José Antonio Dias da Silva

A Nova Filogenia dos Galloanserae

O jornal britânico The Guardian publicou este mês na sua seção de ciência uma matéria excelente assinada pela professora Hanneke Meijer, curadora de osteologia da Universidade de Berger (Noruega) e especialista em aves fósseis, sobre os estudos das relações entre os grupos de aves que compõem atualmente o clado Galloanserae.

Galloanserae é considerado um dos grupos mais primitivos de aves modernas (Neognathes) e sua ascendência remonta ao tempo dos dinossauros. Em contraste com seus descendentes atuais – os Galliformes e Anseriformes (e agora também os Craciformes) – as primeiras aves semelhantes às aves domésticas eram verdadeiramente gigantes para as medidas aviárias modernas, representando as maiores aves da Terra durante o Paleógeno.

Como explicam no texto do The Guardian,

existem vários grupos de aves terrestres enormes e extintas que são considerados parte de Galloanserae. Um deles é o Dromornithidae (ou Thunderbirds da Austrália, como são mais conhecidos). Essas aves gigantescas que não voavam, viveram do Oligoceno até o Pleistoceno e faziam parte da megafauna australiana (Worthy & Holdaway, 2002). Alguns dromornitídeos atingiram um tamanho colossal, como Bullockornis , apelidado de Demon Duck of Doom (algo como Pato Demoníaco da Destruição), cujo tamanho é estimado em cerca de 2,5 metros de altura.

Em toda a Eurásia, Gastornithidae ocupou o nicho das aves gigantes, desde o Paleoceno ao Eoceno. Como explica Meijer, três espécies européias dessas grandes aves sem habilidade de vôo, com pernas fortes e bicos maciços são conhecidas dos especialistas e, acrescenta:

Uma espécie da América do Norte, anteriormente conhecida como Diatryma gigantea, agora é considerada a quarta espécie de Gastornithidae. Com seu bico gigante e pernas poderosas, uma anatomia peculiar entre as aves, os Gastornithidae foram consideradas por muito tempo como carnívoros, possivelmente predadores de pequenos cavalos contemporâneos (Witmer & Rose, 1991). No entanto, como os bicos não possuem os ganchos típicos das aves carnívoras e os estudos dos teores de isótopos de cálcio nos ossos não revelaram uma dieta à base de carne, a maioria dos pesquisadores tendem assumir que os gastornitídeos eram herbívoros (Angst et al., 2014).

Não é nada fácil desvendar os relacionamentos entre animais que viveram há 30 milhões de anos, dos quais, na maioria das vezes, restam apenas fragmentos do esqueleto, diz a matéria do The Guardian.

O que torna as coisas ainda mais complicadas no caso dessas aves colossais é que todos elas exibem membros traseiros robustos e asas reduzidas. À primeira vista, isso alinha-os com outros grupos que mostram essa morfologia proeminente, como os Aepyornithidae extintos de Madagascar, o moa da Nova Zelândia (também extinto) e os ratites modernos (avestruzes, emus e afins). E, de fato, durante muito tempo, Dromornithidae foi considerado intimamente relacionado com ratites (Rich, 1979). No entanto, um exame mais aprofundado dos crânios de dromornithidae mostrou que eles não eram parte dos ratites.

Segundo Meijer, estudos baseados em conjuntos de dados morfológicos do esqueleto inteiro posteriormente colocaram Dromornithidae, bem como Gastornithidae, como grupos-irmãos para Anseriformes, enquanto outros descobriram que Dromornithidae fazia parte de Anseriformes. 

Também foi sugerido que Dromornithidae, juntamente com os Sylvioridithidae da Nova Caledônia, são grupos-irmãos para Galloanserae como um todo (Mayr, 2011). E há também o caso das aves-do-terror da América do Sul ( Phorusracidae ), outro grupo de aves gigantes e terrestres com bicos robustos que em determinadas análises são colocadas dentro dos Anseriformes (Degrange et al., 2015).

Embora atualmente esteja claro que Dromornithidae, Gastornithidae e Sylviornithidae estão próximos de Galloanserae, suas posições exatas em relação a este grupo ainda não estão claras. Resolver a classificação desses animais gigantes é difícil em razão  das suas morfologias convergentes -neste caso, os membros traseiros robustos e as asas reduzidas – e, muitas vezes, devido à amostragens limitadas de espécies potencialmente relacionadas. A convergência morfológica reflete uma adaptação a um ambiente compartilhado em vez de uma característica derivada de um antepassado comum.

Meijer chama a nossa atenção para o fato de que agrupar espécies com base nas semelhanças morfológicas quando existe forte suspeita de convergência evolutiva pode produzir resultados equivocados. Felizmente, o surgimento de análise filogenética molecular, permitiu aos ornitólogos usarem com sucesso as sequências de DNA para solucionar dúvidas sobre o relacionamento filogenético entre grupos de aves e outros animais.

Embora a filogenética molecular tenha definitivamente suas ressalvas, os dados moleculares já forneceram uma árvore filogenética bem consistente para espécies de aves atuais (Hackett et al., 2008). Essas árvores são muitas vezes bem diferentes das derivadas apenas dos dados morfológicos, em grande parte devido aos casos de convergência. Como as morfologias convergentes sempre foram o tormento dos paleontólogos na resolução dos relacionamentos entre aves gigantes extintas e que não voavam e os Galloanserae viventes, o paleontólogo australiano Trevor Worthy e sua equipe se propuseram a resolver esta questão de uma vez por todas, combinando dados moleculares e morfológicos.

Worthy e seus colaboradores coletaram um grande conjunto de dados de 290 características morfológicas para 20 aves extintas gigantes e 29 aves viventes. Esses dados morfológicos foram analisados ​​contra uma estrutura molecular que restringia os relacionamentos das aves viventes com os relacionamentos que são fortemente inferidas a partir de dados moleculares.  Ao restringir as análises dos táxons fósseis desta forma, as espécies fósseis são analisadas no contexto de um quadro evolutivo que, neste momento, é a melhor reconstrução da árvore evolutiva de aves que temos, enquanto, ao mesmo tempo, também considera a morfologia de todas as partes esqueléticas.

Meijer relata que as análises mostraram a existência de quatro grupos distintos de Galloanserae primitivos; Anseriformes, Galliformes, um grupo formado pela junção de Gastornithidae e Dromornithidae denominado Gastornithiformes e Vegavis – o primeiro membro dos Gallaoanserae datado de 69-66 milhões de anos atrás.

Os Sylviornithidae foram colocados como parte dos Galliformes. Os Phorusrhacidae, as enormes aves sem habilidade de vôo da América do Sul, ficaram de fora dos Galloanserae e, portanto, não estão relacionados com Dromornithidae e Gastornithidae, pois podem estar mais perto dos cariamídeos (seriemas, etc)

Tudo isso implica que os Dromornitídeos não são parte do grupo dos Anseriformes, mas seriam, sim, um “grupo-irmão” separado de aves terrestres, juntamente com os Gastornithidae.  Tal como acontece com as ratites, onde um ancestral voador, repetidamente, deu origem a linhagens paralelas de aves não voadoras, uma pequena ave Galloansere primitiva voadora de origem as várias espécies de gastornitídeos e dromornitídeos, que, posteriormente, perderam a habilidade de voar. Esse novo estudo também reconstrói a dieta do Galloanserae ancestral, atribuindo uma dieta herbívora ou principalmente herbívora a estes animais, o que sugere que gastornitídeos, dromornitídeos e sylvioriditídeos mantiveram uma dieta similar, apesar de um aumento de quase 100 vezes na massa corporal e de mudanças morfológicas bastante grandes.

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Referência:

  • Meijer, Hanneke Horse-eating birds and Demon Ducks of Doom: untangling the fowl family tree The Guardian Wed, 22 Nov, 2017.

* As demais referências citadas entre aspas podem ser encontradas no artigo original, no site do The Guardian.

 Crédito da Imagem: Worthy et al., 2017.

  • Worthy, T.H. et al., 2017. The evolution of giant flightless birds and novel phylogenetic relationships for extinct fowl (Aves, Galloanseres). Royal Society Open Science

Os Caminhos Equivocados do Nosso Ensino de Evolução Biológica

Nos Estados Unidos, o ensino da evolução biológica já vem sofrendo resistência por parte de organizações criacionistas, principalmente nas localidades onde se verificam altas proporções de protestantes evangélicos. Essa situação serviu tanto para gerar debates históricos como para proporcionar o desenvolvimento de um grande número de pesquisas sobre o ensino de evolução nas escolas daquele país. Aqui no Brasil, apesar do nosso país não possuir fortes tradições criacionistas, nos últimos anos foram sugeridas propostas educacionais de caráter não-científico que, se adotadas, podem comprometer de forma irremediável a qualidade do ensino de ciências e biologia (TIDON; VIEIRA, 2009)

No âmbito do sistema educacional brasileiro, a evolução biológica é um dos temas integradores dos currículos das disciplinas escolares de Ciências e Biologia, o que pode ser verificado nos principais documentos oficiais do governo que tratam da educação básica. As Orientações Curriculares para o Ensino Médio – OCEM (BRASIL, 2006) e os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (BRASIL, 1999), propõem que os conteúdos de Biologia sejam abordados sob o enfoque ecológico-evolutivo. As OCEM salientam ainda que o tema origem e evolução da vida sejam tratados ao longo de todos os conteúdos de Biologia, não representando uma diluição do tema, mas sim uma articulação com outras áreas (BRASIL, 2006).

Como explicam Souza e Dorvillé (2014),

“Apesar da importância da evolução biológica para a constituição da Biologia enquanto ciência, seu ensino na educação básica é permeado por desafios.”

“…diversos estudos apontam que o ensino de evolução nas escolas ainda não é satisfatório, sendo um dos temas mais complexos e polêmicos trabalhados em sala de aula (CASTRO & ROSA, 2007; PEREIRA & EL-HANI, 2011; SILVA, ILVA & TEIXEIRA, 2011).”

E de onde vem essa dificuldade em ensinar evolução nas escolas? Segundo Silva, Silva e Teixeira (2011), a dificuldade em lecionar tal conteúdo reside em alguns fatores, tais como seus níveis de abstração, controvérsias e concepções errôneas de alunos e professores sobre o assunto, somados ao desconhecimento da natureza da ciência e à influência de ideias religiosas que se contrapõem ao conhecimento científico sobre evolução. Castro & Leyser (2007) destacam ainda os desafios de ordem intelectual, formação profissional e crenças pessoais que professores de Biologia enfrentam ao lecionarem tal conteúdo e afirmam que muitas vezes renunciam a essas aulas a fim de evitar possíveis conflitos. Os autores também ressaltam o fato de que a formação inicial dos professores não costuma incluir a evolução como eixo articulador dos diferentes campos do conhecimento biológico, muitas vezes limitando-a a uma única disciplina. Portanto, o contexto de formação de professores também deve ser levado em conta ao analisar a prática docente no caso da temática em questão.

Pensando nisso, Rosana Tidon, professora associada do Laboratório de Biologia Evolutiva na Universidade de Brasília (UnB) fez um levantamento das dificuldades dos professores que trabalham conteúdos de evolução biológica no ensino médio em Brasília (DF) em 1997. Os resultados dessa pesquisa foram publicados parcialmente no artigo “Teaching evolutionary biology” (LEWONTIN; TIDON, 200) em parceria com Richard C. Lewontin. Segundo Tidon e Vieira (2009),

as colocações dos professores, acessadas mediante questionários, apontaram problemas com o material didático, currículo escolar, e falta de preparo dos alunos para compreensão desse assunto. Quando indagados sobre padrões e processos evolutivos, quase a metade dos professores entrevistados demonstrou concepções lamarckistas, ao afirmar que a evolução biológica é direcional, progressista, e que ocorre em indivíduos (ao invés de populações). Essas concepções equivocadas, que simplificam a complexidade da natureza, são muito difundidas em várias partes do mundo, provavelmente porque elas parecem lógicas e fáceis de compreender.”

Carlos Orsi na sua matéria “O ensino da teoria da evolução no Brasil ainda está na Idade da Pedra”, publicada na Gazeta do Povo (ORSI, 2017) assinala que a evolução é tão mal compreendida nas escolas brasileiras que nem os professores sabem explicá-la de forma adequada aos alunos. Em comparação com outros países, a situação é deprimente, diz o autor. Em seu texto, Carlos Orsi cita o geneticista Rubens Pazza, pesquisador e professor da Universidade Federal de Viçosa, que já conduziu importantes pesquisas sobre a percepção pública da teoria da evolução, principalmente entre estudantes. Segundo Pazza (citado por ORSI, 2017):

Algumas questões são particularmente complicadas para a compreensão dos jovens. Uma das mais complicadas é o papel da aleatoriedade na evolução. É comum que os jovens confundam a seleção natural com um processo aleatório, quando um dos principais papéis da aleatoriedade é no surgimento das variações. A seleção natural é justamente o oposto de um processo aleatório.”

Outro ponto importante é a confusão entre evolução e progresso, e o ser humano como o ápice do processo. A ilustração da ‘marcha para o progresso’, é extremamente difundida para ilustrar evolução humana, por exemplo, mas é um conceito errôneo, que contribui para a disseminação da confusão. Enfim, o que vemos é um baixo grau de compreensão das bases da evolução de um modo geral, que é ainda mais acentuado de acordo com certas denominações religiosas”.

Outros fatores que dificultam o ensino de evolução estão relacionados ao contexto escolar. A organização escolar, sob alguns aspectos, é apresentada com limitações de tempo, planejamento padronizado, terceirizado e conteudista, entre outros, que influenciam o trabalho do professor em aula (CICCILINI, 1997). Portanto, de acordo com Futuyma (2002), apesar da centralidade da biologia evolutiva em relação às demais ciências da vida, ela ainda não representa, nos currículos educacionais, uma prioridade à altura de sua relevância intelectual e de seu potencial para contribuir para com as necessidades da sociedade.

Eli Vieira e Rosana Tidon em um artigo originalmente publicado na revista eletrônica de jornalismo científico Com Ciência da SBPC, analisam as dificuldades e apontam propostas para superar as dificuldades observadas no ensino de evolução biológica nas escolas brasileiras. Segundo eles, as propostas para sanar os problemas apontados, já em andamento no Brasil em diferentes estágios de maturidade, podem ser organizadas em três abordagens complementares: 1) a formação contínua de professores, através do apoio a cursos e oficinas; 2) revisão e reforço dos currículos de ciências e biologia, em particular, com o objetivo de melhorar, de uma forma prática, o programa curricular do Ministério da Educação e 3) a continuidade do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), pois conforme observado, esse programa tem proporcionado uma melhoria significativa na qualidade dos livros adotados pelas escolas públicas, aprimorando a correção conceitual e metodológica em várias disciplinas, inclusive a evolução biológica (VIEIRA; TIDON, 2009).

Com o intuito de avaliar a compreensão de conteúdos de evolução, Anderson e colaboradores publicaram no Journal of Research in Science Teaching (2002), o “Inventário conceitual da seleção natural” uma lista com 20 testes de múltipla escolha, que contrasta concepções alternativas. No entendimento de Tidon e Vieira (2009),uma atividade como essa, aplicada no primeiro dia do curso de formação de professores, poderia ser o ponto de partida para reconhecer os equívocos dos professores, ilustrando ao mesmo tempo uma técnica que poderia ser usada mais tarde na sua própria sala de aula. Segundo os autores, essa estratégia está em total conformidade com as recomendações do MEC (MEC/SEF, 1997), onde se lê:

Contrapor e avaliar diferentes explicações favorece o desenvolvimento de postura reflexiva, crítica, questionadora e investigativa, de não-aceitação a priori de ideias e informações. Possibilita a percepção dos limites de cada modelo explicativo, inclusive dos modelos científicos, colaborando para a construção da autonomia de pensamento e ação”.

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REFERÊNCIAS:

ANDERSON, D. L., FISHER, K. M., NORMAN, G. J. Development and evaluation of the conceptual inventory of natural science. J. Res. Sci. Teach. 2002; 39:952–978.

BRASIL. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares nacionais (Ensino Médio) – Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Brasília, 1999. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/14_24.pdf> Acessado em 06 set. 2017.

BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Ministério da Educação. Orientações Curriculares para o Ensino Médio – Linguagens, códigos e suas tecnologias Brasília, 2006. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_02_internet.pdf>; Acessado em 06 set. 2017.

CASTRO, E. C. V.; LEYSER, V. A ética no ensino de evolução. In: VI ENPEC. 2007, Florianópolis. Anais eletrônicos. Rio de Janeiro: ABRAPEC, 2007. Disponível em: . Acesso em: 06 set.. 2017.

CICILLINI, G. A. A produção do conhecimento biológico no contexto da cultura escolar do ensino médio: A teoria da evolução como exemplo. 1997. 298fs. Tese de Doutorado em Metodologia de Ensino – Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1997.

FUTUYMA, D. J. Evolução, Ciência e Sociedade. São Paulo: Editora de livros da Sociedade Brasileira de Genética, 2002.

SILVA, M. G. B.; SILVA, R. M. L.; TEIXEIRA, P. M. M. Um estudo sobre a evolução biológica num curso de formação de professores de Biologia. In: VIII ENPEC. 2011, Campinas. Anais eletrônicos. Rio de Janeiro: ABRAPEC, 2011. Disponível em: /p> http://www.nutes.ufrj.br/abrapec/viiienpec/resumos/R1457-1.pdf>;. Acesso em: 06 set. 2017

SOUSA, E. C. F e DORVILLÉ,  L. F. M. Ensino de evolução biológica: concepções de  professores protestantes de ciências e biologia. Revista da SBenBio, n.7, outubro de 2014.

TIDON, R. e LEWONTIN, R. C. Teaching evolutionary biology. Genetics and Molecular Biology, v.27, n.1, p.124-31, 2004.

TIDON, R. e VIEIRA, E. O ensino da Evolução Biológica: um desafio para o século XI Evolucionismo ComCiência: revista eletrônica de jornalismo científico n.107, 2009. Disponível em < http:www.conciência.com.br>. Acesso em 06 de setembro de 2017.

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Fonte da imagem: 

http://charlesmorphy.blogspot.com.br/2012/10/representando-evolucao…

A Estabilidade do Paradigma Darwiniano

Passados mais de 150 anos desde a publicação da primeira edição de ‘A Origem das Espécies’, a teoria proposta pelo naturalista Charles Darwin (e por Alfred Russel Wallace) ainda permanece ilesa e fortificada apesar das inúmeras tentativas de refutação a que foi submetida ao longo do tempo. De acordo com o médico psiquiatra, antropólogo e professor universitário português António Bracinha Vieira, a teoria de Darwin:

conseguiu algo extraordinário e único no mundo científico: ao longo de um século e meio foi englobando, sintetizando e dando sentido a outras teorias, hipóteses explicativas e modelos dispersos pelo espaço imenso das ciências naturais que vão da geobiologia à biologia molecular.” (Vieira, 2009, p.11)

A solidez do chamado paradigma darwiniano, produzido nos anos 1940 durante a síntese evolucionista, sempre foi proclamada e sustentada com afinco pelo biólogo, nascido na Alemanha (naturalizado e radicado nos EUA), Ernest Mayr (1904-2005). Segundo Mayr, os princípios básicos do darwinismo estão mais firmemente estabelecidos do que nunca, posto que hoje é um programa de pesquisa altamente complexo, que está a ser constantemente modificado e aperfeiçoado. Em seu livro “Biologia, Ciência Única” (Mayr, 2005), Mayr, um dos responsáveis pela moderna síntese evolucionista, reafirma a validade da teoria da evolução de Darwin e explica que ela é composta de cinco teorias separadas, cada uma com sua própria história, trajetória e impacto. Em um determinado trecho deste livro, o biólogo evolucionista dispara:

… produto da síntese das teorias dos estudiosos da anagênese e da cladogênese, foi chamada de teoria sintética da evolução. Na realidade, a melhor solução seria chamá-la, simplesmente, de darwinismo. Com efeito, trata-se, em essência, da teoria original de Darwin com uma teoria válida de especiação e sem a hereditariedade leve. Como essa forma de hereditariedade foi refutada mais de cem anos atrás, não pode haver equívoco na retomada do simples termo “darwinismo”, porque ele engloba os aspectos essenciais do conceito original de Darwin. Em particular, refere-se a inter-relação entre variação e seleção, o cerne do paradigma de Darwin, e confirma que é melhor se referir ao paradigma evolucionista, após um longo período de maturação, simplesmente como darwinismo. (Mayr, 2005).

Não se pode falar em paradigma sem mencionar o físico e filósofo da ciência Thomas Kuhn (1922-1996). De acordo com o enfoque historicista de Kuhn, a ciência desenvolve-se segundo determinadas fases, a saber: estabelecimento de um paradigma, ciência normal, crise, ciência extraordinária, revolução científica e estabelecimento de um novo paradigma. Como é explicado no verbete da wikipédia sobre o filósofo:

A noção de paradigma resulta fundamental neste enfoque historicista e não é mais que uma macroteoria, um marco ou perspectiva que se aceita de forma geral por toda a comunidade científica […] e a partir do qual se realiza a atividade científica, cujo objetivo é esclarecer as possíveis falhas do paradigma ou extrair dele todas as suas consequências.” [Thomas Kuhn]

No livro “‘Estruturas das Revoluções Científicas’, Kuhn esclareceria posteriormente que o termo pode ser utilizado num sentido geral e num sentido restrito. O primeiro diz respeito à noção de matriz disciplinar, que é o “conjunto de compromissos de pesquisa de uma comunidade científica.O segundo sentido denota os paradigmas exemplares, que são a base da formação científica, uma vez que o pesquisador passa a dominar o conteúdo cognitivo da ciência através da experimentação dos exemplos compartilhados.” [Thomas Kuhn]

No caso do darwinismo, não houve nem rompimento nem incomensurabilidade no sentido de Kuhn e sim um esclarecimento, pela mesma “matriz disciplinar”, de uma imensa constelação de fenômenos, conforme assinala Vieira (2009) em seu livro. Para o referido autor, o darwinismo no seu estado atual, permite a integração de tantos e tão sólidos dados e conceitos que unifica e dá coerência ao imenso espaço heurístico interposto entre a geobiologia e a biologia molecular. Vieira conclui afirmando que, após a grande síntese, a biologia adquiriu autonomia plena e se tornou uma ciência exemplar, integrada em torno de uma teoria central unificadora capaz de dirigir e aprofundar a investigação em todas as frentes (Vieira, 2009).

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Referências:

  • Vieira, António Bracinha A Evolução do Darwinismo, Ed. Vieira & Lent, Rio de Janeiro, 2009, p.11

  • Mayr, Ernest Biologia, Ciência Única “Ed. Companhia das Letras, 2005, 272 p.

  • Thomas Kuhn In: Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Kuhn>; Acesso em:  9 jan 2017.

“A Culpa É Da Evolução”

No meado de 2015 publiquei um livro digital abordando o comportamento sexual do ser humano do ponto de vista da biologia evolutiva  e  lhe dei o título de “A Culpa é da Evolução” (Editora Saraiva, 2015, ePub). Apesar da complexidade do tema, consegui dissertar por dez capítulos sobre a finalidade da reprodução, sistema de recompensa, evolução do sexo, seleção sexual, infidelidade e outros tópicos concernentes à biologia evolutiva sem enveredar pelo caminho perigoso da “falácia naturalista” tão bem esclarecida por Rachels (1991).

À primeira vista, associar aspectos da sexualidade humana com evolução poderia soar como uma tentativa de reduzir os desvios de conduta moral praticado por homens e mulheres a um “determinismo biológico (ou genético)”, menosprezando até o comportamento monogâmico dos casais que ainda acreditam nos relacionamentos duradouros. Porém, não é esse o objetivo do livro. Aliás, a monogamia entre as espécies de mamíferos constitui uma exceção, posto que apenas entre 3% e 5% dos mamíferos exibem comportamento monogâmico. Quando se fala em monogamia em relação aos humanos, os pesquisadores preferem o termo monogamia serial ou social, uma vez que, neste caso, a monogamia predomina, mas é intercalada por vários episódios de adultérios clandestinos.

A definição de Young e Wang (2004) para monogamia é a seguinte:

uma organização social na qual cada membro de um par apresenta uma afiliação e copulação seletiva (mas não exclusiva), bem como a partilha do ninho, ocorrendo tipicamente também a partilha do cuidado dos filhos.

Contudo, há um consenso em admitir que, pelo menos geneticamente, a espécie humana não foi direcionada para ser monogâmica. De acordo com Fonseca (2010), “muitas sociedades humanas são socialmente monogâmicas, mas relações extraconjugais, entre outros arranjos sociais, fazem com que os humanos não sejam geneticamente monogâmicos.” Segundo o autor, “nesse sentido, somos iguais a muitas aves, que, embora classificadas como monogâmicas antes das análises genéticas, revelaram conter um percentual razoável de filhos gerados por casos extraconjugais.”

A infidelidade é um assunto que sempre despertou curiosidade na comunidade científica, que tradicionalmente busca explicações na biologia evolutiva. Nada mais justo se considerarmos a afirmativa de  Dobzhansky (1967) de que  “nada na biologia faz sentido exceto à luz da evolução.

Ziescht (2014) e seus colaboradores da Universidade de Queensland (Austrália) estudaram a infidelidade sob a perspectiva dos genes e tentaram demonstrar que a genética influencia a possibilidade de pessoas fazerem sexo com parceiros fora de seu relacionamento. Os resultados da pesquisa apontaram que 63% do comportamento infiel dos homens e  40% do  das mulheres podem ser atribuídos à herança genética. No caso das mulheres, os pesquisadores identificaram variações em um gene chamado AVPRIA, o qual estaria associado à produção de arginina vasopressina, um hormônio envolvido na regulação do comportamento social.

Ao considerarmos este estudo estaríamos corroborando o princípio do determinismo biológico ou genético mencionado acima para explicar a questão da infidelidade na espécie humana. Inversamente, o pensamento do professor, psicólogo e mestre em neurociências, Marco M. Calegaro (2001), contribui para desfazer esta ideia, pois segundo ele,

os genes definem tendências, mas são as experiências individuais que, sempre, as modulam. Qualquer gene precisa, para haver a chamada expressão adequada, de determinadas circunstâncias externas, sejam bioquímicas, físicas ou fisiológicas. Portanto, “a propensão genética para a infidelidade não a torna inevitável (os humanos podem perfeitamente controlar este impulso) ou moralmente aceitável. O mesmo raciocínio vale para qualquer tendência com componentes genéticos – não tem qualquer sentido justificar eticamente um padrão de comportamento argumentando que este é o ‘natural’, pois outros critérios devem ser usados para avaliar as consequências de nossos atos.

Ainda segundo o pensamento do Prof. Calegaro

Darwin concebeu a seleção natural como um processo mecânico, sem planejamento antecipado e sem qualquer implicação moral. O certo ou errado, no sentido daquilo que deveria ser, não pode ser deduzido a partir da teoria darwiniana, embora esta teoria possa nos dizer como evoluíram nossos sentimentos morais.

O fato é que, de um modo geral, homens e mulheres aparentemente reagem de maneiras diferentes à infidelidade. Conforme nos diz André Bedendo, da equipe do site Prisma Científico (https://prismacientifico.wordpress.com/2014/03/17/trair-ou-nao-trai…), homens se “incomodam” mais com a infidelidade sexual e as mulheres com a emocional ( se seu parceiro se apaixonou por outra pessoa). Segundo este autor,

“para explicar essas diferenças, ainda sob uma lógica evolutiva, a infidelidade sexual para os homens seria mais perturbadora por ele não saber se de fato o filho é seu, o que faria ele dispensar energia para a criação de filhos de terceiros. Já para as mulheres, a traição emocional traria maior desconforto por achar que seu parceiro está investindo recursos em direção a outra mulher e filhos.”

Em outra parte do livro, abordo a questão da escolha dos parceiros sexuais. Segundo o biólogo evolucionista britânico William D. Hamilton (1936-2000) e colaboradores, citado por Fonseca (2010):

a escolha cuidadosa dos parceiros reprodutivos seria um mecanismo comportamental que permite a seleção de bons genes contra parasitas. O pavão é um exemplo emblemático. Pavões machos, na época reprodutiva, agrupam-se por horas com o único objetivo de exibir para as fêmeas o maravilhoso conjunto de plumas de suas caudas. Como o pavão macho não ajuda nada na criação dos filhos, por que as fêmeas perdem tanto tempo para fazer sua escolha? Segundo Hamilton, apenas machos com bons genes contra parasitas têm condição de apresentar plumas grandes, coloridas e simétricas. Ao escolher o parceiro pela aparência, cuidadosamente, as fêmeas estariam no fundo escolhendo bons genes para serem transmitidos a seus filhos.”

Em um outro capítulo do livro abordo o tema do sucesso reprodutivo e as estratégias sexuais que levam a ele, usando como referência um artigo de Borrione e Lordelo (2005) sobre escolha de parceiros e investimento parental, os quais utilizam os argumentos da polêmica Psicologia Evolutiva (PE). Segundo as autoras, A Teoria da Estratégia Sexual de Buss e Schmitt (1993), a qual é considerada como uma extensão da Teoria de Investimento Parental de Trivers (1972):

possui como principal premissa o conceito de estratégia, que considera o comportamento humano como direcionado para objetivos específicos e para solucionar problemas de acasalamento, oriundos do ambiente evolucionário de adaptação da história humana. A adaptação decorre do contexto, especialmente da natureza das estratégias de acasalamento – curto ou longo prazo. Essas estratégias utilizariam o investimento parental como mecanismo psicológico de escolha de parceiro (a)s.”

Todos esses aspectos são discutidos ao longo do livro, além de outros não mencionados aqui, como as semelhanças em nosso comportamento sexual que compartilhamos com os bonobos (Pan paniscus), os primatas que estão mais geneticamente próximos dos humanos. Os bonobos tiveram um coancestral comum com os humanos a cerca de 8 milhões de anos e possuem entre 98-99,4 % de afinidade genética com o nosso gênero, o que foi confirmado recentemente ao ser concluído o sequenciamento do seu genoma por Prüfer (2012) e colaboradores.

Os bonobos são conhecidos como o único animal (excluindo seres humanos) que usa o sexo não somente para reprodução: bonobos usam o sexo para aliviar as tensões sociais. Assim, as práticas sexuais incluem a masturbação, relações heterossexuais e homossexuais entre fêmeas, entre machos, e uma infindável troca de toques dos mais “ternos” aos mais ousados, inclusive as fêmeas copulando além do período de estro. Manter as relações sociais, cimentar alianças entre fêmeas, reduzir conflitos violentos, apaziguamento de brigas, como ritual quando encontram comida e antes de iniciar a refeição… Enfim, o sexo permeia a vida desses primatas, exatamente da forma que acontece em nossa sociedade.

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Referências:

  • Buss, D. M. & Schmitt, D. P. (1993). Sexual strategies theory: an evolutionary perspective on human mating. Psychological Review 100, 204-232).

  • Calegaro, M. M. (2001). Psicologia e Genética: o que causa o comportamento? Revista Cérebro & Mente, vol.14.

  • Dobzhansky, T. (1964). Biology, Molecular and Organismic, American Zoologist, volume 4, pp 443-452

  • Fonseca, C. R. (2010). Os segredos evolutivos do orgasmo feminino. Ciência Hoje, 273, 20-27

  • Prüfer, K. et Al. ( 2012). The bonobo genome compared with the chimpanzee and human genomes. Nature 486, 527–531

  • Rachels, J. (1991) Created from animals: The moral implications of Darwinism New York: Oxford University Press.

  • Trivers, R. L. (1972). Parental investment and sexual selection. In B. Campbell (Org.), Sexual selection and the descent of man 1871-1971 (pp. 136-207). Chicago: Aldine Publishing Company.

  • Young, L. J., and Z. Wang (2004). “The neurobiology of pair bonding.” Nature neuroscience 7.10: 1048-1054).

  • Tavares de Melo Borrione, Roberta & da Rocha Lordelo, Eulina Escolha de parceiros sexuais e investimento parental: uma perspectiva desenvolvimental Interação em Psicologia, 2005, 9(1), p. 35-43 1

  • Zietsch, B. P. , Westberg,L., Santtila, P, and P. Jern ( 2014). Genetic analysis of human extrapair mating: heritability, between-sex correlation, and receptor genes for vasopressin and oxytocin. Evolution and Human Behavior, Vol. 36, Issue 2, p130–136

Darwin Matou Deus?

Essa é a pergunta que faz Conor Cunningham em seu documentário“Did Darwin Kill God?” produzido pela BBC. Formado em direito, filosofia e teologia, Cunningham discorre sobre a dicotomia que existe entre possuir uma crença ou aceitar a evolução. Mas será que a formulação da teoria da evolução proposto pelo naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882) e descrita em sua obra prima de 1859, A Origem das Espécies extinguiu qualquer possibilidade de se manter uma crença ou fé? Teria Darwin, de fato, matado Deus? O biólogo Henrique Rufo fez uma análise do documentário de Cunningham para o site Evolution Academy e chegou à conclusões interessantes.

A batalha é ferrenha. As questões religiosas sempre permearam as discussões científicas, tornando-se objeto de muita polêmica entre cientistas renomados, mas nenhuma prevaleceu tanto como as de oposição ao darwinismo.

“De um lado encontram-se os fundamentalistas religiosos que fazem uma interpretação literal da bíblia e que incentivam seus fiéis a rejeitarem a teoria da evolução e a buscarem explicações alternativas (não-científicas), como o criacionismo. Do outro lado estão grupos de ateus que afirmam que ao entender o mundo sob à luz da evolução não sobra espaço para a crença na existência de Deus ou deuses. O objetivo de Conor é tentar entender onde uma pessoa como ele, um cristão que rejeita o criacionismo e o design inteligente, e um admirador de Darwin e de seu trabalho, se encaixa nessa história”.

Diz Rufo em sua análise:

“Apesar da teoria da evolução já ser bem consolidada, apoiada por uma gama de evidências e ser uma das teorias mais importantes para a ciência, existem aqueles que se dedicam a negar a sua veracidade. Essa onda de negação é enaltecida por fundamentalistas religiosos e pseudocientistas, e que de certa forma acaba por atingir o público cientificamente leigo, espalhando desinformação. O criacionismo é o principal opositor as ideias de Darwin. Sua base está em uma interpretação literal da bíblia sagrada, que seria a fonte de toda a verdade. Esses literalistas bíblicos enxergam nas escrituras um relato histórico, não havendo espaço para interpretações alegóricas”.

Em outro trecho de sua análise, Rufo esclarece:

“Darwin veio propor que todos os seres vivos no planeta, incluindo os seres humanos, descendiam de um ancestral comum. E que a origem de novas espécies se dava por um processo natural, que ele chamou de descendência com modificação. Contrário às ideias fixistas de alguns esse modelo apresentado por Darwin gerou repulsa naqueles que defendiam que as espécies eram estáticas, não sofriam mudanças e se mantinham iguais desde que surgiram na Terra. Objeções as ideias de Darwin vieram de vários cantos, algumas delas tinham cunho científico e propunham discutir as premissas e os mecanismos propostos por Darwin. A rejeição completa dessas ideias era, em sua maioria, originária de grupos de religiosos fervorosos, fixistas e partidários do criacionismo. Porém, uma nova interpretação do mundo também viria a rivalizar com o darwinismo, pois suas premissas negavam a possibilidade da vida se desenvolver naturalmente. Era necessário um agente externo para orquestrar as coisas, que Conor classifica como uma nova concepção de Deus.

Essa nova concepção de Deus foi ganhando popularidade ao longo da revolução industrial, onde a sociedade estava imersa nas maquinas e suas engrenagens, a ideia de um Deus mecânico. Seu principal proponente foi William Paley, teólogo que viveu antes de Darwin, e através de seu livro Natural Theology lançou a famosa analogia do relógio. Paley propunha que, como um relógio composto de partes complexas, todas necessárias para o relógio funcionar, o mesmo se dava com os seres vivos.”

“Se Darwin chegou a matar algum Deus, esse foi o Deus de Paley”, diz Rufo.

“Com a apresentação de sua teoria, Darwin demonstrou que a natureza era regida por um processo natural, sem a necessidade de um agente externo, a seleção natural. Posteriormente com redescoberta dos trabalhos de Mendel e sua fusão com as ideias de Darwin, que culminou no que foi chamado de teoria sintética da evolução, o Deus de Paley tornou-se obsoleto. Só que de certa forma suas ideias permanecem vivas até hoje. Como os criacionistas começaram a enfrentar dificuldades para inserir o criacionismo nas aulas de ciência devido seu alto teor religioso, foi articulada uma reciclagem dos pensamentos de Paley, o que deu origem ao movimento do Design Inteligente (D.I.).”

“O movimento D.I. deu uma nova roupagem ao criacionismo, na tentativa de fazer parecê-lo mais científico, mas essa estratégia abriu as portas para ser utilizada também por ufólogos e raelianos. A ideia de um agente externo comandando a evolução pode satisfazer tanto os criacionistas, dando ao agente a identidade de uma divindade, quanto a qualquer outro movimento cuja a identidade do “Designer” podem ser múltiplos deuses, extraterrestres, criaturas cósmicas e etc. Ou seja, um antro de pseudociência”.

Mais adiante em sua análise, Henrique Rufo transcreve as palavras do professor Conor sobre o design inteligente:

Cientistas de todo o planeta o rejeitam. Mas, para mim, seu maior problema é o que diz sobre Deus. O design inteligente descreve um Deus que intervém no desenvolvimento da vida, criando avanços ao longo do caminho. Mas se esse é o caso, por que esse Deus não intervém e impede o abuso infantil, a fome e o genocídio? O Deus do design inteligente é um mecânico sobrenatural que é extremamente bom em fazer coisas, mas que parece falhar inteiramente no plano moral.”

“Ao rejeitar essas vertentes tanto no meio científico quanto em seu teor teológico, a visão de Cunningham se assemelha bastante a do geneticista Francis Collins, o que me faz deduzir que ele seja um evolucionista teísta.

Após sua crítica a divindade propagada pelo design inteligente Conor Cunningham esclarece a sua visão de Deus:

‘Para mim, Deus é a fonte da dádiva da vida, de toda a vida. Deus é aquele no qual vivemos, movemos e existimos. E é isto que a tradição cristã nos ensina. Deus é a própria existência. Ele é o criador do tempo. Portanto, não consigo ver nenhum conflito filosófico entre crer em Deus como o criador e nossa compreensão da evolução como o processo pelo qual Deus permite o desdobramento da vida.’

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Assista aqui a versão legendada do documentário completo de Cunningham “Did Darwin Kill God?” (Darwin Matou Deus?)

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Referências:

  • Rufo, Henrique ‘Darwin matou Deus? Uma análise do documentário “Did Darwin Kill God?” ‘Evolutionary Academy, 11 de agosto, 2015 [link].

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Para saber mais sobre o argumento de Paley e porque ele fracassa, veja o artigo de Maxwell Morais de Lima Filho,  cuja introdução pode ser encontrada aqui, no evolucionismo, e cujo artigo completo pode ser achado aqui neste link

A Nova Filogenia das Aves Modernas

Um conjunto de artigos publicados esta semana na revista Science serviu para esclarecer questões importantes a respeito da evolução das aves atuais. Uma equipe internacional composta por pesquisadores de 20 países formaram um consórcio para estudar a evolução, dissecar as bases genômicas das características complexas, e resolver um debate secular em relação à árvore filogenética das espécies atuais de aves. Os dados resultantes do conjunto de 48 genomas de aves consistentemente anotados abrangem 32 das 35 ordens de aves propostas recentemente, incluindo todos as 30 ordens de neognathas, e, portanto, representa uma vasta gama de diversidade evolutiva aviária. As análises do consórcio resultaram em oito artigos publicados na Science , bem como 20 artigos em outras revistas como Genome Biology e GigaScience. Entre estas publicações estão incluídos dois trabalhos emblemáticos: uma exploração em escala dos dados genômicos para gerar uma filogenia das ordens aviárias altamente fundamentada, o que resolve muitos debates sobre a cronologia e a topologia de sua radiação; o outro, uma análise genômica comparativa explorando a evolução do genoma aviário e da base genética das características complexas. Outros estudos publicados na Science descrevem as regiões convergentes do cérebro e a expressão do gene para a aprendizagem do canto das aves e da fala humana.

Há 66 milhões de anos os dinossauros, tal e como se conhecem, se extinguiram, porém alguns répteis e aves sobreviveram a esta extinção em massa. As aves que sobreviveram sofreram uma rápida evolução e uma grande diversificação mas, até agora, não tem sido fácil para os cientistas explicar a árvore familiar das aves modernas. Os estudos filogenéticos disponíveis até agora sobre a evolução das aves modernas havia analisado conjuntos de genes concretos que se relacionavam com características anatômicas ou comportamentais nas aves. Os resultados apresentados pelo “Avian Phylogenomic Consortium” comparam o genoma inteiro de todas as espécies, o que permitiu aos cientistas reconstruir a árvore filogenética das aves com muito mais detalhes, incluindo informações sobre as relações de parentesco entre grupos e o momento em que se separaram.

O consorcio internacional para o estudo da genômica das aves, liderado por Guoije Zhang, do ‘National Genebank BGI‘, na China e da Universidade de Copenhague, trabalhou durante quatro anos no sequenciamento massivo do genoma das 48 espécies de aves e de outros animais como os crocodilos (os crocodilianos modernos constituem o grupo externo (‘outgroup) mais próximo das aves atuais).

De acordo com a Wikipedia:

“evidências fósseis e análises biológicas intensas tem demonstrado que as aves descendem dos dinossauros terópodes. Mais especificamente, elas são membros do clado Maniraptora, um grupo de terópodes que inclui as famílias Dromaeosauridae e Oviraptoridae. Com a descoberta de mais terópodes não pertencentes ao clado Avialae, a distinção entre terópodes e aves ficou ofuscada. Recentes descobertas na província de Liaoning no nordeste da China, que demonstraram que muitos pequenos terópodes possuíram penas, contribuíram para essa ambiguidade.”

As aves se diversificaram numa grande variedade de formas durante o período Cretáceo. Muitos grupos retiveram características primitivas, como garras nas asas e dentes, embora os dentes foram perdidos independentemente em vários grupos de aves. Enquanto as formais primitivas, como o Archaeopteryx e o Jeholornis, retiveram os longos ossos da cauda dos seus ancestrais, as caudas das aves mais avançadas foram encurtadas com o advento do osso pigóstilo no clado Pygostylia.

A primeira linhagem grande e diversa de aves de cauda curta a evoluir foi a Enantiornithes, nomeada em função da construção dos ossos do ombro estarem em posição contrária a das aves modernas. Os Enantiornithes ocuparam uma grande variedade de nichos ecológicos, de filtradores de areia e piscívoros a trepadores e granívoros. Algumas linhagens mais avançadas também se especializaram em um dieta a base de peixes, como a classe Ichthyornithes. Uma ordem de aves marinhas do Mesozoico, a Hesperornithiformes, tornou-se tão adaptada ao ambiente aquático que perdeu a capacidade de voar. Apesar dessas especializações extremas, os Hesperornithiformes representam uma das linhagens mais próximas as aves modernas.”

A classificação tradicional segue o padrão de Clements (também conhecido como as ordens de Clements):

Subclasse †Archaeornithes Gadow, 1893 – aves ancestrais

Ordem †Archaeopterygiformes Lambrecht, 1933 – arqueopterix

Ordem †Confuciusornithiformes Hou et al., 1995

Subclasse Neornithes Gadow, 1893 – aves modernas

Superordem Paleognathae Pycraft, 1900 – aves com asas atrofiadas e osso esterno sem quilha
Superordem Neognathae Pycraft, 1900 – aves com asas bem desenvolvidas e osso esterno com quilha”

Cladograma mostrando a recente classificação das Neoaves, baseada em diversos estudos filogenéticos.

A classificação radicalmente diferente de Sibley-Monroe (Taxonomia de Sibley-Ahlquist), baseada em dados moleculares de hibridização DNA-DNA, encontrou corroboração, por evidências moleculares, fósseis e anatômicas, de algumas modificações propostas, entre elas o apoio para o clado Galloanserae”.

Segundo um dos cientistas que participaram do projeto, o brasileiro Claudio Mello, da Universidade de Ciência e Saúde do Oregon (Estados Unidos):

as aves são um dos grupos mais diversos que existem, com cerca de dez mil espécies. Essa diversidade tornava complexa a tarefa de entender as relações entre elas e, por isso, até hoje não tínhamos uma árvore filogenética confiável”. [Veja aqui]

Muitos ramos surgiram quase simultaneamente. Isso aumentava a dificuldade para organizar a árvore evolutiva das aves. Agora, temos dados confiáveis que deverão gerar muitas descobertas nos próximos anos”, disse Mello. [Veja aqui]

Os principais artigos deste estudo publicados na Science indicam que a aprendizagem vocal, isto é, a capacidade para emitir sons, modificar o tom e reproduzir um som por imitação, evoluiu de forma independente, no mínimo em duas ocasiões. Um grupo de cientistas brasileiros – liderado por Claudio Mello, Maria Paulo Schneider, da Universidade Federal do Pará (UFPA), e Francisco Prosdocimi, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – mapeou os genes relacionados ao aprendizado vocal em grupos de pássaros e os comparou com os marcadores do cérebro humano que controlam a fala:

Muitos dos genes ligados ao canto do passarinho estão também nas áreas do cérebro humano responsável pela fala”, explicou o cientista Claudio Mello [Veja aqui].

Geralmente, tem se admitido que os circuitos cerebrais para a aprendizagem musical e vocal em aves e humanos são similares, porém se tinha chegado a eles por vias diferentes na evolução. Esta macroanálise feita pelo consórcio constata que os pássaros apresentavam mutações em grupos de genes que codificam o esmalte e a dentina e cinco destes genes relacionados com a formação de dentes haveria se desabilitado há uns 116 milhões de anos em algum antepassado das aves modernas.

Com a base da evidência fóssil e molecular, os pesquisadores propõem um cenário de duas fases em que a perda dos dentes e o desenvolvimento do bico evoluíram juntos no ancestral comum de todas as aves modernas. Na primeira etapa, a perda dos dentes e o desenvolvimento de um bico parcial começou na parte anterior da mandíbula superior e inferior, enquanto a segunda fase consistiu na progressão concorrente da perda dos dentes e o desenvolvimento da parte do bico anterior de ambas mandíbulas até parte posterior.

Entre outras coisas, os pesquisadores do consórcio estimam que os pinguins apareceram pela primeira vez há cerca de 60 milhões de anos. O estudo mostra que a população de pinguins de Adelia aumentou rapidamente há aproximadamente 150.000 anos, quando o clima se tornou mais quente, porém mais tarde se reduziu em 40% faz unos 60.000 anos, durante um período glacial frio e seco, enquanto a população de pinguins imperador se manteve estável, o que sugere que se adaptou melhor as condições glaciais, por exemplo, ao serem capazes de proteger seus ovos contra temperaturas abaixo de zero e incubá-los em seus pés.

O consórcio descobriu também que ambos pinguins expandiram genes relacionados com beta-queratinas, as proteínas que constituem 90% das penas, com ao menos 13 genes responsáveis por um só tipo de beta-queratina, que é o número mais alto em comparação com todos os outros genomas de aves conhecidas e tudo isso explicaria sua importância em garantir que as penas dos pinguins sejam curtas, rígidas e densamente concentradas para minimizar a perda de calor, sendo resistentes a água e ajudando a nadar embaixo d’água.

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Referências:

  • Zhang G, Jarvis ED, Gilbert MT. Avian genomes. A flock of genomes. Introduction. Science. 2014 Dec 12;346(6215):1308-9. doi:10.1126/science.346.6215.1308.

  • Pfenning, AR, et al. Convergent transcriptional specializations in the brains of humans and song-learning birds. Science. 2014 Dec 12;346(6215):1256846. doi: 10.1126/science.1256846.

  • Cracraft, . in The Howard and Moore Complete Checklist of the Birds of the World, E. C. Dickinson, J. C. J. Remsen, Eds. (Aves Press, Eastbourne, UK, 2013), pp. xxi–xliii.

  • Zhang, G. et al. Comparative genomics reveals insights into avian genome evolution and adaptation.  12 December 2014: Vol. 346 no. 6215 pp. 1311-1320 
    DOI: 10.1126/science.1251385.

  • Duke University. “‘Big Bang’ of bird evolution mapped: Genes reveal deep histories of bird origins, feathers, flight and song.” ScienceDaily. ScienceDaily, 11 December 2014. [Veja também aqui e aqui]

Celacanto Ainda Causa Maremoto na Biologia Evolutiva

Quem já passou dos 50 anos, certamente se lembra do seriado National Kid, exibido na televisão brasileira entre 1964 e 1970. O seriado foi criado em 1960, por encomenda, com a finalidade de servir de merchandising para a fábrica de eletrodomésticos National Electronics Inc., atual Panasonic. Vestido com roupa espacial, capacete, máscara, capa, luva e com uma grande letra “N” estampado no peito, nosso herói salvava a todos e era auxiliado (ou atrapalhado) por vários personagens. 

Dentre os muitos povos inimigos que o personagem heróico combatia, havia os seres abissais. Governados por Nelkon, os seres abissais andavam a bordo do submarino-monstro cujo nome era Guilton. Quando este balançava as barbatanas, provocava um maremoto, daí a famosa frase: “Celacanto provoca maremoto” que foi muito pichada nas paredes, principalmente no Rio de Janeiro, durante o regime militar. Seriam eles, os celacantos, seres das profundezas do mar revoltados com a constante poluição provocadas pelo homem lançando destroços e lixo radioativo no mar (isso já naquele tempo).

Mais não é sobre esse celacanto da ficção que eu quero falar. Quero me referir ao celacanto capturado em 1938 na região do rio Chalumna, na costa leste da África do Sul, em uma rede de tubarões, pelo capitão Goose e sua tripulação. Como os pescadores acharam que o aspecto do peixe era muito bizarro, resolveram alertar o museu local sobre o achado. A diretora do museu era, na época, a Sra. Marjorie Courtney- Latimer. Então, ela avisou ao proeminente ictiologista sul-africano, o Dr. J.B. Smith sobre a interessante descoberta. O celacanto foi então batizado como Latimeria chalumnae em homenagem à Sra. Courtney-Latimer. Durante sessenta anos pensou-se que este era o único celacanto existente.

Em 30 de julho de 1998, outro celacanto foi capturado em rede de tubarão, em águas profundas, perto da ilha vulcânica de Manado Tua, no norte de Sulawesi, Indonésia (o local está a cerca de 10 mil quilômetros a leste do primeiro achado). Quando o celacanto de Sulawesi foi documentado, a diferença mais óbvia encontrada em relação ao achado das Ilhas Comores era apenas a cor: enquanto a cor do celacanto de Comores era azul-metálica, a do celacanto de Sulawesi era marrom. Em 1999, o celacanto de Sulawesi foi descrito como uma nova espécie, Latimeria menadoensis.

A descoberta do celacanto pela ciência em 1938 causou uma grande excitação no mundo científico da época (semelhante a um maremoto), porque se pensava que eles eram os ancestrais dos tetrápodes. Hoje sabemos que os peixes pulmonados estão mais estreitamente relacionados com os tetrápodes do que os celacantos. Mesmo assim, muitos consideram a descoberta de L. chalumna como o maior feito zoológico do século XX. Apesar dos novos estudos, o celacanto ainda continua causando muito rebuliço entre os pesquisadores do assunto. A recente análise do transcriptoma do celacanto indonésio por Pallavicini e seus colaboradores é uma prova que as pesquisas não vão parar por aí. Duas postagens de Rodrigo Véras aqui no Evolucionismo esclarecem bem esta relação destes peixes relicários com os tetrápodes atuais e também mostra os resultados das análises genômicas das duas espécies de Latimeria, entre outras considerações. Vale a pena conferir Ainda vivos e evoluindo: A diversidade dos modernos celacantos do l… e O genoma do celacanto e a evolução dos vertebrados terrestres

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Referências:

  • Mcgrouther, M and Miller, L.Australian Museum Fish. Disponível em 
  • Pallavicini,A. et al. Analysis of the transcriptome of the Indonesian coelacanth Latimeria menadoensis. BMC Genomics 2013 , 14: 538 , DOI10,1186 / 1471-2164-14-538

Os Ribossomos e o Registro da Evolução

Um novo estudo co-financiado pelo Instituto de Astrobiologia da NASA (NAI) sobre a evolução dos ribossomos foi publicado esta semana no periódico Proceedings of the National Academy of Science of the United States of America (PNAS). Desta vez os cientistas compararam as estruturas tridimensionais dos ribossomos de uma variedade de espécies de complexidade biológica variável, incluindo humanos, leveduras, bactérias e archaea e descobriram “impressões digitais” distintas nos ribossomos, onde novas estruturas foram adicionadas à superfície ribossômica, sem alterar o núcleo ribossômico pré-existente. Segundo os pesquisadores, esse núcleo ribossômico se originou há mais de 3 bilhões de anos antes do último ancestral universal comum (LUCA) da vida.

De acordo com o professor Lore Williams da Escola de Química e Bioquímica do Instituto de Tecnologia da Geórgia (Georgia Tech) e principal investigador da equipe da NAI, a história dos ribossomos nos conta a origem da vida. 

O sistema de tradução é o sistema operacional de vida”, disse Williams. “Na sua essência o ribossomo é o mesmo em todos os lugares. O ribossomo é biologia universal”.

A equipe da Georgia Tech tem se dedicado ao estudo da origem e evolução dos ribossomos. Os pesquisadores constataram que o núcleo do ribossomo é essencialmente o mesmo em  seres humanos, leveduras, bactérias e archaea – em todos os sistemas vivos, enfim. Também descobriram que enquanto as regiões exteriores dos ribossomos se expandem e se tornam complexas, as espécies ganham complexidade. Através da retirada digital das camadas de ribossomos modernos no novo estudo, os cientistas foram capazes de modelar as estruturas dos ribossomos primordiais.

Neste trabalho, a equipe da Georgia Tech mostrou que os organismos evoluem e se tornam mais complexos, assim como os seus ribossomos. Os seres humanos têm os maiores e mais complexos ribossomos. Mas as modificações limitam-se à superfície – o cerne do ribossomo de um ser humano é o mesmo que o do ribossomo bacteriano. Podemos perceber isso no vídeo disponibilizado pelos autores do estudo sobre a origem e a evolução dos ribossomos. No estudo em questão, Williams e seu colega Anton Petrov mostram como segmentos foram sendo continuamente adicionados ao ribossomo, sem alterar a estrutura subjacente. 

Os ribossomos existem em todas as células e são responsáveis ​​pela tradução do RNA mensageiro (RNAm) em proteína. A informação genética armazenada no DNA é transcrita em RNAm, que é então enviado para fora do núcleo da célula. Os ribossomos, em todas as espécies, usam o RNAm como um projeto para a construção de todas as proteínas e enzimas essenciais para a vida. Os cientistas comprovaram no estudo que o RNA ribossomal (RNAr) dos eucariontes contém segmentos de expansão acrescidos sobre a superfície do cerne ribossômico, os quais são quase idênticos em estrutura aos que estão presentes nos ribossomos dos procariontes. A comparação entre os ribossomos eucarióticos e procarióticos permitiu aos pesquisadores identificar as chamadas “impressões digitais de inserção” dos segmentos de expansão. 

Os autores do estudo afirmam que, conceitualmente, reverter essas expansões permite a extrapolação para trás no tempo para gerar modelos de ribossomos primordiais. Segundo Lore Williams:

 “Nós aprendemos algumas das regras do ribossomo, que a evolução pode alterar o ribossomo, desde que ela não mexa com o seu cerne”. “A evolução pode adicionar coisas, mas ela não pode mudar o que já estava lá”.

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Referência:

Scalice, Daniella ‘O ribossomo: o registro da evolução’ [tradução Universo Racionalista] Astrobiology Life in the Universe, July 2, 2014 [original]

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Para saber mais:

Crédito da imagem: Loren Williams / Georgia Institute of Technology.

Sobre a Evolução das Leveduras dos Fermentos Biológicos

Pesquisadores da Universidade de Bordeaux, na França publicaram um artigo na PLOS ONE (que rendeu um post no blog da comunidade Plos, escrito por Tara Garnett) demonstrando que diferentes cepas de leveduras da espécie Torulaspora delbrueckii, de recente interesse comercial, sofreram intervenção humana em sua evolução. Estudos anteriores já haviam demonstrado como nosso histórico de uso de leveduras afetou a evolução de uma das espécies mais utilizadas, a Saccharomyces cerevisae , com a criação de diferentes cepas que são utilizadas para fins diferentes (pão, vinho, e assim por diante).

Para demonstrar a influência humana sobre T. delbrueckii, os pesquisadores franceses fizeram o mapeamento da arvore genealógica da espécie em questão, após coletar 110 amostras de T. delbrueckii a partir de fontes globais de uvas para vinho, produtos de panificação, laticínios e bebidas fermentadas. Possíveis microssatélites (sequências repetitivas de pares de bases, como a AT e GC), foram encontrados no DNA de uma cepa e usados para criar ferramentas que identificam sequências similares em outras linhagens. Eles usaram os resultados para identificar oito diferentes  microssatélites marcadores (sequências de pares de bases) que eram compartilhados por algumas cepas, mas não por outras, para medir a variação genética em T. delbrueckii.  A composição de cada estirpe foi analisada usando-se eletroforese em microchips, um processo em que os fragmentos de DNA migram através de um gel que é submetido a um campo elétrico, o que ajuda os pesquisadores a separar os fragmentos de acordo com o seu tamanho. Estes microssatélites marcadores específicos de cada estirpe permitiram produzir um dendrograma (a figura colorida aí em baixo) que ilustra o grau de similaridade entre as estirpes. Os pesquisadores também estimaram o tempo que diferentes cepas levaram para evoluir através da comparação da taxa média de mutação e do tempo de reprodução de T. delbrueckii com o nível da diferença genética entre cada cepa.

No dendrograma ao lado [retirado de Albertin et al., 2014; DOI: 10.1371/journal.pone.0094246] podem tornam-se nítidos claramente quatro grupos de cepas de leveduras que estão fortemente relacionadas as origens de cada amostra. A maioria das cepas isoladas da natureza estão contidas em dois destes grupos, mas que podem ser diferenciados um do outro: os coletados no continente americano (grupo natural das Américas) e aqueles recolhidos na Europa, Ásia e África (grupo natural do Velho Mundo). Os outros dois grupos incluem cepas de amostras de alimentos e bebidas, mas não puderam ser diferenciados pela localização geográfica. O grupo uva/vinho contém 27 cepas que foram isoladas de uvas das principais regiões produtoras de vinho do mundo: Europa, Califórnia, Austrália, Nova Zelândia e América do Sul. O grupo de ‘bioprocessos‘ contém cepas bem variadas geograficamente que foram coletadas de outras áreas de processamento de alimentos, tais como produtos de pão, comida estragada,  alimentos e bebidas fermentadas. Este grupo também contém um subgrupo de estirpes utilizadas especificamente para produtos lácteos. Em uma análise mais detalhada da variação entre as estirpes foi confirmado que, apesar dos grupos do dendrograma não conseguirem separar perfeitamente as estirpes de acordo com o uso humano (e a origem geográfica da amostra teve algum papel na diversidade), uma grande parte da estrutura da população pôde ser explicada pela fonte material da estirpe.

Os pesquisadores calcularam os tempos de divergência para os diferentes grupos e estes resultados enfatizam ainda mais a ligação entre a adoção da levedura T. delbrueckii pelos seres humanos e a evolução contínua desta espécie. O grupo das cepas ‘uva/vinho’ divergiu do grupo ‘Velho Mundo’ há aproximadamente 1.900 anos. Isso coincidiu com a expansão do Império Romano e a propagação de Vitis vinifera, a uva comum. Já o grupo de ‘bioprocessos‘ divergiu muito antes, cerca de quatro mil anos atrás, ou seja, por volta da era Neolítica, o que mostra que a leveduras foram utilizadas para a produção de alimentos muito antes de serem direcionadas para produção de vinho.

Enquanto T. delbrueckii tem sido muitas vezes negligenciada pelos produtores em favor das cepas mais comuns  de S. cerevisiae , a primeira vem recentemente ganhando força por sua capacidade de reduzir os níveis de compostos voláteis que afetam negativamente o sabor e aroma do vinho. Como esta cepa tem uma alta tolerância ao congelamento, quando usada como agente de fermentação, ela vem atraído a atenção das empresas que tentam congelar e transportar a massa com eficiência.

Tentativas de desenvolver melhores cepas deste fermento para uso comercial já haviam começado, mas anteriormente não se tinha uma compreensão do seu ciclo de vida e nem dos hábitos reprodutivos destes organismos. Agora isso mudou. Ao criarem esta árvore genealógica de T. delbrueckii, os autores acabaram ganhando uma compreensão mais profunda desta espécie como um todo e estas informações  devem contribuir para um melhor desenvolvimento do uso tecnológico destes microrganismos.

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Referência:

Leitura recomendada: 

  • Albertin W, Chasseriaud L, Comte G, Panfili A, Delcamp A, et al. (2014) Winemaking and Bioprocesses Strongly Shaped the Genetic Diversity of the Ubiquitous Yeast Torulaspora delbrueckii. PLoS ONE 9(4): e94246. doi:10.1371/journal.pone.0094246

  • Setati ME, Jacobson D, Andong U-C, Bauer FF (2012) The Vineyard Yeast Microbiome, a Mixed Model Microbial Map. PLoS ONE 7(12): e52609. doi:10.1371/journal.pone.0052609

  • Tao X, Zheng D, Liu T, Wang P, Zhao W, et al. (2012) A Novel Strategy to Construct Yeast Saccharomyces cerevisiae Strains for Very High Gravity Fermentation. PLoS ONE 7(2): e31235. doi:10.1371/journal.pone.0031235

A Evolução da Estrutura das Diferentes Faces dos Morcegos Nariz-de-Folha do Continente Americano

Qual é a semelhança entre os tentilhões-de-Darwin de Galápagos e os morcegos nariz-de-folha do Novo Mundo? A julgar pela aparência, a resposta seria fácil: nenhuma. Agora, se considerarmos pelo ponto de vista evolutivo, a resposta seria outra. Pensando nisso, é que a bióloga Betsy Dumont e seus colaboradores resolveram estudar a estrutura da face dos morcegos nariz-de-folha do continente americano e relacioná-las com as adaptações alimentares desses animais. A matéria saiu na Popular Science este mês e é muito interessante.

A maioria dos morcegos-nariz-de-folha são insetívoros, mas eles oferecem grandes exemplos de radiação adaptativa em mamíferos – bem como os tentilhões-de-Darwin das Ilhas Galápagos, cujos bicos variados oferecem uma bela visão do trabalho da seleção natural, o fazem em relação as aves. Morcegos trazem uma variedade deslumbrante de formas e tamanhos, o que representa uma das mais amplas variações entre todos os mamíferos – especialmente os morcegos nariz-de-folha do Novo Mundo. Estas criaturas são reconhecidas pelos apêndices semelhantes a chifres situados em seus focinhos. Estes apêndices são chamados de folha nasal e são responsáveis pela modificação das chamadas nasais de ecolocalização dos morcegos.

Algumas folhas nasais são atarracadas e largas, enquanto outras são pontudas como o chifre dos unicórnios. Alguns morcegos têm faces carnudas planas, enquanto outros têm focinhos graciosamente compridos; alguns têm pequenos olhos redondos e outros têm grandes olhos amendoados; alguns têm mandíbulas arredondadas, sorridentes e outros têm a fisionomia amassada igual ao de um buldogue ou de um boxeador que levou uma surra.

A maioria dos morcegos nariz-de-folha vivem em florestas, mas também possuem algumas espécies que vivem no deserto. São encontrados em maior número de espécies em florestas tropicais de baixa altitude no norte da América do Sul e na América Central. Eles variam em tamanho de cerca de quatro até quinze centímetros de comprimento, e – ao que parece- evoluíram para comer tudo o que a natureza tem para oferecer: insetos, frutas, néctar, pólen, sapos, morcegos e até sangue (a família Phyllostomidae inclui morcegos-vampiros).

No estudo em questão, a equipe de Dumont queria descobrir quais fatores biomecânicos estariam por trás da evolução dessa aparência maluca das faces dos morcegos e do formato de suas cabeças. Eles queriam construir modelos de engenharia que pudessem simular as forças de tensão – ou seja, as forças que uma estrutura pode suportar – e a vantagem mecânica para cada face de morcego na história evolutiva desses animais. Inicialmente, eles fizeram uma tomografia computadorizada do crânio de um tipo mais comum de morcego e foram modificando-a, por meio de um programa  especializado de computador, até chegar na criação de modelos de todos os comprimentos e larguras possíveis de mandíbulas. Em seguida, os biólogos calcularam os valores numéricos para a tensão e a vantagem mecânica entre todos esses modelos.

Para a realização do trabalho, Dumont e sua equipe capturaram morcegos na floresta tropical usando redes de neblina e os fizeram morder um pequeno aparelho para medir a força de sua mordida. Depois, combinaram análise de engenharia com evolução para desvendar, principalmente, qual seria a vantagem mecânica (em termos de seleção natural ) da capacidade da mordida de um morcego.

Segundo a bióloga, a seleção natural favoreceu três formas básicas de faces para os morcegos nariz-de-folha: comprida e fina; curta e larga e uma forma”intermediária” entre as duas. Morcegos com faces curtas e largas se especializaram em comer frutos muito duros, como figos selvagens. Animais com focinhos compridos e finos conseguem encaixá-los perfeitamente em flores profundas em busca do néctar. E, claro, há um tipo isolado: os morcegos-vampiros, que são consideradas “um pouco estranhos“, apesar de sua mordida apresentar uma vantagem mecânica relativamente alta. Além da particularidade encontrada na força mandibular dos vampiros , os resultados mostraram que a vantagem mecânica foi mais importante do que a força estrutural na evolução das diferentes faces de morcegos.

Até certo ponto, existe uma compensação entre as duas formas básicas” diz a pesquisadora. Embora aqueles que se alimentam de néctar possuam uma vantagem mecânica ruim em relação aos de focinhos curtos, eles também são realmente muito tensionados. No outro extremo do espectro, os animais com faces supercurtas têm uma excelente força de mordida, mas estão submetidas também a algum tipo de tensionamento, esclarece a bióloga.

Faces de Morcegos e sua Árvore Filogenética. Este diagrama ilustra as modificações extraordinárias sofridas pelos morcegos nariz-de-folha do Novo Mundo após milhões de anos. As faces dos animais são adaptadas especialmente ao tipo de alimentos que eles comem, incluindo frutos, insetos e outros vertebrados. [Courtesia de Betsy Dumont, retirado de Boyle, 2014].

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Para saber mais:

  • Rebecca, Boyle Boyle ‘Like Darwin’s Finches, But Weirder, Bat Faces Showcase Amazing Adaptations’ Popular Science, 7 de fevereiro, 2014.
  • Dumont, Elizabeth R., Samadevam, Krishna, Grosse, Ian, Warsi, Omar M. , Baird, Brandon, Davalos, Liliana M. Selection for Mechanical Advantage Underlies Multiple Cranial Optima in New World Leaf-Nosed Bats. Evolution, 2014; DOI: 10.1111/evo.12358