Maxwell Morais de Lima Filho

Dia C da Ciência

No início do século passado o cientista Carlos Chagas alcançou um feito único na História da Medicina ao relacionar os organismos e os aspectos relacionados à doença infecciosa que leva o seu nome. Chagas não só descobriu que o protozoário Trypanosoma cruzi (agente causador da doença) era transmitido pelo triatomíneo popularmente conhecido por barbeiro, como descreveu as manifestações clínicas e a epidemiologia da referida doença. Por sua relevante pesquisa acadêmica, Chagas foi por duas vezes indicado (1913 e 1921) ao Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina.

Dezenas de laboratórios brasileiros uniram forças há 20 anos para realizar uma façanha restrita a poucas potências mundiais – o sequenciamento completo de um genoma. O organismo biológico escolhido foi a bactéria Xylella fastidiosa, causadora de uma praga nos laranjais brasileiros e responsável direta por consideráveis prejuízos econômicos. Como não poderia ser diferente, o primeiro sequenciamento do genoma de um fitopatógeno no mundo colocou o Brasil na ponta da pesquisa em Biologia Molecular, além de desempenhar relevante papel na formação e no aperfeiçoamento de numerosos cientistas brasileiros.

Recentemente, a União Internacional de Matemáticos atribuiu pela primeira vez o mais importante prêmio desta área a um pesquisador da América Latina, o carioca Artur Avila. Quadrienalmente, no mínimo dois e no máximo quatro jovens matemáticos (com idade inferior a 40 anos) são laureados com a Medalha Fields. Com Avila, o Brasil se torna um dos 22 países a receber a mais distinta honraria da Matemática.

Os exemplos supracitados pretendem dar uma pequena amostra da importância tanto teórica como prática da Ciência e da Tecnologia para toda e qualquer sociedade. No que se refere à sociedade brasileira, as Universidades e os Institutos Tecnológicos produzem impressionantes 90% da pesquisa em nosso País! Só para se ter uma ideia do recente avanço científico tupiniquim, basta termos em mente que em um curto período de 20 anos (1993-2013) passamos da 24ª à 13ª posição do ranking de pesquisa científica mundial.

Infelizmente, o atual Governo Federal não parece compactuar com a evidente relação positiva entre a pesquisa científica e os avanços educacionais, sociais e econômicos para a sociedade, haja vista os severos cortes econômicos que tem infringido à Política Nacional de Ciência e Tecnologia do País. Nós do Grupo de Estudos Sobre Evolução Biológica (GESEB) compreendemos que o dinheiro aplicado para o desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia nas Universidades e nos Institutos Tecnológicos é um investimento que, cedo ou tarde, retornará multiplicado educacional, social e economicamente para o Brasil.

Finalmente, aproveitamos o ensejo para convidar todos para participarem das reuniões periódicas do GESEB, bem como para se fazerem presentes no II Encontro Alagoano de Evolução (março de 2018) e na 70ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (julho de 2018), que pela primeira vez ocorrerá em solo alagoano. Sejam todos bem-vindos!

25 de outubro de 2017

Maxwell Morais de Lima Filho (GESEB/UFAL)

Entrevista sobre Biologia Evolutiva

Entrevista sobre Biologia Evolutiva com o Professor Maxwell Morais de Lima Filho

Maxwell Morais de Lima Filho é Biólogo, Mestre e Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). O Professor Lima Filho leciona Filosofia na Universidade Federal de Alagoas (UFAL) desde 2011 e concedeu essa entrevista a Rafaela Almeida Garcia, Jornalista formada pela Universidade do Vale da Paraíba (UNIVAP), no dia 1º de outubro de 2015.

 

Rafaela: Qual a origem do Evolucionismo?

Maxwell: A evolução, para o que nos interessa aqui, está relacionada à mudança ou à transformação. Nesse sentido, podemos falar, dentre outras, de evolução do Universo (evolução astronômica), da Terra (evolução geológica) ou da vida (evolução biológica). Ideias sobre a transformação dos organismos biológicos são bastante antigas. Tais ideias transformacionistas ou evolucionistas se contrapõem conceitualmente às ideias fixistas. Dito isso, podemos considerar que o naturalista francês Jean-Baptiste Antoine de Monet, mais conhecido como (cavaleiro de) Lamarck, é um bom ponto de partida para responder essa questão, já que ele é considerado por muitos como o precursor da Biologia Evolutiva. Lamarck publicou o livro Filosofia Zoológica no início do século XIX, mais precisamente em 1809. Esta obra foi bastante influente e antecipou em 50 anos o livro mais importante dessa área, a saber, A Origem das Espécies, de Charles Darwin.

 

Rafaela: Quais são as bases da Biologia Evolutiva?

Maxwell: Uma concepção evolucionista da vida, ao contrário da concepção fixista, está relacionada à transformação dos organismos ao longo do tempo. Porém, o que diferencia as concepções evolucionistas entre si é o como elas explicam tais mudanças, ou seja, qual(is) é(são) o(s) mecanismo(s) evolutivo(s) responsável(is) pela transformação dos organismos ao longo do tempo: herança dos caracteres adquiridos por uso e desuso? Seleção natural? Deriva genética? Fluxo gênico? Jean-Baptiste Lamarck, Charles Darwin, Ernst Mayr e Stephen Jay Gould são evolucionistas porque explicam a modificação dos organismos por meio de mecanismos naturais, a despeito de suas divergências teóricas. As concepções evolucionistas de Ernst Mayr e Stephen Jay Gould, por exemplo, levaram em conta conceitos teóricos provenientes da Genética, os quais eram desconhecidos por Lamarck e Darwin. Tanto Lamarck quanto Darwin sabiam que as características eram transmitidas de pais para filhos. Entretanto, nem o naturalista francês nem o inglês sabiam explicar adequadamente quais eram a estrutura e o mecanismo responsáveis pela transmissão hereditária. Portanto, Lamarck e Darwin desconheciam algumas expressões que são tão familiares hoje em dia a qualquer estudante do Ensino Médio: ácido desoxirribonucleico (DNA), genes, mutação, recombinação gênica, leis de Mendel etc.

 

Rafaela: Como a Biologia Evolutiva explica a origem do Universo?

Maxwell: A Biologia Evolutiva trata da mudança dos seres vivos no decurso do tempo e, portanto, não se propõe a explicar a origem do Universo, que é objeto de estudo da Física e da Astronomia. Existem diferentes teorias que se propõem a explicar a gênese do Cosmo, dentre elas, a mais aceita é a Teoria do Big Bang. De acordo com essa teoria, todo o Universo surgiu há aproximadamente 13,8 bilhões anos a partir de um ponto extremamente quente e denso. De acordo com as estimativas atuais, a origem do Cosmo é bem anterior ao surgimento da Terra (aproximadamente há 4,5 ou 4,8 bilhões de anos) e da vida na Terra (entre 3,5 e 3,8 bilhões de anos atrás). Apesar de os seres vivos serem sistemas físico-químicos extremamente complexos e obedecerem, portanto, às leis da Física e da Química, eles são uma parcela ínfima tanto temporal quanto espacial do Universo. Em poucas palavras, o significado disso é que a Biologia Evolutiva é incapaz de explicar a origem do Universo. A Biologia é “filha” da Física: cronologicamente, a evolução dos organismos corresponde aproximadamente a um terço da evolução cósmica; em termos espaciais, estima-se que o Universo possua pelo menos 100 bilhões de galáxias, cada qual contendo numerosas estrelas. Dentre tantas estrelas, temos plena certeza de que existe vida apenas num pequeno planeta azul que orbita o Sol.

 

Rafaela: Além de Darwin, quem são os grandes nomes do Evolucionismo?

Maxwell: Há muitos evolucionistas importantes e qualquer lista será incompleta, arbitrária e, até mesma, injusta. Tendo isso por pressuposto, podemos citar, antes da publicação d’A Origem das Espécies, o avô de Darwin, Erasmus Darwin, e o grande naturalista francês Jean-Baptiste Lamarck; contemporâneos a Darwin, destacamos Alfred Russel Wallace, que propôs juntamente com ele o mecanismo evolutivo da seleção natural, e Thomas Huxley, que, por defender firmemente as ideias darwinistas, ficou conhecido como o “buldogue de Darwin”; também devemos nos lembrar, entre os vários evolucionistas dos séculos XX e XXI, dos principais articuladores da Teoria Sintética da Evolução – Theodosius Dobzhansky, Ernst Mayr e George Gaylord Simpson –, bem como, mais recentemente, dos proponentes da Teoria do Equilíbrio Pontuado, Niles Eldredge e Stephen Jay Gould, e do popularizador da Teoria do Gene Egoísta, Richard Dawkins.

 

Rafaela: O que o Evolucionismo pensa sobre as Teorias do Criacionismo da Terra Jovem e do Design Inteligente?

Maxwell: As concepções criacionistas – inclusos o Criacionismo da Terra Jovem e o Design Inteligente – não são científicas, já que defendem ou inferem uma causalidade sobrenatural: o Deus Bíblico ou um Projetista Inteligente foi o responsável por projetar e criar os organismos vivos. Essa criação sobrenatural pode ser defendida de diferentes modos. Em escala “crescente”, podemos citar três principais tipos de criação sobrenatural dos organismos biológicos: (i) criação do primeiro organismo vivo, que teria originado por evolução natural as diversas linhagens biológicas no decorrer de bilhões de anos; (ii) criação sobrenatural de certos “grupos biológicos”. Nesse caso, por exemplo, Deus ou o Projetista Inteligente criaria de modo independente as linhagens felina e canina, ou seja, tais linhagens não compartilhariam um ancestral comum. Todavia, segundo essa perspectiva, isso não constituiria um impedimento para que houvesse uma evolução natural no interior de tais grupos biológicos (microevolução). Isto é, a primeira espécie felina e a primeira espécie canina criadas por Deus poderiam originar, de maneira natural, leões, onças e gatos (espécies felinas descendentes) e lobos, raposas e cachorros (espécies caninas descendentes); (iii) criação sobrenatural dos organismos do modo como eles atualmente existem. Esta seria uma concepção completamente fixista e, portanto, sem qualquer espaço para a modificação dos organismos ao longo do tempo: a bactéria que habita no intestino humano, a levedura utilizada para a produção de pão e álcool, o cajueiro e o ornitorrinco que estão vivos hoje são físio-morfologicamente semelhantes (leia-se: praticamente idênticos) aos primeiros indivíduos dessas espécies criados por Deus. A despeito das diferenças, essas três concepções criacionistas são pseudocientíficas por não se restringirem ao domínio natural e por invocarem uma causalidade suprafísica. Seja em que área for – Física, Química, Geologia, Biologia etc. –, a atividade científica se restringe ao domínio natural. Essa restrição não é levada a cabo nem pelo Criacionismo da Terra Jovem nem pelo Design Inteligente. Os partidários de ambas as concepções defendem que os seres vivos se originam da ação de Deus ou do Projetista Inteligente ao concluírem que a ausência da evidência implica numa evidência da ausência. Exemplo 1: como não conhecemos fósseis transicionais entre os cetáceos (baleias e golfinhos) e seu ancestral terrestre (ausência de evidência paleontológica), conclui-se que as baleias e os golfinhos não evoluíram a partir de um ancestral terrestre (evidência da ausência). Noutros termos, Deus projetou tais animais como aquáticos. Exemplo 2: Como não sabemos explicar a evolução do flagelo da bactéria Escherichia coli a partir de sistemas funcionais mais simples (ausência de evidência bioquímica), conclui-se que não há tais precursores bioquímicos mais simples (evidência da ausência). Ou seja, a complexidade irredutível do flagelo bacteriano só poderia ser explicada pelo planejamento de um engenheiro bioquímico sobrenatural. No entanto, como diria o paleontólogo Stephen Jay Gould: “Uma conclusão baseada em não encontrar algo tem a grande virtude de permitir potencialmente uma refutação inequívoca”. Paleontólogos descobriram fósseis transicionais entre o mesoniquídeo (mamífero terrestre extinto) e os atuais cetáceos, assim como os bioquímicos descreveram estruturas funcionais mais simples a partir das quais poderiam ter evoluído o flagelo da bactéria Escherichia coli. Tanto o exemplo da ausência de fósseis transicionais quanto o da complexidade irredutível do flagelo bacteriano são falácias do tipo “Deus nas lacunas”: como a Paleontologia e a Bioquímica não explicam determinados fatos (lacunas científicas), devemos inferir que tais explicações provêm da ação suprafísica de Deus ou do Projetista Inteligente. Não é de se estranhar que a combinação dessa falácia com o fato de que a Ciência está em contínua construção é extremamente desfavorável aos defensores do Criacionismo da Terra Jovem e do Design Inteligente: muitas lacunas científicas de ontem foram preenchidas por explicações inteiramente naturais; de modo semelhante, é provável que muitos fenômenos e estruturas naturais que não sabemos explicar hoje em dia terão um tratamento científico adequado no futuro. Isso não significa, é claro, que todas as questões científicas serão satisfatoriamente respondidas com o passar do tempo. Um dos assuntos mais intrigantes da Ciência diz respeito à origem da vida. Na realidade, é salutar citar nesse ponto a origem da vida, haja vista que os proponentes do Criacionismo da Terra Jovem e do Design Inteligente a confundem repetidamente com o tema da evolução da vida. Para respondermos à segunda questão não precisamos saber como a vida se originou. Trocando em miúdos: sem maiores explicações, é um fato que a vida se originou pelo menos em um planeta do vasto Universo, a Terra; também é um fato que os organismos vivos se modificaram ao longo do tempo. Isso pode ser facilmente constatado na escala de bilhões, milhões e milhares de anos por meio do registro fóssil, bem como no curto espaço de décadas ou anos pelos efeitos provocados pelo uso de antibióticos e agrotóxicos; porém, mesmo que ainda não saibamos ao certo como a vida se originou (1º fato), podemos, ademais, fornecer uma resposta científica adequada sobre como os seres vivos evoluem (2º fato). Apesar de não ser o caso, poderíamos perfeitamente saber como surgiu a vida e, por outro lado, não saber como ela evoluiu. Infelizmente, por desconhecimento ou, na pior das hipóteses, por desonestidade intelectual, muitos criacionistas fazem um amálgama conceitual dessas duas questões científicas.

 

Rafaela: Quais são as evidências favoráveis à Biologia Evolutiva?

Maxwell: A Biologia Evolutiva, eixo unificador das Ciências Biológicas, é considerada uma das áreas de maior prestígio perante o público em geral e a comunidade científica, em particular. Tal prestígio se deve à simplicidade, à elegância teórica, ao elevado poder explicativo e às numerosas evidências favoráveis a essa Ciência. Citarei a seguir algumas dessas evidências: (i) o registro fóssil mostra que o planeta Terra já foi habitado por microrganismos, vegetais e animais que não existem atualmente. Na verdade, o número de espécies atuais representa uma fração ínfima em relação ao número de espécies extintas. Esse registro mostra, por exemplo, que os ancestrais de golfinhos e baleias possuíam patas traseiras; (ii) a adaptação dos organismos ao ambiente em que vivem. Para citar apenas um exemplo, basta considerarmos a semelhança anatômica de alguns insetos à estrutura das folhas. A criação dos organismos por Deus ou por um Projetista Inteligente não é incompatível com a adaptação. Pelo contrário, seria de se esperar que um Ser sobrenatural sumamente bondoso, inteligente e poderoso projetasse e criasse seres perfeitamente adaptados ao ambiente. Contudo, uma rápida olhada na natureza é suficiente para demonstrar que tal não é o caso: os seres são adaptados ao ambiente, mas tal adaptação é sempre imperfeita. Além disso, há, conforme é predito pela concepção evolucionista, muito “desperdício” e “sofrimento” na natureza, e estes são incompatíveis até mesmo com o projeto do nem sempre bondoso e necessariamente limitado engenheiro humano; (iii) as comparações nos mais diversos níveis entre organismos através da Anatomia, Embriologia, Bioquímica e Fisiologia Comparadas também são uma forte evidência a favor da Biologia Evolutiva. Em termos metafóricos, pode-se imaginar que todos os seres vivos que existiram, existem e existirão em nosso planeta estão dispostos em uma imensa e frondosa árvore da vida, árvore esta que é, a um só tempo, genealógica e dinâmica: a raiz representaria o(s) primeiro(s) organismo(s) que surgiu(ram) e teve(tiveram) sucesso reprodutivo, há aproximadamente 3,5 ou 3,8 bilhões de anos. Tal(is) organismo(s) seria(m) o(s) ancestral(is) de todos os seres vivos que vieram depois – bactérias, protistas, fungos, vegetais e animais. Ora, a consequência disso é que todos os seres vivos são, em última instância, parentes. Para ilustrar isso, tomemos a espécie Homo sapiens como exemplo: somos parentes em grau decrescente de chimpanzés, ratos, pardais, lagartixas, sapos e tucunarés. Nosso parentesco se restringe apenas a animais vertebrados? Não. Também somos parentes em grau decrescente de baratas, esponjas, cajueiros, fungos, algas e bactérias. Enfim, todos os seres vivos terrestres pertencem, literalmente, a uma grande família biológica. Essa ancestralidade comum pode ser corroborada anatômica, embriológica, bioquímica e fisiologicamente. Anatomia Comparada: o braço humano, a nadadeira de uma baleia jubarte e a asa de um morcego, apesar de desempenharem funções diversas, são anatomicamente semelhantes (órgãos homólogos), como seria de se esperar pela ancestralidade comum. Os membros anteriores desses animais são compostos pelos ossos úmero, rádio, ulna etc. De acordo com a Embriologia Comparada, quanto maior o parentesco filogenético (evolutivo), maior a semelhança entre o desenvolvimento embrionário dos organismos: o desenvolvimento do embrião humano possui mais semelhanças com o desenvolvimento embrionário do beija-flor se comparado com o do bacalhau. Isso é predito pelo arcabouço conceitual evolucionista, pois os mamíferos compartilham um ancestral mais recente com as aves do que com os peixes. Segundo a Bioquímica Comparada, o grau de parentesco filogenético também pode ser medido no nível molecular ao se comparar os genomas dos organismos (conjunto das informações codificadas no DNA): o genoma humano é mais similar ao genoma do beija-flor do que ao do bacalhau. Fisiologia Comparada: as semelhanças fisiológicas (que dizem respeito ao funcionamento do organismo) também estão diretamente relacionadas à proximidade filogenética. Todas as pessoas que ingeriram qualquer produto da indústria farmacêutica foram beneficiadas, em alguma medida, por tal conhecimento, pois todo medicamento é testado antes em animais não-humanos. Se nesta fase o fármaco afetar negativamente a atividade cardíaca de um camundongo, por exemplo, não será testado em humanos por melhor que sejam seus outros efeitos, pois haveria bons indícios de que tal droga também seria nociva ao nosso coração; (iv) estruturas que possuem a mesma função podem ter evoluído de modo independente (divergência evolutiva): as asas de uma libélula e de um carcará servem para voar, mas, como evoluíram independentemente, são órgãos análogos (comparar com os supracitados órgãos homólogos); (v) por fim, mas não menos importante, a Biologia Evolutiva é capaz de explicar e predizer a presença de estruturas atrofiadas e não funcionais como os olhos cegos dos peixes cavernícolas (órgãos vestigiais). É sabido que os ancestrais dos peixes cavernícolas enxergavam. Além disso, temos conhecimento que é evolutivamente desvantajoso possuir olhos em ambientes desprovidos de luz… Por outro lado, é bastante embaraçoso para o criacionista explicar tais órgãos vestigiais, já que ele teria de saber quais eram os “pensamentos de Deus” quando projetou e criou um olho que não enxerga. 

Rafaela: Ao longo da história, várias teorias científicas foram refutadas. Mesmo não sendo a teoria definitiva e nem 100% comprovada, o Evolucionismo é a mais aceita entre a comunidade científica, você acredita que um dia a teoria pode ser refutada?  

Maxwell: Há uma discussão em Filosofia da Ciência que trata do critério de demarcação entre enunciados científicos e não-científicos. Para não nos alongarmos muito, tomemos como exemplo o critério proposto pelo influente filósofo austríaco Karl Popper para decidir quando uma teoria pode ser considerada científica: um enunciado científico deve ser falseável. Para que fique bem claro, um enunciado falseável é aquele que pode se mostrar falso no futuro, ou seja, que pode vir a ser empiricamente refutado. Antes mesmo de uma observação experimental, a Teoria da Relatividade predizia que corpos com grande massa atraem a luz. Durante um eclipse em 1919, em Sobral, no Ceará, uma equipe de cientistas fez observações sobre a trajetória da luz com o intuito de testar a predição feita por Einstein. As medições mostraram que houve desvio da luz e, portanto, a Teoria da Relatividade foi corroborada. Como dissemos, uma das exigências para uma teoria ser considerada científica é a possibilidade de ser falsa: não há, segundo Popper, nenhuma “teoria definitiva” ou “100% comprovada”. Nesse sentido, teorias científicas são sempre hipotéticas ou conjecturais, e uma breve consulta a manuais de História da Ciência serve para ilustrar esse fato. Com a Biologia Evolutiva não é diferente, ela pode ser refutada e isso é um requisito necessário à sua cientificidade. Alguns críticos desmerecem a Biologia Evolutiva dizendo “que ela é apenas uma teoria e que ela pode ser refutada”. Ora, isso é trivial e nesse sentido evolucionistas e antievolucionistas estão de acordo. O acordo só não é pleno quando se leva em consideração o significado atribuído a ser “apenas uma teoria”. Todas as teorias científicas – a Mecânica Quântica, a Relatividade, a Tectônica de Placas e a Biologia Evolutiva – são apenas teorias. Como poderia ser diferente? Ademais, aviões, telefones, micro-ondas e medicamentos são fabricados utilizando-se teorias. Contudo, por algum motivo esdrúxulo e arbitrário, os criacionistas atribuem um significado depreciativo quando afirmam que a “Biologia Evolutiva é apenas uma teoria”, induzindo leitores leigos em Filosofia da Ciência a pensarem que ela é provavelmente falsa. Para compreendermos melhor o que significaria refutar a Biologia Evolutiva, temos que nos lembrar de que há uma distinção entre a evolução como fato e a Evolução como teoria e também de que a modificação de uma teoria não implica necessariamente em seu descarte por completo. A comunidade científica dispõe de evidências suficientes para considerar como fato a modificação dos organismos ao longo do tempo (evolução biológica) e, por conseguinte, os biólogos evolutivos não questionam a evolução como um fato. Porém, afirmar que bactérias, protistas, fungos, vegetais e animais evoluem é apenas um ponto de partida. No passo seguinte, o biólogo evolutivo deve explicar como ocorre a evolução. Como dissemos na 2ª questão, há mais de uma teoria para explicar a mudança dos organismos: Darwin, juntamente com Wallace, propuseram a seleção natural como principal mecanismo para explicar a evolução biológica, mecanismo esse que vem sendo corroborado há mais de 150 anos. Apesar de Mayr, Gould e Dawkins, por exemplo, aceitarem que a seleção natural é um mecanismo evolutivo, há divergências teóricas entre tais biólogos evolutivos. Cito algumas questões que ainda geram debates no presente: quantos e quais são os mecanismos evolutivos? A seleção natural é o principal mecanismo evolutivo? A seleção natural atua sobre genes, indivíduos ou populações? Há progresso na evolução biológica? Essas questões nos mostram que novas descobertas podem refutar alguns enunciados da Biologia Evolutiva sem que isso signifique que a teoria como um todo seja descartada. Darwin, por exemplo, morreu sem explicar satisfatoriamente a transmissão das características genéticas. Hoje em dia, sabemos que a pangênese, teoria da hereditariedade defendida por Darwin, está errada. Ou seja, a teoria utilizada por Darwin para explicar a transmissão das características dos progenitores à prole foi refutada. Todavia, a despeito dessa refutação, a concepção darwinista não foi descartada como um todo, já que duas de suas principais ideias continuam em voga, a saber, a origem comum dos organismos e o mecanismo de seleção natural.    

 

Rafaela: E se o Criacionismo da Terra Jovem ou o Design Inteligente forem comprovados, como os cientistas iriam reagir?  

Maxwell: Fica claro, a partir do que expusemos na questão anterior, o porquê de não ser possível “comprovar” cientificamente o Criacionismo da Terra Jovem ou o Design Inteligente. Explico: toda concepção criacionista é não-científica, já que defende ou infere uma causalidade sobrenatural no sentido de que o Deus/Projetista Inteligente criou os organismos vivos e, portanto, não se limita ao domínio físico. Como sabemos, a atividade científica se circunscreve à esfera natural, e isso independe da área em questão – Física, Astronomia, Química, Geologia, Biologia etc. É justamente por ter um escopo restrito que as teorias físicas, astronômicas, químicas, geológicas e biológicas podem ser empiricamente refutadas. Contudo, é impossível refutar cientificamente os pretensos processos sobrenaturais que resultariam da ação do Deus/Projetista Inteligente, tese central defendida pelos criacionistas. Em outras palavras, a expressão “Criacionismo Científico” é um contrassenso. Ademais, o Criacionismo é incompatível com a Ciência atual. Vou me restringir ao Criacionismo da Terra Jovem para ilustrar esse ponto. Para que seja defendido de modo consistente que o Universo e a Terra possuem poucos milhares de anos, seria necessário refutar simultaneamente pelo menos quatro teorias amplamente corroboradas até o presente: (i) a Teoria do Big Bang (a antiguidade do Universo seria apenas aparente), (ii) a Teoria da Radioatividade (as datações radiométricas seriam falsas), (iii) a Tectônica de Placas (os continentes não teriam se separado há mais do que alguns milhares de anos) e (iv) a Biologia Evolutiva (a ancestralidade comum e a modificação dos organismos ao longo de bilhões de anos estaria em xeque). Portanto, vimos que a tese central do Criacionismo da Terra Jovem (Deus/causalidade sobrenatural) não é científica e, além disso, que muitas das afirmações dessa concepção sobre o mundo natural já foram refutadas empiricamente.

 

Rafaela: Fé e Ciência podem caminhar juntas? 

Maxwell: É possível que caminhem juntas, mas isso não é necessário porque elas podem ou não ser compatíveis. Além disso, nem a fé (por definição, uma crença não justificada) depende da Ciência (crença justificada), nem o inverso. A fé em Deus, por exemplo, não depende de nenhum cálculo matemático ou experimento empírico. É uma posição mística sobre coisas que transcendem o domínio natural. Do mesmo modo, ninguém precisa de fé para acreditar que “2+2=4” ou que “metais se dilatam quando aquecidos”, uma vez que possuímos mecanismos objetivos de prova e corroboração da verdade dessas afirmações. Uma breve consulta à História da Ciência atestará que muitos cientistas acreditavam em Deus (até há pouco tempo, essa era a regra geral). Três dos maiores cientistas de todos os tempos eram, para nos restringirmos somente a um tipo de fé, cristãos: Galileu Galilei, Isaac Newton e Charles Darwin (no início da carreira). Obviamente, poderíamos citar renomados cientistas que não são religiosos. Isso significa que ter fé em Deus e ser cientista são coisas independentes, já que uma pessoa pode: (i) ser crente em Deus e cientista; (ii) não ser crente em Deus e ser cientista; (iii) ser crente em Deus e não ser cientista; e, finalmente, (iv) não ser crente em Deus e não ser cientista. Como é fácil de observar, o mesmo tipo de raciocínio pode ser aplicado a outras profissões – pedreiros, cozinheiros, artistas etc. Feitas essas considerações, é salutar fazer uma ressalva. Uma pessoa crente em Deus pode escolher ser cientista com o intuito de tentar compreender como funciona a natureza, que, em sua concepção, teria sido criada por Ele. Porém, e isso é importante, após explicar naturalisticamente o movimento dos planetas, a reação química ou a evolução biológica, seria cientificamente incorreto acrescentar à descrição natural do fenômeno uma hipótese ad hoc do tipo “porque Deus quis”. Como dissemos anteriormente, os enunciados científicos se restringem ao domínio natural e, por conta disso, podem ser empiricamente refutados. Enunciados do tipo “Os movimentos planetários são descritos pelas leis de Kepler, porque Deus quis”, “As massas das substâncias são conservadas em uma reação química, porque Deus quis” e “Os organismos evoluem por seleção natural, porque Deus quis” não são científicos porque não são refutáveis: as leis de Kepler, a lei da conservação da massa e o mecanismo de seleção natural são empiricamente refutáveis, mas a suposta vontade de Deus é irrefutável. Dessa maneira, independente da crença pessoal do cientista, enunciados científicos prescindem de uma hipotética vontade divina e devem ser formulados sem levá-la em consideração. Isso significa que não há espaço para Deus? Darwin matou Deus? Cientificamente falando, com certeza não: se por acaso Deus existir, não poderia ser morto por uma ou mesmo várias teorias científicas. A concepção darwinista é eficaz na explicação das estruturas e dos organismos biológicos, mas isso não é suficiente para refutar Deus. Essa insuficiência, contudo, é condizente com o seu objeto de estudo, os seres vivos (domínio natural). A questão sobre a existência de Deus não é uma questão científica, mas, sim, uma questão filosófica e teológica. Isso explica o porquê de haver cientistas que acreditam em um Deus pessoal, outros que são agnósticos e outros que são ateus. Dentro dessa perspectiva, não há um conflito necessário entre Religião e Ciência. Obviamente, nem todos adotam tal perspectiva. Apesar de assumirem posições diametralmente opostas, há pelo menos um ponto de contato entre os adeptos do Criacionismo da Terra Jovem e os ultradarwinistas, a saber: a Religião e a Ciência são incompatíveis. Enquanto os criacionistas estão errados por estenderem uma conclusão religiosa ao domínio natural (Universo com poucos milhares de anos e criação divina), os ultradarwinistas cometem um equívoco ao tirarem uma conclusão filosófica (Deus não existe) supondo que ela é científica. Por fim, concluímos afirmando que as distintas posições criacionistas e a ultradarwinista ultrapassam, em maior ou menor grau, o âmbito científico e, por conta disso, não é difícil vislumbrar o motivo pelo qual ambas advogam uma incompatibilidade necessária entre Religião e Ciência.

A Crítica de Darwin ao Argumento Teleológico de Paley

Do início da filosofia até aos dias atuais, esta questão tem constantemente permeado os debates filosóficos: Deus existe? Ao longo da história, foram propostos argumentos com o intuito de demonstrar racionalmente a existência de Deus. Podem-se dividir, para efeitos práticos, tais argumentos em quatro tipos, a saber: ontológico, cosmológico, kalam e teleológico. Apenas esse último será tratado neste texto.

O argumento teleológico ou argumento do desígnio foi apresentado de diversos modos no decorrer do tempo, sendo bastante famosa a Quinta via de Tomás de Aquino e a própria versão de Paley, que será abordada logo abaixo. Apesar das diferenças, pode-se dizer que esse argumento tenta demonstrar que a natureza foi planejada com algum tipo de propósito ou finalidade (daí o nome teleológico), já que quando a contemplamos encontramos sinais nítidos de desígnio.

Os organismos biológicos, especificamente, aparentam em máximo grau terem sido planejados, haja vista a intricada complexidade biológica de seus corpos. No que se segue, apresentarei dois modos distintos de explicar o desenho e a complexidade biológica, a primeira delas invoca um Deus pessoal onipotente, onisciente, onipresente, eterno e sumamente bom (seção 2), enquanto a outra explicação prescinde de um Planejador sobrenatural e se baseia tão-somente em um processo cego sem qualquer tipo de antevisão (seção 3). Pretendo mostrar que essa última explica adequadamente a complexa estrutura biológica do olho ao mesmo tempo em que demonstro que não há qualquer evidência de planejamento inteligente desse órgão (seção 4).

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Fonte: Artigo originalmente publicado como o 3º capitulo (pp. 84-108) do livro Filosofia, Religião e Secularização, organizado por Antonio Glaudenir Brasil Maia e Geovani Paulino Oliveira (Porto Alegre: Editora Fi, 2015). Para acessar o artigo completoclique aqui.. Reproduzido também no Blog do Núcleo de Estudos de Filosofia Analítica (NEFA).

Teoria Atômica, Biologia Evolutiva e Consciência

Resenha de “Consciência e seu lugar na natureza”, capítulo 4 (pp. 123-60) do livro A Redescoberta da Mente, de John SEARLE, tradução de Eduardo Pereira e Ferreira, 2ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2006.

O principal problema da área Filosofia da Mente é o chamado problema mente-corpo (alguns diriam mente-cérebro), que pode ser formulado de vários modos, mas, para o que nos interessa aqui, pode-se apresentá-lo da seguinte forma: qual é a relação entre os processos e estados mentais, por um lado, e os processos e estados físicos, por outro, ou seja, onde situar a mente na natureza? Muitas foram – e são (!), trata-se de um campo com intensos e empolgantes debates atuais – as respostas e teorias propostas para solucionar este problema filosófico.

No que se segue, apresentarei algumas ideias do filósofo norte-americano John Rogers Searle (1932- ), professor da Universidade da Califórnia (Berkeley), que propôs uma teoria denominada Naturalismo Biológico como solução ao problema mente-corpo. Para tanto, utilizarei o capítulo 4 de seu influente livro A Redescoberta da Mente, publicado originalmente em 1992, pela editora do Massachusetts Institute of Technology. O roteiro geral será o seguinte: inicialmente, Searle aborda o que é consciência para, logo em seguida, encaixá-la no quadro conceitual da visão de mundo científica, mostrando, por fim, a vantagem seletiva da consciência.

Logo no início de seu texto, Searle se preocupa em dar uma definição, mesmo ciente das dificuldades, de “consciência” [consciousness, em inglês], tentando delimitar o que tal conceito quer dizer por meio de exemplos: um sistema é ou não consciente, mas, uma vez consciente, há uma variação de graus. Por exemplo, caso alguém esteja dormindo sem sonhar ou esteja em coma, estará inconsciente. Porém, se uma pessoa começa a sonhar, ela terá consciência em certo grau, mesmo que menor se comparado ao estado de vigília. Mesmo acordado, há uma variação, pois misteriosamente alguém pode estar mais consciente da partida de seu time de futebol do que da aula de Filosofia…

Antes de prosseguir, deve-se ressaltar que a noção de mente em Searle é bastante distinta da que foi proposta pelo famoso filósofo francês René Descartes, no século 17 (na verdade, a concepção que apresentarei abaixo é bastante antiga, mas a formulação cartesiana é a versão mais famosa e a mais debatida na História da Filosofia). De acordo com este último, o homem é composto por duas substâncias distintas, a saber, o seu corpo (res extensa) e a sua alma ou espírito (res cogitans). Já que esta teoria pressupõe a existência (ontologia) de duas substâncias distintas (as coisas extensa e pensante), ela ficou conhecida como dualismo de substância ou, em referência nominal ao filósofo, dualismo cartesiano.

Segundo Descartes, caso eu analise o meu corpo (ou outro qualquer, como uma mesa, por exemplo), constatarei que ele tem uma extensão e, a partir disso, posso falar algo como “o meu corpo mede 1,72 m e pesa 80 Kg”. Entretanto, não faria sentido perguntar, literalmente em metros e em quilos, qual é o comprimento do meu desejo de tomar sorvete ou quanto pesa a minha crença em Deus! Meu corpo (coisa física/substância extensa) é ontologicamente distinto da minha mente (coisa não-física/substância pensante). Uma consequência dessa distinção é que o domínio mental é irredutível e independente do físico – isso significa, entre outras coisas, que não há nenhum impedimento que a minha mente exista sem o meu corpo após a morte deste (não por acaso, alguns defensores da concepção cartesiana possuem motivações religiosas…). O maior problema com o dualismo ontológico proposto por Descartes era explicar a interação causal entre os dois âmbitos: como é possível que (i) algo não-físico seja capaz de causar algo físico, e (ii) vice-versa? (i) Eu desejo (estado mental) levantar o meu braço direito e, logo em seguida, há um movimento corporal correspondente ao meu desejo (processo físico); (ii) um corte em meu pé me causa dor (causação físico-mental, oposta ao sentido causal do exemplo anterior). Enfim, Descartes não conseguiu dar uma resposta satisfatória para esse problema, mas o que interessa aqui, no que diz respeito à sua teoria, é basicamente o seguinte: o domínio físico dos corpos (astros, formações rochosas, e corpos de animais humanos e não humanos) é passível de ser estudado pelas Ciências Naturais, mas não o domínio do mental. Searle discorda disso!

Em oposição ao dualismo cartesiano, Searle defende que consciência é física, especificamente, biológica e, portanto, pode e deve ser estudada cientificamente. Como ela é a noção central do mental, deve-se situá-la em relação às concepções científicas atualmente aceitas, deixando para trás o arcabouço cartesiano que considera o mental como não-físico: “Um dos principais objetivos deste livro é tentar remover esse obstáculo [separação entre mente e matéria], trazer a consciência de volta ao objeto da ciência como um fenômeno biológico semelhante a qualquer outro” (p. 127). Mesmo sabendo que as atuais teorias científicas podem se mostrar erradas no futuro, existem duas que estão muito bem estabelecidas e é fundamental tê-las como pano de fundo no estudo da consciência, a saber, as Teorias Atômica e Evolutiva.

O que Searle chama de Teoria Atômica poderia ser vagamente apresentada da seguinte forma: o Universo é composto de matéria que se agrupa em níveis cada vez mais complexos formando sistemas, os quais podem ser subsistemas de sistemas mais complexos. Dessa maneira, há o nível mais básico formado por “partículas” subatômicas (comportamento dual onda-partícula, na verdade), as quais formam átomos, estes formam moléculas etc. Isso significa que os sistemas complexos são constituídos e causalmente explicáveis pelos sistemas mais simples subjacentes. Portanto, o cientista é capaz de explicar um fenômeno de nível superior através de um de nível inferior, o que traz “como consequência que haverá diferentes níveis de explanação do mesmo fenômeno, dependendo se vamos da esquerda para a direita de macro para macro ou micro para micro, ou de baixo para cima de micro para macro” (p. 129). Prata & Lima Filho (2013, p. 202) esquematizaram a causação mente-corpo no Naturalismo Biológico a partir de uma analogia feita por Searle em seu livro publicado originalmente em 1983, Intencionalidade:

 

                             

O que está representado acima são os diferentes níveis de um mesmo sistema: os processos do micronível (processos cerebrais e mudanças fisiológicas) causam e realizam os estados e processos do macronível (intenção em ação e movimento corporal). Observe que há um tipo de causa simultânea aqui envolvida no esquema: os processos cerebrais, por exemplo, causam a intenção em ação (efeito), mas ambos ocorrem simultaneamente em t1 (causação de baixo para cima de micro para macro). Quando se afirma que o meu desejo de tomar sorvete (intenção em ação) causa o meu movimento corporal, está envolvida uma causação de macro para macro e da esquerda (t1) para a direita (t2). Contudo, Searle também afirma que é possível a causação descendente: o meu desejo de tomar sorvete (macronível – t1) causa as mudanças fisiológicas (micronível – t2), o que é representado pela seta diagonal. Por fim, é perfeitamente possível se falar da diagonal ascendente, isto é, que processos cerebrais (micronível – t1) causam o movimento corporal (macronível – t2). Em resumo, há um mesmo sistema descrito em diferentes níveis.

Já de acordo com a Biologia Evolutiva, as várias espécies de organismos que existem foram se originando e se modificando no decorrer do tempo geológico por processos evolutivos, como os que envolvem o mecanismo de seleção natural (este é um dos mecanismos, mas não o único). Em uma dessas grandes linhagens, os animais, houve uma tendência de cefalização, na qual alguns organismos desenvolveram sistemas nervosos complexos o suficiente para causar e sustentar estados e processos mentais conscientes. Pode-se, segundo Searle, afirmar categoricamente isso, mesmo que atualmente os cientistas desconheçam os detalhes de como os processos neurobiológicos causem a atividade mental e tampouco saibam afirmar quais espécies de animais não-humanos são conscientes. Vale ressaltar que esta também é mais uma diferença entre a posição de Searle e a de Descartes, já que este último afirmava que animais não-humanos não passam de autômatos – possuem res extensa (corpo), mas não res cogitans (“alma”).

Há, por conseguinte, uma continuidade entre o Homo sapiens e o restante do mundo natural, o que inclui considerar que a consciência evoluiu gradualmente por meio de um longo processo evolutivo. Portanto, a consciência surgiu evolutivamente e é uma característica biológica que emerge da atividade de sistemas nervosos complexos (chimpanzés, golfinhos, cães, gatos etc.):

Consciência, em resumo, é uma característica biológica de cérebros de seres humanos e determinados animais. É causada por processos neurobiológicos, e é tanto uma parte da ordem biológica natural quanto quaisquer outras características biológicas, como a fotossíntese, a digestão e a mitose” (p. 133, grifos de Searle).

Defender que a consciência é física, mais especificamente, biológica, não significa negar que ela pudesse ser causada e realizada por outros substratos distintos, como o silício, por exemplo. Do mesmo modo que é possível construir asas de avião com materiais distintos das asas de insetos, aves e morcegos, poder-se-ia produzir uma mente artificial, desde que se duplicassem os poderes causais dos processos neurobiológicos:

(…) se fôssemos produzir consciência artificialmente, a maneira natural de agir seria tentar reproduzir o fundamento neurobiológico [leia-se: reproduzir os poderes causais do cérebro] efetivo que tem a consciência em organismos como nós próprios” (p. 136).

Após situar o lugar da consciência na natureza, isto é, depois de mostrar que sistemas complexos são formados por sistemas mais simples e estes, em última análise, por “partículas” subatômicas e, além disso, que o surgimento evolutivo de determinados sistemas nervosos complexos propiciou o aparecimento da atividade mental consciente, Searle afirma que fenômenos mentais conscientes têm uma característica especial – a subjetividade. Antes de prosseguir, vale a pena diferenciar o modo de existência (questão ontológica) do modo de conhecer (questão epistemológica) algo. Pode-se verificar a verdade ou a falsidade de algumas questões epistemológicas objetivamente, mas não de outras. Observe e compare os seguintes juízos: 1) “Fernando Collor de Mello foi o melhor presidente da história do Brasil” e 2) “Fernando Collor de Mello nasceu no Rio de Janeiro e foi o 32º presidente do Brasil”. O primeiro exemplo trata-se de um juízo subjetivo, o qual depende de preferências, sentimentos e visões pessoais, mas, diferentemente, há uma objetividade epistêmica no que se refere ao segundo, já que qualquer um, independente de sexo, gênero, religião ou nacionalidade pode constatar a sua veracidade.

Entretanto, quando Searle afirma que a consciência é subjetiva, ele não está falando de subjetividade epistêmica, mas, sim, subjetividade ontológica. Isso significa que o modo de existência da consciência, que é uma propriedade ou característica biológica, é distinto do modo de existência das demais coisas do Universo, tais quais montanhas, nuvens ou rios: respectivamente, trata-se dos modos de existência de 1ª pessoa (ontologia subjetiva) e 3ª pessoa (ontologia objetiva). Sendo assim, a cadeia montanhosa dos Andes existe de modo independente em relação aos sujeitos e continuaria a existir mesmo que todos nós morrêssemos. Entretanto, pode-se dizer que dores, crenças e desejos são sempre estados mentais de um sujeito, e dependem deste para existir, o que significa dizer que eles são ontologicamente subjetivos. Mais do que isso, um estado mental ontologicamente subjetivo, como a dor, pode ser objetivamente constatada e verificada do ponto de vista epistêmico:

“‘Agora tenho uma dor na parte inferior das minhas costas.’ Essa afirmação é completamente objetiva no sentido de que é tornada verdadeira pela existência de um fato real, e não é dependente de nenhuma posição, atitude ou opinião de observadores. Entretanto, o próprio fenômeno, a própria dor real, tem um modo subjetivo de existência, e é neste sentido em que estou dizendo que a consciência é subjetiva” (pp. 139-40).

Logo após criticar os argumentos de concepções rivais, como as dos filósofos Thomas Nagel e Colin McGinn, Searle se volta para o famoso argumento do zumbi filosófico. De acordo com este argumento, é logicamente possível que se imagine um ser fisicamente idêntico a mim, molécula por molécula, e, mesmo assim, que tal indivíduo não possua quaisquer estados mentais qualitativos, isto é, seja um zumbi no sentido filosófico – identidade de constituição física e identidade de comportamento observável com ausência de consciência fenomênica. É importante não confundi-lo com os populares zumbis de livros, filmes e jogos eletrônicos: basta que você imagine – isso é o que os filósofos denominam experimento de pensamento – uma duplicata física sua (identidade de constituição) sem qualquer tipo de estados conscientes (ausência de consciência fenomênica). Nesse sentido, o zumbi responderia que a capital do Brasil é Brasília e a luz vermelha do semáforo o faria parar o carro (identidade comportamental), mas, diferentemente de você, o seu clone físico não teria nenhuma representação fenomênica de sobre Brasília nem qualquer sensação de como é ver vermelho (ausência consciente). Geralmente, o argumento do zumbi é utilizado como crítica às posições fisicalistas reducionistas da mente, já que mostraria que a base física não é suficiente para explicar a atividade consciente – pode-se duplicar aquela sem ter esta última. Tampouco seria suficiente observar o comportamento de alguém para lhe atribuir mentalidade (problema de outras mentes), mas esse é outro assunto.

Entretanto, o argumento do zumbi parece, pelo menos parcialmente, se opor à origem e vantagem evolutiva da consciência: se o zumbi se comporta de modo idêntico a mim, que possuo fenômenos mentais conscientes, para que postular que a consciência evoluiu biologicamente, ou seja, qual seria a vantagem evolutiva de um organismo ser consciente? Searle responde em termos gerais da seguinte maneira a este questionamento: “(…) a consciência serve para organizar um determinado conjunto de relações tanto entre o organismo e seu ambiente quanto entre o organismo e seus próprios estados” (p. 157). Em síntese, a experiência sensorial consciente permite que o organismo veja, escute e perceba cheiros de potenciais predadores/presas, rivais ou parceiros sexuais (obtenção de informação sobre o mundo), e estas experiências sensoriais, por sua vez, trazem uma óbvia vantagem em termos de ação: correr do predador, caçar uma presa, lutar com o rival ou cortejar e copular com uma fêmea (ação sobre o mundo): “(…) na percepção consciente o organismo tem representações causadas por estados de coisas no mundo, e, no caso de ações intencionais, o organismo provoca estados de coisas no mundo através de suas representações conscientes” (p. 158).

Visto isso, pode-se concluir que os poderes de discriminação perceptual e flexibilidade comportamental propiciados pela atividade mental consciente são muito mais complexos e finos do que os de mecanismos inconscientes de percepção e ação, o que serve para mostrar o porquê dela ser uma característica biológica evolutivamente vantajosa, mesmo que se leve em consideração o intenso gasto metabólico para produzi-la e sustentá-la através da atividade de sistemas nervosos complexos:

A hipótese que estou propondo, então, é que uma das vantagens evolutivas conferidas a nós pela consciência é a flexibilidade, sensibilidade e criatividade muito maiores que derivamos do fato de sermos conscientes” (p. 160).

Finalizarei mencionando rapidamente duas dificuldades que geralmente são apontadas ao Naturalismo Biológico, uma referente à redução e outra à causação. Searle afirma que a consciência é uma característica biológica ordinária como a fotossíntese, a mitose ou a digestão. Entretanto, diferente destas últimas, a consciência é ontologicamente subjetiva. Eis que surge um sério problema: caso alguém perguntasse a Searle se a consciência é redutível aos processos neurobiológicos, ele responderia que sim e não! Ela é causalmente redutível, já que é explicável pela atividade neurobiológica do sistema nervoso, mas também é ontologicamente irredutível, pois os fenômenos mentais conscientes possuem uma ontologia de 1ª pessoa e os processos cerebrais têm uma ontologia de 3ª pessoa. Muitos críticos já apontaram que não é coerente defender ambas as posições – redução causal e irredutibilidade ontológica.

Uma segunda crítica diz respeito à concepção de causação mental de Searle. Observando mais uma vez o esquema supracitado e levando-se em consideração que a intenção em ação (modo de existência subjetivo) é ontologicamente distinta dos processos cerebrais (modo de existência objetivo) que a causam e realizam, tem-se o seguinte dilema: ou um mesmo efeito (mudanças fisiológicas) tem duas causas (processos cerebrais e intenção em ação), caracterizando uma sobredeterminação causal, ou se considera que há um fechamento causal do mundo físico e se afirma que os processos cerebrais (causa física) é que provocam as mudanças fisiológicas (efeito físico), ou seja, a intenção em ação é apenas um epifenômeno dos processos cerebrais, sendo causalmente inerte – não há causação descendente! Searle rebate (ou tenta) ambas as críticas, mas o exame de suas respostas aos críticos ultrapassa os objetivos desta resenha.

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Referências Bibliográficas:

 

PRATA, T. A. & LIMA FILHO, M. M. Oscilações entre o Reducionismo e o Fisicalismo Não-Redutivo no Naturalismo Biológico de John Searle. Trans/Form/Ação, v. 36, n.2, p. 195-218, Maio/Ago., 2013. [PDF]

SEARLE, J. R. Intencionalidade. Tradução de Julio Fischer e Tomás Rosa Bueno, revisão técnica de Ana Cecília G. A. de Camargo e Viviane Veras Costa Pinto, 2ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2002.

_______ . A Redescoberta da Mente. Tradução de Eduardo Pereira e Ferreira, 2ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2006.

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Créditos das figuras

ANDRZEJ WOJCICKI/SCIENCE PHOTO LIBRARY
PAUL D STEWART/SCIENCE PHOTO LIBRARY

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Maxwell Morais de Lima Filho – Biólogo, Mestre e Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Sou Membro Associado da Sociedade Brasileira de Filosofia Analítica, Professor de Filosofia do Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes (ICHCA) e Pesquisador do Grupo Linguagem e Cognição da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).