir daí. As viagens no tempo da ficção científica, pelo menos como imaginadas por H.G. Wells e outros autores, ainda são só isso: ficção. Os paradoxos que se impõem a partir das indagações filosóficas sobre o tema e a gigantesca complexidade e as assustadoras demandas que as teorias da física moderna fariam, caso as viagens no tempo para o passado fossem possíveis, não nos deixam muita esperança, na prática, de voltar ao passado e testemunhá-lo por nós mesmos. Essa simples constatação tem por implicação que as ciências históricas (como a geologia, a paleontologia e boa parte da biologia evolutiva) deparam-se com limitações óbvias, que, não obstante, não nos impediram de alcançar conclusões muito sólidas sobre o que de fato ocorreu ou não.

Porém, apesar de as viagens no tempo para o passado continuarem apenas objeto da ficção científica, o avanço nas técnicas de sequenciamento, síntese, expressão e análise de biomolécula – juntamente com o desenvolvimento de métodos filogenéticos, equipamentos e procedimentos computacionais necessários a sua execução – estão nos dando a oportunidade de ‘trazer do passado’ biomoléculas há muito desaparecidas de nosso planeta. Essas técnicas têm modificado e enriquecido o estudo da evolução biológica. Elas nos permitem olhar muito mais longe em nosso passado evolutivo do que antes havíamos ser possível. Os genes e as proteínas de espécies extintas não estão mais para sempre perdidos no tempo.

Abordagens horizontais e as abordagens verticais:

Existem dois tipos principais de abordagens para o estudo da evolução molecular funcional. O primeiro tipo de abordagem envolve estudos comparativos e de mutagênese que concentram-se apenas nas versões atuais de proteínas semelhantes, de vários tipos de organismos aparentados, mas que exibem funções distintas. O segundo tipo de abordagem, como o nome sugere, envolve rastrearmos a história evolutiva das sequências de DNA e de proteínas ancestrais. Esse segundo tipo de abordagem vale-se das modernas técnicas de análise filogenética que permitem a criação de árvores de genes e a inferência dos estados ancestrais das sequências desses genes nos ancestrais comuns dos grupos de seres vivos que estão sendo estudados [1].

Essa segunda classe de estratégias permite que, não só identifiquemos as porções responsáveis pelas diferentes funções destes genes (e das proteínas por eles codificadas), mas também que desvendemos a ordem das mutações que deram origem às diferentes variantes, a partir das sequências ancestrais. Essas abordagens também nos abrem a possibilidade de estudarmos como mutações não diretamente ligadas a alteração de função dos genes podem ter influenciado, indiretamente, interferido nesse processo. Isso quer dizer que a reconstrução de sequências ancestrais possibilita o estudo dos efeitos epistáticos entre diversas mutações ao longo de uma sequência de aminoácidos de uma proteína. Através delas podemos investigar como essas mudanças permitiram que as atuais funções dessas biomoléculas evoluíssem a partir de funções ancestrais [1].

Mas temos que ir com calma. Primeiro de tudo, precisamos compreender melhor porque os estudos horizontais são extremamente limitados.

Olhando apenas para o presente:

“A razão porque estudos deste tipo fracassam é que eles ignoram a história. A função da proteína evoluiu a medida que mutações acumularam-se ao longo do tempo, verticalmente em linhagens ancestrais de proteínas, enquanto que as comparações horizontais de proteínas modernas envolvem apenas as pontas da árvore evolutiva.” [1]

Dois são os problemas principais com a abordagem horizontal. Para começar, muitas diferenças nas sequências de aminoácidos entre duas proteínas modernas (da mesma família, mas com funções distintas) são irrelevantes para as diferenças funcionais, tendo acumulado-se durante o período em que as funções de interesse simplesmente não se alteraram. A deriva genética aleatória – especialmente em populações pequenas – pode levar a fixação e, portanto, ao acúmulo de mutações neutras e até mesmo de algumas ligeiramente desvantajosas. Porém, mesmo que essas mutações não alterem a função corrente da biomolécula, elas, ainda assim, podem alterar o contexto bioquímico e biofísico da qual a função depende.  Esse é o outro ponto muito importante. Modificações que não alterem as funções das sequências de DNA e de seus produtos (ou que as alterem muito pouco) são invisíveis a seleção natural purificadora, mesmo que elas provoquem mudanças na forma como a função é alcançada – por exemplo, a partir de pequenas alterações nas interações intramoleculares entre os resíduos de aminoácidos [2]. Essas mudanças podem, ainda assim, tornar mudanças posteriores (provocadas por mutações adicionais) possíveis, ou, em contrapartida, inviabilizá-las completamente [1, 2].

Mutações restritivas e permissivas:

Duas variedades de mutações epistáticas ao longo de caminhos evolutivos são particularmente relevantes. As chamadas ‘mutações permissivas‘ introduzem aminoácidos necessários para que uma proteína tolere outras mutações, essas sim, fundamentais para mudança de função. Essas mutações podem, por exemplo, aumentar a estabilidade da proteína, ‘tamponando-a’ contra a aquisição (por mutações subsequentes) de novos resíduos de aminoácidos desestabilizadores, mas que criariam uma função distinta [1, 2].

O outro lado da moeda são as ‘mutações restritivas‘. Esse tipo de mutações introduz resíduos de aminoácidos que são incompatíveis com as funções de outros membros da família, isto é, uma vez na sequência de aminoácidos elas impedem que sequência desempenhe outra função observada em uma outra proteína bem similar, de alguma linhagem próxima, mesmo que ela sofra uma alteração idêntica a da outra proteína. Normalmente, isso acontece porque tais mutações produzem ‘confrontos estéricos’, isso é, as cadeias laterais dos aminoácidos trocados podem obstruir as cadeias laterais de outros resíduos e, desta maneira, interferir com o enovelamento da cadeia de aminoácidos, impedindo que a proteína adquira uma conformação tridimensional final estável e consistente com essa outra função* [2]. Por isso, caso apenas troquemos os resíduos que acreditamos serem os responsáveis pelas diferenças de função (como aqueles que encontram-se ‘sítios de ligação‘ ou dos ‘centros ativos‘, de receptores e enzimas) de uma outra proteína (em cuja linhagem mutações restritivas ocorreram ou em que mutações permissivas não ocorreram), isso poderá resultar em uma proteína não funcional ou cuja função é bastante prejudicada, mesmo que os resíduos trocados tenham sim um papel essencial na mudança funcional [1] e representassem nas proteínas ancestrais biomoléculas viáveis. Isso mostra que o pano de fundo mutacional é muito importante para eventuais mudanças de função. 

Em resumo, isso quer dizer que, as versões atuais das proteínas (isto é, aquelas existentes nos organismos remanescentes) podem simplesmente não serem capazes de trocar de funções umas com as outras sem que essas outras mudanças no pano de fundo (que ocorreram em versões ancestrais intermediárias destas sequências) também ocorram, o que só pode ser descoberto pelos métodos verticais [1, 2]. Toda essa rica história de interações indiretas é perdida nas abordagens horizontais.

Por causa disso, estudos levando em conta apenas as biomoléculas modernas – que permitem investigarmos o efeito de mutações apenas no pano de fundo das sequências atuais – podem facilmente perder este efeito da história mutacional das sequências (em diferentes ramos de uma linhagem). Efeito esse que teria permitido cada variante evoluir suas funções específicas [1].

Na figura acima (retirada de 1) podemos visualizar a ‘dissecação’ dos fatores que determinam as funções de uma sequência dentro de uma família de proteínas que exibem uma função ancestral (representada pelo círculo preenchido) e uma função derivada (representada pelo círculo branco). Veja que a alteração levou à função derivada (nova) foi causada por um subconjunto das alterações na sequência ao longo do ramo C (retângulo preto). No cenário mostrado aqui, foram necessárias mutações permissivas no ramo B (estrela preta). Elas permitiram que a proteína tolerasse as mutações que levaram a mudança de função. Veja que mutações restritivas – incompatíveis com a função ancestral – acumulam-se no ramo D (cruz). É aí é que encontra-se o principal problema das abordagens horizontais. Nestas abordagens, tudo que ocorre é simplesmente a colocação de resíduos de aminoácidos que são responsáveis pela função de uma proteína moderna em outra proteína moderna, que tem uma função diferente. Isso é, exatamente, o que está representado pela seta. É por isso que tal abordagem é tremendamente ineficiente. A nova função não surgiu dessa maneira. Tal perspectiva ignora a história evolutiva. As duas sequências atuais diferem em todas as mutações ao longo de A, B, C e D. Porém, o mais importante é que a proteína X não tem as mutações permissivas e, portanto, não pode passar a desempenhar a função derivada. Por fim, a proteína Y, ao longo de sua evolução, adquiriu mutações restritivas, que, assim, não permitem que ela tolere a função ancestral, o que inviabiliza a mudança de Y para X [1].

É por isso que, como explicam Harms e Thornton [1], uma abordagem na qual explicitamente leve-se em conta a filogenia do grupo de organismos cujas biomoléculas estão sendo investigadas é essencial. Uma estratégia vertical desse tipo iria concentrar-se naquelas mutações que ocorreram ao longo do ramo na árvore genealógica em que ocorreu a alteração funcional de interesse. Essa abordagem é claramente mais eficiente porque somente as mutações que ocorreram durante um período limitado de tempo evolutivo precisam ser investigadas. Ao utilizarmos apenas o pano de fundo mutacional da linhagem da proteína na qual a sequência de alterações realmente ocorreu, evita-se a confusão causada por causa de interações epistáticas. Inclusive isso permite identificar as eventuais mutações epistáticas restritivas e permissivas envolvidas no processo.

Reconstrução de sequências ancestrais:

A grosso modo, o que se faz é inferir a sequência de aminoácidos da proteína ancestral por meio de métodos filogenéticos e a partir daí, utilizando-se o conhecimento do código genético, cria-se uma sequência de DNA correspondente, sintetizasse-a e a insere em algum tipo de célula, de algum sistema de cultura celular in vitro, para que seja transcrita em um mRNA e traduzida em uma proteína. Uma vez expressa, a proteína ancestral pode ser testada diretamente, usando-se ensaios bioquímicos e farmacológicos, ou purificada, de modo que possa ser analisada por métodos como a difração de raio X ou ressonância nuclear magnética (NMR), além de métodos de bioinformática estrutural, que permitem criar um modelo da estrutura tridimensional da proteína. É possível fazer isso com todos os intermediários, que podem, então, serem testados e comparados entes si e com as versões atuais exibidas pelos representantes remanescentes das linhagens sendo investigadas [1, 3].

Ao lado, vemos resumida a estratégia de ressurreição de genes ancestrais‘. No esquema podem ser vistas as etapas necessárias para ‘ressuscitar’ e caracterizar um gene ancestral e seu produto primário. É mostrada na figura uma proteína hipotética de algum vertebrado ancestral, como um exemplo [3].

As sequências disponíveis para as várias versões da proteína de diferentes espécies evolutivamente aparentadas são alinhadas juntamente com as sequências de um ‘grupo externo‘, que é como são chamadas na sistemática filogenética as sequências que são consideradas mais distantemente relacionadas as sequências empregadas na análise (as sequências do ‘grupo interno’) do que estas últimas são umas das outras. A partir daí – e utilizando-se de métodos específicos – uma árvore filogenética do grupo é construída. Caso já haja uma filogenia robusta do grupo em questão, as sequências das diversas espécies são simplesmente sobrepostas a árvore filogenética disponível [1, 3, 4, 5].

Uma vez de posse da filogenia do grupo, são empregados métodos filogenéticos, como máxima parcimônia, máxima verossimilhança ou bayesianos [3, 4]. Esses métodos são utilizados para inferir a melhor estimativa do estado ancestral para cada sítio (posição) na sequência, tendo como base os dados das sequências atuais. Os métodos de máxima parcimônia operam minimizando a quantidade de mudanças evolutivas ao longo dos ramos da árvore filogenética, com as árvores (ou estados ancestrais) que requerem o menor número de alterações sendo os preferidos [Para saber mais sobre os métodos cladísticos veja ’Filogenia Mastigada 1: Princípios de Filogenia e conceitos básicos’, ’Filogenia Mastigada 2: Polarização de Séries de Transformações e o conceito de Homoplasia’, ’Filogenia Mastigada 3. Grupos Monofiléticos e Merofiléticos e a filosofia por detrás da Filogenia’, ’Filogenia Mastigada 4 : Interpretando uma árvore filogenética – parte ½’ e ’Filogenia Mastigada 5 – Interpretando uma árvore filogenética 2/2’].

O problema principal com esses métodos é que eles não incorporam um modelo evolutivo explícito, mesmo que certas versões, como os métodos de parcimônia ponderada, possam acomodar diferentes cenários de mudança de caráter. Esse método também não é apropriado quando ocorreram múltiplas substituições em um sítio, já que assume implicitamente uma baixa taxa de mudança [4, 5]. Já os métodos filogenéticos baseados na análise de máxima verossimilhança utilizam como critério de ‘otimalidade’ um escore de verossimilhança, que é calculado tendo como base um modelo de evolução molecular especifico. O escore de otimização pode ser usado para especificar a topologia [padrão de ramificação] e os outros parâmetros da árvore, como os comprimentos de ramos, as frequências dos estados das características e os próprios estados ancestrais. Por fim, os métodos bayesianos também podem ser utilizados para calcular os estados ancestrais por meio das probabilidades posteriores. Tais probabilidades podem ser calculadas usando-se as topologias, os comprimentos de ramificação e os parâmetros de modelo, todos estimadas por máxima verossimilhança, que são inseridos como probabilidades prévias (‘priors’) ou, de maneira alternativa, as probabilidades posteriores podem ser calculadas considerando a incerteza na topologia e nos parâmetros obtidos por máxima verossimilhança, empregando o que os especialistas chamam de ‘Métodos de Monte Carlo via Cadeias de Markov (MCMC)‘. A vantagem de tais métodos é que, ao utilizarem um modelo explícito de evolução molecular, isso nos permite incorporar o conhecimento dos mecanismos e restrições que atuam sobre as sequências codificantes, além de podermos comparar o desempenho de diferentes modelos, tornando a análise muito mais realista e robusta [3, 4, 5]. Esses métodos estocásticos permitem que os pesquisadores explorarem diferentes modelos de evolução molecular de maneira que eles consigam determinar o quão robustos são os resultados da reconstrução ancestral, Isso é extremamente importante, uma vez que modelos simplificados ou irrealistas podem, em certos casos, produzir reconstruções filogenéticas enganosas ou incorretas, o que deixa claro a importância de métodos e critérios rigorosos para a seleção de modelos. Para saber mais sobre essas questões dê uma olhada nesta resposta aqui, disponível em nosso tumblr.

Esses métodos são então usados para inferir a melhor estimativa do estado ancestral para cada sítio (posição) na sequência tendo como base os dados das sequências atuais. Uma fez feito isso, são sintetizadas pequenas sequências de DNA (chamadas de ‘oligonucleotídeos’) que são montadas em genes que codificam a proteína ancestral através da técnica de PCR gradual ou por digestão de restrição/ligação. Nesta etapa pode ser utilizada a estratégia de mutagênese dirigida ao local caso a sequência ancestral possa ser criada através da introdução de apenas algumas alterações num gene existente. Essas sequências de DNA são então inseridas em vetores especiais e introduzidas em culturas de células por métodos de ‘transformação’ o que permite que elas sejam expressas e estudadas [3, 4].

De acordo com Thornton [3], a preferência é sempre dada as sequências de aminoácidos porque elas contêm menos “ruído” do que as sequências de DNA, que são mais sujeitas a convergência e a reversão mutacional. Com base em nosso conhecimento do código genético (a relação entre tripletos de nucleotídeos, os códons, e os aminoácidos especificados por eles nas proteínas) é inferida uma sequência de DNA codificante para a proteína ancestral. Caso o sistema de expressão específico possua algum tipo de preferência de códons (viés de códons), isso ser pode ser introduzido para melhorar a taxa de tradução da proteína, de maneira, que ela seja obtida em maior quantidade. A proteína pode depois disso ter suas funções caracterizadas por meio de testes experimentais, bioquímicos (tais como ensaios ‘gene repórter’, que permitem que estudemos sua expressão) ou farmacológicos (como os ‘ensaios de ligação’, em é quantificada a ligação da proteína ao substrato ou ao ligante). Em outros casos pode-se investigar a resposta da proteína a algum parâmetro físico, como a luz, ou sua estabilidade termodinâmica [3, 4, 5]. Como já mencionado, caso necessário, também é possível purificar a proteína ancestral para melhor estudar sua estrutura tridimensional. Isso é feito através da clonagem do gene ancestral em um plasmídeo, que permite a expressão de alto nível, que é  transfectado para células bacterianas ou de mamíferos em cultura.

Rodopsinas Ancestrais e a visão dos dinossauros:

Com o intuito de compreender melhor a evolução da visão entre os Arcossauros, Belinda Chang e alguns outros cientistas resolveram examinar a proteína responsável pela visão em baixas condições de iluminação [4, 5]. Os arcossauros são um grupo de vertebrados que inclui os dinossauros já extintos, bem como as aves (o grupo remanescente de dinossauros terópodes), além dos crocodilianos modernos e ancestrais [4, 5]. Os ancestrais desses animais, que formam um dos principais ramos dos répteis diapsidas, originaram-se por volta de 240 milhões de anos atrás, no começo do período Triássico.

Chang e seus colaboradores [4, 5] usaram como base de sua análise as sequências de quatro espécies de animais, pertencentes a três grupos de arcossauros remanescentes: Crocodilianos (Aligátor); Aves (Pombo e Galinha), Peixe (Paulistinha), além das sequências de 26 outros vertebrados que foram utilizados como grupos externos [Veja aqui para maiores detalhes] [3]. A equipe liderada por Chang usou três tipos diferentes de modelos de máxima verossimilhança (modelos baseados em nucleotídeos, baseados em aminoácidos e em códons). As proteínas atuais diferiram em no máximo de 16% em relação as suas sequências de aminoácidos, o que permitiu que a sequência proteica do arcossauro ancestral fosse reconstruída com pouca ambiguidade, utilizando os três tipos de dados [3]. Para determinar qual modelo melhor se ajusta aos dados, os pesquisadores sempre que foi possível fizeram testes de razão de verossimilhança dentro de cada tipo de modelo [4, 5].

Feita a análise inicial, os pesquisadores constataram que as reconstruções do nódulo ancestral dos arcossauros, usando os modelos mais adequados de cada tipo, estavam todas de acordo, com exceção de três resíduos de aminoácidos, em relação aos quais uma reconstrução diferia das outras duas. Para determinar se estes pigmentos ancestrais seriam funcionalmente ativos, os genes correspondentes foram quimicamente sintetizados e depois expressos numa linhagem de células de mamífero em culturas de tecido. Isso foi feito através da montagem de sequência de DNA de 1 kilobase, que codifica a proteína rodopsina ancestral (a partir de cinco oligonucleotídeos longos), que foi, então, clonada em um vetor de expressão sob o controlo de uma sequência promotora constitutiva. O vetor foi transfectado em uma cultura de células de mamífero. Após a expressão deste gene, garantida pelo promotor constitutivo, e a subsequente tradução dos mRNAs resultantes, em um proteína, nas células em cultura, essas biomoléculas foram purificadas e submetidas a ensaios funcionais in vitro; os mesmo normalmente empregados para caracterizar as rodopsinas comuns [3].

Os produtos desses genes artificiais ligavam-se a molécula 11-cis-retinal, produzindo pigmentos fotoativos estáveis com o pico de absorção (λmax) de luz por volta da faixa dos 508 nanômetros, ligeiramente desviada para a porção vermelha do espectro em relação ao que se observa nos pigmentos dos vertebrados existentes atualmente. Os pigmentos do arcossauro ancestral também ativaram a transdução da proteína G [veja aqui para compreender como funciona a proteína G] retiniana, medida num ensaio de fluorescência [4, 5]. E isso ocorreu  a uma taxa semelhante ao que acontece com a rodopsina bovina [3]. Isso tudo indica que foi obtida uma molécula completamente funcional.

Ao lado [figura retirada de 4], em A podemos ver uma linha do tempo dos períodos geológicos, onde são mostradas as idades aproximadas de amostras antigas usadas em estudos que tentam amplificar material genético antigo, com as estimativas da idade do gene ancestral reconstruído da rodopsina do Arcossauro ancestral também indicada. Em B podemos observar uma filogenia das rodopsinas dos vertebrados utilizados para a reconstrução do nódulo ancestral, que está também indicado na figura. A topologia da árvore reflete a compreensão atual das relações sistemáticas entre as principais linhagens de vertebrados, com os comprimentos de cada ramo e os parâmetros dos modelos estimados através de máxima verossimilhança sendo indicados. Os picos de absorção aproximados das diversas rodopsinas dos vertebrados estão ressaltados em itálico.

Tais resultados são consistentes com a hipótese de que o arcossauro ancestral possuía a habilidade – pelo menos ao nível molecular – de ver bem em luz fraca. Isso significa que ele poderia ter sido sido ativo durante à noite.  Esse resultado por si só é impressionante.  Agora dispomos de janela para ecologia destas criaturas extintas.Podemos investigar alguns detalhes de seus modos de vida que nunca poderiam ter sido vislumbrados a partir do simples exame dos fósseis ou de qualquer outra evidência não molecular sobre o comportamento de dinossauros e de outros arcossauros extintos [3].

A ressurreição de receptores hormonais ancestrais:

Joe Thornton, a partir de 2003, seguiu uma abordagem semelhante. Desde então, ele e seus colaboradores vêm ampliando e aprofundando seus estudos. Seu trabalho iniciou-se com a análise das sequências de genes para receptores de hormônios esteroides de vários animais vivos hoje em dia. Essas sequências foram alinhadas e usadas para ‘descer’ a filogenia deste grupo de animais, usando os métodos explicados anteriormente. A partir dai, a equipe de Thornton pode inferir a sequência mais provável do antepassado comum de todos esses receptores, que deve ter existido entre 600 e 800 milhões de anos atrás. A reconstrução dos estados de tais sequências e a síntese das proteínas correspondentes (que permitiu ‘ressuscitar’ tais biomoléculas) possibilitou sua equipe “testasse experimentalmente hipóteses sobre a evolução que de outra forma seria apenas especulação” [6]. Através destes estudos, eles puderam mostrar que o receptor ancestral era sensível aos estrogênios, mas não a outros hormônios relacionados – apoiando a ideia de que esta família de receptores teria evoluído por meio de vários eventos de duplicações de genes, com as cópias evoluindo gradualmente suas afinidades por outros tipo de moléculas ligantes [6].

Thornton e seu grupo de pesquisa decidiram investigar em maior profundidade dois receptores para esteroides estreitamente relacionados, o receptor mineralocorticoide (MR), que liga ao hormônio aldosterona e que temo um papel na regulação de eletrólitos e água; e o receptor para glicocorticoides (GR), ao qual liga-se o cortisol e que está relacionado ao controle da resposta ao estresse. As evidências indicam que estas duas moléculas surgiram a partir da duplicação de genes que aconteceu há mais de 450 milhões de anos. Porém, a aldosterona só surgiria muitos milhões de anos depois, resultando em um enigma [6]:

‘Como a seleção poderia conduzir a evolução de ‘uma fechadura’ (o MR) para encaixar em uma chave (a aldosterona) que ainda não existia?’ [6]

A resposta para essa pergunta foi descoberta pela equipe de Thornton através de um trabalho liderado pela pesquisadora Jamie T. Bridgham [6, 7]. O fato de o antepassado de ambos os receptores ser sensível à aldosterona sugeria que existia algum outro ligante mais antigo com uma estrutura similar. Desta maneira, quando a aldosterona surgiu, esta molécula pode ser recrutada durante a evolução pelo receptor já existente (que por ligar-se a um molécula similar, estava  ‘pré-adaptado’) para exercer uma nova função biológica. Esse processo, Thornton chamou de ‘exploração molecular’ [6, 7]. Nesse mesmo trabalho, os cientistas também mostraram que o receptor para glicocorticoides estava evoluindo suas próprias funções específicas [6, 7].

Mais pistas sobre a evolução desses receptores continuaram ser descobertas em trabalhos subsequentes, revelando mais detalhes sobre como a evolução opera  ao nível molecular. A equipe de Thornton explorou a história de como o GR tornou-se sensível ao cortisol em um processo que demorou cerca de 20 milhões de anos, de acordo com suas estimativas. Para isso eles, trabalhando em colaboração com biólogos estruturais, que determinaram a estrutura cristalina do ancestral comum do GR e do MR. O que eles descobriram foi que apenas duas mutações cruciais em conjunto são capazes de alterar o sítio de ligação do receptor ancestral de modo a fazê-lo ligar-se preferencialmente ao cortisol. Além dessas duas, outras cinco mutações foram necessárias para produzir as versões atuais e garantir a especificidade aos ligantes atuais. Porém, quando os pesquisadores tentaram reverter a evolução das sequências, revertendo as sete mutações, elas não conseguiram transformá-lo de volta em uma proteína funcional, como era a versão ancestral. [Lembra-se de toda aquela discussão sobre mutações restritivas e permissivas?].

A nova molécula era quase completamente incapaz de responder a qualquer hormônio, ilustrando a limitação das abordagens horizontais que discutimos lá em cima, no começo dessa postagem. Foi quando eles perceberam que, além dessas sete mutações, um punhado de outras mutações também surgiram durante esse processo e, mesmo não estando diretamente associadas a afinidade e especificidade ao ligante, foram necessárias para produzir o receptor específico de cortisol. Thornton mostrou que era necessário desfazer essas mutações também para reverter a mudança [6]. De acordo com Thornton, tais mutações agiram como uma catraca evolutiva, impedindo que o receptor recuperasse sua função ancestral. Essa é uma demonstração fantástica de como o caminho da evolução pode ser historicamente contingente e depender de vários eventos completamente aleatórios [6, 7]. Nas palavras do próprio  Thornton:

“O acaso desempenha um papel muito grande na determinação de quais resultados evolutivos são possíveis”, diz ele [6].

A evolução abre portas para o futuro. Mas parece fechá-los – firmemente – por trás dele também, disse um editorial do New York Times [citado em 6].

 

Esses resultados sugerem que o receptor de esteroides ancestral tinha um perfil de especificidade semelhante aos dos receptores de estrogênio modernos; com os ligantes hormonais dos outros receptores (e as afinidades pelos genes-alvo com quem eles ligam-se e aos quais regulam) emergindo mais tarde, como novidades evolutivas derivadas. Porém, a conclusão mais surpreendentemente talvez seja a que, como o primeiro receptor na família era ativado por um hormônio que aparece apenas ao final de uma via de síntese de esteroides (que exibe vários intermediários, como a progesterona e testosterona), os novos pares ‘hormônio-receptor’ foram evoluindo conforme as sequências dos genes de receptores ancestrais foram sofrendo duplicação [6, 7]. Desta maneira, apenas posteriormente, evoluíram maior afinidade por esses esteroides que já estavam presentes, mas que, inicialmente, eram apenas passos intermediários da via de síntese, e só mais tarde passariam a desempenhar novas funções [3]. Essas descobertas ilustram a natureza oportunista e contingente do processo evolutivo. Logo após as duplicações dos genes que codificavam esse receptores, os  receptores extras devem ter permanecido órfãos ou redundantes. Porém, devido as similaridades estruturais entre os ligantes originais e seus diversos intermediários nas suas vias de síntese, eventualmente, mutações que levassem a ligação preferencial entre um desses intermediários e a cópia mutante do receptor – induzindo sua ativação em alguma nova circunstância (ao mesmo tempo que uma das cópias mantinha a função original) que trouxesse quaisquer vantagens – permitiriam o começo da evolução de uma nova função [7]. Em seu artigo de 2006 [7], os pesquisadores explicam que a ligação entre a aldosterona e o MR evoluiu de maneira gradual, completamente consistente com a moderna teoria evolutiva. O que mudou foram as funções que estavam sendo selecionadas ao longo do tempo. Como já ressaltado a sensibilidade do AncCR à aldosterona estava presente desde o inicio, muito antes do hormônio ter surgido. Ela era portanto um mero subproduto de restrições específicas no receptor associadas a ativação pelo seu ligante original, que tinha semelhanças com a aldosterona.

Como também vimos, após a duplicação que deu origem ao GR e ao MR, apenas duas substituições na linhagem que deu origem ao GR foram necessárias para produzir receptores com diferentes perfis de resposta hormonal. A evolução posterior do MR, que poderia ser regulado independentemente pela aldosterona, permitiu uma resposta endócrina mais específica do controle da homeostase de eletrólitos, mas sem também desencadear a resposta ao estresse associada ao GR; e, de modo complementar, as respostas de estresse não interfeririam com a homeostasia hídrica e de sais [6]. Veja que este cenário evolutivo – no qual um antigo receptor recruta um novo ligante – é o oposto da dinâmica previamente estabelecida para os receptores androgênicos e de progesterona (AR, PR), onde as duplicatas de um antigo receptor, que respondia a estrogênio, evoluíram afinidade a esteroides que anteriormente serviam como intermediários na síntese do próprio ligante ancestral [7].

 

Acima podemos observar um esquema da evolução da especificidade da sinalização MR-aldosterona por meio da ‘exploração molecular’. Em (A) está mostrada a via de síntese de hormônios corticosteroides. Nela as moléculas ligantes para o receptor corticoesteroide (CR) ancestral e para os MRs existentes estão sublinhadas. O cortisol, que é o ligante para o GR dos tetrápodes está mostrando com uma linha logo acima de seu nome e a adição terminal da aldosterona está ressaltada com a cor verde. Os asteriscos mostram as etapas catalisadas pela enzima citocromo P-450 11b-hidroxilase. Note que apenas a enzima dos tetrapodes pode catalisar o passo marcado com um asterisco verde, dado a mutações específicas que ocorreram nessa linhagem. Em (B) podemos ver que a sensibilidade do MR à aldosterona precedeu o surgimento do próprio hormônio, já que o ancestral vertebrado não sintetizava aldosterona (círculo pontilhado), mas produzia outros corticosteroides (círculo cheio). Esses animais possuíam um único receptor com afinidade para ambas as classes de ligantes. A duplicação genética (em azul) deu origem a GR e MR e duas alterações na sequência do GR (vermelho) aboliram sua capacidade de ser ativado pela aldosterona, mas mantiveram sua sensibilidade ao cortisol [ver (C)]. Nos tetrápodes, a síntese de aldosterona teve origem devido à modificação da enzima citocromo P-450 11b-hidroxilase. Em (C) podemos inferir a base mecanicista para perda de sensibilidade à aldosterona nos GRs. Os gráficos mostram o que ocorre quando são introduzidas alterações de aminoácidos (que filogeneticamente servem de diagnostico que ocorreram durante a evolução de GR) no domínio de ligação do ligante do receptor ancestral (AncCR-LBD) por mutagênese. As curvas dose-resposta são mostradas para aldosterona (verde), para DOC (azul), e para cortisol (vermelho). Veja que o mutante duplo (lado inferior direito) tem um fenótipo semelhante ao visto no GR moderno. As setas mostram caminhos evolutivos através de um intermediário não funcional (vermelho) ou funcional (verde), Ali fica claro como a ordem das mutações foi importante para produzir a transição [6].

Em conjunto, essas duas histórias sugerem uma dinâmica evolutiva bem mais geral em que novas interações surgem quando uma molécula recém gerada – que pode ser uma ligeira modificação estrutural ou duplicada de uma previamente existente – recruta como um ligante (parceiro de interação) uma molécula mais antiga, que havia sido previamente restringida pela seleção para uma função inteiramente diferente [7].

O enigma que os sistemas complexos representam para a evolução darwiniana depende da premissa de que cada parte não tem função – e, portanto, não pode ser selecionada para – até que todo o sistema esteja presente. Este quebra-cabeça poderia realmente fazer que a teoria de Darwin desmoronasse caso as funções das partes devessem permanecer estáticas todo o tempo. Mas praticamente todas as moléculas podem participar e participam em mais de um processo ou interação, então os elementos de um complexo podem ter sido selecionados no passado para funções não relacionadas. Nosso trabalho indica que os sistemas firmemente integrados podem ser montados combinando moléculas antigas com papéis ancestrais diferentes, juntamente com outras novas – geradas pela duplicação de genes ou elaboração de caminhos enzimáticos – que representam ligeiras variantes estruturais de elementos mais antigos. Propomos que a exploração molecular seja predominante tema na evolução, que pode fornecer uma explicação geral de como as interações moleculares críticas para a complexidade da vida surgiram a moda darwiniana.” [7]

Os trabalhos das equipes de Thornton, Chang e de outros biólogos evolutivos têm nos permitido compreender cada vez melhor como a evolução de sistemas biomoleculares complexos acontece. Além das novas técnicas e métodos que permitem trazermos o passado ‘de volta’, esses cientistas mostram como as objeções criacionistas esvaem-se frente a pesquisa científica moderna, deixando claro que tais objeções baseiam-se em formas muito estreitas e até caricatas de conceber a evolução biológica e que, para serem mantidas, dependem de ignorar a literatura científica e algumas das pesquisas mais impressionantes que tem sido realizadas nas últimas décadas.

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* Essas mudanças das relações epistáticas – isto é, do padrão de interferência entre diferentes resíduos de aminoácidos ao longo de uma mesma sequência proteica – podem ocorrer não só pela fixação de mutações neutras ou ligeiramente deletérias, em virtude da deriva genética, mas como resultado da interação da deriva com a seleção natural. Como mutações ligeiramente desvantajosas podem ser fixadas, reduzindo a aptidão do fenótipo associado àquela biomolécula, isso favorece a fixação por seleção natural de eventuais mutações compensatórias que aumentam a aptidão conferida pela sequência, podendo, porém, alterar as relações epistáticas entre os diversos resíduos [2]. A interação entre pressão de mutação, deriva genética em virtude de variações dos tamanhos das populações, seleção natural purificadora, seleção natural variante e por mutações compensatórias mostra que as vias de evolução de sistemas biomoleculares dependem muito de fatores estocásticos.

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Imagem da rodopsina de autoria de B. C. Chang disponível aqui.

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Referências:

  1. Harms MJ, Thornton JW. Analyzing protein structure and function using ancestral gene reconstruction. Current opinion in structural biology. 2010;20(3):360-366. doi:10.1016/j.sbi.2010.03.005.

  2. Ohta, Tomoko (February 2013) Molecular Evolution: Nearly Neutral Theory. In: eLS. John Wiley & Sons, Ltd: Chichester. doi: 10.1002/9780470015902.a0001801.pub4

  3. Thornton JW. Resurrecting ancient genes: experimental analysis of extinct molecules. Nat Rev Genet. 2004 May;5(5):366-75. :10.1038/nrg1324

  4. Chang, B.S.W. et al. Recreating a functional ancestral archosaur visual pigment. Molecular Biology and Evolution, 2002 Sep;19(9):1483-9. PubMed PMID: 12200476.

  5. Chang, B.S.W. Ancestral Gene Reconstruction and Synthesis of Ancient Rhodopsins in the Laboratory Integr. Comp. Biol. 2003, 43 (4): 500-507 doi:10.1093/icb/43.4.500

  6. Pearson H. Prehistoric proteins: Raising the dead. Nature. 2012 Mar 21;483(7390):390-3. doi: 10.1038/483390a.

  7. Bridgham JT, Carroll SM, Thornton JW. Evolution of hormone-receptor complexity by molecular exploitation. Science. 2006 Apr 7;312(5770):97-101. DOI: 10.1126/science.1123348

Informação, biologia e evolução Parte IV:

Informação e Complexidade

Nessa quarta parte da série de postagens “Informação, biologia e evolução” [‘Informação, biologia e evolução: Parte I‘ e “Informação, biologia e evolução Parte II” e “Informação, biologia e evolução Parte III”] abordarei as relações entre informação e complexidade. Como ocorre com a palavra ‘informação’, a palavra ‘complexidade’ tem vários significados relacionados, a maioria dos quais muito vagos e, por vezes, ambíguos. Por causa disso não existem medidas de caráter geral para a complexidade que tenham sido consensualmente aceitas pelos cientistas:

Apesar da importância e ubiquidade do conceito de complexidade na ciência e na sociedade moderna, não existem atualmente meios gerais e amplamente aceitos para medir a complexidade de um objeto físico, sistema ou processo. A falta de qualquer medida de caráter geral pode refletir o estágio inicial da nossa compreensão dos sistemas complexos, que ainda carece de uma estrutura unificada geral que atravesse todas as ciências naturais e sociais.”[1]

Para quantificá-la é necessário, primeiro, defini-la de maneira rigorosa e precisa, restringindo seu escopo de aplicação. Infelizmente, isso normalmente tem como resultado que muitos de seus sentidos coloquiais, que tanto desejaríamos ver respaldados por essas medidas, são completamente perdidos. Nessas situações, a aplicação à biologia, de maneira geral (e a biologia evolutiva, de maneira mais específica) torna-se duvidosa [1, 2].

A maioria concorda, porém, que ninguém sabe exatamente o que se quer dizer com a palavra “complexidade” quando se refere a um organismo biológico. De fato, embora medidas de complexidade abundem (muitas delas inventados pelos físicos), sua relação com a biologia nem sempre é clara.”[2]

Um dos problemas é que algumas das mais conhecidas medidas de complexidade a identificam com a aleatoriedade, pura e simplesmente. Medidas como o ‘conteúdo de informação algorítmica’ e a ‘profundidade lógica’ parecem realmente completamente irrelevantes à biologia, já que tentam capturar a aleatoriedade inerente a um certo tipo de ‘objeto’. Essas medidas, que tentam identificar o comprimento da menor descrição de um processo, atribuem maior complexidade a processos aleatórios, que resistiriam à compressão [1].

Dessa forma, o ‘conteúdo de informação algorítmica’ – (AIC) um medida definida pelo matemático russo, Kolmogorov, em 1965, e pelo matemático americano, Gregory Chaitin, em 1977 – estabelece que “a quantidade de informação contida em uma sequência de símbolos é dada pelo comprimento do programa de computador mais curto que gera a tal sequência” [1]. Isso faz com que cadeias altamente regulares – periódicas ou monotônicas, e que, assim, poderiam ser produzidas por programas curtos – conteriam pouca informação. Enquanto isso, cadeias aleatórias que requeressem-se um programa tão longo quanto a própria sequência, teriam um altíssimo conteúdo de informação, ou seja, a informação e, portanto, a complexidade seria máxima. A ‘Profundidade lógica’, de Bennett, é uma outra medida relacionada à AIC [1]. Ela é definida como a quantidade mínima de recursos computacionais (tempo, memória, etc) necessários para resolver uma dada classe de problema, referindo-se, principalmente, ao tempo de execução do programa mais curto capaz de gerar uma dada sequência ou padrão de sequências [1].

Complexidade dos seres vivos:

Existem outras maneiras mais diretas de ‘quantificar’ a complexidade dos sistemas biológicos, por exemplo, como contar o número de partes ou componentes ou interações de um sistema, o que Dan McShea chama de ‘complexidade estrutural’ [1, 2]. Contar as funções desempenhadas pelo organismo como um todo ou por seus componentes é outra possibilidade também discutida por McShea, que refere-se a estas medidas como ‘complexidade funcional’ [vejaAlém da seleção natural II: Complexidade e novas funções por caminhos alternativos”, “Complexidade por subtração da complexidade ”, “Fatores não adaptativos e a evolução da regulação gênica em procariontes.”, “O preço da complexidade]. Por fim, podemos contar também o número de níveis hierárquicos exibidos pelo sistema – ou seja, sua ‘complexidade hierárquica’.

Como já discuti em outras postagens, medidas deste tipo podem ser muito úteis para certos estudos. Separar a complexidade estrutural da funcional pode nos trazer vários insights importantes sobre como processos não-adaptativos podem colaborar com o aumento do primeiro tipo de complexidade, mas não necessariamente do segundo, e como a seleção natural pode tanto aumentar como diminuir ambos os tipos de complexidade [Além da seleção natural II: Complexidade e novas funções por caminhos alternativos]. De maneira semelhante, a complexidade hierárquica pode fazer sentido nas comparações entre seres uni e pluricelulares que, do ponto de vista funcional e estrutural, podem não serem necessariamente tão diferentes, em termos de complexidade ou pelo menos mais difíceis de comparar. Tais medidas podem ser empregadas para comparação de diferentes linhagens ao longo do tempo geológico e nos ajudar a julgar se existe algum tipo de tendências em direção ao aumento ou diminuição de algumas desta medidas e, se tais padrões existirem, definir de que tipo eles são [2]. Porém, sua aplicação tem sérias limitações; tanto porque existem várias formas de medir cada um dos tipos de complexidade descritas acima, não existindo um consenso amplo sobre quais as  melhores formas de fazê-lo, como porque muitas dessas medidas podem ser bastante difíceis de serem implementadas na prática.

Além disso, alguns dos resultados dessas medidas podem simplesmente destoar do que esperaríamos intuitivamente de uma medida que visa quantificar a complexidade, o que reduz, de novo, seu escopo e interesse. Por exemplo, sistemas grandes e altamente acoplados não necessariamente devem ser considerados mais complexos do que aqueles que são menores e menos acoplados. De fato, sistemas muito grandes que encontrem-se totalmente ligados podem ser descritos de uma maneira compacta e podem exibir um comportamento muito mais uniforme do que um sistema menor, muito mais heterogêneo, cuja descrição seria muito menos compressível e seu comportamento bem mais variado [1, 2].

Complexidade em sistemas dinâmicos:

Existem, entretanto, outras medidas que talvez aproximem-se mais ao que desejaríamos em uma medida de complexidade, pelo menos, em certos contextos mais limitados e bem definidos. Algumas delas podem produzir resultados que parecem apropriados, pelo menos naquilo que seriam os extremos do espectro de complexidade, preservando, assim, algumas das características que intuitivamente gostaríamos de observar nessas medidas. Entre essas medidas estão a ‘complexidade estatística’, a ‘complexidade neural’ e ‘complexidade física’ [1].

Essas abordagens encaram a complexidade como algo distinto da aleatoriedade, e os sistemas complexos são aqueles que possuem uma elevada quantidade de estrutura ou de informação, muitas vezes em várias escalas temporais e espaciais, porém, sem que seja necessário existir uma relação direta e linear com o tamanho ou o nível de conectividade e integração [1,2].

Os pesquisadores que trabalham com a teoria dos sistemas dinâmicos interessam-se em medidas que exprimam a complexidade desses processos [1]. Já abordei antes, aqui no evolucionismo.org [“De determinantes ‘genéricos’ aos ‘genéticos’: A importância da física nos primódios da evolução animal” e “É a evolução genética previsível? Parte II ou Além da genética parte I“], algumas das contribuições do estudos dos sistemas dinâmicos à biologia evolutiva, principalmente no que concerne a evolução de novas morfologias, foco da evo-devo, e, nesse sentido, a evolução da complexidade morfológica em seres multicelulares. Porém, como estamos lidando com propostas de métricas de informação e complexidade, vamos entrar em um terreno diferente do que eu havia abordado nessas postagens anteriores.

De acordo com Sporns, a complexidade de qualquer sistema físico ou de qualquer processo dinâmico deve expressar o grau com que os componentes daquele sistema (ou os constituintes daquele processo) envolvem-se em interações estruturadas organizadas. A alta complexidade seria alcançada por sistemas que apresentam uma mistura de ordem e desordem (ou seja, de aleatoriedade e regularidade) e que tenham uma capacidade de dar origem a fenômenos emergentes [1]. Existe, então, um consenso que tanto processos periódicos como processos completamente aleatórios representariam os extremos de uma escala, como os  aleatórios (sem qualquer estrutura) em uma ponta e os completamente ordenados, em outra. Portanto, qualquer medida útil de complexidade deveria atribuir a esses extremos baixa complexidade. Portanto, sistemas altamente complexos seriam posicionados em algum lugar entre os sistemas altamente ordenados (regular) e os altamente desordenados (aleatórios), como mostra à grosso modo a figura ao lado [1], adaptada da originalmente publicada por Huberman and Hogg (1986) [1].

Talvez a medida mais interessante  de complexidade, para os nossos propósitos, já que e que relaciona-se mais diretamente às teorias da informação, seja a chamada ‘complexidade física’ (Cf), desenvolvida por Adami e Cerf, em 2000. Ela está relacionada a chamada ‘complexidade eficiente’, proposta por Murray Gell-man [1, 2]. Seus criadores a conceberam para estimar a complexidade de qualquer sequência de símbolos que seja ‘a cerca de contexto físico ou ambiente‘ específico [2]. A Cf é definida como a AIC que é compartilhada entre uma sequência de símbolos (como um genoma) e algum tipo de descrição do ambiente em que ela tenha algum significado, como o nicho ecológico dos organismos que as carregam.

Como AIC não é computável, a Cf também não o é. Porém, a Cf média de um conjunto de sequências pode ser aproximada. Assim, a Cf média de um conjunto de genomas de toda uma população de seres vivos pode ser aproximada por meio da ‘informação mútua’ (uma medida derivada da teoria de Shannon) entre conjuntos de sequências genômicas e o ambiente em que os indivíduos da  população que as portam vivem [2, 3].

A Cf média também foi utilizada para estimar a complexidade de biomoléculas e em outros estudos, que tal medida correlaciona-se positivamente, com a complexidade estrutural e funcional de um conjunto de moléculas de RNA, o que sugere uma ligação entre as capacidades funcionais de estruturas moleculares que evoluíram e a quantidade de informação que eles codificam [1]. Por fim, simulações realizadas por Adami e seus colaboradores, corroboram os resultados das simulações realizadas por Tom Schneider [2, 3, 4]. Assim, como Schneider mostrou claramente, através de seus programa EV, que as medidas de ganho de informação Rsequência e Rfrequência, [veja “Informação, biologia e evolução Parte III“] aumentam, o grupo de Adami, usando a plataforma AVIDA, também mostrou que a informação mútua entre genomas autorreplicantes e o seu ambiente  – e portanto, sua complexidade física média (Cf média ) – aumentou ao longo das gerações [2, 3. 4].

Mas para compreendermos melhor isso, voltemos um pouco atrás.

Adami em um artigo de 2000, publicado na revista BioEssays. define a Cf de uma sequência como “a quantidade de informação que é armazenada na sequência sobre um determinado ambiente”. Dessa maneira, o ambiente em questão é aquele no qual esta sequência (um genoma, por exemplo) replica-se e, portanto, no qual seu hospedeiro vive, algo similar a ideia de nicho ecológico [2].

Adami chama a atenção para o fato de a complexidade física (Cf) ser algo diferente de sua contrapartida matemática ou algorítmica (a AIC, de Kolmogorov e Chaitin). Enquanto esta última preocupa-se com a regularidade (ou, no caso, a irregularidade) intrínseca de uma sequência, um reflexo das leis imutáveis ​​da matemática, a Cf, por outro lado, refere-se sempre a algum contexto específico no qual a sequência deve ser interpretada [2, 3].

Em consonância com Schneider, Adami enfatiza que ‘a aleatoriedade é, em alguns aspectos, o ”outro lado” da informação’.

Informação, entropia e complexidade

Como vimos nos posts anteriores desta série, ela pode ser associada a entropia na teoria da informação de Shannon:

A entropia é uma medida do potencial de conhecimento, ou se aplicado a uma sequência, uma medida da quantidade de informação de uma sequência poderia carregar, e, assim, quantifica a incerteza sobre a identidade genética de um indivíduo selecionado aleatoriamente a partir de uma pool.” [2]

De acordo com Adami, podemos imaginar a entropia de sequência como sendo o comprimento de uma fita, enquanto a informação é o comprimento da fita que contém gravações:

A medição (ou seja, a gravação) transforma fita vazia em fita gravada” [2]

Isto é, ela transforma entropia (incerteza) em informação (gravação). Esta metáfora tem paralelos diretos com a evolução, pois é exatamente o que acontece durante a evolução adaptativa, a força que impulsiona o aumento da Cfmédia nos seres vivos [2].

Infelizmente, como já mencionei nos outros posts, as tentativas de medir a informação (e, portanto, a complexidade, usando-se esta abordagem) são muitas vezes assombradas por usos errôneos desses conceitos. Muitas vezes a entropia foi postulada diretamente como a medida de complexidade baseada na teoria da informação. Porém, como vimos, a entropia de uma sequência é a quantidade de informação que tal sequência poderia transportar, o que pode ser compreendido de modo rigoroso como simplesmente o comprimento da sequência. Porém, o simples comprimento da sequência ou o tamanho total do genoma não é um bom preditor de nenhuma medida consistente da complexidade de um organismo, ao que os biólogos evolutivos referem-se como paradoxo-C [2].

A capacidade de previsão que obtemos a partir daí tem como implicação que a sequência e o sistema têm algo em comum, ou seja, existe uma correlação entre eles. Esta correlação provavelmente não se estenderia a outros sistemas, portanto, a sequência em questão dificilmente faria previsões sobre qualquer outro sistema, a menos, claro, que o tal sistema fosse muito parecido com aquele com o qual a sequência está correlacionada. Caso contrário, você não terá informação.

A informação é uma forma estatística de correlação e, portanto, requer, matemática e intuitivamente, uma referência sobre o sistema do qual a informação é sobre.” [2]

Ao invés disso, você terá informação potencial (a tal ‘entropia informacional’). Por outro lado, informação, neste sentido técnico (mas também no sentido mais intuitivo), é sempre sobre algo específico, o que nos leva a outra conclusão importante: Uma sequência pode incorporar informação sobre um dado nicho ao mesmo tempo que pode ser completamente aleatória em relação a outro, portanto, qualquer medida deste tipo deve ser relativa ou condicional ao ambiente em questão [2].

De volta a Shannon:

Como vimos anteriormente, a entropia de Shannon (H) é o número esperados de bits (‘decisões binárias’) necessários para especificar o estado de um determinado objeto dado uma distribuição de probabilidades, portanto, mede quanta informação pode ser potencialmente armazenada nele [3]. Desta maneira, em um sítio i de um genoma qualquer que possa abrigar um de quatro nucleotídeos cujas probabilidades são dadas por

a entropia de Shannon deste sítio seria igual a [3]:

Portanto, a entropia máxima por cada sítio seria igual a 2, caso usássemos o logaritmo na base 2, como faz Schneider, ou 1, caso, como prefere Adami, usássemos o logaritmo na base 4, correspondente ao tamanho do ‘alfabeto de símbolos’ usado, [A, C, G, T], caso a probabilidade de cada um dos nucleotídeos seja ¼. Para exibir informação máxima, no DNA, um sítio teria que ser perfeitamente conservado em toda a população, ou mais especificamente, em todo o conjunto de sequências (‘ensembles‘) perfeitamente equilibrados. Nesse caso, a probabilidade de uma das bases ocupar aquele sítio seria igual a 100% (p = 1) e as das demais bases seria igual a zero, o que tornaria Hi = 0 de acordo com a segunda equação [3].

Isso tem como consequência que a quantidade de informação por sítio é igual [3]:

Porém, para medir a complexidade de uma sequência de DNA de um organismo precisamos aplicar a equação  a todos os sítios e fazer seu somatório, o que nos dará, para um organismo com l par de bases: [3]

Aqui, como na abordagem de Schneider, obtemos a informação ao diminuir uma entropia de outra. No caso, a entropia máxima da sequência, representada pelo seu comprimento (já que usamos o logaritmo do tamanho do alfabeto) subtraída do somatório da entropia de cada sítio [3].

Adami enfatiza que tais valores são apenas aproximações da verdadeira Complexidade física do genoma de um organismo. Além disso, os sítios não são necessariamente independentes – e, portanto, que a probabilidade de encontrar uma certa base em uma posição pode ser condicionada à probabilidade de encontrar outra base em outra posição. Este fenômeno, conhecido como epistasia, pode tornar a entropia por molécula significativamente diferente do obtida pelo somatório das entropias por sítio. Neste caso, a entropia por molécula, levando-se em conta todas as correlações epistáticas entre sítio, é definida como [3]:

Tal medida envolve uma média dos logaritmos das probabilidades condicionais associada a encontrar o genótipo g dado o ambiente atual E, P(g | E). Pode-se estimar a entropia por molécula através da criação de clones mutantes para os vários sítios e em várias posições ao mesmo tempo, de modo que se possam medir os efeitos epistáticos, o que é possível fazer através de experimentos com ecossistemas simples de organismos [3], que é o que veremos no próximo post desta série.

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Referência:

  1. Sporns, Olaf  (2007) Complexity Scholarpedia, 2(10):1623. doi:10.4249/scholarpedia.1623

  2. Adami, C. (2002) What is complexity? BioEssays 24, 1085-1094. doi: 10.1002/bies.10192

  3. Adami C, Ofria C, Collier TC. ( 2000) Evolution of biological complexity. Proc Natl Acad Sci U S A. Apr 25;97(9):4463-8. doi: 10.1073/pnas.97.9.4463 

  4. Schneider TD. (2000) Evolution of biological information. Nucleic Acids Res.  Jul 15;28(14):2794-9. doi: 10.1093/nar/28.14.2794

Créditos das Figuras:

Julia set; autor: SolkollOwn work

Barnsley’s fern, autor: DSP-userusando o modelos de Mike Borrello , criado com VisSim